quarta-feira, fevereiro 03, 2016

A Máquina de Matar

Cerca de um ano depois de ter conseguido eliminar Attel Malagate, o primeiro de sua lista negra, Kirth Gersen atravessa um período de marasmo. Suas investigações em busca dos outros Príncipes-Demônios parecem ter chegado a um beco sem saída. Nessa situação, ele aceita um convite para uma reunião com um oficial da CCPI (Companhia de Coordenação Policial Intermundos), organização para a qual já trabalhou como freelancer no passado. O oficial tem em alta conta as habilidades de Gersen, e por isso deseja enviá-lo para um planeta periférico, no qual ele tem motivos para acreditar que certo indivíduo procurado pela CCPI esteja tratando de seus próprios negócios. A tarefa de Gersen seria a de localizar o homem e trazê-lo de volta, vivo se possível. Morto também serve. Entretanto, seu mandante em potencial se recusa a fornecer qualquer informação além das estritamente necessárias ao desempenho da missão: não diz por que o sujeito está sendo procurado e nem sequer sua verdadeira identidade, designando-o apenas por "Sr. Hoskins" – obviamente um nome fictício. Gersen, que não gosta de trabalhar no escuro, está pronto para recusar a incumbência quando o outro, quase por acaso, menciona que Kokor Hekkus, vulgo "a Máquina de Matar", um dos tristemente famosos Príncipes-Demônios, pode estar envolvido nos assuntos dos quais o procurado anda tratando. Isso muda totalmente as coisas para Gersen, que, embora mantendo a aparência de desinteresse para não dar na vista, toma no mesmo instante a decisão de aceitar a missão.

No planeta designado, Gersen testemunha o encontro de "Hoskins" com um tal Billy Windle, que ele suspeita ser um agente a serviço de Kokor Hekkus. O encontro acaba mal para "Hoskins", que perde a vida; ele estava em vias de trocar certos papéis com Windle, mas a intervenção de Gersen impede que a transação se concretize e, quando tudo termina, nosso herói se vê de posse de dois documentos. Um deles, rasgado durante a luta, está incompleto, e traz certas instruções envolvendo matemática, para algum propósito misterioso. O outro, para seu assombro, consiste em nada menos que instruções sobre como se tornar um hormagaunt – uma espécie de bicho-papão desses tempos futuristas, uma classe de homens que, segundo se diz, conseguem prolongar indefinidamente a própria vida utilizando ingredientes misteriosos obtidos dos corpos de jovens ou crianças. Como toda pessoa racional, Gersen sempre viu isso como mera fábula, mas é forçado a reconsiderar ao ver-se diante das tais instruções por escrito, que "Hoskins", sem dúvida, considerava sérias. Dizendo de outra forma: a coisa em si talvez não seja real, mas Gersen sabe agora que há pessoas que acreditam que seja – o que, para muitas finalidades, dá no mesmo. Em adição a tudo isso, um garoto que ele encontra naquele planeta afirma categoricamente que Billy Windle é mesmo um homem de Kokor Hekkus, que Hekkus é um hormagaunt, e que vive no planeta Thamber. Não que isso, em princípio, torne a coisa mais crível: Thamber é o planeta das lendas e dos contos de fadas. Aqui na Terra, quando os contos de fadas surgiram, supunha-se que as maravilhas e os horrores neles descritos acontecessem em "reinos distantes", pois, naquela época, nosso mundo ainda possuía suficientes partes inexploradas para permitir o benefício da dúvida quanto à existência de lugares assim; já nos tempos pós-exploração espacial em que se desenrola a Saga dos Príncipes-Demônios, as bruxas, os dragões e as princesas encantadas "migraram" para esse planeta misterioso, de localização desconhecida e existência duvidosa. Portanto, no que diz respeito a Gersen, o assunto fica sobrestado até que novos elementos surjam; ele já viu coisas demais para fechar a mente a qualquer possibilidade, mesmo as mais fantásticas.

Gersen tem seus motivos para trabalhar ocasionalmente para a CCPI, e o pagamento oferecido por cada missão não é o principal deles; para ele, ter contatos dentro da organização é muito mais valioso, pois lhe garante acesso a informações que não estariam disponíveis a pessoas comuns, e que, para ele, podem ser de importância capital. Pouco mais de um mês depois do incidente com o "Sr. Hoskins", o Oikumene (termo que Jack Vance foi buscar no grego clássico, e que significa algo como “o universo habitado”) começa a ser assolado por uma onda de sequestros. Não que sequestros sejam tão incomuns, mas esses são todos realizados de forma muito parecida, e não visam simplesmente pessoas ricas – só as extremamente ricas, ou seus entes queridos. O resgate solicitado também é o mesmo para todos: cem milhões de UPVs (a UPV, Unidade Padrão de Valor, é a moeda corrente nos mundos humanos). Tudo parece indicar que todos os sequestros tenham sido arquitetados por um mesmo mentor, e, graças ao acesso privilegiado a informações de que falávamos há pouco, Gersen descobre que esse mentor é Kokor Hekkus. Naturalmente, a questão que se impõe é: para que teria ele necessidade de tanto dinheiro, e com tamanha urgência que não pode dispor do tempo de obtê-lo por meio das suas atividades criminosas habituais, que chamam muito menos atenção?

Este é o momento em que precisamos conhecer outra particularidade desconcertante do universo exótico de Jack Vance. Como sabe quem já leu algum dos cinco volumes da Saga dos Príncipes-Demônios, o Oikumene, apesar do nome, não é todo o universo conhecido – somente a parte dele que pode ser considerada relativamente civilizada e segura. Suas "metrópoles", por assim dizer, são o sistema do Sol (o nosso, onde fica a Terra, berço da humanidade) e os de Vega e Rigel. Nesses sistemas, e nos outros que estão sob sua influência direta, existem leis, e também os órgãos dedicados a garantir que elas sejam cumpridas, o que oferece aos cidadãos um certo grau de proteção, embora, é claro, seja impossível impedir totalmente a ação de criminosos. O Oikumene é uma região vasta, mas nem de longe tão grande quanto o "resto", quer dizer, aqueles sistemas estelares que até podem já ter sido explorados e mapeados, mas que a força da lei não alcança e onde, literalmente, vale tudo – uma espécie de Velho Oeste cósmico. Esse é o assim chamado Além-Espaço, ou, às vezes, apenas o Além. Nem é preciso dizer que nele não é difícil encontrar contrabandistas, piratas, mercadores de escravos e todo tipo de bandidos comuns e incomuns, mas não só isso. Também é no Além que certas empresas são fundadas e prosperam, e não se trata somente de facções criminosas brutais e pouco organizadas: há companhias habilmente administradas por empreendedores esclarecidos, com funcionários, estatutos, hierarquia, burocracia e tudo o mais. O motivo pelo qual os fundadores dessas empresas escolheram estabelecê-las no Além-Espaço é um só: os negócios aos quais elas se dedicam são ilegais.

Uma dessas empresas é Intercâmbio, cujo ramo de atuação consiste em intermediar sequestros. A companhia possui um complexo instalado num pequeno planeta na borda do Além-Espaço, e é para lá que sequestradores de todos os lugares levam suas vítimas, eliminando a necessidade dos trabalhosos, arriscados e pouco práticos cativeiros. Mediante uma comissão sobre o valor do resgate, Intercâmbio se encarrega da custódia dos reféns e cuida de seu conforto, saúde e segurança, além de receber o pagamento e repassá-lo ao sequestrador (que, no jargão da companhia, é chamado de "patrocinador").

Intercâmbio existe há muito tempo, goza de prestígio e pode mobilizar recursos cuja extensão ninguém conhece ao certo; nem mesmo Kokor Hekkus ousaria tentar trapaceá-lo – guardem essa informação. No atual momento, aliás, Hekkus é o principal cliente da companhia: quase todos os dias uma de suas naves chega trazendo novos reféns. Gersen decide ir até lá ver o que descobre, e, para tanto, faz um acordo com um dos figurões cujos filhos foram sequestrados; é na qualidade de agente desse homem que ele chega a Intercâmbio, onde, graças à tagarelice de um empregado (encorajada por um pouco de dinheiro), fica sabendo, por fim, o que há por trás daquilo tudo. E o que descobre o surpreende, embora, pensando bem, bata com aquilo que se sabe sobre Kokor Hekkus. O Príncipe-Demônio tem duas paixões: uma são máquinas complicadas, e a outra é a beleza. Adora antiguidades e obras de arte, que compra ou rouba por todo o Oikumene e no Além-Espaço. Aconteceu então que, levado por essa obsessão estética, ele se encantou por certa jovem cuja beleza (dizem) desafia descrições, e que (também dizem) é originária do mítico Thamber. Horrorizada ante a perspectiva de cair nas mãos de Hekkus, e sabendo que ele moveria céus e terras para apanhá-la, a moça recorreu a Intercâmbio, cujas regras, como dissemos, nem mesmo ele se atreveria a tentar burlar. Agindo como sua própria patrocinadora, ela se pôs sob a guarda de Intercâmbio, fixando o próprio resgate em inacreditáveis dez bilhões de UPVs – soma superior ao orçamento anual da maioria dos planetas do Oikumene –, e só não o fixou ainda mais alto porque as normas da empresa não permitiam. Outra dessas normas estipula que, até o final de um certo prazo, só a parte diretamente interessada, isto é, a família do refém, pode pagar o resgate; passando daí, qualquer pessoa que o pague pode "tomar posse". No caso da jovem de Thamber, o prazo já expirou, de modo que Kokor Hekkus poderá finalmente tê-la… Desde que pague os dez bilhões de UPVs, que, como o funcionário de Intercâmbio observa a Gersen, são uma soma imensa, mas também são apenas cem vezes cem milhões. De posse de todas essas informações, Gersen encara o desafio de descobrir nelas alguma fresta que lhe dê a chance de localizar Kokor Hekkus, acercar-se dele e matá-lo. Um outro refém em Intercâmbio talvez possa ser útil: Myron Patch, engenheiro e industrial da cidade de Patris, no planeta Krokinole, está ali porque aceitou uma encomenda de Hekkus, que o encarregou de construir para ele uma espécie de fortaleza ambulante sobre pernas articuladas, um gigantesco centípede de metal para disseminar o terror entre certas tribos bárbaras de Thamber, que andavam a lhe causar problemas. Patch entrou em desacordo com Hekkus por motivos financeiros, e foi assim que acabou sequestrado. Gersen irá apostar que esse sujeito pode ajudá-lo a estabelecer um contato com seu alvo – e nessa aposta vai arriscar muita coisa, inclusive a vida, o que faz parte de seu destino de vingador.

Deixem-me dizer, os livros de ficção científica que já li devem contar-se pelas centenas, mas, se eu for fazer uma lista dos autores que me empolgaram tanto quanto Jack Vance, ela terá uns três nomes, no máximo quatro. Seu universo é de uma complexidade quase inacreditável, mas, apesar disso, conforme vamos imergindo nele, nos dá a sensação de uma familiaridade como só lugares reais costumam conseguir fazer. Só tenho pena de que a Saga dos Príncipes-Demônios só tenha cinco volumes, pois esse universo mereceria ser muito mais explorado, aproveitado em muito mais histórias. Como observei ao escrever sobre Star King, o autor foi afinando seus instrumentos conforme progredia nas aventuras de Kirth Gersen: o primeiro livro já era ótimo, mas tinha algumas arestas que precisavam ser aparadas, o que positivamente aconteceu em A Máquina de Matar. A narrativa ficou mais fluente, as "cores" ainda mais vivas, e a personalidade do protagonista ganhou mais profundidade. Gersen, ele próprio, também é uma "máquina de matar", quase perfeito como guerreiro, espião, detetive e assassino, treinado durante toda a vida para sua missão de vingança e educado para agir de forma estritamente racional – mas nada disso consegue apagar o fato de que ele, no fundo, é um romântico incorrigível, um fato que esta segunda história irá pôr em evidência mais do que a primeira.

A capacidade de Jack Vance de urdir tramas complexas sem deixar nenhuma ponta solta é algo de admirável. Desde as primeiras páginas, ele vai jogando pedaços de informação cuja importância só iremos compreender muito depois, num desafio de lógica investigativa que tanto Gersen quanto o leitor precisam desvendar, lembrando um pouco um romance policial, mas, é claro, em clima de ficção científica, e, neste livro, também de fantasia: é uma experiência emocionante chegar a Thamber e descobrir que ele é real. Colonizado por humanos em tempos antigos, o planeta ficou por muito tempo isolado, o que levou a civilização, nele, a regredir até um estágio técnico e social que lembra a Baixa Idade Média da Terra. Vance (que faleceu em 2013, aos 96 anos de idade) parecia gostar desse conceito, pois o utilizou em pelo menos mais duas histórias: The Miracle Workers ('Os Milagreiros') e The Dragon Masters (publicado no Brasil como 'O Planeta dos Dragões'). A ideia, que poderia facilmente soar ridícula em mãos menos hábeis, dá resultados formidáveis quando quem a usa é um mestre como Vance. É inexplicável que um autor desse calibre, cultuado mundo afora e reverenciado por gente como Ernest Cline, Neil Gaiman, George R. R. Martin, entre outros, tenha tido tão poucos livros publicados no Brasil, e que mesmo esses já não sejam reimpressos há uns 30 anos ou mais, só podendo ser encontrados em sebos, e com muita sorte.

Por falar em sebos e em sorte, quero finalizar com uma curiosidade. Possuo ambas as versões de The Killing Machine existentes em português: a da editora brasileira Francisco Alves, de 1980 (dentro da coleção Mundos da Ficção Científica), intitulada A Máquina de Matar, e a da portuguesa Europa-América, sem data de publicação, chamada A Máquina Assassina. Comprei a edição portuguesa primeiro, acho que foi na Feira do Livro de Porto Alegre, nos idos dos anos 90, mas, ao encontrar a brasileira mais recentemente, e por um preço mínimo, comprei também, principalmente pela curiosidade de comparar as duas traduções – mas, até agora, só havia lido de cabo a rabo a versão portuguesa. Quando resolvi reler, ficava pulando de uma edição para a outra, não raro me surpreendendo do quanto uma tradução pode mudar um texto, e desejando ter também uma edição em inglês, para ver como certos trechos eram no original. Acabei constatando mais uma vez algo que já sabia sobre mim mesmo: não sou uma pessoa "desprendida" (sou do tipo que, quando vai a um restaurante de que gosta, tem a tendência de pedir sempre o mesmo prato; perguntem a Cintia). Voltei para a edição portuguesa, concluindo que gostava mais dela, embora isso possa ser apenas porque já a conhecia!… Além disso, por razões que ignoro, na tradução brasileira Kokor Hekkus é frequentemente chamado apenas de "Kokor", e não acho recomendável demonstrar tanta intimidade com um notório malfeitor. Em todo caso, ao escrever este texto, procurei usar as palavras da terminologia do universo de Jack Vance do modo como aparecem na edição brasileira (exemplo: UPV em vez de SVU – a edição portuguesa usa a sigla em inglês, de Standard Value Unit), já que aqueles de vocês que quiserem ler o livro e tiverem sorte o bastante para consegui-lo, provavelmente encontrarão a edição da Francisco Alves. Por outro lado, optei por ilustrar o post com a capa da edição portuguesa, que é, de longe, muito mais bonita… Aliás, para falar francamente, a capa da nacional é muito feia. Mas, seja qual for a edição, não deixem de ler se puderem.

sábado, janeiro 16, 2016

Hannibal: a Origem do Mal

Thomas Harris, poderíamos dizer, criou um novo subgênero dentro do suspense, o que lhe garantiu reconhecimento tanto na literatura quanto por meio das adaptações de suas obras para as telas do cinema e da TV. Seu personagem mais famoso, o Dr. Hannibal Lecter, foi colocado em evidência pela primeira vez com o filme O Silêncio dos Inocentes, em 1991 (baseado no livro publicado apenas três anos antes), tornando-se conhecido do grande público, e não mais apenas dos leitores de Harris: o rosto do ator Anthony Hopkins usando a máscara-mordaça do personagem virou um ícone do cinema dos anos 90. Hannibal sempre foi uma figura diabolicamente única (eu, pelo menos, não conheço nada parecido), e a magistral interpretação de Hopkins o tornou ainda mais marcante. Nesse filme, Lecter já nos é apresentado preso, sob fortíssima segurança, numa instituição para criminosos insanos, mas ficamos sabendo que, antes de ser apanhado, ele conciliou com sucesso durante anos as atividades de psiquiatra forense e assassino em série. Trata-se de um homem de brilhante inteligência e cultura, refinado e elegante, apreciador de arte, música erudita, literatura e alta gastronomia – sendo que, nesse último campo, tinha o hábito, quando em liberdade, de incorporar aos sofisticados pratos que preparava certos "cortes especiais" retirados dos corpos de suas vítimas, fosse apenas para seu próprio deleite ou para servir aos amigos (sem revelar os ingredientes usados, é claro!) em agradabilíssimos jantares que oferecia periodicamente, em geral reunindo pessoas selecionadas da comunidade da alta cultura de Baltimore, Maryland, onde morava e clinicava.

Em O Silêncio dos Inocentes (tanto o livro quanto o filme), o mistério em torno de como Hannibal se tornou o que é faz parte do fascínio exercido pelo personagem; esse é o segundo livro, em ordem de publicação, no qual ele aparece, sendo o primeiro Dragão Vermelho (1981) e o terceiro, Hannibal (1999). Dragão Vermelho já havia recebido uma adaptação livre, de pouca repercussão, em 1986, sob o título de Manhunter (no Brasil, Caçador de Assassinos), com rápida aparição de Hannibal, interpretado por Brian Cox. O Silêncio dos Inocentes, como já vimos, chegou aos cinemas em 1991, mas, apesar do sucesso, não parece ter havido interesse, na época, em filmar seu predecessor: Hollywood preferiu esperar pela publicação de Hannibal, cuja versão para as telas estreou em 2001, novamente com Anthony Hopkins. Como esse filme também foi bem recebido pelo público, Dragão Vermelho pôde, por fim, ganhar nova versão, mais fiel ao livro e com o título original. Nessa versão, produzida logo a seguir e lançada em 2002, Hopkins encarnou o psiquiatra canibal pela última vez até o presente momento.

Harris cedeu aos muitos pedidos de seus leitores e voltou a escrever sobre Hannibal Lecter depois de ter deixado o personagem no ostracismo durante longo tempo. Hannibal Rising, ou Hannibal: a Origem do Mal, foi publicado em 2006 e transformado em filme no ano seguinte, com o francês Gaspard Ulliel interpretando o jovem Hannibal. Essa prequel revela detalhes da origem do personagem (que mesmo quem leu os outros livros só conhecia por meio de referências curtas e enigmáticas) e sobre sua infância e adolescência, dando finalmente a dimensão completa do trauma que ele sofreu ainda pequeno (e que recebera uma menção fugidia no livro Hannibal) e que pode explicar como veio a desenvolver inclinações antropofágicas. Portanto, se quiserem ler a saga na cronologia correta, ignorem a ordem em que os livros e/ou filmes foram lançados e leiam assim: 01) Hannibal: a Origem do Mal; 02) Dragão Vermelho; 03) O Silêncio dos Inocentes; 04) Hannibal.


Como também já insinuado em outros lugares, Hannibal escolheu os Estados Unidos para viver, mas é, por nascimento, um legítimo representante da velha aristocracia europeia. Seu ancestral, Hannibal, o Terrível, que viveu nos séculos XIV e XV, é um herói semilendário para a população da Lituânia (acho que o autor criou esse ancestral inspirando-se livremente em Vlad III da Valáquia), e o "nosso" Hannibal, nascido por volta de 1933 no vetusto Castelo Lecter, é o oitavo de sua linhagem a usar o nome. Seu pai, que tinha o título de conde, casou-se com uma dama de tradicional família italiana; a influência da mãe pode ter sido, em grande parte, o que despertou no garoto o amor pela música e pela arte. Sua prodigiosa inteligência já se anunciava desde tenra idade, mas aqueles não eram tempos fáceis para uma pessoa viver sua infância: em 1941, quando Hannibal está com oito anos, e sua irmã, Mischa, com três, as forças da Alemanha nazista varrem o leste europeu numa preparação para a invasão da União Soviética. É a Operação Barbarossa, que marca o rompimento do pacto de não agressão que vigorava entre as duas potências desde o início da Segunda Guerra. O Conde Lecter, então, decide tirar a família do castelo, e vão todos viver numa antiga cabana de caça escondida em meio às densas florestas que cobrem suas terras. O plano parece funcionar durante bastante tempo: os Lecter e alguns de seus criados (entre eles o Sr. Jakov, um velho judeu de enorme erudição que serve de tutor a Hannibal) vivem ali durante os três anos e meio que a Lituânia permanece sob domínio nazista, sem serem achados. A sorte os abandona já no final da ocupação: numa das últimas batalhas entre russos e alemães a serem travadas em solo lituano, todos, com exceção de Hannibal e Mischa, perdem a vida. As duas crianças são achadas por um grupo de ex-Hiwis – nome dado aos colaboradores voluntários dos nazistas – liderados pelo asqueroso Vladis Grutas. Embora tenham ajudado os invasores a subjugar e rapinar seu próprio país, esses homens não conseguiram concretizar sua esperança de ganhar um lugar nas SS, e, de qualquer forma, como já é 1945 e a derrota alemã é questão de tempo, essa ambição perdeu o sentido; assim, os celerados tiram a vantagem que ainda podem, aproveitando-se do caos gerado pelo estado de guerra para ganhar a vida como saqueadores, e não escolhem o lado de quem pilham e assassinam.

Abrigados no pavilhão de caça dos Lecter, com Hannibal e Mischa como prisioneiros, e isolados em meio ao rigoroso inverno lituano, Grutas e os outros se veem ameaçados pela fome… E a memória de Hannibal apresenta uma lacuna (mais provavelmente, um bloqueio) nesse ponto. A coisa seguinte de que ele se lembra é de ter sido encontrado por soldados russos, sozinho e semimorto, num campo deserto. Em 1946, com 13 anos de idade, ele está vivendo num orfanato que, numa triste ironia, foi estabelecido no antigo Castelo Lecter; a Lituânia é agora uma república soviética e já não há aristocratas: são todos "camaradas". Os terríveis acontecimentos no pavilhão de caça, quaisquer que tenham sido, cobraram seu preço: Hannibal ficou incapaz de falar, embora à noite, durante seus pesadelos, chame em desespero pela irmã, que não sabe que fim levou. Apesar de sua incapacidade de se comunicar e de se enturmar com os outros garotos no orfanato, a inteligência de Hannibal é óbvia; isso e o modo penetrante como observa tudo à sua volta o tornam temido e hostilizado – e ele sempre encontra meios surpreendentes para fazer com que as pessoas se arrependam de lhe ter causado algum mal.

Com as coisas voltando ao normal depois da guerra (um "normal" que nunca mais será como antes, é claro – nem para Hannibal, nem para a Lituânia, nem para o mundo), o único parente vivo de Hannibal, seu tio Robert, consegue encontrá-lo no orfanato, e o leva para viver com ele e sua esposa, na França. Aliás, desposar estrangeiras exóticas e de origem ilustre parece ser um costume prezado entre os homens da família Lecter: a esposa de Robert é Lady Murasaki, descendente de uma antiga linhagem de samurais da região de Hiroshima, cidade onde toda a sua família pereceu, vitimada pela bomba atômica dos americanos. No filme, Lady Murasaki é interpretada pela bela atriz chinesa Gong Li, e há uma diferença importante na narrativa em relação ao livro: Hannibal foge do orfanato e atravessa sozinho vários países até chegar à França, onde procura pelo tio guiando-se pelo endereço de algumas velhas cartas que encontrou no castelo – e não chega a conhecê-lo, sendo acolhido por uma Lady Murasaki já viúva. O roteirista deve ter optado por essa mudança porque, no filme, Hannibal parece ter vivido no orfanato durante alguns anos, já está mais velho, com uns 16 ou 17 anos em vez de 13, e praticamente não conviveu com mulheres desde sua infância, o que faz com que se veja confuso, sem saber como deve se sentir diante de uma mulher mais velha, bonita e charmosa – que é sua tia. Se Robert Lecter ainda vivesse, a situação ficaria complicada. No livro não há esse problema, pois tudo é muito mais gradual. De qualquer forma, Hannibal não deixa de experimentar certos sentimentos normais para um rapaz de sua idade… Uma das poucas coisas a respeito dele que podem ser consideradas normais.


Suas reações, entretanto, não são propriamente normais. Ele comete seu primeiro assassinato antes de completar 14 anos, eliminando o açougueiro da vila próxima à mansão onde está vivendo com os tios. Esse sujeito desagradável havia insultado publicamente Lady Murasaki, o que já seria imperdoável no sistema de valores de Hannibal: como sabe quem o conhece, ele não tolera a grosseria. Para agravar a coisa, o tio Robert fica sabendo do ocorrido, vai tirar satisfações com o açougueiro e, sob o efeito da raiva, seu coração debilitado não resiste. Hannibal perpetra seu ato e não sente culpa – aliás, não sentirá isso em momento algum de sua vida.

A morte de Robert deixa Lady Murasaki e Hannibal em dificuldades. A mansão onde viviam, no interior da França, tem que ser vendida para saldar dívidas, e os dois se mudam para uma moradia mais modesta em Paris, onde Hannibal começa a cursar a escola de medicina, mostrando-se logo um aluno brilhante. Como também possui notáveis dotes artísticos, aproveita para ganhar algum dinheiro pintando imagens em estilo japonês e vendendo-as para negociantes de arte da cidade, até que, certo dia, na loja de um dos marchands com quem negocia, encontra um quadro que conhece: fazia parte da coleção de seus pais, e só pode ter sido roubado do Castelo Lecter. O quadro se torna a primeira pista de uma trilha tortuosa que Hannibal seguirá para encontrar os Hiwis que mantiveram sua irmã e ele como prisioneiros. Desses homens, ele quer algumas respostas, e, possivelmente, muito mais. E cheguei até onde podia sem dar spoiler.

Hannibal, que começa na medicina como cirurgião, mais tarde migra para a psiquiatria, mas já nesta narrativa a respeito de sua juventude nota-se nele um talento para essa área. Como aluno bolsista, uma de suas tarefas consiste em ir às prisões de Paris (onde também é aplicada a pena capital aos condenados) para buscar os corpos que serão utilizados nas aulas de anatomia. Há um capítulo no qual ele precisa conseguir que um condenado à guilhotina assine um termo autorizando o uso de seu corpo, e o sujeito está lelé, fala com ele fingindo (ou melhor, provavelmente acreditando) ser um advogado com procuração para representá-lo. Hannibal lida com a situação com enorme astúcia; é difícil dizer se isso vem de sua condição de psicopata (manipulador por natureza) ou de uma mente com um pendor para lidar com as desordens mentais de outros, apenas aplicando esse dom para alcançar o objetivo do momento.

Ainda no mesmo assunto, é muito curioso que Hannibal opte pela psiquiatria, já que ele próprio poderia servir de objeto de estudo durante muitos anos para os mais instruídos e sagazes de seus colegas. Em alguns momentos ao longo da série, ele é referido como um sociopata, em outros como um psicopata, e, pelo menos uma vez, é dito que a medicina não tem uma palavra capaz de defini-lo. Pessoalmente, não tenho qualquer conhecimento formal sobre o assunto, tudo o que sei é o que um curioso consegue descobrir aqui e ali, e, ao procurar pelas definições de sociopatia e psicopatia para tentar dar mais consistência a este texto, achei-as extremamente parecidas uma com a outra. Pelo visto, não sou o único a ter essa impressão, pois li também que há muita discussão, mesmo entre os especialistas, sobre o que distingue os dois transtornos, seja de modo geral ou em casos específicos. Parece que a tese mais aceita é a de que ambos se distinguem pela origem: o psicopata já teria nascido assim, enquanto o sociopata seria produto de um ambiente abusivo ou violento. Seja como for, uma característica que costuma estar associada a ambos os quadros, a dificuldade para controlar os impulsos, passa longe do perfil de Hannibal. Na verdade, o personagem parece possuir um autocontrole extraordinário: sabe exatamente quando pode matar e quando não pode, e nunca o faz a menos que tenha certeza de que conseguirá cobrir seus rastros com perfeição. Também não mata à toa, nem apenas por desejo de saborear uma refeição de carne humana: seus alvos preferenciais são pessoas rudes, prepotentes, ou que representem perigo para ele, ou ainda algumas sem as quais, em sua opinião, o mundo ficará melhor – há um caso anedótico, citado em Hannibal e mostrado em live action em Dragão Vermelho (que, embora filmado depois, retrata acontecimentos anteriores), no qual ele elimina um flautista ruim, que estava estragando o som da Filarmônica de Baltimore, e serve um dos órgãos do homem num jantar para o qual convida todos os membros do conselho diretor da orquestra.

Outros pontos nos quais o perfil de Hannibal não parece se ajustar à descrição-padrão de psicopata ou sociopata são a ausência de empatia e a incapacidade de formar laços afetivos: pode ser fato que ele não tem qualquer empatia nem preocupação com o bem-estar da quase totalidade da espécie humana, mas há exceções, e essas são muito importantes. Há pessoas a quem ele, sem dúvida, dedica afeto, ou ao menos um grande respeito, como Lady Murasaki e, mais tarde, Will Graham (o agente do FBI que o prendeu), Clarice Starling, e até mesmo Barney, o enfermeiro/carcereiro em quem o Dr. Lecter encontrou um discípulo atento, uma mente ávida por conhecimento (em tempo: conhecimento sobre arte e cultura, não sobre assassinato). O que me parece, enquanto leitor, é que Thomas Harris deve ter estudado a fundo as características dos transtornos psiquiátricos, mas, de propósito, deve ter feito com que seu personagem fugisse deles em alguns pontos, enquanto se encaixa em outros, o que o torna mais enigmático. Por esse motivo, entre outros, Hannibal talvez seja um dos mais interessantes anti-heróis da literatura recente: seus crimes nos horrorizam, mas também há momentos em que torcemos por ele e até o entendemos. Quem nunca teve vontade de matar uma pessoa grosseira? A diferença é que Hannibal não fica na vontade, e, como se fosse uma réplica póstuma à ofensa recebida, sempre que possível ainda faz questão de comer um pedaço do ofensor, como se insinuasse, com o humor ácido que é uma de suas marcas registradas, que para alguma coisa "boa" a pessoa acabou servindo.

Peguei Hannibal: a Origem do Mal para ler meio por acaso, era apenas um dos muitos livros que aguardavam a vez, e preciso dizer, a bem da verdade, que ele não é tão bom quanto O Silêncio dos Inocentes ou Hannibal (ainda não li Dragão Vermelho, mas, naturalmente, vi todos os filmes), mas também está longe de ser uma leitura ruim. Parece-me agora que essa pode ser uma boa oportunidade de percorrer toda a saga de Hannibal na ordem cronológica certa, então é possível que leia/releia tudo, não necessariamente um atrás do outro – posso alternar com outros, mas procurarei fazer isso, e, se assim for, retorno ao assunto em breve.

quarta-feira, dezembro 16, 2015

Rosto de Caveira, Os Filhos da Noite e Outros Contos

Vocês talvez lembrem que, no post a respeito de Salomão Kane, observei que muitas coisas nas aventuras do valente puritano sinalizavam um interesse, por parte de Robert E. Howard, pela literatura de terror, inclusive especulando que, caso tivesse vivido mais, o autor, muito provavelmente, ter-se-ia dedicado ao gênero em algum momento. Bem, este outro livro veio para me mostrar que ainda estou longe de conhecer a obra do cara tão bem quanto julgava. As histórias de terror de Howard não são uma coisa hipotética: elas estão bem aqui.

O que encontramos em Rosto de Caveira, Os Filhos da Noite e Outros Contos são histórias com a marca inconfundível de Howard, já conhecida de quem leu as aventuras de Conan e outros de seus trabalhos. Um estilo um tanto hercúleo, vamos dizer assim – mais vigoroso que elegante. Nada que o tempo, a prática e a leitura de grandes vultos da literatura universal não tivessem resolvido, se tivesse havido chance para tanto. Isso me faz lamentar duplamente a morte precoce do escritor, pois, caso não tivesse desistido de viver, ele certamente nos teria brindado com um vasto número de novas obras – veja-se a quantidade de material que produziu em tão poucos anos –, além de, com igual certeza, evoluir muito em técnica e estilo. Caras, pensem no que seria ler um romance que Howard tivesse escrito nos seus maduros 60 ou 70 anos, aliando a tremenda imaginação que conhecemos com a experiência e a habilidade acumuladas numa longa carreira… Mas estou de novo escorregando para o universo do what if. Desculpem.

A primeira história, e a mais longa (ocupando sozinha mais de metade do livro) é Rosto de Caveira. O personagem-narrador chama-se Stephen Costigan, mas, segundo especialistas em Howard, é distinto de Steve Costigan, um marinheiro e boxeador que protagoniza quase 30 histórias e foi um forte candidato a personagem mais popular do autor – antes do aparecimento de Conan, é claro. O Costigan a quem somos apresentados aqui é um ex-combatente da Primeira Guerra Mundial, cuja mente foi severamente afetada pelas cenas de horror testemunhadas na batalha de Argonne, em 1918. Constantemente atormentado pelas lembranças traumáticas da guerra, Costigan busca amortecer a mente por meio do haxixe, e acaba afundando-se na droga até ao ponto de arruinar sua vida. É assim que vamos encontrá-lo, num "templo dos sonhos" (estabelecimento onde pessoas se reuniam para usar drogas) no coração do bairro oriental de Londres.

Antros de vício desse tipo eram comuns na China e em outros países do oriente na época em que a história parece se ambientar (final da década de 1920), depois de a Inglaterra, durante o século XIX, haver incentivado o cultivo de ópio e haxixe na Índia; essas drogas eram traficadas para a China e região por companhias britânicas. Com isso, o aumento da oferta e a consequente queda do preço e facilidade de acesso a essas substâncias haviam transformado o vício numa epidemia. Não havia cidade naquela parte do mundo onde não existissem um ou vários "templos dos sonhos", e também era muito provável haver um em qualquer lugar onde se concentrasse um grande número de habitantes de origem chinesa – como a "Chinatown" londrina, onde Costigan está consumindo sua saúde e seus recursos quando a história começa.


Quando tem a primeira visão do "homem de rosto de caveira", o ex-soldado pensa que é apenas mais uma alucinação produzida por sua mente entupida de haxixe, mas depois, mesmo do fundo de seu entorpecimento, ele percebe que o ser em questão é bem real. Trata-se de um indivíduo muito alto, magro como um esqueleto e com feições de acordo, parecendo ter o crânio coberto apenas por uma pele enrugada e pergaminhosa, que vive escondido num conjunto de câmaras secretas no prédio que abriga o "templo dos sonhos", e a quem até o todo-poderoso Yun Shatu, proprietário da casa, trata com subserviência. O estranho personagem diz chamar-se Kathulos e ser originário do Egito. Kathulos, a certa altura, manda buscar Costigan e, com o que parece ser um toque mágico, livra-o instantaneamente da dependência da droga, dizendo que tem um trabalho em mente para ele, o qual exigirá que esteja em sua melhor forma. Costigan, tomado de enorme gratidão, está disposto a fazer quase qualquer coisa que seu estranho benfeitor peça – pelo menos até descobrir que as coisas não são bem como parecem. Seus sentidos estão extraordinariamente alertas e ele se sente mais vigoroso que nunca, mais até do que em seus melhores tempos, mas parece-lhe que tudo isso faz parte da sensação maravilhosa de ter-se livrado do torpor da droga; entretanto, com o tempo, fica evidente que Kathulos, secretamente, administrou-lhe alguma outra substância, capaz de operar mudanças tão espetaculares e repentinas, e que o fez porque espera utilizá-lo como um peão em planos terríveis. A partir daí delineia-se o confronto que guiará os eventos da história. Kathulos, diga-se, não é realmente egípcio; suas origens são ainda mais antigas e misteriosas que as de qualquer múmia. Dizer mais que isso seria revelar demais, mas quero observar que o gosto de Howard por colocar seus heróis cara a cara com um mal antigo, vindo de eras esquecidas, certamente devia muito à amizade e admiração que ele dedicava a H. P. Lovecraft.

Também em suas outras características, Rosto de Caveira é puro Robert E. Howard: ação vertiginosa do início ao fim, quase sem interrupção, um herói forte e determinado, vilões cruéis, mistérios, combates violentos, e uma bela mocinha de aparência e nome exóticos (Zuleika, nada menos que isso), e que, embora frágil à primeira vista, acaba revelando uma insuspeitada coragem, demonstrando-se uma companheira digna do herói. Enfim, se mudássemos a ambientação, os nomes e alguns detalhes do enredo, a história poderia facilmente ser transformada numa aventura de Conan. Portanto, não se trata de terror, embora incorpore alguns elementos típicos desse gênero; é uma história de aventuras, e muito boa.

O terror mesmo aparece depois que Rosto de Caveira termina e dá lugar a sete contos de variadas extensões e temáticas. Na Floresta de Villefore e Cabeça de Lobo são sobre a lenda do lobisomem, ambas ambientadas no século XVII ou XVIII, e unidas pela presença de um mesmo personagem, Monsieur de Montour, um fidalgo da Normandia (França). A primeira, bem curta, passa-se numa floresta do interior da França, tida como assombrada, e conta como foi que De Montour veio a contrair a maldição da licantropia; a outra tem lugar numa propriedade colonial na costa da África, e conduz o personagem a um destino bastante inesperado. A Serpente do Sonho lembra alguns contos de Guy de Maupassant, com o narrador delegando a outro personagem a tarefa de contar a história, de modo que os elementos inacreditáveis ficam envoltos naquela aura duvidosa do "só estou contando conforme ouvi" (um recurso parecido também é utilizado em Cabeça de Lobo). O modo como sonho e realidade se mesclam na narrativa confere à história um encanto macabro. A Hiena é um conto sobre bruxaria africana, apresentando o que poderíamos considerar como a versão local da licantropia. Certo, o nome licantropia vem do grego lykos, 'lobo', mas o fato de não existirem lobos na África não é impedimento para que o Continente Negro tenha suas próprias lendas a respeito de homens que se transformam em animais. A principal diferença, afora o animal em questão, é que, em A Hiena, a metamorfose não aparece como uma maldição, e sim como uma habilidade somente possuída por feiticeiros de grande poder. Em A Maldição do Mar, temos um narrador que não atua diretamente na história, mas passa por ter sido testemunha ocular dos fatos; o cenário é a cidadezinha costeira de Faring, que poderia ficar no litoral norte-americano ou britânico, provavelmente no século XIX. John Kulrek, um marinheiro fanfarrão e chegado ao álcool, estupra uma garota do lugar, que, desesperada depois do ocorrido, comete suicídio lançando-se ao mar. Acontece que a tia da jovem, com quem ela vivia, tem fama de feiticeira, e lança uma maldição sobre Kulrek – uma maldição que irá cumprir-se de modo sinistro.

Não obstante, o conto mais apetitoso do livro, na minha opinião, é o último, Os Filhos da Noite, publicado originalmente na edição de maio de 1931 da revista Weird Tales. Além de ser, em si, uma história envolvente, ela também é notável pelo grande número de conexões que consegue estabelecer ao longo de suas modestas 30 e poucas páginas. O início dá a impressão de que será um tranquilo conto-ensaio: seis intelectuais, entre eles o Prof. John Kirowan (que tem histórias próprias como protagonista, mas aqui aparece como um personagem secundário) estão reunidos no estúdio de um deles, entretidos em discussões fascinantes de cunho antropológico, literário e mítico. Quando o assunto envereda para cultos misteriosos, Howard não perde a oportunidade de mencionar o Necronomicon, bem como o Grande Cthulhu e outras divindades monstruosas de tempos esquecidos – de modo que Os Filhos da Noite pode ser considerado parte dos Mitos de Cthulhu, iniciados por H. P. Lovecraft e que continuam crescendo até hoje. Howard, aliás, escancara toda a sua admiração pela obra do amigo ao colocar na boca de um dos personagens a opinião de que seu O Chamado de Cthulhu forma a tríade das melhores histórias de terror já escritas, junto com O Selo Negro, de Arthur Machen, e A Queda da Casa de Usher, de Edgar Allan Poe.

Além do narrador John O'Donnel, do Prof. Kirowan, do anfitrião Conrad e de dois outros, está presente um homem conhecido como Ketrick, que, apesar de descender de pura linhagem anglo-saxônica, documentada desde os "dias do rei Canuto" (ou seja, desde o início do século XI!), tem estranhos olhos de feitio oriental e coloração amarelada, além de um sutil sibilar em sua fala, que O'Donnel acha um pouco incômodo. Conforme a conversa sobre cultos misteriosos prossegue, um dos participantes, de nome Clemants, menciona um tal "culto Bran", focado num "rei que governa o Império das Trevas, (…) e sobre a enorme e inominável caverna onde está o Homem das Trevas, a imagem de Bran Mak Morn, escavada à perfeição por uma mão de mestre quando o grande rei ainda era vivo. (…) Sim, esse culto ainda está vivo entre os descendentes do povo de Bran (…)." Isso é uma conexão com outra das criações do próprio Howard, o fictício Bran Mak Morn, que teria sido rei dos pictos na Caledônia (a atual Escócia) nos tempos do Império Romano – império esse ao qual ele devotava um ódio implacável.

Os historiadores têm pouco a oferecer sobre esse povo, os pictos, e mesmo o pouco que oferecem é controverso. Algumas fontes os dão como sendo um ramo primitivo dos celtas; de fato, o grande grupo étnico conhecido genericamente como "celta" comportava inúmeros subgrupos muito diferentes uns dos outros em cultura e tecnologia: enquanto algumas tribos dominavam técnicas sofisticadas de metalurgia, construíam grandes cidades e desenvolviam avançados sistemas de governo, outras viviam em choças de barro e palha, caçavam com armas de pedra polida, andavam pintadas e seminuas. Os pictos, então, fariam parte desse segundo tipo. Porém, também há quem os considere um povo à parte, totalmente distinto dos celtas, e que já ocupava as Ilhas Britânicas muito antes de estes últimos lá chegarem­. Não há mais como saber: fossem ou não celtas, os pictos foram completamente absorvidos, ao longo da Idade Média, por outros povos da região, mais numerosos e de cultura mais avançada. Traços de sua herança genética ainda podem ser encontrados no DNA de escoceses e irlandeses; de sua língua, só restaram alguns nomes de lugares. De qualquer forma, o costume picto de marchar para a guerra com o rosto pintado com a tinta azul obtida da flor conhecida como ísatis sobreviveu entre os escoceses até tempos bem recentes.

Não vamos esquecer que Howard, embora adorasse História e tivesse sólidos conhecimentos nesse campo, não era um historiador, e sim um escritor de ficção, e, como tal, podia valer-se de licença poética, o que significa que o que lemos em suas histórias, na maioria das vezes, não deve ser levado tão a sério – afinal, trata-se de entretenimento. Ainda assim, ele tem uma teoria interessante:

Com certeza o povo conhecido mais tarde como os selvagens pictos de Galloway era predominantemente celta, uma mistura de galeses, cymrics, aborígines e possivelmente elementos teutônicos. Se tomaram seu nome de uma raça mais antiga ou emprestaram seu próprio nome a essa raça, ainda não se sabe. Mas quando Von Junzt fala dos "pictos", ele se refere especificamente ao povo de baixa estatura, pele morena, comedor de alho, de sangue mediterrâneo, que trouxe a cultura neolítica para a Grã-Bretanha. Na verdade, foram os primeiros colonizadores daquela área (…).

(A tradutora Bárbara Guimarães quase sempre traduz people por 'pessoas', mesmo quando 'povo' seria obviamente a tradução correta; nesse excerto, tomei a liberdade de corrigir essa falha, fazendo as adaptações necessárias.)

"Sangue mediterrâneo" está de acordo com o que dizem os estudiosos que defendem a teoria de que os pictos eram um povo separado dos celtas: nesse caso, eles seriam provavelmente originários da Península Ibérica. Por outro lado, o próprio nome "pictos" não é nenhuma palavra ancestral e de origens incertas, como Howard faz parecer: é latim, e quem lhes deu esse nome foram os conquistadores romanos, a partir do primeiro século d.C. Significa simplesmente "pintados", aludindo ao costume já referido de desenharem símbolos tribais com tinta azul pelo corpo e rosto. Não se sabe como os pictos chamavam a si próprios. Mas, em resumo, a ideia de que podem ter existido dois povos distintos conhecidos como pictos – um, mais antigo, pequeno e moreno, e outro, mais recente, de biotipo celta – poderia explicar muita coisa.

Bem… A certa altura, no embalo desses assuntos, o dono da casa, Conrad, mostra a seus convidados um antigo martelo de pedra polida cuja cabeça foi encontrada nas colinas da Escócia; ele mesmo lhe colocou um cabo, para deixá-lo tal como devia ser na época em que era usado por seus misteriosos fabricantes, quem quer que tenham sido. A ferramenta (arma?) primitiva passa de mão em mão, até que, ao chegar sua vez, Ketrick consegue, sabe-se lá como, dar com ela na cabeça de O'Donnel, que perde os sentidos… E tem um sonho muito estranho, se é que é um sonho. Nele, o narrador se vê como Aryara, um jovem guerreiro de uma tribo que chama a si própria de "o Povo da Espada", e que presumivelmente viveu em algum lugar das Ilhas Britânicas em tempos antigos. E Aryara está envolvido num desesperado combate contra uma raça estranha, que quase nem parece humana: são criaturas pequenas, de cabeça grande, orelhas pontudas, olhos rasgados, pele amarelada, e com uma inconfundível nódoa reptiliana em sua aparência geral. Segundo as histórias que Aryara lembra de ter ouvido em sua tribo, esses seres dominavam aquela terra antes da chegada do Povo da Espada (provavelmente uma tribo celta de cultura primitiva), e antes até dos pictos. Apesar do pequeno tamanho, são seres perigosos, além de intrinsecamente malignos. Aryara nada sabe sobre O'Donnel, mas este, ao despertar, traz consigo a memória completa da aventura do guerreiro, o que muda totalmente seu modo de ver a si mesmo, sua raça e a História, além de oferecer uma razão para a vaga e inexplicável antipatia que ele sempre havia sentido por Ketrick. Detalhe: o recurso de um golpe na cabeça que faz o herói perder os sentidos e mergulhar em recordações de outra existência seria reaproveitado por Howard na história O Povo das Trevas, publicada um ano depois, e que apresentaria uma espécie de protótipo de Conan, cujo surgimento oficial se deu pouco mais tarde.

(Só para ilustrar como Howard não fazia a menor cerimônia para misturar as coisas como bem entendesse, e que, portanto, devemos ser cautelosos ao lê-lo: Aryara chama o deus de seu povo de Ilmarinen, um nome sem conexão alguma com a língua ou a cultura do povo que o autor estava, teoricamente, tentando retratar. Ilmarinen, ferreiro e guerreiro, era irmão do bardo e mago Vainamoinen – isso no Kalevala, o épico nacional da Finlândia. FINLÂNDIA.)

Quando vocês forem ler Os Filhos da Noite, não fiquem demasiado incomodados com as enfáticas e repetidas afirmações de O'Donnel a respeito do "sangue limpo" de saxões e celtas, que deveria ser preservado da "contaminação" pelo contato com "raças malignas"; as raças malignas a que ele se refere não são humanas e são totalmente fictícias. Além disso, não esqueçam que a história é de 1931, de modo que Howard não tinha como saber até onde um discurso parecido levaria a humanidade anos mais tarde, nem como prever que asserções desse tipo soariam tão mal aos ouvidos das gerações vindouras. Procurem ler com senso de perspectiva, levando em conta a mentalidade da época, que não era a mesma de hoje, e divirtam-se, que foi para isso que essas histórias foram escritas.

quinta-feira, novembro 26, 2015

Morte Súbita

Morte Súbita é o primeiro livro publicado por Joanne Kathleen Rowling após a conclusão da saga de Harry Potter, o megassucesso que a catapultou de uma ilustre desconhecida a escritora mais famosa do mundo e mulher mais rica do Reino Unido, superando, e por uma boa margem, a própria rainha Elizabeth II. E parece que, tendo feito nome e fortuna com a fantasia, ela sentiu a necessidade de enfrentar novos desafios, e decidiu então enfrascarse en la realidad, como diria a Mafalda: os personagens e situações dos quais Morte Súbita é feito não serão estranhos a ninguém, em quase nenhum lugar do mundo. Nas personalidades descritas com agudeza e, não raro, com crueldade (não uma crueldade deliberada; acontece que não existe uma maneira gentil de mostrar certas coisas), o leitor fatalmente reconhecerá traços de pessoas reais que conhece ou conheceu – e, se tiver a coragem da autocrítica, é provável que também reconheça, envergonhado, algum traço de si próprio.

O cenário da história (e, eu me atreveria a dizer, seu verdadeiro protagonista, mais que qualquer personagem específico) é o fictício vilarejo de Pagford, distrito do também fictício município inglês de Yarvil. Trata-se de uma comunidade do tipo que seus membros gostam de definir como "pacata e ordeira", com aquele ar interiorano que turistas e moradores mais velhos acham encantador – e os mais jovens, deprimente – e a típica beleza bucólica do interior da Inglaterra. Seu único marco notável são as majestosas ruínas de uma abadia do século XII, no topo de uma das colinas que cercam o vilarejo… E a total indiferença dos moradores em relação a essas ruínas, embora seja provavelmente o retrato da realidade, não deixou de me fazer sentir levemente ultrajado. De minha parte, estou certo de que jamais me acostumaria com o fato de morar perto de algo assim: poderia estar com mais de cem anos de idade e ter visto essas ruínas todos os dias da minha vida, ainda assim seria capaz de me sentar diante delas e contemplá-las durante horas, com aquela sensação indescritível de estar olhando para a própria História. Mas talvez isso seja apenas a visão de alguém que, além de ter essa esquisitice de ser apaixonado por História, vive num país que nem sequer teve Idade Média. Bem, chega de digressões.

A morte súbita que dá título ao livro é a de um homem com o curioso nome de Barry Fairbrother, uma figura destacada na sociedade de Pagford – um de seus "pilares", diriam alguns. Jovem ainda, a meio da casa dos 40, Fairbrother repentinamente cai morto, vítima de um aneurisma, na frente do restaurante do clube de golfe local, onde ia jantar com a esposa, celebrando seu aniversário de casamento. Essa talvez seja a principal peculiaridade do livro: o homem morre no primeiro capítulo, mas influencia os eventos da história até o final. Fairbrother, entre outras coisas, era um dos membros mais ativos do conselho distrital de Pagford, e não demora nada para que comecem a surgir candidatos para a vaga aberta com sua morte (note-se que o título original do livro não é Sudden Death, e sim The Casual Vacancy – quer dizer, 'Vacância Casual').

Mesmo num lugar tão pequeno, há sempre disputas políticas, e o principal pomo da discórdia em Pagford é o bairro conhecido como Fields. Décadas atrás, a prefeitura de Yarvil comprou parte da vasta propriedade de uma família rica e tradicional de Pagford, e criou ali o loteamento que daria origem ao tal bairro, que teve desde o início uma fama ruim entre os pagfordianos, fama essa que o tempo só piorou. Na opinião dos moradores mais tradicionais e respeitados de Pagford, Fields não passa de um antro de drogados e de gente que vive às custas do auxílio do governo, de ruas sujas, casas pichadas, quintais cheios de lixo e outros sinais de miséria que não combinam com a placidez burguesa do resto do vilarejo. Muitos gostariam que Fields desaparecesse, mas, ante a impossibilidade de solução tão radical, procuram, por todos os meios, conseguir que o bairro fique sob a tutela de Yarvil e não seja mais problema de Pagford. Porém, Fields também tem seus defensores, dos quais um dos mais dedicados e influentes era justamente o recém-falecido Barry Fairbrother, que nasceu lá. Agora, o destino de Fields, ou, pelo menos, a política que Pagford adotará em relação a ele durante os anos seguintes, poderá depender de quem venha a ocupar a cadeira de Fairbrother no conselho. E ambas as facções tratam logo de escolher seus candidatos. Do lado pró-Fields, surge Colin "Pombinho" Wall, vice-diretor de Winterdown, a escola local, e um dos amigos mais próximos do falecido; do lado anti-Fields, é indicado o advogado Miles Mollison, filho de Howard Mollison, também membro do conselho e, durante anos, adversário encarniçado de Fairbrother nesse assunto.

A eleição do novo conselheiro distrital é o eixo em torno do qual orbita a narrativa, mas uma série de outras tramas se entrelaçam, direta ou indiretamente, nessa. Há muitos personagens, o que faz o leitor se perder algumas vezes, mas logo nos familiarizamos com eles e fica mais fácil acompanhar, principalmente depois que aprendemos quem está relacionado a quem e de que forma; há várias famílias em cena, e cada membro delas tem seus próprios problemas, motivações e pensamentos. À primeira vista, parece que a autora está sendo implacável com seus personagens, e, por tabela, com as pessoas que os inspiraram (pois é óbvio que foi assim que o processo criativo funcionou), mas, conforme vamos lendo, percebemos que não é bem assim: é o que eu dizia sobre a crueldade não deliberada, lá no início do texto. Rowling simplesmente mostra as coisas tal como elas são e as chama pelo nome que têm, sem racionalizar (embora muitos personagens façam isso o tempo todo) ou lançar mão de eufemismos. Se isso faz seus personagens parecerem, em sua maioria, patéticos e mesquinhos, bem… Talvez seja porque a maioria das pessoas de carne e osso é assim, mas não sejamos tão azedos: muitas delas também têm um lado bom. Não todas. Há personagens com os quais somos levados a simpatizar (ou, ao menos, a nos compadecer deles), como Colin Wall, um homem cujo passado esconde um segredo terrível, e que parece estar procurando fazer a coisa certa como uma forma de se redimir, mas é prejudicado por uma insegurança de dar pena (como alguém assim pode ter chegado a vice-diretor de escola, é coisa que não consigo imaginar); outros são absolutamente repulsivos, como Samantha, a desmiolada e fútil mulher de Miles Mollison, que parece pensar que pode retardar a chegada da meia-idade comportando-se como uma adolescente birrenta, e adora fazer pequenas maldades, geralmente colocando de propósito outras pessoas em situações embaraçosas. A autora entra na mente de todos os personagens e expõe ao leitor, de forma crua, todos os seus orgulhos tolos, mágoas ridículas e motivações tacanhas. Acho particularmente doloroso, em especial por ser (também) um retrato da realidade, ver que a grande maioria dos jovens não guarda sequer o mais longínquo traço de respeito por seus pais ou professores – ainda que alguns pais que aparecem no livro não façam mesmo por merecer. Isso não me deixa nada otimista quanto ao futuro da sociedade em geral.

Barry Fairbrother, aparentemente, era a melhor pessoa de Pagford, caracterizado pelo bom humor, pelo altruísmo e por uma reserva inesgotável de autoconfiança (é verdade que, quando uma pessoa acaba de morrer, todo mundo parece sentir um impulso de falar bem dela). Além de lutar para que Fields continuasse pertencendo ao distrito, ele tinha especial interesse em manter funcionando a clínica Bellchapel, que trata dependentes químicos – dos quais Fields, inegavelmente, está cheio – e cujo fechamento também está na pauta de Howard Mollison e seus aliados. Entre suas muitas atividades destinadas a beneficiar o próximo, Fairbrother também era técnico de uma equipe feminina de remo, formada por alunas de Winterdown, garotas que ficaram meio órfãs com sua morte. Uma delas em particular, Krystal Weedon, sente-se mais que meio órfã, já que Fairbrother parecia ser o que ela conhecia de mais parecido com uma figura paterna. Krystal mora em Fields com um irmão pequeno e a mãe, Terri, uma viciada barra-pesada que já passou diversas vezes pela clínica e sempre recaiu – e enfrenta todas as agruras dessa situação. No decorrer da história, Krystal se envolve (leia-se "começa a transar de forma inconsequente") com um garoto conhecido como "Bola" Wall – um apelido irônico, já que ele é bem magro –, considerado por muitos como o cara mais "descolado" da escola. Bola é filho do vice-diretor Colin Wall e da orientadora educacional Tessa, e um dos piores elementos a frequentarem Winterdown atualmente. Não que se rebaixe a ser um arruaceiro comum: suas maldades são engenhosas e sempre terminam com ele saindo incólume. Especial prazer Bola sente em atormentar Sukhvinder Jawanda, outra das remadoras da equipe de Fairbrother e filha de um casal de médicos paquistaneses que residem em Pagford, sendo que a mãe também integra o conselho distrital. Sukhvinder talvez seja a personagem mais digna de compaixão no livro: embora sua família seja próspera e benquista no vilarejo, a garota sofre tanto com as cobranças implacáveis da mãe no tocante aos estudos (ela tem dislexia, mas a mãe a considera simplesmente preguiçosa) quanto com a perseguição de certos colegas por causa de sua aparência pouco atraente. Bola, o pior de todos, mostra-se incansável e surpreendentemente criativo quando se trata de humilhar Sukhvinder, e, é claro, isso faz com que seu fã-clube o admire cada vez mais.

Desse fã-clube faz parte Andrew Price, que, além disso, é o melhor amigo de Bola. Andrew não parece achar tanta graça no que Bola faz com Sukhvinder, mas não move um dedo para defendê-la, já que isso significaria ser "do contra" e arriscar-se a perder a aceitação do grupo – o pior pesadelo de um adolescente. De alguma forma, ele entende o que a garota passa, pois não é tão diferente do que ele próprio, sua mãe e o irmão mais novo vivem em casa: o pai de Andrew, Simon Price, gerente de uma gráfica, é um completo idiota, que mantém a mulher e os filhos sob um estado de terror perene, com constantes humilhações e ameaças. Quando Simon mete na cabeça que também vai lançar uma candidatura à vaga no conselho, Andrew considera isso a gota d'água e decide sabotar os planos do pai. Como fará isso? Só adianto que tem a ver com as maravilhas da internet, um universo ainda misterioso para os mais velhos, mas pelo qual os adolescentes transitam tão à vontade quanto peixes na água. E que a sabotagem de Andrew vai iniciar uma reação em cadeia, que dará muito mais pano para as mangas do que ele alguma vez imaginou.

Em outro departamento de sua vida, Andrew está completamente fascinado (até aquele ponto em que um rapaz fica um tanto abobado) por uma nova e linda colega, Gaia Bawden, que acaba de se mudar de Londres com a mãe e, vejam só, por mais improvável que isso pareça, faz amizade não com as garotas bonitas e populares, mas justamente com a tímida e feiosa Sukhvinder Jawanda. A mãe de Gaia, Kay Bawden, calha de ser a assistente social encarregada do acompanhamento da família Weedon… Coisas de cidade pequena. O que levou Kay a mudar-se de Londres para Pagford foi seu affair com Gavin Hughes, um jovem advogado que trabalha com Miles Mollison, era amigo de Barry Fairbrother, e, desde a morte dele, parece estar desenvolvendo um novo tipo de interesse por sua viúva, Mary, a quem ajuda com as providências legais para o recebimento do seguro de vida do marido…

Eu poderia ir muito mais longe pulando de personagem em personagem, mas não acho necessário; isso já é uma amostra suficiente do tremendo emaranhado de relações e interações que faz parte de Morte Súbita. Um emaranhado capaz de desnortear completamente um narrador menos hábil, o que transformaria a trama numa bagunça, mas J. K. Rowling não deixa em momento algum que as rédeas lhe escapem das mãos. Sua técnica narrativa, que era apenas mediana nos primeiros volumes de Harry Potter, e já havia evoluído muito nos últimos, parece estar em contínuo aperfeiçoamento, garantindo que o leitor fique preso página após página, mesmo que o tema seja banal se comparado àquilo que estávamos acostumados a receber dela. Embora todos nós saibamos (e ela própria, sem dúvida, melhor que ninguém) que o estigma de "autora de Harry Potter" irá acompanhá-la até o túmulo e muito além, Rowling parece determinada a explorar outras searas e a procurar não ficar marcada como autora de um sucesso só, de modo que ficamos, desde já, curiosos pelo que mais pode estar vindo por aí.

quinta-feira, outubro 15, 2015

O Império dos Dragões

No ano 260 d.C., a cidade romana de Edessa, na Anatólia (correspondente a parte da atual Turquia) está sob cerco do exército persa. Dentro de suas muralhas, o bom imperador Valeriano espera por reforços, quatro legiões que estão vindo do oeste, conduzidas por seu filho Galieno, mas acaba por ficar evidente que o socorro não chegará a tempo de evitar que a população e as tropas aquarteladas na cidade pereçam devido à fome. Então chega uma mensagem de Shapur I, rei dos persas, propondo um encontro para discutir condições para o fim do cerco e a instauração da paz na região. Contrariando os conselhos do experiente legado Marco Metelo Áquila (o "Comandante Águia", como é chamado por seus homens), o imperador aceita o convite. Uma vez que suas advertências não deram resultado, Metelo insiste para que Valeriano lhe permita acompanhá-lo, no que é atendido.

Infelizmente, Metelo Áquila estava certo em desconfiar: o convite era uma armadilha. O imperador cai prisioneiro dos persas, e, com ele, Metelo e mais dez homens de sua legião, a Segunda Augusta (não tenho certeza se a presença da Augusta na Anatólia na segunda metade do século III é histórica; não encontrei registros nesse sentido, mas também nenhuma evidência em contrário). Não se sabe mais nada de Valeriano depois disso; ele pode ter sido executado pelos persas logo em seguida, ou pode ter vivido anos no cativeiro.

Tal como já o fizera em A Última Legião, Valerius Maximus Manfredus… perdão, Valerio Massimo Manfredi aproveita-se do final reticente da biografia de um imperador romano para explorar possibilidades surpreendentes numa obra de ficção. Porém, diferente do que acontecia naquele livro, neste o imperador em questão não vê o fim da jornada. O grupo é levado para uma mina de turquesas no coração do Império Persa – e ir para uma mina era um dos piores destinos que alguém podia ter na época. As condições insalubres, a alimentação miserável e os maus-tratos cobram seu preço de todos, mas Valeriano, devido à idade, sofre mais, e acaba não resistindo – ele e um soldado cuja fé cristã atrai a antipatia dos feitores persas, valendo-lhe uma dose extra de castigos físicos. À parte essas duas baixas, o restante do grupo insiste em agarrar-se à vida, até que, quando se dão conta, estão trabalhando na mina há mais de um ano, o que já é bem mais do que a maioria sobrevive em tal lugar. Quando conseguem fugir, isso é um feito inédito, só alcançado graças à ajuda de um prisioneiro veterano, o único que está lá há mais tempo que eles. Os conselhos do velho de nome Uxal e seu conhecimento do terreno, aliados à determinação dos romanos e sua capacidade para agir em equipe, permitem ao grupo escapar da mina, mas isso é apenas o começo de sua odisseia, que segue com uma exaustiva e perigosa fuga pelo deserto, caçados pelos persas. Num entreposto comercial, perto de onde o rio Khaboras (hoje conhecido como Khabur, na Síria) deságua no legendário Tigre, encontram um mercador indiano que os contrata como escolta para sua caravana, que, a partir daí, segue viagem pelo rio. Em tal companhia, Metelo e os outros chegam à foz do Tigre, no Golfo Pérsico, e, mais tarde, ao Oceano Índico, em cujas águas, até então, pouquíssimos europeus navegaram.

O plano original é separarem-se aí; os romanos esperam encontrar um navio que os leve rumo ao oeste e de volta para casa, enquanto Daruma, o indiano, seguirá ainda mais para o oriente, rumo ao misterioso país da seda, que, nos mapas romanos, é designado, de forma vaga, como Sera Maior – um lugar sobre o qual Roma, e o ocidente em geral, sabem muito pouco. Porém, é época de monção: durante os seis meses seguintes, ventos fortes e constantes soprando rumo ao leste tornarão impossível navegar em qualquer outra direção; Metelo e seus companheiros teriam que escolher entre ficar esse tempo esperando em alguma vila litorânea, sem conhecer o idioma local e quase sem dinheiro, ou tentar fazer o trajeto por terra, o que levaria talvez um ano ou mais, sem mencionar os incontáveis perigos, o fato de não conhecerem o caminho e, é claro, a vigilância dos persas. Daruma, então, lhes propõe o seguinte: os dez romanos podem continuar em sua função de escolta até que a caravana chegue a seu destino; promete-lhes pagamento generoso e, ao final, providenciar-lhes a viagem de volta. Considerando as poucas opções de que dispõem, Metelo e os outros aceitam.

Quando esse acordo é feito, Metelo já percebeu que Daruma não é um comerciante comum. A carga mais preciosa a viajar em sua caravana e em seus navios não é a mercadoria que leva, e sim um jovem cuja aparência só não é mais exótica que seus modos. Ele diz chamar-se Dan Qing e ser um príncipe chinês, que, depois de um bom tempo como refém dos persas, está retornando a seu país, onde o trono que seria seu por direito foi usurpado. Mesmo sozinho, o príncipe espera retomar o que lhe pertence e devolver a paz a seu império dividido. Dan Qing foi educado em certas misteriosas artes orientais, que combinam filosofia e combate, possuindo habilidades que, aos olhos dos soldados romanos, parecem quase sobre-humanas. Entre ele e Metelo, a despeito de uma interação, a princípio, muito fria e formal, vai gradualmente surgindo o mútuo e natural respeito entre dois homens bravos, semelhantes em essência, apesar de virem praticamente de mundos diferentes, com um abismo de distância e de cultura a separá-los. Acompanhando Dan Qing, Daruma e seus homens, o pequeno grupo de legionários desgarrados irá entrar num mundo exótico, além de sua imaginação, ver inúmeras maravilhas da natureza e da arte, e, também, envolver-se em conflitos de poder e em diversos outros tipos de perigos. Já contei o suficiente, mais que isso seria spoiler, mas podem ter certeza de que as possibilidades abertas por esse enredo são tão enormes e empolgantes, que facilmente renderiam uma série em vez de um único livro.

O Império dos Dragões é mais uma bela história de Valerio Massimo Manfredi, sem dúvida um excelente entretenimento, e também me ensinou um pouco sobre a situação do Império Romano no século III, período do qual não se fala muito… Mas qual será a probabilidade de que essa ficção esteja calcada em algo de verídico? O que Roma e a China sabiam uma da outra nessa época? Será possível que os dois impérios tenham interagido de algum modo?

Por tudo o que sabemos de seguro, com base em registros fiáveis, tanto do ocidente quanto do oriente, parece que os romanos tinham noções muito vagas a respeito da China, e vice-versa – cada uma dessas civilizações pensava na outra como pouco mais que um lugar lendário, inimaginavelmente distante, que podia existir ou não. Apesar disso, a interação acontecia, embora de modo indireto. Sabe-se que os mercados mais refinados de Roma ofereciam especiarias, seda e jade trazidos da China, o que não significa que algum mercador tivesse feito todo o percurso – esses produtos, provavelmente, eram comprados e vendidos pelo menos meia dúzia de vezes desde o seu local de origem até a venda ao consumidor final, o que era mais um motivo para que seus preços fossem proibitivos para todos com exceção dos mais ricos. Entretanto, não é impossível que, em algum momento da Antiguidade, uma conspiração de eventos, jamais prevista por ninguém, tenha levado esses dois mundos distantes a entrarem em contato de outras formas.


Rumores sobre a presença de contingentes militares romanos na antiga China circulam há séculos, e investigações feitas nos tempos modernos chegaram a fornecer-lhes certo respaldo, ao menos aparente. Depois da batalha de Carras, em 53 a.C. – uma das piores derrotas sofridas pelo exército romano em sua longa história –, cerca de dez mil legionários (ou seja, o equivalente a duas legiões inteiras) foram feitos prisioneiros pelos inimigos partas, e nunca mais o ocidente ouviu falar deles… Até meados do século XX, quando alguns historiadores ingleses levantaram uma hipótese, no mínimo, curiosa. Esses pesquisadores examinaram registros chineses sobre a batalha de Zhizhi, travada em 36 a.C., em algum lugar do atual Cazaquistão, entre as forças do Império do Centro (que era como a China chamava a si própria) e um povo que eles chamavam de Xiongnu, e que eram provavelmente os citas, cavaleiros nômades que habitavam as estepes de partes das atuais Rússia e Ucrânia. Nessa batalha, segundo tais registros, os Xiongnu contavam com uma infantaria pesada que lutava numa formação que os chineses nunca tinham visto; nela, os soldados posicionavam seus escudos numa configuração semelhante à de escamas de peixe. O ponto é: os citas, como outros povos acostumados a viver e morrer sobre seus cavalos, consideravam desonroso lutar a pé; seus exércitos eram compostos principalmente por arqueiros montados. Portanto, se os tais Xiongnu eram mesmo os citas – como parece ser o mais provável –, isso levanta a questão de qual seria a origem dessa infantaria. Os pesquisadores pensaram o mesmo que eu teria pensado no lugar deles: essa parte sobre os escudos dispostos "como escamas de peixe" parece uma descrição bastante boa da manobra que os legionários romanos chamavam de testudo ('tartaruga'), e, afinal, a batalha de Zhizhi foi apenas 17 anos depois da de Carras… É plausível, ao menos em tese, que os partas tivessem vendido os romanos capturados como soldados-escravos para os citas, seus vizinhos do norte, ou que ao menos parte dos legionários tivessem, de alguma forma, recuperado sua liberdade, e, ante a quase impossibilidade de voltarem para casa, passassem a ganhar a vida como mercenários.

Já se apontaram, como uma possível evidência a favor dessa teoria, as curiosas características étnicas dos habitantes da pequena cidade de Liqian, no norte da China, muitos dos quais têm olhos azuis ou esverdeados, cabelos alourados e estatura mais alta que a comum na região… Acontece que essas características nunca foram típicas dos romanos, um povo originalmente de estatura mediana, olhos e cabelos escuros. Por outro lado, as legiões não eram formadas só por romanos "da gema": para alistar-se, bastava ter cidadania romana e falar um pouco de latim. Você podia ser cidadão romano sem nunca ter posto o pé na Itália e mesmo que seu biotipo estivesse mais para celta ou germânico: bastava que seu pai, avô, bisavô ou outro ancestral tivesse sido romano, e que, desde então, tivesse havido uma linha ininterrupta de descendentes masculinos. Havia até os que eram cidadãos sem terem um pingo de sangue italiano – eram aqueles cujos pais ou avós haviam servido nas tropas auxiliares, pois, ao darem baixa, esses soldados de origem bárbara recebiam a cidadania romana, que era transmitida aos descendentes. Ou seja, as legiões tinham, sim, a sua quota de soldados altos e de olhos claros. A história da legião perdida pode ter lá o seu fundamento – ou não. Até o momento, não foram encontradas evidências materiais na região de Liqian, tais como armas ou artefatos de estilo romano, o que seria uma prova mais contundente. Por outro lado (de novo!), a ausência desses objetos não é necessariamente uma contraevidência: se os romanos que supostamente chegaram até lá estivessem entre aqueles aprisionados em Carras, seria muito natural que seus captores partas lhes tivessem tirado qualquer objeto que estivessem levando; mais tarde, ao se reequiparem, os romanos teriam que se contentar com armas e utensílios locais. Talvez alguma coisa de muito empolgante ainda esteja por ser descoberta.

Uma observação final. Eu gosto muito de Valerio Massimo Manfredi, apesar de reconhecer que ele não pode ser considerado um grande escritor do ponto de vista da técnica literária; seu métier, originalmente, eram História e arqueologia, e foi a partir disso que chegou à literatura, sem ter tido, até onde sei, um treinamento formal para tanto. Seus diálogos raramente são brilhantes, e os personagens carecem de profundidade e individualidade, mas, mesmo com essas limitações, o cara tem boas ideias e a energia necessária para fazê-las render. Para quem, como eu, é apaixonado por História em geral e pela Antiguidade em particular, seus livros sempre serão interessantes. Pena que, como já acontecia em A Última Legião, também no caso de O Império dos Dragões nem o tradutor Mario Fondelli nem seu revisor (cujo nome não é creditado) parecem ter a mínima noção acerca de como conjugar verbos nas pessoas tu e vós, de modo que a tentativa de dar um ar "de época" às falas dos personagens resulta em coisas realmente horríveis.


sexta-feira, setembro 04, 2015

Deuses e Heróis

Conta-se que Escopas, homem nobre e importante da região grega da Tessália, pediu ao afamado poeta Simônides de Ceos que compusesse uma ode em louvor a suas vitórias – que podem ter sido no campo de batalha ou em competições atléticas; as fontes divergem. Tratava-se de uma prática comum na época: poetas eram solicitados a compor obras sobre o tema que lhes fosse proposto, recebiam por isso, e era assim que muitos deles ganhavam a vida. A ode deveria ser entoada num banquete que Escopas planejava oferecer. Chegado o dia, ao lhe ser pedido que apresentasse o poema, Simônides levantou-se com sua lira e cantou uma das mais belas odes já ouvidas na Tessália, celebrando as vitórias de seu anfitrião. (Não estranhem se uso "cantar" em vez de "declamar"; na época, os poemas eram realmente cantados, pois não se fazia distinção entre poesia e música.) Para obter um melhor efeito lírico, o poeta ornamentou a obra com menções aos feitos dos admiráveis gêmeos Castor e Pólux, filhos de Zeus e Leda, irmãos da célebre Helena de Esparta, mais conhecida como Helena de Troia.

Seria de se imaginar que qualquer homem razoável se sentisse honrado por ter seu nome citado lado a lado com os de tão insignes heróis, mas, infelizmente, Escopas era do tipo egocêntrico. Queria a admiração de seus convivas toda para si, e não estava disposto a partilhá-la, nem mesmo com os legendários filhos de Zeus, de modo que não lhe agradou o que estava ouvindo. Quando Simônides, tendo terminado de cantar, dirigiu-se a ele para receber sua recompensa, Escopas pagou-lhe metade da soma combinada, dizendo-lhe, em tom de troça, que cobrasse o restante de Castor e Pólux. Simônides, decepcionado e ofendido, retornou ao seu lugar em meio à zombaria geral dos convidados.

Pouco mais tarde, um dos servos de Escopas entrou no salão de banquete e avisou a Simônides que estavam lá fora dois jovens a cavalo, que diziam ter de lhe falar com urgência. Saindo, o poeta não encontrou ninguém à sua espera, mas repentinamente o teto do salão veio abaixo, matando Escopas e seus convidados. Depois de pedir ao servo mais detalhes sobre a aparência dos jovens que o haviam procurado, o desconcertado Simônides convenceu-se de que não eram outros senão os próprios Castor e Pólux. A história termina dizendo que os corpos dos comensais do banquete ficaram tão desfigurados, que seus familiares não conseguiam identificá-los para poder dar a cada um os ritos funerários devidos, mas Simônides lembrava o nome de cada um dos presentes e o exato lugar onde ele estava sentado, e, graças a isso, todos os corpos puderam ser identificados.

Essa bela história talvez não seja verídica (embora eu não a desacredite totalmente: considero uma rematada tolice duvidar de que maravilhas possam mesmo acontecer), mas, seja ou não, ela ilustra bem um fato curioso acerca dos grandes poetas da Antiguidade: suas vidas tendem a fundir-se com a própria mitologia que lhes servia de tema, de modo que para nós, hoje, eles acabam por ser figuras quase tão legendárias quanto os heróis cujos feitos celebravam. Assim foi com o maior de todos, Homero, a quem são atribuídas a Ilíada e a Odisseia, e com outros que vieram depois – entre eles Simônides, o protagonista de Deuses e Heróis.

Mary Renault, cujo Rei Morto, Rei Posto já tive oportunidade de comentar, conduz a nós, seus leitores, em outro mergulho na Antiguidade Clássica, embora, desta vez, a um período histórico posterior e bem diferente daquele em que tiveram lugar as façanhas do herói Teseu. Simônides viveu aproximadamente de 556 a 468 a.C., numa Grécia mais civilizada e de instituições já consolidadas, e, por consequência, uma Grécia que podia dedicar mais atenção às artes, fato que é bem retratado no romance. O que, é claro, não significa que as guerras tivessem ficado no passado – nem as guerras contra inimigos externos, no caso o Império Persa, nem as guerras locais, entre diferentes cidades-estado gregas, coisa que permeou praticamente toda a história da Grécia Antiga e impediu o êxito de diversas tentativas de unificação política entre os povos de língua e cultura helênicas. Simônides, por sinal, foi o autor do famoso epitáfio gravado no monumento erigido em homenagem a Leônidas e seus trezentos espartanos ("Ide dizer a Esparta, ó estranhos que passam / Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos."), aliás, um dos poucos fragmentos de sua obra que chegaram até nós, infelizmente. Tampouco são conhecidos muitos detalhes de sua biografia, de modo que a autora teve de fazer o que fazia tão bem: mesclar a informação histórica disponível com o produto de sua própria imaginação. O livro é um mosaico de eventos factuais e fictícios e de personagens históricos e inventados, sendo que estes últimos não parecem menos convincentes que os primeiros, e a interação entre todos é perfeitamente plausível. Quer dizer, parte do que aqui lemos efetivamente aconteceu – e o restante poderia ter acontecido.

A narrativa segue um esquema semelhante ao de Rei Morto, Rei Posto: um Simônides já idoso, aproximando-se do final de uma carreira prestigiosa, parece sentir que é chegado o momento de contar suas memórias, e essa história tem início na ilha de Ceos (hoje Kea), uma das Cíclades. Seu pai, Leoprepes, era um homem de posses para os padrões da ilha e um de seus cidadãos mais proeminentes, o que não significa que não trabalhasse duramente, ou que seus filhos pudessem, em princípio, esperar da vida muito mais que isso. Para maior azar de Simônides, ele era o filho varão mais jovem, além de agraciado pela natureza com um tipo físico pouco admirado entre os ilhéus, e entre os gregos da etnia jônica em geral: baixo e magro, embora de boa constituição; pele morena e cabelos negros, sem falar num rosto não exatamente atraente, enquanto seu irmão, Teásides, era o jovem heleno perfeito sempre retratado por pintores e escultores – alto, loiro, belo e atlético. Só isso já teria bastado para definir o papel de cada um: Teásides era o filho de quem os pais esperavam que os enchesse de orgulho e trouxesse honra ao nome da família; já Simônides, se dependesse dos planos deles, nunca iria muito além de ser um trabalhador não remunerado nas lavouras e rebanhos do pai. Apesar disso, os dois irmãos se dão bem; na verdade, Teásides parece ser o único a dedicar a Simônides alguma atenção e afeto.

Durante a infância e início da adolescência, Simônides exerce a ocupação mais icônica possível para um menino grego: a de pastor. E, como todo pastor, tem por hábito cantar e tocar flauta para preencher as longas horas vazias vigiando os carneiros que pastam. É dessa forma que descobre seu talento, pois possui uma voz naturalmente afinada, e, tão importante quanto isso para um poeta da época, uma ótima memória. Entretanto, por muito tempo, ele guarda só para si sua ambição de ser poeta, e acaba por amargurar-se, já que, vivendo na rústica Ceos, e ainda sendo o filho desprezado de um pai severo e austero, realizar esse sonho parece impossível. Sua sorte muda quando um poeta de nome Cléobe, de passagem pela ilha, se apresenta no casamento de um homem importante da comunidade – e o velho Leoprepes lá está como convidado, levando toda a família, até mesmo o filho feioso que geralmente é deixado em casa. O jovem acaba sendo aceito como ajudante e aprendiz pelo artista, e em sua companhia deixa Ceos, aos 14 anos, para tentar a sorte na carreira escolhida.

Cléobe vem a ser mais pai para Simônides do que Leoprepes alguma vez o foi, ensinando-lhe seu ofício com dedicação e paciência. Mesmo quando fica evidente que o rapaz é um talento dos grandes, jamais demonstra ciúme, nem qualquer receio de ser superado pelo discípulo. Natural de Éfeso, o velho bardo possui uma casa e certo patrimônio nessa cidade, mas a vida de um poeta, naquela época, era uma vida errante, sujeita a todas as agruras que podem atingir os que não têm pouso certo. Durante os primeiros anos a serviço de seu novo mestre, Simônides conhece boa parte da Grécia insular e continental, passa por apertos de todos os tipos, e, principalmente, aperfeiçoa sua arte, amplia seu repertório e conhece pessoas interessantes. Seu aprendizado prossegue em Éfeso, onde mestre e discípulo se fixam por algum tempo, e de onde acabam fugindo (assim como grande parte da população) por causa da ameaça da invasão persa. O novo domicílio dos dois é a cidade de Samos, na época, provavelmente, a mais rica do mundo helênico, embora não a de maior efervescência cultural: essa já era então, como ainda o seria por muito tempo, Atenas. Samos é governada pelo tirano Polícrates (a palavra "tirano", na origem, não tinha o sentido que hoje lhe atribuímos: significava apenas um governante que tivesse chegado ao poder pelos próprios meios, e não por herança ou por eleição regular). Lá, Simônides começa, aos poucos, a atuar de forma profissional, embora não de um jeito que seu mestre considere particularmente honroso: cantando numa taberna. Mesmo não sendo muito bem vista, essa ocupação lhe permite garantir seu pão de cada dia, e, não menos importante que isso, fazer muitos contatos, o que era outra coisa da qual um poeta grego daqueles tempos não podia prescindir.

Não obstante, é em Atenas, já com 20 e poucos anos, que o jovem poeta vê sua carreira decolar de verdade, em grande parte graças à proteção e incentivo de outro tirano, Pisístrates, que, no entanto, é muito diferente de Polícrates. Enquanto o tirano de Samos parece apadrinhar artistas da mesma forma como adquire objetos preciosos (ou seja, por mera exibição de riqueza e poder), Pisístrates é um real admirador das artes em geral e da poesia em especial. Há um trecho particularmente interessante, que reproduz uma conversa da qual participam o tirano, seu filho Hiparco, e Simônides, e que demonstra a preocupação dos dois primeiros com a preservação das grandes obras poéticas, que, na época, eram transmitidas apenas oralmente e conservadas de memória. Nunca passou pela cabeça de Simônides que as obras de Homero, por exemplo, pudessem ser perdidas – ele próprio sabe de cor a Ilíada e a Odisseia (que, juntas, têm mais de 27 mil versos), e, embora seja alfabetizado, jamais considerou a possibilidade de escrever nem os poemas que aprendeu, nem os seus próprios: para ele, a escrita é para fins práticos e prosaicos, como a contabilidade da fazenda de seu pai. Poesia deve ser guardada somente no espaço entre as duas orelhas, como ele diz; isso é questão de orgulho não só para ele, mas para a maioria dos poetas da época… E, se me for permitida uma observação pessoal, devo dizer que, embora ser capaz de declamar toda a obra de Homero de cor seja, sem dúvida, um feito formidável e digno de admiração, é difícil não ter vontade de xingar um pouco esses sujeitos quando penso no sem-número de obras deslumbrantes que certamente desapareceram para sempre, só porque alguém, um dia, por orgulho, recusou-se a registrá-las por escrito. Baquílides, sobrinho e discípulo de Simônides, parece ter sido um dos primeiros poetas a romper com esse preconceito e passar a escrever, o que o tio acaba aceitando, sem nunca verdadeiramente aprovar.

(Observe-se também, apenas de passagem, que "entre as duas orelhas" é um anacronismo de linguagem, pois, na época, ainda não se sabia que o cérebro era o responsável pela inteligência e pela memória; a teoria mais aceita era a de que essas funções fossem do coração. Quanto à questão de para que o cérebro realmente servia, as opiniões se dividiam. Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, que viveu cerca de um século depois do tempo de Simônides, acreditava que ele funcionasse como uma espécie de radiador, dissipando o excesso de calor do organismo; outros atribuíam à massa cinzenta funções ainda menos nobres, como a de produzir o muco que lubrifica nossas vias respiratórias.)

Pisístrates é um governante justo, que ganha a admiração e o respeito de Simônides, assim como da maior parte dos atenienses, e, quando morre, seus filhos parecem ser capazes de, juntos, dar continuidade ao trabalho do pai. Eles recebem o título de arcontes – o arcontado era uma assembleia formada por nove cidadãos eminentes, que partilhavam entre si as responsabilidades do governo –, embora todos saibam que têm, na prática, muito mais poder que seus pares. Hípias, o mais velho, é mais sisudo e preocupado, enquanto o outro, Hiparco, é um homem que gosta de aproveitar a vida e de cercar-se de companhias agradáveis. Não que seja dado a orgias ou excessos, pelo menos não de modo habitual; Simônides o estima, e, aos poucos, a relação de ambos extrapola a de artista e mecenas, transformando-se em verdadeira amizade. Não há motivo algum para que o poeta se importe com a queda que Hiparco tem por belos rapazes, nem com o hábito dele de ter sempre um favorito partilhando de seu divã nos banquetes, e, mais tarde, sem dúvida, também seu leito. Esses favoritos estão sempre mudando, cabendo a cada um deles um "reinado" de poucos meses, de modo que, por tudo o que Simônides pode ver, seu amigo não tem propensão a formar laços sentimentais, e ainda menos a qualquer tipo de fixação ou obsessão. Porém, os seres humanos nunca deixam de nos surpreender, e isso era tão verdadeiro na Grécia de 2500 anos atrás quanto o é hoje.

Na época em que Simônides viveu, relacionamentos homoafetivos eram vistos com naturalidade entre a alta sociedade (não entre a população em geral) na maioria das cidades gregas, mas existiam certas regras não escritas que deviam ser observadas. Havia uma distinção bem clara entre "amante" e "amado". O amante (erastes) era um homem adulto, normalmente na casa dos 30 ou 40 anos, já estabelecido socialmente e quite com a obrigação de assegurar a continuidade da família – quer dizer, geralmente um homem casado e com filhos. O "amado" (eromenos – pronuncie como proparoxítona) era um efebo (adolescente). O primeiro oferecia o afeto, o segundo o recebia – não era uma via de mão dupla, ao menos não em teoria. Não era bem visto que o parceiro mais jovem correspondesse; ser alvo das atenções do mais velho era visto como uma honra, especialmente se ele fosse alguém de alta posição social, mas não como um prazer. Se a reciprocidade existisse, era de bom tom que só fosse manifestada em privado. Tais relacionamentos podiam, ou não, incluir intercurso sexual. O mais importante era o que o eromenos podia aprender com o erastes, principalmente no que se referia a aprimorar o traquejo social, a conhecer pessoas e ingressar em certos círculos, o que iria repercutir em toda a sua futura vida social – ter um erastes com influência e contatos podia colocar o jovem no caminho de uma carreira bem-sucedida. Por fim, era considerado louvável que o erastes mantivesse uma visão realista das coisas, abstendo-se de se apaixonar pelo jovem parceiro, uma vez que esse tipo de relação tinha prazo de validade, devendo acabar quando o rapaz deixava a puberdade, já que, a partir daí, ele passaria a ter outras coisas das quais se ocupar, como a carreira e o casamento, até chegar aos 30 e poucos anos, idade em que estaria apto a tornar-se erastes de seu próprio eromenos. De qualquer forma, o normal era que uma ligação desse tipo durasse alguns anos; não era frequente que um mesmo homem vivesse a experiência mais que duas ou três vezes ao longo da vida, pois não era visto como adequado continuar a ter esse comportamento depois de uma certa idade. A alta rotatividade de favoritos no divã de Hiparco era uma exceção, tolerada porque naquela época, como hoje, os poderosos eram vistos como pessoas a quem era permitido transgredir certas convenções.

Simônides, ao menos na versão de Mary Renault, não se envolve com nada disso – sua conduta parece ser estritamente heterossexual, seja por ter sido criado em meio aos costumes austeros de Ceos, ou apenas por uma questão de preferência pessoal. Mesmo suas relações com mulheres não são muitas, em parte devido a sua intensa dedicação a sua arte, em parte por causa de traumas da juventude, ligados à rejeição que não poucas vezes sofreu por causa de sua feiura – que, aliás, em sua opinião, teve o lado bom de mantê-lo fora da mira dos apreciadores de efebos. Porém, ele acaba sendo testemunha de uma ocasião em que uma relação erastes/eromenos abalou a sociedade ateniense. Os protagonistas do episódio são o jovem Harmódio, filho de uma família ateniense antiga e tradicional, e Aristogíton, atleta de certo renome. Harmódio é de uma beleza extraordinária, o que nem sempre é uma sorte; em seu caso, atraiu o azar de chamar a atenção de Hiparco, que fica obcecado pelo rapaz, a ponto de aparentemente já não comer ou dormir direito (observações de Simônides, a cujos olhos atentos não escapa a aparência abatida e febril de seu amigo). Seja porque seu coração já pertence a Aristogíton, ou porque lhe repugna a ideia de ceder ao assédio de Hiparco a troco de ascensão social, ou simplesmente porque o arconte não lhe agrada – e talvez por tudo isso –, o fato é que Harmódio repetidamente repele as investidas amorosas que vai recebendo, o que acaba levando Hiparco ao desespero, e a chegar a um ponto do qual Simônides jamais o julgaria capaz: o de tentar vingar-se do jovem adotando represálias contra sua família. Isso tudo conduz a um desenlace desconcertante e terrível.

O livro termina com esse incidente, que teve lugar quando Simônides tinha pouco mais de 40 anos, sendo que ele viveria até próximo dos 90; o poeta ainda viajaria muito, viveria em diferentes lugares (Tessália, novamente Atenas, e por fim a Sicília, na época colônia grega, onde terminaria seus dias) e foi contemporâneo de muitos eventos importantes da história grega, além, é claro, de ter composto inúmeros poemas, que, infelizmente, nunca leremos. Portanto, se Deuses e Heróis tem um defeito, é o de ser curto demais. Acompanhar a prosa de Mary Renault é um prazer difícil de descrever, especialmente numa boa tradução, feita por alguém que, mais que o mero domínio das línguas inglesa e portuguesa, também tinha cultura para compreender as inúmeras referências históricas e mitológicas presentes no texto, e tratá-las de forma adequada: registro aqui todo o meu respeito ao Sr. Donaldson M. Garschagen, um tradutor de verdade, de um tipo que quase não existe mais. Também cabe avisar que essa mesma cultura, bem como a capacidade de apreciar uma linguagem elaborada, será muito útil a quem desejar ler o livro.

O fato de Simônides ter vivido durante um dos períodos mais importantes para o desenvolvimento intelectual da Grécia não passa em branco. Ao longo da narrativa, o protagonista tem oportunidade de interagir com um expressivo punhado de figuras relevantes: poetas como Laso, Íbico, o já citado Baquílides, e, de modo especial, Anacreonte, este um de seus melhores amigos; o arquiteto e escultor Teodoro; o filósofo e matemático Pitágoras; e o dramaturgo Ésquilo. Todos pessoas reais, alguns mais famosos, outros menos, mas todos tendo contribuído de forma valiosa para o engrandecimento da cultura grega, e, por consequência, de toda a cultura ocidental – na época, hoje e para sempre.

Uma curiosidade final: entre as lembranças esparsas que vão surgindo enquanto ele conta sua história (algo que esperaríamos de um homem idoso), o Simônides de Mary Renault nos oferece uma versão um pouco diferente da história do banquete de Escopas, que eu contei no início deste post; uma versão mais simpática a Escopas, e na qual o elemento sobrenatural aparece atenuado, de modo que o leitor pode, se o preferir, atribuir a salvação da vida do poeta a uma coincidência providencial. Se admitirmos que essa versão foi a que de fato aconteceu, então aquela outra certamente recebeu uma adaptação, destinada a fazer dela uma fábula com conteúdo moral. A verdade nunca será conhecida, mas, seja como for, eu me permito ter a opinião de que a versão que contei é mais bonita.

E agora é para concluir mesmo: o título original do livro é The Praise Singer, e existe uma outra edição brasileira, da editora Siciliano, que adotou a sua tradução literal, chamando-se O Cantor do Prazer. Eu prefiro o título da edição que tenho, a mais antiga, da Nova Fronteira, publicada em 1984, pois, embora não tenha nada a ver com o título original, ele reflete melhor o espírito da obra de Simônides, que passou a vida cantando sobre deuses e heróis, enquanto O Cantor do Prazer faz parecer que ele se dedicava à poesia erótica… Como eu já escrevi antes, o mais literal nem sempre é o melhor.