domingo, agosto 11, 2013

Jogador n.º 1

Na primeira metade da década de 2040, as coisas não estão nada legais para a maior parte da humanidade. Nenhuma catástrofe apocalíptica aconteceu, mas crises econômicas mundiais, recessão, desemprego em massa e recursos naturais escasseando - além das consequências sociais previsíveis disso tudo, como o aumento da criminalidade e do número de pessoas dependendo totalmente do auxílio do governo para sobreviver - encarregam-se de fazer a vida bem difícil.

Para escapar da realidade sombria, a maioria das pessoas nessa época recorre a ilusões virtuais, que, a propósito, chegaram a um grau espantoso de aperfeiçoamento, embora a ideia continue a ser a mesma de algo que já existe nos dias de hoje, os MMORPGs (Massive Mul­tiplayer Online Roleplaying Games, algo como "Jogos Online de Interpretação de Papéis para Múltiplos Jogadores"); esses jogos têm uma história longa, que começa com os RPGs tradicionais, criados nos Estados Unidos na década de 70 e populares até hoje. Muitos de meus leitores devem conhecer RPG, mas outros podem não estar familiarizados com esse tipo de entretenimento, de modo que imagino que uma breve apresentação seja útil para os fins deste post. Vamos a isso.

RPG é a sigla de Roleplaying Game, isto é, jogo de interpretação de papéis. Ainda que muitos praticantes gostem de incrementar a diversão mediante o uso de maquetes, miniaturas e outros acessórios, nada é realmente necessário para jogá-los a não ser o livro de regras, lápis, papel, dados e imaginação. Um dos participantes, denominado mestre do jogo, tem a função de contar a história aos outros, que, por sua vez, controlam, cada um, um personagem. O mestre descreve para os jogadores os lugares que seus personagens percorrem, controla outros personagens com os quais eles venham a interagir (esses são conhecidos, no jargão do jogo, como NPCs, sigla de non-player characters, personagens não-jogadores) e verifica, de acordo com as regras e conforme os resultados dos lançamentos de dados, quais as chances de sucesso de cada ação empreendida pelo grupo. Ao final, os atos de cada um dos aventureiros terão contribuído para o êxito ou o fracasso da missão. Embora possa intimidar um pouco os iniciantes devido à complexidade dos sistemas de regras com os quais é preciso se familiarizar, depois que se pega o jeito, esse é um dos hobbies mais empolgantes já inventados. O lendário Dungeons & Dragons - o primeiro RPG a ser lançado comercialmente, em 1974 - tinha temática de fantasia medieval, inspirada na obra de Tolkien, e vários dos que o seguiram iam na mesma linha, mas, com o tempo, outras possibilidades foram sendo exploradas, de modo que hoje existem RPGs de faroeste, ficção científic­a, terror, espionagem, artes marciais, comédia, e do que mais vocês imaginarem.

Mais tarde, com o progressivo aperfeiçoamento dos computadores, a ideia migrou para dentro deles: era o RPG eletrônico, que proporcionou aos aficionados um novo tipo de experiência. Porém, havia uma desvantagem: o que se ganhava em realismo graças ao ambiente gráfico e aos efeitos sonoros, perdia-se em liberdade de ação. Enquanto nos RPGs tradicionais, ou "de mesa", os jogadores, ao verem-se diante de um perigo ou de um enigma, podiam tentar qualquer solução na qual conseguissem pensar (desde que o mestre permitisse), num RPG de computador, tudo o que o jogador podia fazer era escolher dentre um punhado de possibilidades de ação - somente aquelas previstas pelo criador do jogo. Por isso, muitos são da opinião que esses não devem ser considerados RPGs de verdade, mas apenas jogos de aventura, já que não oferecem ao jogador a oportunidade de realmente interpretar um papel.

O passo seguinte na evolução dos jogos resolveu essa limitação - e agora chegamos aos MMORPGs. Neles, o jogador pode escolher entre dedicar-se às missões que são propostas, ou simplesmente explorar o mundo do jogo - sempre um mundo grande e cheio de surpresas, onde seu avatar (personagem) pode interagir não apenas com NPCs, mas também com os personagens de outros jogadores de qualquer lugar do planeta, todos conectados via internet. Tal como já acontecia nos RPGs tradicionais, cada inimigo derrotado, cada objetivo alcançado, é recompensado com certo número de pontos de experiência; quando o avatar acumula os pontos necessários, ele sobe de nível, tornando-se mais poderoso, capaz de encarar desafios maiores. De resto, há bem pouca coisa que não seja possível fazer nesses jogos (se é que ainda dá para chamá-los de jogos!). Pode-se forjar alianças, começar guerras ou finalizá-las, servir como mercenário a quem pagar mais, caçar perigosas criaturas míticas para obter reagentes mágicos raros que possam ser vendidos a magos... As possibilidades não têm fim. E, como outra coisa que também não tem fim é a criatividade do ser humano - especialmente quando há lucro a tirar disso -, algumas pessoas já inventaram maneiras de "trabalhar" dentro de jogos, e estão até ganhando a vida assim. O jeito mais comum é criar avatares em série, jogar com eles até que atinjam um determinado nível, e então vendê-los a jogadores impacientes e endinheirados, que já querem começar com avatares de alto nível e não se importam de pagar por isso, mas li em algum lugar a história extraordinária de um sujeito que teria formado um exército, comprado máquinas de cerco, sitiado um castelo, e o tomado - e vendido. Essa última parte não aconteceu dentro do jogo: foi uma transação real, mesmo que mediada pela internet. O comprador pagou com dinheiro de verdade pelo privilégio de ser senhor de um castelo feito de pixels.

Hum... Vejo que a "breve apresentação" que pretendia fazer não ficou tão breve assim, e, além disso, o autor de qualquer manual de estilo adotado nas redações de bons jornais e revistas mundo afora iria querer me matar por já começar o texto com uma longa digressão, mas asseguro que tudo o que escrevi será importante para o leitor se situar no universo de Jogador n.º 1; em especial a parte do castelo, que ilustra o quanto a distinção entre real e virtual pode tornar-se imprecisa - e isso já nos dias de hoje, que dirá daqui a algumas décadas.

Alguns anos antes do início da história narrada no livro, foi lançado o OASIS (Ontologically Anthropocentric Sensory Imersive Simulation, ou Simulação Imersiva Sensorial Ontologicamente Antropocêntrica), que, num primeiro momento, pretendia "apenas" redefinir o conceito dos MMORPGs, mas seu principal idealizador, James Halliday - considerado o maior designer de games de todos os tempos - sabia desde o início que seria muito mais do que isso. Com o tempo, o OASIS foi crescendo; grande parte do planeta Terra e de tudo o que nele existe foi incluída na simulação, de modo que as pessoas agora podem viajar para qualquer lugar, a negócios ou turismo, sem sair de casa. O que vem a calhar, já que a crise de combustíveis e o perigo de bandidos nas estradas fizeram das viagens no mundo real uma coisa bem complicada. O fato de ter passado do status de um "simples" jogo ao de uma realidade paralela na qual uma grande parcela da humanidade gasta a maior parte do tempo que permanece acordada - estudando, trabalhando e divertindo-se - representa uma façanha formidável, mas é apenas o começo das possibilidades do OASIS. A mesmíssima simulação que grupos da terceira idade podem usar para fazer tranquilas excursões a qualquer destino turístico tradicional, também oferece o suficiente para encher os sonhos de várias encarnações de qualquer aventureiro:

A GSS também havia pré-licenciado mundos virtuais de seus competidores, por isso o conteúdo que já tinha sido criado para os jogos, como Everquest e World of Warcraft, foi repassado ao OASIS, e cópias de Norrath e Azeroth foram incluídas no catálogo crescente de planetas OASIS. Outros mundos virtuais logo copiaram isso, desde o Metaverse ao Matrix. O universo Firef­ly ficava anco­rado em um setor adjacente ao da galáxia do Star Wars, com uma detalhada recriação do universo Star Trek no setor adjacente a ele. Os usuários podiam se transportar de um lado a outro em seus mundos fictícios favoritos. Terra-média. Vulcano. Pern. Arrakis. Magrathea. Discworld, Mid-World, Riverworld, Ringworld. Mundos dentro de mundos.

Pelas barbas de Júlio Verne! Conseguem imaginar isso?... Até para o mais centrado dos usuários seria difícil ter vontade de voltar para o mundo real - particularmente se o mundo real estivesse mesmo do jeito como Ernest Cline o descreve.

A GSS (Gregarious Simulation Systems), aí mencionada, é a empresa fundada por Halliday e seu sócio e melhor amigo, Ogden Morrow. Graças, principalmente, ao OASIS, essa empresa tornou-se uma gigante no setor de softwares de entretenimento, fazendo de ambos multibilionários. Entretanto, enquanto Morrow é o mais sociável e comercial dos dois, com talento para relações públicas, Halliday é a imagem do nerd genial, mas introvertido, levada ao extremo. Quando a longa parceria chega a um fim inopinado devido a certos "desentendimentos" que nenhum dos dois explica, Morrow deixa a GSS para abrir sua própria empresa; Halliday passa a viver recluso, ocupado sabe-se lá com que criações mirabolantes e secretas.

A história de Jogador n.° 1 começa em 2041, com a morte de Halliday. Solteiro e sem parentes vivos, ele deixa um desafio gravado em vídeo, além de devidamente registrado em seu testamento - um desafio aberto a todos os usuários do OASIS: sua fortuna pertencerá ao primeiro que desvend­ar três enigmas e sair vitorioso das três provas às quais eles conduzem. As pistas que levam aos enigmas, Halliday escondeu em algum lugar do OASIS, e não é preciso dizer que "procurar agulha em palheiro" é uma expressão fraca para dar ideia da dificuldade da busca que os candidatos a seus herdeiros têm pela frente. A notícia deixa o mundo em polvorosa. Imediatamente forma-se a classe dos caça-ovos, que é como se auto-intitulam os aventureiros que assumidamente têm como principal objetivo de suas explorações no OASIS vencer o desafio de Halliday (o nome é uma alusão à tradicional brincadeira norte-americana de esconder os ovos de chocolate em algum lugar da casa na manhã de Páscoa e fazer com que as crianças os procurem). Há caça-ovos que se reúnem em clãs, enquanto outros preferem agir sozinhos. A única pista para começar a busca é o vídeo do convite/desafio, e este está repleto de citações da cultura pop dos anos 1980, década em que Halliday viveu sua adolescência, e pela qual foi apaixonado até o fim da vida. Parece óbvio que quem pretenda vencer terá de possuir um vasto conhecimento sobre todo e qualquer assunto que pudesse atrair um jovem nerd oitentista. Isso provoca uma súbita e arrasadora revivescência do interesse por tudo o que venha da época: livros de ficção científica, fantasia e terror, filmes, desenhos animados, séries de TV, músicas, quadrinhos, RPGs e, de modo especial, os videogames primitivos de então, tudo entra na mira dos caça-ovos e passa a ser objeto de estudo minucioso, pois ninguém sabe onde pode estar oculta alguma dica valiosa para os que buscam o grande prêmio. E muitos, para sua própria surpresa, acabam compartilhando sinceramente a paixão de Halliday por isso tudo.


Entre outros milhões de caça-ovos está Wade Watts, um jovem órfão e pobre de 18 anos que vive com uma tia megera numa pilha de trailers (um novo tipo de favela) em Oklahoma. Wade está terminando o ensino médio numa escola pública dentro do OASIS, e, entre o tempo das aulas e o que dedica à caça, ele raramente está offline. Quando está, costuma percorrer lixões tecnológicos em busca de velhos computadores e consoles do OASIS descartados, que conserta e vende. É dentro da simulação que a vida do rapaz realmente acontece, longe das implicâncias da tia e dos demais detalhes de seu negro cotidiano. É verdade que, mesmo lá, sua pobreza ainda o persegue: "embora acessar o OASIS seja grátis, viajar dentro dele não é", de modo que, sem créditos para comprar uma espaçonave ou pagar as taxas de teletransporte, Wade (ou melhor, Parzival, nome que deu a seu avatar por gostar da semelhança entre a busca ao "ovo" de Halliday e a Demanda do Santo Graal) permanece confinado em Ludus, o planeta-escola, sem ter como ir a algum lugar mais perigoso onde encontre inimigos para derrotar a fim de ganhar mais créditos ou pontos de experiência que levem seu personagem a subir de nível. Pior ainda: é terrivelmente frustrante para Wade saber que, mesmo que ele seja mais esperto, mais criativo e mais bem informado que muitos outros caça-ovos, suas chances reais na competição são mínimas, já que o único local onde pode procurar de fato é Ludus, e é claro que Halliday jamais teria escondido uma pista exatamente ali… Ou isso é o que todos pensam.

Justamente em Ludus, Wade encontra a primeira das três chaves que abrem os três portões que levam ao grande prêmio; ele é simplesmente a primeira pessoa a fazer qualquer progresso real nos cinco anos que já dura o concurso, e isso o coloca em evidência: há uma coisa chamada "o Placar" que permite a todos os usuários do OASIS ver quem conseguiu marcar pontos na competição. Ou seja, a partir do momento em que alguém obtém algum sucesso na busca, torna-se automaticamente uma celebridade, e Wade não tarda a descobrir que isso tem aspectos positivos e negativos: por um lado, sua notoriedade lhe rende contratos de patrocínio que lhe permitem escapar da pobreza e investir em equipamentos melhores; por outro, acaba com qualquer possibilidade de prosseguir sua busca na paz do anonimato. De agora em diante, cada movimento seu estará na mira de milhões.

Como seria previsível em se tratando de alguém que só "vive" de fato por meio da imersão virtual, o melhor amigo de Wade/Parzival é alguém que ele nunca encontrou pessoalmente e cuja identidade real não conhece, um certo Aech (pronuncie "Êitch", como o nome da letra H em inglês). Aech também é um caça-ovo, paralelamente a sua carreira de sucesso como combatente em jogos de arena televisionados - tudo dentro do OASIS, é claro. Os dois partilham a obsessão pelo concurso de Halliday e, consequentemente, pela cultura pop dos anos 1980, bem como o ódio pelos "Seis", nome pejorativo pelo qual os caça-ovos chamam os funcionários da IOI (Innovative Online Industries), uma megacorporação de tecnologia e internet que, desde o início do concurso, tem dedicado o grosso de seus esforços a vencê-lo, o que colocaria a empresa no controle da GSS, tornando-a, na prática, dona do OASIS - o pior pesadelo não só dos caça-ovos, mas de todos os usuários que prezam o caráter livre da simulação. Na opinião de Wade, a vitória da IOI transformaria o OASIS, de uma utopia virtual de acesso gratuito, dentro da qual os usuários desfrutam de liberdade, num parque temático elitista só para quem pudesse pagar. Desnecessário dizer que se trata de uma competição desleal: a IOI dispõe de recursos econômicos quase infinitos, de modo que pode empregar milhares de agentes controlando avatares de alto nível, equipados com a última palavra em armas, veículos e itens mágicos, e orientados por pesquisadores em tempo integral das "coisas de Halliday" - isto é, enquanto o caça-ovo comum precisa conciliar pesquisa e buscas, além de arriscar o pescoço (bem, o pescoço virtual de seu avatar) enfrentando todo tipo de perigo OASIS afora, os agentes da IOI podem dar-se ao luxo de dividir tarefas: os que se dedicam às buscas não precisam se preocupar com pesquisa, e, caso encontrem um enigma que não consigam resolver, basta chamar a base e pedir um especialista. Isso tudo faz com que cada caça-ovo deseje ardentemente que, se não ele, seja um competidor honrado a vencer o concurso - jamais aqueles malditos trapaceiros da IOI.

(Aliás, não tenho a menor dúvida de que essa sigla, IOI, é uma alusão à famigerada Sala 101 de 1984; parafraseando C. S. Lewis, eu poderia dizer que Ernest Cline "leu os livros que realmente importam".)


Jogador n.º 1 trata, sim, das aventuras da busca épica de Wade/Parzival no universo de possibilidades infinitas do OASIS, mas também da patética vida real do rapaz, primeiro em meio à pobreza e a um deprimente simulacro de família em companhia de sua abominável tia, o que contribui para acostumá-lo a esconder-se da realidade o máximo possível, e, mais tarde, levando essa tendência aos extremos, passando a viver sozinho e enfurnado num apartamento minúsculo, sem pôr o nariz para fora da porta durante meses a fio, sem ver um rosto ou ouvir uma voz humana, interagindo com o mundo unicamente por meio do OASIS. Durante a maior parte do tempo, ele diz que "prefere assim, muito obrigado", mas por vezes reflete, deprimido, que "acabou com sua própria vida". Não é por acaso que, sem nunca ter tido uma namorada - e, segundo ele próprio, sendo incapaz de conversar com uma garota no mundo real -, ele vive sua primeira paixão ao conhecer Art3mis (sim, com o algarismo 3 no lugar do e, mas pronuncie Ártemis mesmo), uma bela, destemida e fascinante caça-ovo… Naturalmente que o "bela" e o "fascinante" referem-se a seu avatar, pois não há como saber quem pode estar controlando-o: é impossível não rir quando Wade pondera, meio exasperado, meio achando graça de si mesmo, que, por tudo o que se sabe, a garota por quem ele está apaixonado pode muito bem ser na verdade "um sujeito gordo, de meia-idade, careca e com pelos nas costas chamado Chuck".

Ao mesmo tempo em que lida com o futuro e com tecnologias mirabolantes, o livro está repleto de nostalgia, manifestada por meio de infinitas citações da cultura pop do final do século XX - filmes, séries de TV, livros, quadrinhos, música, videogames. Reconheci muitas coisas e deixei de reconhecer muitas outras. Desde clássicos como Blade Runner ou De Volta Para o Futuro até coisas totalmente obscuras (e que satisfação a de um nerd como este que vos escreve ao reconhecer uma referência obscura, sabendo que pouca gente a identificaria!), Ernest Cline demonstra um conhecimento absurdo desse universo, o que me leva a dizer que Jogador n.º 1 é um livro que tem tudo para tornar-se, ele próprio, um clássico instantâneo no mundo nerd. Também é preciso dar o devido crédito ao tradutor e/ou ao preparador de originais, que evidentemente fizeram um esforço hercúleo para localizar todas as referências às inúmeras obras citadas, e verificar qual o título que cada uma delas recebeu no Brasil. Pode ser fácil linkar War Games com Jogos de Guerra (filme de 1983, dirigido por John Badham), mas os casos em que o título nacional é a tradução direta do original são exceções: a menos que você mesmo seja um fã (e um fã muito bem informado) do diretor John Hughes, terá que escarafunchar para descobrir que Weird Science virou Mulher Nota 1000 ao ser exibido nestas paragens. Nesse quesito, os responsáveis pela edição brasileira de Jogador n.º 1 fizeram um belo e completo trabalho, com algumas falhas perdoáveis aqui e ali. Pena que, ao lado de todo esse cuidado, surjam alguns erros tolos na tradução de palavras e expressões comuns. E, para mostrar que ninguém está livre de tropeçar, o próprio autor parece meio incerto a respeito das características físicas do avatar de Art3mis, que ora é descrito como tendo olhos azuis, ora castanhos, às vezes com cabelos curtos, outras com cabelos longos, e não é crível que Wade, que é o narrador da história, se confundisse com essas coisas: para um cara apaixonado, até o mais ínfimo detalhe a respeito de sua musa assume uma importância gigantesca. Experiência própria.

Jogador n.º 1 é um "virador de página" de primeiríssima categoria: eu, que nunca fui um leitor veloz, só precisei de uma semana para percorrer de cabo a rabo suas 462 páginas, pois, depois que você começa, só para se for realmente obrigado. E, como o autor mesmo revela em seus comentários ao fim do livro, já estão em andamento os trâmites para transformá-lo em filme, o que me deixa curioso, mas também com uma certa pena de saber, desde já, que será impossível transpor para a tela toda a riqueza do texto original. Não fiquem esperando pelo filme: leiam!!!

terça-feira, julho 30, 2013

O Filho de Netuno

Bem que eu tentei, juro que tentei: meu plano original era alternar alguma outra leitura antes de pegar o segundo volume de Os Heróis do Olimpo, mas foi impossível conter a curiosidade, de modo que acabei emendando este O Filho de Netuno assim que terminei O Herói Perdido. Em parte, isso foi porque, neste último, não se tinha qualquer notícia de Percy Jackson, a não ser o fato de que ele havia desaparecido, e porque o segundo volume, já no próprio título, prometia informações sobre o paradeiro do aluno favorito do centauro Quíron. E assim foi!

Já próximo ao final de O Herói Perdido, ocorreram algumas revelações. A mais espetacular delas foi a de que o Acampamento Meio-Sangue não era tão único quanto (quase) todos acreditavam: do outro lado do país, na Califórnia, não longe da capital San Francisco, fica o Acampamento Júpiter, também habitado por semideuses - mas semideuses romanos, e não gregos como Percy e seus companheiros. Explicar isso seria inevitavelmente um pouco complicado, mas Rick Riordan conseguiu fazê-lo muito bem, e com o mérito adicional de ampliar um pouco mais a compreensão de seus jovens leitores acerca da cultura clássica. Vou tentar resumir a ópera.

Ocorre que, como já comentado em O Ladrão de Raios, os deuses "gregos" só são chamados assim porque foi na Grécia que nasceram - a mesma Grécia onde também nasceu a civilização ocidental, sem que isso represente coincidência alguma, em absoluto. Segundo Riordan, ao longo da história, os deuses sempre habitaram na nação que, num determinado período, melhor representasse essa civilização. A primeira nação para a qual se mudaram ao deixarem a Grécia - e também a última a acreditar massivamente nos olimpianos e a lhes prestar culto público - foi justamente Roma. E, embora Roma tivesse certos deuses (em geral, menores) que eram exclusivamente romanos, os principais eram os mesmos que foram herdados dos gregos ("principais", ao menos, em termos de culto público; não vou falar aqui do culto familiar aos ancestrais, que, para a maioria dos romanos, era a religião que realmente importava: embora trate-se de assunto fascinante, essencial para a compreensão da Antiguidade, e conhecido por pouquíssima gente, faria com que eu me estendesse demais). Porém, é importante ter em mente que, ao contrário do que muitos pensam, os romanos não se limitaram a importar os deuses gregos e mudar-lhes os nomes; os deuses até podiam ser os mesmos, mas todos eles eram vistos de forma diferente - no caso de alguns, radicalmente diferente. O melhor exemplo é provavelmente Ares/Marte, o deus da guerra. Para os gregos, tudo o que Ares representava era a sanguinolência e a loucura da batalha, e por isso ele não estava entre os deuses mais benquistos ou cultuados: mesmo quando necessitavam de assessoria divina para assuntos bélicos, eles geralmente preferiam dirigir-se a Atena, que era identificada com a estratégia militar. Já para os romanos, Marte significava coragem, masculinidade e honra. Templos grandiosos foram erigidos para ele, seu culto era um dos mais populares, e os legendários fundadores da cidade, Rômulo e Remo, eram tidos e havidos por seus filhos. Este trecho de O Filho de Netuno, que reproduz um diálogo entre Percy e Marte, serve bem para ilustrar a diferença:

– Você é o deus da guerra (…). Não quer massacres sem fim?
– (…) Sou o deus de Roma, criança. Sou o deus do poderio militar utilizado em causas justas. Protejo as legiões. Fico feliz em esmagar inimigos sob meus pés, mas não luto sem motivo. Não desejo guerras sem fim. Você descobrirá isso. Você servirá a mim.

Dito tudo isso, o leitor já estará em condições de compreender a ideia de alguns semideuses serem "gregos", e outros, "romanos": tudo depende de como seu pai ou mãe divinos hajam se apresentado na ocasião em que os geraram. Não fica claro o que leva o deus ou deusa a preferir aparecer em sua "forma grega" ou "forma romana" num determinado momento; é provável que essa decisão seja motivada por impulsos subjetivos e sem razão aparente, já que os deuses mitológicos têm dessas coisas tanto quanto os seres humanos.


Acontece então que Percy "acorda" num casarão em ruínas e cercado de florestas, na companhia de uma alcateia liderada por uma deusa-loba, Lupa (nome que significa simplesmente "loba"; ela vem a ser a loba que amamentou e protegeu Rômulo e Remo quando bebês, e que, por isso, Marte recompensou com a imortalidade). O rapaz teve a memória apagada, da mesma forma como aconteceu com Jason no livro anterior - um estratagema da deusa Hera/Juno, que promoveu essa "troca de líderes", como ela própria definiu: com isso, ela pretende que os dois acampamentos, separados por um histórico de séculos de inimizade, iniciem uma nova era de cooperação. Lupa mantém Percy vivendo com a alcateia por algum tempo, enquanto lhe dá a instrução básica, e então o envia para o sul, para o Acampamento Júpiter, a fim de encontrar seus pares.

O Acampamento Júpiter é muito diferente do Meio-Sangue. Em vez de ficarem agrupados conforme sua filiação divina, os campistas seguem uma organização militar, bem à maneira romana. Segundo Rick Riordan, a Legio XII Fulminata - a Décima-Segunda Legião, "Armada de Raios" - teria sobrevivido ao colapso do Império Romano do Ocidente e fundado o acampamento, que, desde então, já teria mudado de lugar diversas vezes. A legião, atualmente, é bem menos numerosa do que nos velhos tempos: apenas algumas centenas de soldados, na maioria adolescentes, o que talvez seja compensado pelos poderes e habilidades especiais que possuem. Nem todos são filhos de deuses: muitos já são a terceira ou quarta geração - filhos ou netos de semideuses. Perto do acampamento, e, como ele, escondida do mundo exterior, fica a cidade de Nova Roma, habitada basicamente por veteranos da legião e por suas famílias. Trata-se de uma cidade de verdade, onde uma pessoa pode viver, estudar, trabalhar e criar filhos - e, de fato, muitos dos atuais legionários nasceram lá mesmo. Isso deixa Percy com um pouco de inveja, pois não existe nada parecido para o pessoal do Acampamento Meio-Sangue; aliás, parece ser mais ou menos um consenso entre os semideuses gregos que eles devem aceitar a ideia de que dificilmente viverão o bastante para construir uma família. Saber que tal lugar existe leva Percy a pensar em coisas nas quais nunca se atrevera a pensar antes: ele e Annabeth adultos, casados, com filhos.

Porém, há muita coisa para mantê-lo ocupado em um prazo muito mais curto. Gaia (a terra), a mãe dos titãs, está despertando de seu sono de eras, e isso não é nada bom. Depois que os olimpianos derrotaram os titãs pela primeira vez, milênios atrás, ela gerou uma nova leva de filhos, os gigantes, que também lutaram contra os deuses e foram derrotados. E a história está se repetindo: os deuses e os semideuses, juntos, venceram outra vez os titãs, como visto em O Último Olimpiano, e, como antes, Gaia envia os gigantes em busca de uma revanche. Um exército de monstros de todos os tipos está a caminho para arrasar Nova Roma e o Acampamento Júpiter, sendo liderado por Alcioneu, um dos primeiros gigantes a despertarem (ou renascerem?). Isso seria uma grave ameaça de qualquer forma, mas é ainda pior nesse momento, porque Tânatos, o deus da morte, lugar-tenente de Hades, está aprisionado, e, por causa disso, os monstros que os heróis matam teimam em não permanecer mortos, recompondo-se em questão de minutos. Para que a legião possa ao menos ter uma chance na batalha que se aproxima, um grupo de bravos legionários terá que descobrir o local onde Tânatos está sendo mantido preso, e encontrar um meio de libertá-lo. A missão caberá, é claro, ao mais novo recruta da Fulminata, Percy Jackson - que, embora novato na legião, não o é em aventuras perigosas -, e a dois companheiros com características e backgrounds muito curiosos, e com quem ele fez amizade instantaneamente: dois novos nomes a se juntarem à já extensa galeria de personagens memoráveis desse universo.

Frank Zhang é um canadense descendente de chineses; grande e forte, mas com cara de bebê, é muitas vezes alvo de chacota entre os companheiros por causa disso, e também por ser um desses desafortunados sujeitos que, por alguma razão que nem a ciência explica, parecem ter duas mãos esquerdas: é desajeitado e desastrado em quase tudo o que faz. A única coisa em que Frank é realmente bom é em arco e flecha, arma que os romanos mais ou menos desprezavam: embora reconhecessem sua utilidade tática no campo de batalha, consideravam-na indigna dos esforços de um cidadão romano, de modo que a deixavam para as tropas auxiliares, recrutadas entre os povos aliados ou conquistados. A mãe de Frank, que era do exército canadense, morreu em ação no Afeganistão há pouco tempo, e ele ainda não foi "reclamado", isto é, seu pai divino ainda não se revelou. Ele tem uma certa esperança de que seja Apolo, o que ao menos lhe daria uma desculpa para preferir o arco. Será?

Opinião parecida à que tinham sobre arqueiros, os romanos também dedicavam à cavalaria: era coisa para bárbaros. Um romano devia ser um legionário, combater na infantaria, com lança, espada e escudo, enfrentando o inimigo homem a homem. Entre outros, esse é mais um fator a gerar identificação entre Frank e sua melhor amiga, Hazel Levesque: ela gosta de cavalos e leva jeito com eles, mas, tal como a de Frank, sua habilidade não é muito valorizada na legião. Hazel é uma garota negra que cresceu em Nova Orleans, onde sua mãe ganhava a vida lendo sortes e vendendo amuletos, até que, de tanto fingir que mexia com as coisas do além, acabou, acidentalmente, invocando o próprio deus dos mortos, Plutão (ou Hades, caso prefiram o nome grego), que, como vocês já devem ter deduzido, viria a ser o pai de sua filha. Isso tudo não aconteceu na Nova Orleans de hoje: Hazel viveu nas décadas de 30 e 40 do século XX, e foi nessa mesma época que morreu, com apenas 13 anos e sob circunstâncias terríveis. Foi trazida de volta há meses apenas, por obra de um meio-irmão seu, que Percy, aliás, conhece bem, ainda que não se lembre no momento. O passado de Hazel esconde um segredo terrível.

Acho que tudo o que posso dizer à guisa de conclusão é que gostaria de ter comentado O Filho de Netuno logo após seu lançamento, pois assim, talvez meu texto pudesse ter servido para atiçar o apetite de alguns fãs que ainda não o tivessem lido. Infelizmente, minha capacidade de ler e comentar é limitada (hehehe!), enquanto a fila de livros aguardando a vez, além de enorme, não cessa de crescer. Em todo caso, se ainda houver algum fã de Riordan que não o tenha lido, sugiro que não perca mais tempo… Na verdade, esse é um bom conselho até para os que (ainda) não são fãs.

terça-feira, junho 11, 2013

O Herói Perdido

Comentei aqui no blog, tempos atrás, que a saga de Percy Jackson e os Olimpianos só tinha um defeito, e era o fato de que teria que acabar uma hora ou outra. E assim foi: depois de apenas cinco volumes, seus numerosos e entusiásticos leitores tiveram que dar adeus às férias no Acampamento Meio-Sangue. O autor, Rick Riordan, tentou explorar novas searas da mitologia nas Crônicas dos Kane, de inspiração egípcia, mas estas, embora de leitura sem dúvida agradável, não conseguiram despertar o mesmo grau de paixão, talvez não por qualquer demérito do tio Rick como narrador, mas apenas porque a mitologia egípcia não tenha a mesma riqueza e dinamismo que a grega, e por isso não se preste tão bem a aventuras heroicas. Riordan agraciou os fãs com Os Arquivos do Semideus, pequeno volume que pode ser considerado um anexo à saga, contendo três aventuras de Percy muito curtas para renderem livros próprios, além de curiosidades, passatempos, supostas entrevistas com vários personagens… Esse tipo de material. A propósito, embora, pelo menos no Brasil, o lançamento de Os Arquivos… tenha sido simultâneo ao do último livro da série, intitulado O Último Olimpiano, a ordem cronológica (Epa! Qualquer coisa que envolva “Cronos” é assunto delicado…) correta para a leitura é colocar Os Arquivos… antes, mais exatamente entre A Batalha do Labirinto e O Último Olimpiano.

Ainda que Os Arquivos do Semideus tenha alegrado os fãs, é claro que estava muito longe de ser suficiente para satisfazê-los: afinal, O Último Olimpiano terminava com uma profecia sobre "sete semideuses atendendo a um chamado", e todo amante de mitologia sabe que é inútil resistir a uma profecia. Sendo assim (Oba!), Riordan está de volta ao universo de Percy Jackson e os Olimpianos com uma nova saga, intitulada Os Heróis do Olimpo.

O Herói Perdido, primeiro volume dessa nova fase, adota uma estratégia narrativa diferente da utilizada na saga anterior, que era narrada sempre em primeira pessoa pelo protagonista Percy. Aqui, a narrativa é em terceira pessoa, mas o ponto de vista varia: cada capítulo traz no início o nome de um dos três personagens centrais - Jason, Piper ou Leo -, e os acontecimentos narrados nele são mostrados segundo os pensamentos e as percepções desse personagem. Também temos acesso a algumas das recordações que cada um deles traz de sua vida pregressa - exceto no caso de Jason, por motivos que veremos.

Jason repentinamente desperta num ônibus escolar, sem ter ideia de como foi parar ali, e em companhia de Piper e Leo, que se dizem respectivamente sua namorada e seu melhor amigo, embora ele não se lembre de alguma vez ter visto qualquer um dos dois antes daquele momento. E isso nem é o pior: tirando o fato de chamar-se Jason, tampouco se lembra de alguma coisa sobre si próprio, não sabe quem é ou de onde veio. O ônibus pertence a uma instituição chamada Escola da Vida Selvagem, para jovens "desajustados", que por motivos diversos não se encaixam em escolas comuns (e, sim, no caso de alguns deles, isso envolve dislexia combinada a transtorno de déficit de atenção e hiperatividade - um quadro que todo leitor de Rick Riordan sabe muito bem o que pode significar), e o destino da excursão é o Grand Canyon, no Arizona. Ao chegarem lá (surpresa!), os estudantes são atacados por perigosos seres míticos - nesse caso, espíritos da tempestade, e, mesmo sem saber como, Jason reconhece na hora o que eles são. Leo e Piper não reconhecem, mas ao menos veem as criaturas, enquanto os outros, com os olhos toldados pela Névoa, só veem uma tempestade. Em rápida sequência, Jason descobre mais três coisas: a primeira é que uma estranha moeda de ouro que traz no bolso pode, em momentos de perigo, transformar-se numa espada; a segunda é que ele próprio possui com essa arma uma habilidade que sugere um talento natural aprimorado por anos de treinamento; e a terceira é que pode, dentro de certos limites, controlar e dirigir os ventos com a força de sua vontade, o que lhe permite até mesmo deslocar-se através do ar, quase como se voasse.

Depois de uma batalha desesperada, na qual ele tem a chance de experimentar essas capacidades recém-descobertas, Jason e seus amigos são surpreendidos pela chegada de uma carruagem voadora, puxada por cavalos alados e transportando um grupo de semideuses liderados por ninguém menos que Annabeth Chase. E Annabeth está aflita com o desaparecimento de seu namorado, Percy Jackson (pois, depois de cinco anos arreliando um com o outro, ela e Percy finalmente se acertaram, o que aconteceu no finalzinho de O Último Olimpiano), seguindo qualquer pista que pareça capaz de ajudar a encontrá-lo. Ela veio ao Grand Canyon porque teve um sonho sugerindo que nesse local encontraria um semideus usando um único calçado, que estaria, de alguma forma, ligado ao sumiço de Percy - e, ao chegar, dá de cara com Jason calçando um só tênis, pois perdeu o outro durante a luta contra os espíritos da tempestade. Quem conhece mitologia reconhecerá a referência à história do herói Jasão (que, em inglês, é Jason), que também foi identificado como o agente de uma profecia por estar usando apenas uma sandália. Jason, Piper e Leo são, então, conduzidos ao Acampamento Meio-Sangue, onde espera-se que ao menos alguns dos mistérios que envolvem o trio possam ser esclarecidos.

Piper McLean é linda, inteligente e um pouco rebelde. De certa forma, está acostumada a ser uma "meio-sangue", pois seu pai, Tristan McLean - um famoso ator de cinema - é um índio cherokee. Da mãe, tudo o que Piper sabe é que era branca e que foi embora pouco tempo depois de seu nascimento. Tristan, que teve uma infância pobre e sem perspectivas numa reserva indígena, acredita estar fazendo o melhor pela filha ao criá-la em meio à riqueza, mas Piper sofre com a frustração mais comum entre os filhos de ricos e famosos, que é a de apenas muito raramente receber alguma atenção ou desfrutar da companhia de seu ocupado e requisitado pai. E, como fazem muitas crianças que vivem essa realidade, ela encontra uma maneira (por mais estúpida que seja) de obrigá-lo a prestar atenção nela. Piper foi diagnosticada com cleptomania, mas seu método é um tanto diferente do usual: em vez de afanar coisas em lojas, ela simplesmente pede aos vendedores - e eles lhe dão. Por alguma razão, a maioria das pessoas acha extremamente difícil negar qualquer coisa que Piper peça, e qualquer ideia, proposta ou sugestão, não importa o quão absurda, passa a parecer convincente quando é ela quem a expõe. Ao que tudo indica, finalmente é chegada a hora de descobrir de quem ela herdou habilidades tão incomuns, mas Piper não tem bem certeza se quer mesmo saber.

Leo Valdez é um hispano-americano de Houston com um cacoete extraordinário para inventar, construir e consertar coisas. Sempre acreditou que devesse isso ao exemplo da mãe, que tinha uma oficina e loja de ferragens, mas parece agora que o talento talvez venha de ambos os lados da família. Desde que perdeu a mãe, num incêndio tão misterioso quanto trágico, aos oito anos de idade, ele já fugiu de uma ampla variedade de instituições e lares adotivos, até chegar à Escola da Vida Selvagem e daí ao Acampamento Meio-Sangue, onde, pela primeira vez na vida, tem um vislumbre do que seria a sensação de pertencer de fato a algum lugar. Além de tudo isso, Leo se debate com um conflito interno sobre o qual nunca desabafou com ninguém: por natureza, é um amigo fiel e dedicado, mas uma parte sua, da qual ele não se orgulha, sente-se incomodada com o eterno papel de coadjuvante que parece ser seu destino, enquanto Jason - o "cara bonito e corajoso" - colhe as glórias. Só o tempo dirá o que pode vir a depender da solução desse conflito.

E Jason… É Jason. Seu passado é um mistério até para ele mesmo. Qualquer olho experiente em reconhecer semideuses identifica-o logo de saída como sendo um, e as habilidades que possui deixam óbvio que foi muito bem treinado, mas, até onde se sabe, o único lugar onde poderia ter recebido esse tipo de treinamento é o próprio Acampamento Meio-Sangue, e ninguém ali o conhece. As únicas possíveis pistas são uma estranha tatuagem em seu antebraço, mostrando a imagem de uma águia e as letras SPQR, e o fato de que ele prefere referir-se aos deuses por seus nomes latinos ao invés dos gregos (para pessoas familiarizadas com as coisas da Antiguidade, isso será suficiente para que comecem a ligar os pontos e a fazer uma ideia de qual pode ser a origem do personagem, mas imagino que, para a maioria dos leitores adolescentes de Riordan, esses indícios só agucem a curiosidade).


No acampamento, fica-se sabendo que a situação é grave. Além do desaparecimento repentino e inexplicado de Percy, tudo o que se tem de concreto é que o Olimpo está "fechado": nenhum dos deuses responde a qualquer tentativa de comunicação, e, a menos que haja um motivo sério para isso, o fato constitui uma violação do acordo que os olimpianos aceitaram ao final da Segunda Guerra dos Titãs (detalhes em O Último Olimpiano), cujo ponto principal era que deveriam parar de ignorar seus filhos mortais. Parece pouco provável que as duas coisas, tendo acontecido simultaneamente, não estejam ligadas de alguma forma. Rachel Dare, o oráculo oficial do acampamento, consegue acrescentar alguns elementos ao quadro. Leo, Jason e Piper são três dos sete meios-sangues de que fala a profecia, e são também os campeões escolhidos pela deusa Hera - rainha do Olimpo, esposa do todo-poderoso Zeus - para libertá-la de um cativeiro onde está sendo mantida por um inimigo misterioso. Assim, eles partem numa missão no dia seguinte ao de sua chegada ao acampamento, mas não sem que seus respectivos progenitores divinos tenham se revelado. O transporte é providenciado por Leo, que consegue encontrar o já lendário dragão mecânico de bronze, construído décadas atrás pelos semideuses do chalé de Hefesto para guardar as divisas do acampamento, mas que agora encontra-se desgovernado vagando pelas florestas, um perigo para os campistas e para transeuntes desavisados (sua história é narrada em mais detalhes na aventura Percy Jackson e o Dragão de Bronze, que está em Os Arquivos do Semideus). Leo, então, consegue localizá-lo, consertá-lo, e até adaptar-lhe um par de asas, que originalmente não possuía, convertendo-o numa poderosa montaria voadora, a bordo da qual ele, Jason e Piper partirão em sua primeira missão.

Uma missão para fã nenhum de Rick Riordan botar defeito. Todos os ingredientes que nos acostumamos a esperar estão lá em fartas doses: referências mitológicas, aventura, humor e surpresas - muitas surpresas. Com algumas novidades importantes: literariamente, Riordan apresenta-se em franca evolução como escritor, oferecendo-nos personagens bem mais complexos, com uma parte psicológica bem mais trabalhada, enquanto, do ponto de vista dos elementos internos da narrativa, o mundo mítico e fantástico do autor ficou muito maior, com um sem-número de novas possibilidades. A edição nacional, de modo geral, está bem cuidada, com alguns pequenos e perdoáveis problemas de português e, pelo que percebi e me lembro, apenas um deslize mais sério: durante uma luta contra um gigante, Jason refere-se si próprio como "protetor da Primeira Legião"… É óbvio que era para ser pretor, mas todos sabemos que há pessoas que, ao se depararem com uma palavra que não conhecem, preferem acreditar que foi erro de grafia e substituí-la por qualquer outra que conheçam e que seja parecida, mesmo que fique totalmente fora de contexto (por que cargas d'água uma legião precisaria de um "protetor"?). Seria tão mais simples e honesto consultar o dicionário… Pessoas assim estão por toda parte - inclusive, infelizmente, nas editoras que publicam o que lemos -, mas isso não vai prejudicar a enorme diversão que espera pelos fãs do tio Rick nessa nova saga, que tem tudo para ser ainda mais empolgante que a anterior.

quarta-feira, maio 22, 2013

Encantamentos

Certa vez, no editorial da revista de ficção científica que levava seu nome (e que chegou a ser publicada no Brasil, onde sobreviveu por 25 edições), Isaac Asimov propôs uma teoria classificando seus leitores (e os de publicações do gênero de modo geral) entre "exclusivistas" e "inclusivistas". Exclusivistas seriam aqueles que têm noções muito precisas a respeito do que esperam encontrar nas páginas de uma revista de ficção científica, e tendem a ficar contrariados com qualquer desvio da "norma": esse é o tipo de leitor que escreve ao editor para reclamar que tal ou qual conto é de fantasia, e, portanto, não deveria ter sido publicado numa revista que se pretende de ficção científica. Inclusivistas, em contrapartida, seriam os que, ou não têm uma definição muito rígida do que distingue seu gênero favorito, ou até têm uma definição, mas não a levam muito a sério: em princípio, não se opõem à publicação eventual de histórias que não sejam necessariamente de ficção científica, desde que tenham qualidade. Asimov concluía, se não me falha a memória, dizendo-se, ele próprio, um exclusivista enquanto escritor e, até certo ponto, também enquanto leitor, confessando, porém, que, por vezes, a única resposta que podia dar às reclamações veementes dos exclusivistas mais radicais que liam a revista, era que concordava que o conto em questão não se tratava de ficção científica - só que havia gostado tanto da história, que, como editor, sentira que não podia deixar de publicá-la, independentemente do gênero.

Felizmente, as reservas de Asimov em relação à literatura de fantasia, quaisquer que fossem, não o impediram de unir forças com Charles G. Waugh e Martin H. Greenberg para organizar a série de coletâneas Os Mundos Mágicos da Fantasia, da qual Encantamentos é o primeiro volume. Bem, "série" talvez seja exagero: pelo que me consta, existe apenas mais um volume, Magos. Um terceiro livro, Mutantes, embora com a capa seguindo o mesmo projeto gráfico, e coordenado (se não me engano) pelo mesmo trio, é voltado para a ficção científica.

O maior mérito de compilações como esta é o de tornarem novamente disponíveis histórias que talvez só tivessem sido publicadas antes em antologias há muito esgotadas, ou mesmo em revistas que são hoje itens de colecionador ("novamente" para os norte-americanos, é claro, pois, para nós, esta é a primeiríssima oportunidade de ler a grande maioria desses contos). E são histórias que vale a pena conhecer, pois representam um pouco do melhor que se pode encontrar em matéria de ficção curta ou média no gênero de fantasia. As três únicas que lembro de já ter visto publicadas em outro lugar são as dos autores mais conhecidos do público em geral: O Menino Invisível, do gigante Ray Bradbury, que (mais uma vez confiando na memória) está na antologia de autor único Os Frutos Dourados do Sol; Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, presente anteriormente numa velha edição dedicada a seus contos não-Sherlock Holmes e, recentemente, também em Góticos; e Eu Sei do que Você Precisa, de Stephen King, encontrável em Sombras da Noite. Ao lado destas, Encantamentos apresenta-nos um punhado de pérolas de imaginação e de escrita. Um (para mim) ilustre desconhecido que atende por Robert Arthur comparece com Satã e Sam Shay, conto que, com sua combinação magistral de humor e elementos sinistros, chega muito perto da perfeição como história cujo objetivo é divertir e entreter. Trata das atribulações de Sam Shay, um malandro de marca maior, que jamais na vida considerou seriamente a possibilidade de trabalhar, acostumado que está a viver à custa de apostas, e acaba por granjear tamanha reputação nesse métier, que seus conhecidos, divididos entre a admiração e o despeito, começam a dizer que "Sam Shay é capaz de fazer três apostas com o diabo, e ganhar todas elas". Até que Satã em pessoa ouve os comentários, e, sendo ele próprio um notório apreciador de jogatinas, decide aparecer para tirar a prova…

Andre Norton leva-nos, em Os Sapos de Grimmerdale, a visitar um mundo medieval imaginário, mais exatamente um país que acaba de emergir de uma guerra cruel, tendo conseguido, com muito sacrifício, repelir uma invasão bárbara. Agora a terra vive os tempos de escassez e confusão que sempre se seguem às guerras, e, em muitos lugares, sofre com a falta de lideranças, já que grande parte de seus homens adultos e capazes (incluindo muitos de seus lordes) tombou no campo de batalha. Esse é o cenário por onde perambula Hertha, uma jovem de estirpe nobre que caiu em desgraça ao ser estuprada - seu irmão expulsou-a do feudo da família, como se ela fosse culpada do acontecido. Ainda pior: o responsável pela violação não foi um dos invasores, mas um homem de seu próprio povo. Agora, grávida e desamparada, ela está em busca de vingança, e, para conseguir seu objetivo, está disposta a tudo, até mesmo a barganhar com os seres misteriosos que habitavam a região antes da chegada dos humanos, e que agora vivem escondidos e, segundo se diz, conhecem magia antiga e poderosa.

Outro mergulho empolgante em um mundo de guerreiros, magos e criaturas fantásticas é proporcionado por Gerald W. Page, que, em O Herói que Voltou, nos conta sobre o dilema de Dunsan (o nome do personagem é uma discreta, porém clara homenagem a Lord Dunsany, escritor pioneiro do gênero sword & sorcery do início do século XX), um homem já de certa idade que, depois de ter ganho a vida como agricultor e como ferreiro, acabou tornando-se balseiro, e agora faz travessias num rio. Detalhe: tudo o que existe na outra margem, por uma grande extensão, é uma região selvagem e uma velha e arruinada fortaleza que todos acreditam ser assombrada… Por causa disso, só um tipo de passageiro vem pedir transporte a Dunsan: heróis rumando para a tal fortaleza para enfrentar o que quer que exista lá, e tentar pôr fim à maldição. Esses audazes aventureiros vão, mas jamais voltam, de modo que o balseiro tem que conviver com o fato de que a comida que ele coloca na mesa para si próprio e para sua esposa vem de levar homens para a morte certa. Para completar, ele teme que a esposa, Maelwyd, bem mais jovem que ele e sonhadora por natureza, esteja insatisfeita com a vida rotineira que levam, e a presença, ainda que ocasional e breve, de todos aqueles guerreiros cheios de histórias fascinantes para contar não contribui para tranquilizá-lo. Até que, numa viagem que em nada parece diferente de inúmeras outras, Dunsan descobre que também é capaz de atos heroicos.

É claro que nem todos os contos são tão legais assim. A Feiticeira Está Morta, de Edward D. Hoch, até começa bem, com algumas estudantes de um colégio interno adoecendo misteriosamente depois que uma velha charlatã conhecida como Mãe Sorte (que, na juventude, fora expulsa do mesmo colégio) lhes roga uma maldição, e quem aparece para investigar é um tal Simon Ark, "detetive especializado em casos de ocultismo e feitiçaria", um homem que, a julgar por diversos indícios, parece ter séculos de idade. O enredo poderia render uma boa história, mas Hoch faz questão de estragar tudo trazendo uma "explicação lógica e racional" para o que parecia ser um fato sobrenatural - no melhor estilo Scooby-Doo -, e é difícil pensar em coisa mais frustrante e irritante que isso para qualquer verdadeiro apreciador da literatura do insólito, que começa a ler uma história de boa-fé, só para descobrir-se ludibriado dessa forma.

Mas não se assustem: não é essa bobagem que irá fazer com que deixe de valer a pena ler Encantamentos, pois o livro tem muito mais coisas a oferecer, e muitíssimo melhores. Particularmente empolgante é encontrar em suas páginas uma história que integra uma das mais monumentais séries de espada e magia já escritas, a das aventuras de Fafhrd, o bárbaro, criadas pelo norte-americano de ascendência alemã Fritz Leiber (1910-1992), que as escreveu durante quase 50 anos: a primeira é de 1939, e a última, de 1988. As Mulheres da Neve, presente em Encantamentos, não foi uma das primeiras a serem escritas (a publicação original é de 1970), mas, pela cronologia interna, talvez seja mesmo a primeira de todas, pois nela Fafhrd é adolescente e ainda vive em sua terra natal, no Canto Frio - uma região inóspita e gelada do norte do mundo de Nehwon -, começando a insurgir-se contra a tirania da mãe, Mor, que, por falar nisso, é uma líder entre sua gente e uma feiticeira temida, não necessariamente nessa ordem. E Fafhrd não é de modo algum o único homem do Povo da Neve a viver na rédea curta sob o controle de uma mulher, seja mãe, esposa ou outra: trata-se de uma sociedade fortemente matriarcal, e na qual as mulheres não dependem apenas da força dos costumes para manter seus homens dominados - na verdade sua magia, toda baseada no frio, no gelo e na neve, é um "argumento" bem mais eficaz que qualquer costume. E, embora não tenha como provar, Fafhrd nutre grandes suspeitas de que a morte de seu pai tenha sido obra dos poderes de Mor, enraivecida por não conseguir dobrar o espírito independente do marido. Há mais: o rapaz sente-se entediado e oprimido com a vida no Canto Frio, e seu interesse pelo sul civilizado e de clima mais ameno só tem aumentado durante os meses que passaram desde que participou de sua primeira expedição pirata para aqueles lados (essas expedições parecem ser mais ou menos uma tradição - um toque viking na caracterização do Povo da Neve). E o acúmulo do descontentamento provocado por todos esses fatores vai fazendo com que Fafhrd - um jovem de sentimentos intensos, embora seus atos sejam frios e calculados - fique cada vez mais inclinado a tomar uma atitude drástica.

Encantamentos termina em grande estilo, com Os Milagreiros, do sempre magnífico Jack Vance, uma história de fantasia com background de ficção científica. Num passado distante (que para nós é futuro), 1600 anos antes dos fatos que vão ser narrados, aconteceram as agora legendárias guerras interestelares, e, no caos que veio depois delas, alguns planetas que a Terra havia colonizado foram esquecidos, ficando sem contato com o resto do universo humano. Pangborn foi um deles. Ao longo dos séculos, seu povo foi-se esquecendo da tecnologia, e agora os descendentes dos antigos viajantes espaciais vivem de maneira praticamente medieval. Com um detalhe curioso: na opinião dos pangbornianos de hoje em dia, o que houve foi progresso. Eles consideram os antigos uma gente primitiva e supersticiosa, que depositava sua confiança em "milagres" (é assim que os personagens se referem à tecnologia e a tudo o que dela derive, mas sem que o uso dessa palavra traga qualquer conotação de admiração; pelo contrário, ela é pronunciada com desprezo), e orgulham-se de atualmente utilizarem-se de meios mais lógicos e racionais para alcançar seus objetivos: feitiços, maldições, invocação de demônios… Apesar disso, algumas heranças dos dias antigos ainda são usadas, seja porque podem trazer vantagens práticas ou como meras insígnias de tradição e status: nobres de ilustres famílias antigas levam na cintura pistolas laser que não funcionam e que, de todo jeito, eles não saberiam manejar, e Lorde Faide, um dos protagonistas, locomove-se num carro que flutua acima do solo, mas que dá claros sinais de estar nas últimas. No topo da fortaleza que leva o nome de sua família, Faide mantém o temido "Boca do Inferno", um canhão energético outrora removido de uma nave de combate arruinada, e que constitui agora sua principal arma defensiva. Há um atendente cuja única tarefa é cuidar do Boca do Inferno - mas tudo o que ele faz é polir e azeitar a superfície metálica da arma, sem que lhe ocorra a possibilidade de algo como uma manutenção interna, pela simples razão de que nem ele, nem ninguém no planeta tem a mínima ideia de como uma coisa daquelas funciona. A não ser quando o Boca do Inferno ou seus congêneres de outras fortalezas entram em ação, a maior parte do combate praticado em Pangborn - onde, por sinal, os conflitos de poder entre os diferentes feudos parecem ser comuns -, é realizada usando cavalos, espadas, arco e flecha e assim por diante, à moda medieval mesmo. Porém, todo lorde sagaz sabe que tão importante quanto ter um exército aguerrido é dispor de uma boa equipe de azarentos, que são uma categoria de feiticeiros profissionais, encarregados de fazer mandingas contra o exército oponente, podendo também invocar demônios, mas somente em situações de extrema necessidade, pois o esforço e o dispêndio de energia envolvidos nisso são enormes, muitas vezes deixando o azarento à beira da morte; por isso mesmo, apenas os mestres da azaração se atrevem a fazê-lo. Os demônios, a propósito, podem servir a dois objetivos: espalhar o terror entre os inimigos ou inspirar um estado semelhante à fúria berserker nos soldados de seu próprio exército. Lorde Faide tem a seu serviço Hein Huss, tido por muitos como o maior azarento vivo, e Huss, por sua vez, tem um aprendiz, Sam Salazar, amiúde ridicularizado tanto por seu medíocre talento na arte de azarar, quanto por cultivar um interesse sem cabimento pelos "milagres" dos antigos. Mas talvez chegue o dia em que nem a espada nem o azar poderão salvar o Forte Faide, e então todos tenham que depositar suas esperanças nas ideias tresloucadas do adolescente que até aí consideravam um pateta. Enfim, Os Milagreiros é tudo aquilo que um leitor de Jack Vance está acostumado a esperar dele, e dizer isso é suficiente para chegar à conclusão de que vale, e muito a pena lê-lo.

Com os altos e baixos inevitáveis (e os baixos são realmente poucos), o mesmo pode ser dito de Encantamentos como um todo: temos aqui um livro que constitui companhia perfeita para muitas horas de viagens de imaginação, para quem quer dar-se um tempo para ler por prazer, deixando de lado todas as demais preocupações e tirando uma folga da dura realidade. E que bem isso faz…

segunda-feira, abril 29, 2013

O Terror

Imagino que todo leitor que já acumulou certa experiência tenha passado por isso ao menos uma vez: você vai, pela primeira vez, realmente ler um autor que foi muitíssimo bem recomendado. Leu muitos comentários tentadores sobre sua obra, e, ainda mais instigante que isso, sabe que um, ou até vários escritores dos quais você gosta, são, ou eram, fãs de carteirinha desse sujeito (no caso de Arthur Machen, ele coleciona "fãs" do naipe de H. P. Lovecraft, Stephen King e T. E. D. Klein). Naturalmente cheio de expectativas, e sentindo que está para viver um momento memorável, você se acomoda confortavelmente na cama ou em sua poltrona favorita, respira fundo, abre o livro... Meia hora mais tarde, começa a sentir-se ligeiramente impaciente. Ao fim de uma hora de leitura, você acha melhor fazer uma pausa e, enquanto vai até a cozinha preparar uma xícara de café, pensa com os seus botões: "Das três uma: ou esse livro ainda me reserva grandes surpresas, ou eu sou bem burrinho de não estar entendendo o que foi que levou tanta gente boa a considerar esse autor tão especial, ou então, vai ver, esse simplesmente não é um dos melhores trabalhos do cara". No que diz respeito a O Terror, ainda estou em dúvida entre as duas últimas possibilidades.

A editora Iluminuras, que também publica Lovecraft no Brasil, inteligentemente aproveitou as entusiásticas palavras de elogio que este último dedica a Machen em seu famoso ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, reproduzindo na contracapa e nas orelhas de O Terror boa parte do trecho que trata dele. Aqui vão dois pequenos excertos:

Dos criadores vivos do terror cósmico elevado ao seu mais alto expoente artístico, dificilmente poderá citar-se alguém que se iguale ao versátil Arthur Machen, autor de cerca de uma dúzia de composições longas e curtas em que os elementos de horror oculto e medo avassalador atingem uma substância e um realismo incomparáveis. (...) O encanto de seus textos está na narração. É impossível descrever o crescente suspense e o supremo horror que estão em cada parágrafo, sem seguir a sequência exata em que Machen vai, aos poucos, desvendando seus indícios e revelações. Com suas palavras e ambientações, ele constrói atmosferas de eletrizante tensão.

Não há dúvida de que uma tal avaliação, não feita por qualquer um, e sim por um mestre do terror como Lovecraft, constitui uma das melhores recomendações que um autor do gênero pode ter, e essa foi uma razão a mais para que eu estranhasse o fato de encontrar tão pouco dessa propalada "tensão eletrizante" nas páginas de O Terror. Nesse pequeno volume, a Iluminuras parece ter tentado apresentar ao leitor uma amostra de cada uma das duas principais "faces" de Machen: a do escritor de terror, através do longo conto que dá título ao livro, e a do autor naturalmente inclinado ao misticismo e à fantasia, por meio de Ornamentos em Jade, pequena coleção de textos curtos, difíceis de definir; poderíamos dizer que são minúsculos contos, embora não pareçam ter a menor pretensão de configurar narrativas com início, meio e fim – e alguns deles, nem sequer a pretensão de fazer sentido, segundo um ponto de vista lógico. Talvez o melhor seja aceitar a sugestão de José Antonio Arantes, tradutor e autor do ensaio A Demanda do Mistério, que encerra o livro, e dizer que são "poemas em prosa", pois a impressão que fica no leitor é a de que, ao escrevê-los, Machen estava muito mais preocupado com o clima que estava evocando e com os sentimentos que estimularia em quem os lesse, do que com aquilo que estava objetivamente dizendo. Sua biografia, da qual pude ter uma ideia graças às informações fornecidas por Arantes, por Lovecraft, e a mais algumas coisas que encontrei na internet, é realmente fascinante, sendo talvez o principal motivo para que eu ainda queira dar-lhe um voto de confiança, mesmo que meu primeiro contato com sua obra não tenha sido tudo o que eu esperava: um homem que viveu essa vida e ainda foi escritor não pode ter deixado de produzir coisas que valem a pena ler!

Arthur Llewellyn Jones nasceu em Caerleon-on-Usk, no antigo distrito de Gwent, sul do País de Gales, em 1863, numa família de longa tradição eclesiástica. Seu pai, o reverendo John Edward Jones, era pároco em Llanddewi, pequeno vilarejo onde a chegada dos tempos modernos parecia ter tido pouco efeito até então. A vigorosa herança celta que impregnava a história da região podia ser sentida na língua, nos costumes, no modo de ser de seu povo, assim como em seu folclore e no misticismo que lhe era inerente; misticismo esse com o qual Arthur sempre se sentiu inteiramente conectado. Foi um menino de hábitos solitários, que gostava de passar dias inteiros percorrendo as trilhas de sua região natal, sentindo-se à vontade em meio àquela paisagem de bosques seculares, colinas enevoadas e misteriosas ruínas romanas (Caerleon-on-Usk fora em tempos a próspera cidade romano-céltica de Isca Silurum, base da Legio II Augusta, a Segunda Legião Augusta, que chegou a ser comandada pelo então general e mais tarde imperador Vespasiano). Ainda durante a infância de Arthur, o reverendo John, para poder receber uma herança proveniente de parentes de sua esposa, adotou o sobrenome dela, passando a assinar Jones-Machen; mais tarde, o escritor optou por usar apenas seu primeiro e último nomes ao assinar suas obras. Viveu a maior parte de sua vida produtiva em Londres, onde veio a conhecer diversas figuras de destaque daquele período que esteve entre os mais importantes para a história da literatura de língua inglesa até hoje – Oscar Wilde, por exemplo. Machen atuou em diversos segmentos do ramo das Letras: deu aulas particulares de inglês, literatura e línguas clássicas para crianças e jovens de famílias abastadas, trabalhou como catalogador de obras raras para tradicionais livreiros londrinos (o que lhe rendeu sólidos conhecimentos sobre magia, esoterismo e ocultismo) e foi colaborador e editor de vários periódicos, tanto dirigidos à comunidade literária quanto publicações comuns de notícias e variedades; enfim, teve a felicidade de conseguir viver do que escrevia e de atividades relacionadas a isso – inclusive o jornalismo, embora não se sentisse muito contente nessa função.

Em setembro de 1914, com a Primeira Guerra Mundial começando, publicou, numa das revistas de que participava, o conto-crônica The Bowmen ('Os Arqueiros'), versão fantástica da Batalha de Mons, que acontecera cerca de um mês antes, nos arredores da cidade belga de mesmo nome, e foi o primeiro enfrentamento entre os exércitos britânico e alemão naquele conflito. No texto de Machen, os arqueiros galeses que lutaram por Henrique V na Batalha de Azincourt ressurgem em Mons, como misteriosas figuras sobrenaturais, para auxiliar seus compatriotas, o que explicaria a vitória britânica, apesar de os alemães terem começado com a vantagem. Por ocasião da publicação original, o autor deixou muito claro tratar-se de uma obra de ficção, sua modesta contribuição patriótica para elevar o moral do exército e do povo em geral; porém, durante os anos seguintes – que, convém não esquecermos, foram duros anos de guerra –, The Bowmen voltou a ser impresso muitas vezes Grã-Bretanha afora, em diferentes revistas, jornais e folhetos, nem sempre tendo o nome do autor creditado, e por vezes sendo apresentado como relato verídico!... Talvez porque agradasse em cheio à mentalidade dos britânicos (que gostavam de acreditar que glórias, vitórias e o domínio do mundo lhes cabiam por direito de "vontade divina"), o fato é que a história "pegou" de uma maneira que Machen jamais poderia ter imaginado: sem querer, ele havia dado início à lenda dos "Anjos de Mons", que daria muito o que falar e escrever a muita gente durante as décadas seguintes, e ainda hoje exerce sua parcela de poder sobre a imaginação de ingleses e galeses.

Machen casou cedo, com uma mulher mais velha, e, tendo enviuvado ainda jovem, casou-se novamente. Teve dois filhos. Curiosamente, fez parte, durante algum tempo, da famosa ordem mística Golden Dawn ('Aurora Dourada'), onde teve confrades de todos os tipos, desde os mais ilustres, como o poeta W. B. Yeats, até os menos recomendáveis, como o notório satanista e praticante de magia negra Aleister Crowley. Morreu em 1947.

Tendo terminado de ler O Terror (refiro-me ao livro como um todo), fiquei em dúvida sobre o motivo que teria levado o pessoal da Iluminuras a escolher para publicação o conto que lhe dá título, principalmente sabendo que esse seria o primeiro contato de muitos leitores com o autor e, quiçá, sua primeira publicação no Brasil (alguns trabalhos de Machen foram lançados em Portugal, mas são edições dificílimas de conseguir – eu sei porque tentei). Tanto Lovecraft em O Horror Sobrenatural... quanto Arantes em A Demanda do Mistério, falam-nos de várias histórias que, pela descrição, parecem muito mais interessantes, como O Grande Deus Pã, O Povo Branco, as narrativas que integram o livro Os Três Impostores, e por aí vai. O Terror até que tem uma ideia que poderia render bem, mas, pessoalmente, desgostei do modo como foi desenvolvida. Deixem-me detalhar um pouco mais.

A história passa-se durante os anos de 1915-16, portanto no auge da paranoia de guerra. No interior do País de Gales, e aparentemente por toda a Grã-Bretanha, pessoas começam a aparecer mortas de maneiras altamente improváveis ou completamente inexplicáveis: um aviador tem sua aeronave abatida por um bando de pombos, um homem é encontrado afogado num pântano apesar de haver uma trilha segura a poucos passos do local, uma família inteira aparece morta, com as cabeças destroçadas, bem em frente a sua casa, um barco levando estudantes vira em mar calmo e apesar de ser conduzido por um marinheiro experiente, outra família é achada morta, entrincheirada dentro de sua casa de fazenda, como se tivesse sofrido um cerco, e a causa da morte parece ter sido a sede, embora exista um poço a poucos metros de distância. Uma boa situação inicial para uma história de terror? Sem dúvida. O problema, ou o que eu considero ser o problema, é que Machen estende seu "suspense" muito além do que seria aconselhável: vai empilhando mais e mais "casos inexplicáveis" e "acontecimentos terríveis e misteriosos" – e mais, e mais, e mais, e mais… –, ao longo de um número excessivo de páginas, até chegar a um ponto em que o leitor, já impaciente, começa a pensar: "Tudo bem, Mr. Machen, o senhor já me convenceu de que algo de anormal está acontecendo; agora, que tal começar a tratar da resposta para o enigma?" Mas, em vez disso, o que o autor nos dá são longas e cansativas palestras entre os personagens, alguns deles propondo explicações teóricas para o mistério – explicações, em sua maioria, bastante extravagantes e ingênuas –, enquanto outros preferem pôr tudo na conta dos alemães, como era moda na época por causa da guerra. O clima de paranoia, aliás, é totalmente plausível e convincente, embora não se mostre suficiente para dissipar o tédio que se instala na narrativa a partir de certo ponto. Há partes em que a forçação de barra chega a ser constrangedora, como já perto do final, quando o Dr. Lewis, um médico do interior e o mais próximo que a história tem de um protagonista, acompanha um grupo de busca até a fazenda isolada onde, depois de serem obrigados a arrombar a porta, se deparam com a desnorteante cena da família morta dentro da própria casa, sem sinais de violência – com exceção do velho fazendeiro, o único encontrado fora da casa e com um buraco no peito. Em meio aos outros, Lewis descobre o corpo de um jovem que ele conhecia, um pintor que era hóspede da família, e uma carta, endereçada a ele próprio, que o rapaz aparentemente escreveu durante suas últimas horas de vida e nunca teve chance de enviar. A carta, entre outras coisas, diz:

"(…) Não quero deixar uma carta escrita por um louco, por isso não vou lhe relatar a história integral do que vi (…)".

A essa altura, minha vontade já era jogar o livro na parede. Mas fica ainda melhor:

"(…) O velho chamou, acho, o filho. Depois houve um barulho tremendo (…). Ouvi a filha gritando: 'É inútil, mãe, ele tá morto; na verdade o mataram' (…)."

Quem o matou, por favor?…

"Fui à janela e olhei para o terreiro. Não vou lhe contar tudo o que vi."

É, eu não esperava mesmo que fosse…

"Quis sair e trazê-lo para dentro. Porém elas me disseram que ele estava definitivamente morto, e também que era bastante claro que quem quer que saísse da casa não viveria mais do que um instante. Não podíamos acreditar no que víamos, mesmo enquanto olhávamos para o corpo do morto. (…) Mesmo então não acreditávamos que fosse durar. (…) Não podia durar, porque era impossível."

O que é que não podia durar, homem?!?

"(…) Ao meio-dia, o pequeno Griffith disse que iria até o poço pelo caminho de trás para buscar mais um balde de água. Fui até a porta e fiquei a postos. Ele mal tinha andado uns doze metros quando o atacaram."

QUEM O ATACOU, PORRA???

Acho que isso já basta como amostra.

Palavra de honra, não sou um desses chatos sem noção que ficam querendo cobrar "verossimilhança" em obras de fantasia, mas há uma enorme diferença entre o que é liberdade imaginativa e o que é simples incoerência. Acho muito difícil de "engolir" que um homem à beira da morte, sofrendo alucinações por causa da sede, ainda fosse impor a si mesmo toda essa rígida e minuciosa autocensura, abstendo-se de revelar a exata natureza do horror que estava enfrentando, meramente para resguardar uma imagem de "lucidez" perante um hipotético leitor. Isso se parece muito mais com uma enjambração capenga da qual o autor lança mão para preservar o suspense – numa altura da história em que ele não mais se justifica. Saber criar suspense é sem dúvida uma das mais valiosas habilidades para um escritor de qualquer gênero, mas talvez ainda mais importante seja saber até onde ele pode ser um recurso narrativo útil e a partir de que momento se transforma numa coisa forçada, artificial e irritante. Suspense tem prazo de validade – um fato do qual, ao menos em O Terror, Arthur Machen não demonstra ter ciência. Leitura muito mais agradável é Ornamentos em Jade, que, de forma despretensiosa, com lirismo e leveza, coloca-nos em contato com a atmosfera das remotas regiões rurais do País de Gales, com seu misticismo antigo, com a beleza de suas paisagens, e com o mesmo sentimento que devia encher o coração do menino Arthur quando ele vagava solitário por tais lugares: uma nostalgia melancólica por um mundo desaparecido há 1500 anos. Portanto, posso dizer que, se dependesse apenas de O Terror, eu não teria planos de voltar a ler Arthur Machen – mas, por causa de Ornamentos em Jade e das excelentes recomendações, sinto que ainda posso dar a ele uma segunda chance.