domingo, julho 17, 2016

A Flor de Vidro

Volta e meia eu cito alguma obra em conexão com a que estou comentando no momento e digo algo como "terei que falar sobre essa em outra ocasião". Claro: por mais que eu fosse gostar de me estender escrevendo sobre o livro, filme ou o que for, fazer isso naquele momento me desviaria do assunto. O ruim é que, na maioria das vezes, essas "outras ocasiões" acabam não acontecendo.

Mas desta vez sim. Mencionei o conto A Flor de Vidro no meu post sobre A Guerra dos Tronos, primeiro volume das Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin, e o fiz porque foi o primeiro trabalho dele que li, isso há vinte e muitos anos, muito, mas muito tempo antes de o autor ou sua obra ficarem famosos no Brasil – e, mesmo nos Estados Unidos, Martin tinha no máximo uma fama discreta em 1986, ano da publicação original da história. No Brasil, ela apareceu alguns anos depois, na edição número quatro da versão nacional da Isaac Asimov Magazine, que a editora Record teve a corajosa iniciativa de lançar a partir de 1990, conseguindo mantê-la nas bancas por pouco mais de dois anos. O mercado literário nacional, porém, não estava maduro para uma revista assim, o que acabou determinando seu cancelamento depois de apenas 25 edições. Enquanto circulou, a IAM brasileira permitiu a seus leitores ter contato com autores jovens, então em ascensão no meio editorial dos países de língua inglesa, o que era uma novidade empolgante, pois, embora a quantidade de títulos de ficção científica disponíveis em português fosse até razoável, a quase totalidade dos livros que tínhamos eram dos monstros sagrados do gênero: o próprio Asimov, Arthur C. Clarke, Ray Bradbury, Poul Anderson, Robert A. Heinlein e outros desse quilate – todos eles autores excepcionais e de enorme importância na história da ficção científica, mas, puxa!, esses livros datavam, em sua maioria, das décadas de 30, 40 e 50! Todos sabíamos que cada década desde então havia revelado um punhado de novos autores, inspirados e influenciados por esses, e não parecia (não era) justo que não tivéssemos acesso a nada do que haviam produzido.

A IAM brasileira tinha a nobre intenção de resolver esse problema, e provavelmente teria conseguido, caso tivesse existido por mais tempo. De qualquer forma, ofereceu um bem-vindo paliativo, trazendo, a cada edição, sete, oito histórias de escritores que ainda não conhecíamos, e, eventualmente, alguma de um autor de grande estatura, sendo Asimov, é claro, o mais assíduo. Naturalmente, nem tudo era excelente: a revista publicou muita coisa boa, mas também a sua quota de bobagem. No caso da maioria dos autores novos ali publicados, foi essa a primeira e a última vez que ouvi falar deles, e, embora George R. R. Martin fosse, sem dúvida, um dos melhores, tudo indicava que com ele não seria diferente. Bem, eu estava enganado nesse ponto. Que bom!

A Flor de Vidro não contém qualquer enunciação de data, pelo menos nenhuma que possamos identificar, porém os personagens falam sobre certos eventos que, para eles, fazem parte de um passado longínquo, mas que, para nós, ainda são um futuro distante, o que ajuda a dar uma ideia, mesmo que vaga, da vastidão do intervalo de tempo que nos separa dos dias em que a história se desenrola. A protagonista-narradora é Cyrain de Ash, "mestra da mente", "senhora da dor", entre outros títulos que o vulgo lhe atribui e para os quais ela pouco liga. O importante é que Cyrain controla o que ela chama de o "jogo da mente": usando um misterioso "Artefato" de origem desconhecida, descoberto séculos antes em meio aos pântanos do planeta Croan'dhenni, ela conduz pessoas que procuram renascimento a uma espécie de campo de batalha mental, onde o mais forte (mentalmente falando, é claro) pode tomar o corpo do mais fraco e, ao final do jogo, despertar nesse corpo "roubado" – algo muito cobiçado pelos que sofrem de alguma doença incurável, ou os que simplesmente não aceitam o curso natural da vida em direção à morte. A palavra "pessoas", aí, não deve ser entendida como significando necessariamente "seres humanos": o jogo da mente aceita jogadores de qualquer das centenas, talvez milhares de raças inteligentes que povoam o universo conhecido. Os participantes são chamados de "jogadores", no caso dos que procuraram o jogo voluntariamente, pagando alto por isso, e "prêmios", que são os que não escolheram estar ali: foram comprados em mercados de escravos de qualquer um dentre milhares de planetas habitados, e trazidos para que os jogadores tenham a chance de tomar seus corpos.

E é essencial notar isso: é meramente pela chance que os jogadores pagam, pois não há, nem pode haver, garantia alguma. Cyrain é taxativa ao preveni-los de que, uma vez iniciado o jogo, deixa de haver distinção entre jogadores e prêmios. Se o prêmio derrotar o jogador, este último geralmente morre, e, nesse caso, a mestra da mente promete ao prêmio sua libertação no mundo de origem, com dinheiro suficiente para recomeçar a vida. Ainda não é tudo: quando se diz que não há nenhuma garantia, isso significa nenhuma mesmo, nem sequer a de que, no decorrer do jogo, um jogador não vá tentar tomar o corpo de outro, ainda  que isso, na maioria das vezes, não seja um bom negócio, pois, se alguém se dá ao trabalho de viajar até o distante Croan'dhenni e aceita pagar o alto preço pedido pela mestra, é provavelmente porque seu corpo atual deve estar bem acabado. Provavelmente, eu disse.

O jogo da mente em Croan'dhenni começou a ser jogado quando um misterioso alienígena conhecido apenas como "o Branco" chegou ao planeta, parecendo saber o que procurava, pois foi ele quem descobriu, escondido naqueles intermináveis pântanos, o Artefato (assim chamado desde então) que torna o jogo possível. Os próprios croan'dhiques, primitivos, sem conhecimento sobre viagens espaciais ou alta tecnologia, nada sabiam, tampouco, sobre o Artefato; ignoravam sua existência, até que o Branco o encontrou e desenterrou. Seria o Artefato uma criação de sua desconhecida raça, construído em eras antigas e escondido ali por motivos que nunca saberemos? Ou teria outra origem, tendo chegado ao conhecimento do Branco de maneiras que também não saberemos? Mistérios. Seja como for, o Branco tornou-se o primeiro senhor da mente. Teve vários sucessores durante os 600 anos seguintes, até chegar a vez de Cyrain, que já está no cargo há quase um século quando a história começa, e, ao longo desse tempo, ocupou ("vestiu", como ela diz) diversos corpos. O atual é o de uma pré-adolescente de grande beleza, com cabelos loiro-prateados e olhos cor-de-violeta (alguém mais se lembrou de Daenerys Targaryen?).

E é esse rosto jovem que a quase bicentenária Cyrain de Ash apresenta a um novo jogador em potencial, cuja chegada dá início à ação da história. O forasteiro se apresenta como Joachim Kleronomas – um nome lendário, pois, séculos antes, existiu um Joachim Kleronomas que construiu para si uma fama imperecível, primeiro como soldado, combatendo nas cruéis guerras espaciais de sua época, e depois como explorador e intelectual, comandando uma missão de pesquisa que durou décadas e descobriu e catalogou centenas de planetas. Além de tudo isso, esse homem foi o fundador da prestigiosa Academia do Conhecimento Humano, no planeta Avalon. O melhor vem agora: quando a mestra da mente lhe pergunta se aquele Kleronomas era ancestral seu, o visitante responde que não – era ele mesmo.

Qualquer pessoa que tenha vivido o tempo que Cyrain viveu, necessariamente já aprendeu a não julgar as criaturas pela aparência – e em seu ramo de trabalho, muito mais. Porém, o homem (?) que se diz Kleronomas (o Kleronomas) é um ser inteiramente feito de metal e plástico, cujo corpo ostenta os resultados dos incríveis avanços que a engenharia robótica atingiu nesses tempos. Segundo ele, entretanto, sua mente, que agora habita num computador embutido em seu tórax metálico, é a mesma que pulsava no cérebro orgânico de Joachim Kleronomas sete séculos antes. "O que é uma mente humana?", indaga ele, para logo em seguida responder à própria pergunta: "Memórias. Memórias são dados. Caráter, personalidade, vontade individual. Isso tudo é programável. É possível imprimir a totalidade de uma mente humana num computador de cristal-matriz". Seu corpo original, terrivelmente mutilado durante a guerra, foi parcialmente reconstruído com partes biônicas, e, progressivamente, o que ainda restava de orgânico foi sendo substituído também, até convertê-lo nesse ser cibernético, mas dotado de mente humana… Pelo menos, essa é a história que ele conta. E sendo, de certa forma, uma máquina, ele pode manter-se funcionando por tempo indeterminado, bastando para isso substituir as peças à medida em que elas se desgastam, não estando sujeito à inevitabilidade da morte que assombra todos os seres orgânicos. Imortal. Sendo assim, Cyrain faz a pergunta óbvia: o que faz um imortal naquele lugar habitualmente procurado por moribundos? E a resposta dele, com outras palavras, é que não deseja mais essa condição paradoxal que é a de ser imortal sem estar verdadeiramente vivo. Quer voltar a ter um corpo de carne e osso, e está pronto a aceitar tudo o que virá com isso – começando pela certeza da morte, a única certeza que qualquer ser vivo pode ter.

A Flor de Vidro é uma história magnífica, verdadeira aula de como escrever boa ficção científica em pouco mais de 35 páginas. Reúne quase tudo o que poderíamos pedir de uma obra do gênero: uma ambientação imaginária riquíssima e detalhada, personagens com personalidade (eita, redundância… Mas o sentido que eu queria era esse, então fica assim mesmo), ritmo e narrativa perfeitos. De quebra, tem profundidade psicológica, diálogos enigmáticos, e convida a uma reflexão sobre a dualidade vida/morte, que é e foi desde sempre o tema mais abordado por todas as formas de arte, e, mesmo assim, permanece instigante, inquietante, perturbador, com possibilidades inesgotáveis. O conto dá a impressão de fazer parte de um todo muito maior, pois nos apresenta um universo imaginário de enorme complexidade, com raças, mundos e uma história própria, e, de todo esse universo, o que ele efetivamente mostra são apenas alguns pequenos pedaços – pequenos em vista da vastidão do todo, mas suficientes para nos proporcionar uma trama densa e poderosa. Realmente torço para que Martin tenha voltado a esse universo em outras histórias, pois criar algo tão grandioso para usar uma vez só parece um desperdício sem tamanho! E, se essas histórias existirem, torço também para ter a oportunidade de lê-las.

quinta-feira, junho 30, 2016

O Grande Deus Pã

É fato: apesar de o autor ter chegado às minhas mãos com as melhores recomendações, minha primeira experiência com a literatura de Arthur Machen não foi empolgante (detalhes aqui). Tudo parecia indicar que ele tivesse sido grandemente superestimado por H. P. Lovecraft, que, como vimos antes, tece rasgados elogios a suas obras no legendário ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, e até mesmo um mestre do terror como Lovecraft – que, ao que se espera, devia entender muito do gênero – pode, eventualmente, emitir uma avaliação não tão confiável, baseada em fatores subjetivos, pois a literatura tem dessas coisas. Ou isso, ou eu é que estava (ainda mais) míope, ao ponto de não enxergar as muitas e extraordinárias qualidades que Lovecraft apontava em Machen. Acabei decidindo tentar não me prender à primeira impressão: levado tanto pelas descrições fascinantes de outras obras de Machen fornecidas por Lovecraft, quanto pelo alto apreço que caras como Robert E. Howard, Stephen King e T. E. D. Klein também demonstravam, adiei o meu julgamento a respeito de Machen até que tivesse tido a oportunidade de ler mais de suas histórias. E, para grande satisfação minha, posso dizer agora que tomei a decisão correta: as quatro histórias presentes neste volume da editora portuguesa Saída de Emergência explicam, finalmente, o que todas essas figuras notáveis da literatura de terror e fantasia viam de tão admirável nos trabalhos do escritor galês, a ponto de não hesitarem em colocá-lo entre os melhores desses gêneros em todos os tempos, ou em citá-lo como um de seus favoritos e principais influências. Não dá para dizer que as características que me deixaram impaciente em O Terror estejam totalmente ausentes aqui, mas, quando elas despontam, é de forma muito mais branda, sem empanar o brilho das histórias… Para não falar do fato de que, neste livro, Machen trabalha com ideias e enredos muito melhores e mais interessantes. Custa-me entender por que, ao planejar aquele volume (que, como observei no outro texto, foi, sem dúvida, o primeiro contato que muitos leitores tiveram com Arthur Machen em suas vidas), a editora Iluminuras escolheu a história O Terror como texto principal, preterindo outras que são anos-luz superiores, como O Grande Deus Pã, O Povo Branco e as outras que integram o livro que agora me preparo para comentar.

O conto que dá título ao livro foi publicado pela primeira vez em 1894, e parece compartilhar o ponto de vista do romance Frankenstein, de Mary Shelley: a ideia de que há coisas com as quais o homem não deve mexer, e de que o simples fato de a ciência moderna ser capaz de fazer algo não significa necessariamente que tal coisa deva ser feita – um pensamento que marca fortemente o Romantismo e os movimentos artísticos derivados ou influenciados por ele. O Dr. Raymond, um médico-cientista, pretende realizar uma experiência ousada e um tanto sinistra: por meio de uma sutil intervenção cirúrgica no cérebro, ele acredita ser possível fazer com que um ser humano passe a ver o mundo espiritual e as "coisas invisíveis", toda aquela realidade de cuja existência temos uma percepção intuitiva, mas que não pode ser apreendida pelos nossos sentidos físicos normais. Como cobaia, ele vai utilizar uma jovem de nome Mary, que, segundo conta, ele resgatou de uma vida miserável nas ruas quando era pequena – e, por esse motivo, acredita ter o direito de dispor dela como bem entender (!). Para servir de testemunha da experiência, Raymond chama seu amigo Clarke, que não é cientista, mas possui uma aguçada curiosidade sobre as ciências, bem como sobre ocultismo e todo tipo de conhecimento não convencional. Finalizado o procedimento, Raymond é da opinião de que a cirurgia foi um sucesso, mas Clarke nada mais fica sabendo sobre Mary durante muitos anos. Decorrido esse lapso de tempo, uma estranha mulher aparece na alta sociedade londrina; belíssima, ela apresenta uma perturbadora semelhança com a pobre jovem Mary, como se fosse sua filha – e, nesse caso, a identidade do pai é assunto que dá margem às mais macabras conjecturas, pois, a julgar por sua conduta e pela aura tenebrosa que a cerca, a tal mulher não deve ser de todo humana. Naturalmente que, com semelhante conjunto de atributos, ela desperta fascínio entre os jovens aristocratas ingleses, sempre sedentos de novas emoções, que passam, muitos deles, a frequentar-lhe a casa… E a cometer suicídio logo depois. Um personagem que investiga o que acontece na casa da Sra. Beaumont (esse o nome com que a mulher se apresenta, embora, enquanto solteira, tenha-se chamado Helen Vaughan) mostra a outro as descrições escritas de alguns dos entretenimentos que ela costuma oferecer a seus convidados, descrições essas que, por si sós, são capazes de deixar qualquer pessoa decente sem dormir durante dias. Participar de tais entretenimentos, então, deve ser mais que o suficiente para levar um homem a tirar a própria vida. É claro que não vou contar o final da história; direi apenas que ele é chocante.

(Para os fãs do cinema torture porn e curiosos por detalhes sórdidos em geral – e quem não o é, pelo menos um pouco? – cabe um aviso: se estiverem esperando ler essas descrições, vão decepcionar-se. Machen, filho de um ministro religioso, prezava um certo recato ao escrever, e preferiu deixar a exata natureza dessas diversões horripilantes para a imaginação sombria de seus leitores.)

Vocês devem estar se perguntando o que o deus Pã tem a ver com tudo isso; bem, o Dr. Raymond emprega uma metáfora ao descrever a visão que, espera ele, Mary terá depois da experiência: diz que ela poderá "ver o deus Pã". Quem conhece um pouco de mitologia sabe que Pã, para os antigos gregos, era o deus dos pastores, dos campos, dos bosques, e, por extensão, da natureza – e "natureza", ao contrário do que hoje estamos acostumados a pensar, não tem só conotações positivas. Pã tinha uma face alegre, que remetia à vida bucólica das regiões rurais, mas era também o deus dos terrores noturnos (a palavra pânico derivou de seu nome) e ligado à bruxaria. Não foi por acaso que, com o advento do cristianismo, ele passou a ser associado ao diabo, tendo sido, provavelmente, um dos principais responsáveis por conferir a este último sua aparência "clássica", com chifres e pés de bode, semelhança essa que o pintor espanhol Francisco de Goya fez questão de realçar em seu famoso quadro El Aquelarre, de 1798 – aquelarre é uma palavra espanhola para sabá de bruxas; o quadro também é conhecido como El Gran Cabrón ('O Grande Bode'), para distingui-lo de outro El Aquelarre, que Goya pintou 25 anos mais tarde. Confesso, aprecio a obra de Goya pelas qualidades artísticas (é claro), mas não menos por sua temática, essa inclinação natural que ele parecia ter para o fantástico e o macabro. Embora não haja conexão conhecida entre os dois, acho que suas imagens combinam muito com o clima das histórias de Arthur Machen – e parece que outros já pensaram o mesmo, pois El Gran Cabrón já serviu de ilustração de capa para mais de uma edição de O Grande Deus Pã. Voltando ao deus, é importante saber, por fim, que seu nome, em grego, significa tudo (é o mesmo radical que integra palavras como panamericano, pangermânico, panteísmo e tantas outras), e que, portanto, Pã personifica a natureza em sua totalidade, tanto seus aspectos belos e pacíficos quanto os mais assustadores, bem como aqueles mistérios que, se conhecidos, poderiam destruir a sanidade de uma pessoa. Para quem já conhece Lovecraft e está conhecendo Machen, não demoram a ficar claros os motivos da devotada admiração do primeiro pelo segundo.

Só para constar, nem tudo em O Grande Deus Pã é excelente. Tive um desagradável déjà vu da característica mais irritante de O Terror ao ler esta passagem:

– Mas será que ainda se lembra do que me escreveu? Pensei que fosse imprescindível que ela…
Murmurou então o resto da frase ao ouvido do médico.

Em resumo: manter certas informações ocultas ao leitor até que chegue o momento certo de revelá-las é uma arte; fazer isso de formas artificiais e ineptas, é de matar! Felizmente, aqui esse defeito é uma coisa menor, que podemos relevar, bem diferente do que acontecia em O Terror.

A segunda história é A Novela da Chancela Negra – a palavra "chancela" é uma daquelas de uso comum em Portugal, mas pouco conhecidas entre nós; em textos de referência que encontramos por aí, quando essa história é mencionada, fala-se em "Sinete Negro", ou mesmo "Selo Negro". Enfim, chancela, sinete ou selo, aí, referem-se todos a um instrumento que pode ser considerado um ancestral dos atuais carimbos: pressionado sobre cera quente, argila úmida ou outro material de plasticidade semelhante, ele imprimia imagens ou caracteres (geralmente um timbre, brasão ou símbolo equivalente), após o que esperava-se o material endurecer. Seu uso mais conhecido era para lacrar cartas ou documentos. A chancela da história é um pequeno artefato de pedra negra, encontrado pelo Prof. Gregg, uma autoridade eminente no campo da etnologia, e que ele acredita ter pelo menos quatro mil anos de idade. Para manter o mistério, o autor vale-se do recurso de não usar o próprio professor como narrador, nem contar a história a partir do ponto de vista dele; em vez disso, a narradora é Miss Lally, contratada, a princípio, como governanta, responsável por supervisionar os cuidados e a educação dos dois filhos de Gregg – mas, por tratar-se de uma jovem de bastante cultura, acaba por assumir as funções de secretária dele, ajudando-o com seus trabalhos acadêmicos. Depois de ter-se dedicado durante décadas a estudos "sérios", que lhe granjearam uma sólida reputação, o professor decide aventurar-se investigando a possível realidade por trás de certos relatos do folclore das Ilhas Britânicas – em especial do País de Gales e do oeste da Inglaterra –, que sempre foram considerados por todos os pesquisadores "respeitáveis" como mero produto da fantasia popular. O pequeno sinete de pedra é a mais importante dentre um conjunto de pistas que ele reuniu ao longo de anos, e agora, finalmente, considera-se em condições de descobrir a possível verdade concreta que poderia ter dado origem às histórias milenares sobre o "povo pequeno" – fadas, duendes e outros seres misteriosos, sempre mencionados pela gente das ilhas com um misto de fascínio e temor. Há sugestões de que essas criaturas talvez não sejam tão brincalhonas e benévolas quanto as histórias infantis levam a crer… Para dar prosseguimento a sua pesquisa, Gregg aluga uma velha mansão rural perto da fronteira anglo-galesa, para onde se transfere com os filhos, Miss Lally e alguns criados. Lá, mesmo sem necessidade alguma de mais mão de obra, ele faz absoluta questão de contratar um adolescente local, um rapaz com leve retardo mental e uma propensão a sofrer ataques – e, quando isso acontece, seus aparentes gemidos desconexos começam a soar como palavras de alguma língua desconhecida, de pronúncia sibilante… A possibilidade de existir alguma ligação entre esse estranho garoto e o objeto dos estudos obscuros do professor é estabelecida de uma forma sutil – e, na minha opinião, brilhante –, contribuindo para a atmosfera cada vez mais sinistra da história. As descrições de Miss Lally da sensação aflitiva de ter medo sem saber do que, estão entre as passagens literárias mais sufocantes que meus olhos já percorreram.

A Luz Mais Interior (no original, The Innermost Light) é a história mais curta e mais fraquinha, mas de forma alguma é ruim. Sua organização inicial lembra um pouco a de The Great God Pan: também aqui há dois amigos, um mais visionário e dado a especulações fantásticas, Dyson, e outro mais cético (pero no mucho), Salisbury. Encontrando-se por acaso nas ruas de Londres, os dois decidem jantar juntos – e os pormenores a respeito da refeição, que Machen poderia ter deixado subentendidos, mas fez questão de incluir, sugerem que o autor também era, entre outras coisas, um apreciador da boa mesa. Durante esse jantar, Dyson conta ao amigo um estranho caso que chegou ao seu conhecimento, o do Dr. Black, um conceituado médico que morava e clinicava num bairro afastado e que, aparentemente, assassinou sua jovem e bela esposa. Poderia não ser mais que um crime passional de algum tipo, não fosse o parecer do legista que fez autópsia da Sra. Black e manifesta a opinião de que o cérebro da mulher não era humano. Dyson, levado por sua curiosidade por assuntos insólitos, decide investigar. Usando mais uma vez um recurso do qual Machen parecia gostar muito (e, na verdade, muito popular entre autores de ficção gótica do século XIX e início do XX), a resposta do mistério é encontrada num manuscrito, um caderno de anotações deixado pelo Dr. Black – e trata-se de uma resposta horripilante. Ao terminar de ler a história, tive a sensação de que o horror central dela pode ter sido sugerido por um sonho (foi a mesma sensação causada pelo conto A Máscara, de Robert W. Chambers) e de que, ao redor disso, o autor pode ter construído todo o resto.

O livro termina com O Povo Branco, história que Lovecraft considerava, no balanço final, superior a O Grande Deus Pã. Não tenho certeza se concordo, mas posso assegurar que não vou me esquecer de O Povo Branco. Sua mistura atordoante do terno com o terrível, do ingênuo com o monstruoso, confere-lhe um sabor pungente que poucas outras histórias já tiveram – e, para ser franco, no momento não lembro de nenhuma. Também aqui a parte mais importante da narrativa é encontrada num manuscrito; na prática, é uma história dentro de outra história. O conto começa com um diálogo entre Cotgrave, um jovem cavalheiro curioso, e Ambrose (homenagem a Ambrose Bierce? Hum…), um homem recluso e excêntrico, dado a filosofias não convencionais. Nesse diálogo inicial, Ambrose está expondo a Cotgrave sua teoria de que o bem e o mal não são realidades tão claras e distintas como geralmente acreditamos; segundo ele, um homem pode tornar-se um pecador de primeira grandeza sem jamais praticar qualquer crime, ou, de forma inversa, fazer-se santo sem realizar boa ação alguma que a sociedade reconheça como tal. Para ilustrar o que está dizendo, Ambrose empresta a Cotgrave um caderno manuscrito, recomendando-lhe que o leia cuidadosamente – e o trate mais cuidadosamente ainda, pois o eremita faz absoluta questão de que seja devolvido intacto. O caderno está preenchido com aquele tipo de letra redonda e caprichada que poderia pertencer a uma menina… E é esse o caso, como descobrimos a seguir, ao termos acesso à totalidade do texto do manuscrito através dos olhos de Cotgrave. São 25 páginas (na edição impressa; no manuscrito seriam bem mais) de texto praticamente corrido, isto é, quase sem mudança de parágrafos; para ser exato, ao longo de todas essas páginas são feitos apenas cinco novos parágrafos, sem considerar os trechos em que a autora reproduz versos. E a autora em questão é uma garota órfã de mãe, com um pai rico e ocupado que ela pouco via. Criada em outra dessas mansões rurais em algum lugar do interior do Reino Unido, que são uma constante na obra de Arthur Machen, ela tinha como principal companhia uma jovem ama, que, em meio a brincadeiras e passeios pelos bosques, iniciou-a nos segredos da feitiçaria.

Há hoje uma tendência politicamente correta a apresentar a feitiçaria de forma simpática, como sendo tão somente os inofensivos remanescentes de benévolas (sempre benévolas) crenças pré-cristãs, nada mais que a veneração da natureza e a transmissão de saberes práticos como o da medicina herbal; afirma-se frequentemente que o famigerado sabá das bruxas medievais nunca existiu, seria apenas uma ficção inventada pela "maligna" Igreja Católica para assustar o povo e instigar o ódio contra os que praticavam essa religião ancestral… E, como todas as ideias politicamente corretas, também essa teve origem em escusas intenções ideológicas, e ganhou livre curso graças à ingenuidade de inúmeras pessoas que, é claro, julgam-se as mais inteligentes e "críticas". Para começar, não havia uma única religião pré-cristã, mas muitas, sendo que a maioria delas estava longe de ser inofensiva ou inocente. Em segundo lugar, podia haver, e havia, grupos de feiticeiros que efetivamente não faziam mal a ninguém e só queriam continuar com seus ritos em paz – mas é tolice achar que todos eram assim. O culto deliberado aos poderes do mal e a prática de malefícios existiam na Idade Média, existiam no século XIX, e existem hoje. Arthur Machen, detentor que era de consideráveis conhecimentos no campo do ocultismo, sabia disso, e soube explorar o assunto com extrema competência. A ama, iniciada nesses mistérios tenebrosos por sua bisavó bruxa, ensina a sua pequena senhora diferentes rituais para conseguir diversos objetivos, nem todos muito louváveis; leva-a a reuniões secretas em lugares ermos; e revela-lhe a existência de povos misteriosos, dotados de poderes sobrenaturais e que vivem escondidos, como o "Povo Branco" do título. Compreende-se que, quando a jovem escreveu seu relato, já era quase adolescente (a ama já não trabalhava mais em sua casa), mas o relato em si cobre um período de vários anos – ou seja, a menina foi iniciada nesses conhecimentos quando ainda era muito pequena. É aí que reside a maior parte do encanto e, ao mesmo tempo, do horror da história: em sua inocente tagarelice infantil, ela descreve aquilo que viu sem realmente compreender muitas coisas, o que confere ao texto esse contraste desconcertante entre a pureza e o horror. Nada é muito explícito, mas, mesmo assim, talvez a história choque mais hoje que na época em que foi escrita, se considerarmos o quanto o nosso jeito de encarar a infância mudou ao longo deste último século.

Não há como finalizar estes comentários sobre O Povo Branco sem lembrar novamente de T. E. D. Klein e seu Cerimônias Satânicas. Várias histórias de Arthur Machen (e ouso dizer que sua obra como um todo) foram uma forte influência para Klein, como estou percebendo agora, mas foi, sem dúvida, a partir das menções casuais a "cerimônias brancas, verdes e vermelhas", encontradas em O Povo Branco, que ele veio a desenvolver a ideia central de seu livro. Por sinal, deve ter sido uma boa coisa, para ele, que tais menções sejam tão breves e reticentes, pois isso lhe permitiu exercer sua liberdade criativa sem romper os vínculos com a fonte original de sua inspiração. Por fim, como não surpreenderá a quem já conhece o perfil de Machen, O Povo Branco, assim como O Grande Deus Pã e A Novela da Chancela Negra, entrega a paixão do autor pela beleza melancólica e repleta de História dos rincões solitários do interior do País de Gales, com sua natureza rústica e vestígios de seu passado celta e romano. Somente A Luz Mais Interior, por causa de sua ambientação toda urbana, não oferece espaço para tanto.

Demorou, mas por fim posso dizer que compreendo por que Arthur Machen é considerado um mestre da narrativa de terror e fantasia, e uma influência para os que vieram depois dele, inclusive aqueles que, por sua vez, também chegariam a ser considerados mestres, e isso foi possível graças a uma seleção inteligente das histórias incluídas neste livro (desculpe, pessoal da Iluminuras…). A propósito, encomendei o livro direto de Portugal, através da Fnac de lá, e aproveitei para comprar junto o único outro título de Machen que estava em catálogo, um pequeno volume chamado A Pirâmide de Fogo. Quando o ler, ele certamente também será objeto de comentários aqui.

domingo, maio 29, 2016

Os Livros da Selva

Já havia algumas edições, tanto brasileiras quanto portuguesas, intituladas O Livro da Selva, circulando por aí antes, que incluíam apenas o conteúdo do primeiro The Jungle Book, publicado originalmente em 1894, e uma única edição, da Companhia das Letras (dentro de sua coleção traduzida dos famosos Clássicos Penguin) que trazia os dois (The Second Jungle Book é de 1895), mas, mais uma vez, temos que agradecer, mesmo que um tanto a contragosto, a Hollywood pelo retorno às livrarias, em grande estilo, de uma obra e de um autor que todo mundo deveria ter a chance de conhecer. No embalo do novo filme Mogli, o Menino-Lobo, a editora Zahar lança esta nova edição, chamada Os Livros da Selva (notem o plural!) e com o subtítulo Contos de Mowgli e Outras Histórias. Trata-se de uma tradução nova e, de modo geral, OK (com algumas falhas), mas confesso que teria ficado muito feliz se, ao abrir o livro, tivesse reencontrado a velha tradução de Monteiro Lobato, a primeira que tivemos publicada no Brasil, e que li quando criança.

Rudyard Kipling, o criador de Mowgli e de tantos outros personagens memoráveis, foi, em tudo, um autor inglês, mas nutriu durante toda a vida um grande amor e interesse pela Índia, então colônia britânica, e terra de seu nascimento. Começou no jornalismo, profissão que exerceu durante a maior parte da vida, mas sem nunca deixar de encontrar tempo para a literatura. Além de contos de aventuras como os que encontramos n'Os Livros da Selva, também escreveu romances e poemas – um dos quais, If ('Se'), é, sem a menor dúvida, um dos mais reproduzidos de todos os tempos (todo mundo já o recebeu por e-mail pelo menos uma vez, nem sempre com o nome do autor corretamente creditado). Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1907, tornando-se o primeiro autor de língua inglesa a receber tal distinção. Embora muitos o acusem de ter sido uma voz do imperialismo britânico – e, por sinal, uma das mais influentes –, Kipling recusou os títulos de Cavaleiro e de Poeta Laureado do Império Britânico, duas das maiores honrarias que podem ser oferecidas a um cidadão inglês; provavelmente, porque não queria ter que ficar se preocupando com o que poderia ou não dizer em suas obras, uma vez que os tivesse aceito.

Kipling esteve no Brasil em 1927, escrevendo uma série de crônicas especiais para o jornal londrino The Morning Post, dando ênfase às atividades da firma inglesa São Paulo Railway e ao dia a dia de centenas de cidadãos britânicos que trabalhavam para ela em solo brasileiro. A Railway cuidava da operação e da manutenção das estradas de ferro que conectavam o interior do estado de São Paulo ao porto de Santos, um caminho que era vital para o transporte do café, na época o principal produto de exportação do Brasil. Para servir de posto de controle e também de acomodação para seus funcionários, a companhia criou a vila de Paranapiacaba, hoje um distrito do município paulista de Santo André. Ao chegar lá, Kipling (como todos os ingleses que vieram antes) deve ter-se surpreendido com a sensação de estar praticamente em casa, pois, além da típica arquitetura britânica, o próprio clima do lugar – frio, úmido e nevoento – faz pensar na velha Inglaterra. Paranapiacaba, aliás, parece ter mudado muito pouco nos últimos noventa ou cem anos, e recomendo-a como destino para um passeio muito curioso. Em especial, não se pode deixar de visitar o "Castelo", um casarão situado bem no topo de um morro, de onde se avista toda a vila. Era a residência do engenheiro-chefe, então é provável que Kipling tenha-se hospedado ali. Quanto às crônicas, foram publicadas no The Morning Post, durante os meses de novembro e dezembro de 1927, e hoje estão disponíveis em livro, com o título Crônicas do Brasil.


Embora sua obra seja muito maior que isso, não há dúvida de que é por ter criado Mowgli, o menino-lobo, que Kipling é mais famoso. As aventuras do personagem divertem e empolgam hoje tal como o faziam no século XIX, e fizeram parte do imaginário e até da educação de várias gerações, em grande parte por serem adotadas pelo escotismo internacional como uma espécie de guia e fonte de inspiração para meninos e meninas de sete a onze anos, os "lobinhos". É fácil ver por que: essas histórias ensinam (sem deixar demasiado óbvio que estão ensinando) lições sobre amizade, disciplina, respeito aos mestres e às instituições, amor à família, e sobre como a inteligência pode triunfar sobre a força bruta. Para a criação de Mowgli, Kipling parece ter tomado como base histórias que ouviu na Índia durante sua infância e juventude, histórias essas que merecem um olhar atento, e que ele complementou com a própria imaginação.

Histórias de crianças órfãs ou abandonadas, acolhidas por animais selvagens, são contadas desde a Antiguidade (lembram-se de Rômulo e Remo?); por alguma razão, para cada história dessas envolvendo outros tipos de animais, há pelo menos umas dez sobre lobos, e a Índia é, de longe, o país com o maior número de casos relatados. Talvez isso tenha a ver com seu clima quente, já que, em lugares como a Rússia ou o Canadá, uma criança vivendo entre animais dificilmente sobreviveria ao primeiro inverno na floresta, de modo que sua história ficaria sem ser conhecida. Kipling, com certeza, ouviu falar muito no assunto, e encontrou aí a ideia de que precisava para criar um personagem por meio do qual poderia narrar diversas aventuras ambientadas nas misteriosas selvas de sua terra natal.

Quando Shere Khan, o tigre, ataca um acampamento nas montanhas de Seeonee, na região central da Índia, os humanos que lá estavam se dispersam, fugindo cada qual para um lado. Um menino – um bebê que há pouco começou a andar – vai parar na toca de uma família de lobos, onde Shere Khan acaba por localizá-lo, mas não pode entrar por ser muito grande. A mãe-loba, por nome Raksha ('a Demônia'), declara ao tigre que o "filhote" agora pertence a ela e, mais, profetiza que, quando ele crescer, irá caçar Shere Khan e matá-lo. O tigre se retira furioso, e ninguém ignora que, daí em diante, matar o menino vai tornar-se uma obsessão para ele. Algum tempo depois, o casal de lobos leva o bebê, ao qual deram o nome de Mowgli, ao conselho da alcateia, junto com seus próprios filhotes, para que seja apresentado à sociedade dos lobos. O chefe da alcateia, Akela (pronuncie Ákela) é um líder forte e justo, rígido no cumprimento da lei, mas não incapaz de ter misericórdia. Duas vozes, além das dos pais adotivos, se elevam a favor do filhote de homem. A primeira é a de Baloo, o urso-pardo, que há muito desempenha as funções de professor dos filhotes da alcateia, ensinandolhes a Lei da Selva; a outra é a de Bagheera, a pantera negra, um dos predadores mais temidos e respeitados da região. Embora não tendo direito a falar no conselho da alcateia, Bagheera oferece um preço pela vida do menino: um touro que acaba de matar. O arranjo é aceito e Mowgli fica vivendo com seus novos pais e irmãos. Durante os anos seguintes, sua vida entre os lobos é feliz e despreocupada; Shere Khan mudou seus campos de caça para outra região, e Mowgli vai sendo educado e instruído não só por Baloo, mas também por Bagheera e Akela, além, é claro, dos próprios pais. Naturalmente, os filhotes de Pai Lobo e Mãe Loba crescem muito mais depressa que ele, mas, conforme eles vão ficando adultos e seguindo sua vida na alcateia, novas ninhadas nascem, de modo que o garoto nunca fica sem irmãos. Ele se considera um lobo tal como os outros, mas, com exceção dos jovens da alcateia, tão ingênuos quanto ele, ninguém mais cultiva tal ilusão. Baloo se orgulha da inteligência de seu discípulo, mas não deixa de notar que, enquanto os lobinhos só precisam ouvir uma lição uma vez para que ela fique em suas mentes para toda a vida, no caso de Mowgli o aprendizado tem uma tendência a entrar por um ouvido e sair pelo outro. Coisas de homem. Apesar disso, o garoto tem facilidade para aprender e, infelizmente, sabe disso, o que acaba por torná-lo orgulhoso e excessivamente autoconfiante – dois defeitos que só a experiência o ensinará a corrigir, como a história A Caçada de Kaa ilustra bem.

Porém, esse tempo feliz, como sempre acontece, chega ao fim. Shere Khan retorna a Seeonee, e Akela, já velho, vê sua liderança se enfraquecer dia a dia conforme o tigre, traiçoeiro, vai-se fazendo "amigo" de muitos dos jovens lobos, engambelando-os com palavras lisonjeiras e comprando-os com os restos das presas que mata – uma desonra por si só, já que caçar o próprio alimento é um dos mais importantes pilares sobre os quais repousa o orgulho de qualquer lobo que se preze. Se mais alguém tiver visto nisso algum tipo de crítica social, que bom: é sinal de que eu não devo estar louco, afinal de contas. Aliás, mais de um estudioso mais abalizado que eu já manifestou a opinião de que parte do segredo da longevidade da obra de Kipling está nos diferentes níveis de leitura possíveis: uma criança pode ler a coisa toda como simples histórias de aventura, e, ao relê-la anos ou décadas mais tarde, perceber que há símbolos a serem interpretados, e que, onde se fala em animais, o autor pode estar retratando comportamentos humanos.

O resultado do relaxamento da disciplina é o que seria de se esperar: a alcateia se esfacela, dividida por rivalidades sem sentido e com cada lobo caçando e vagueando como bem entende, muitos deles caindo em armadilhas ou adotando modos de vida que os envergonham. Diante disso, o grupo dos que mais se importam com Mowgli chega a uma conclusão: não podem protegê-lo sempre e em toda parte, e todos sabem que basta um pequeno descuido para que Shere Khan cumpra sua vingança há tanto tempo esperada. A solução é mandá-lo de volta para os homens, e o menino, agora quase adolescente, muito a contragosto, dirige-se para a aldeia mais próxima, aquela onde seus pais biológicos possivelmente ainda vivem. Isso, de certa forma, representa o início do conflito que define a própria existência de Mowgli: nascido dos homens, mas criado entre os animais, ele não pertence de fato a nenhum dos dois mundos, e a sombra desse destino vai persegui-lo até a última de suas aventuras a ser narrada nestes livros.

Já li comentários sobre a obra de Kipling criticando-o por retratar animais comportando-se de maneiras descaradamente humanas – uma crítica, a meu ver, sem sentido; é óbvio que o autor nunca teve a intenção de descrever o comportamento das criaturas selvagens com rigor científico, ou que cabimento teria colocar Baloo como mestre dos filhotes da alcateia? Ursos e lobos são rivais naturais, que competem por território e caça em todos os ecossistemas onde convivem, seja na gelada Sibéria ou na Índia tropical. O que Kipling fazia era uma espécie de fábula, com ação empolgante e personagens inesquecíveis. Mesmo assim, ele frisa de forma insistente a diferença essencial e irremediável entre Mowgli e seus irmãos selvagens: cada animal da selva, seja lobo, urso, pantera, tigre, elefante ou outro qualquer, age sempre de acordo com sua natureza, e pode-se ter a certeza de que sempre farão isso, porque não há outro caminho possível para eles; são seres retos e sem contradições, que nunca enfrentam dúvidas sobre o que fazer diante de determinada situação. Mowgli é diferente, porque, por mais que tente esquecer o fato, é homem – e ele bem que tenta, muitas vezes, especialmente depois de ter tido contato com os humanos e ver o quanto eles podem ser tolos, cruéis e ilógicos; porém, por ser homem, ele é incomparavelmente mais complexo que qualquer animal, e, consequentemente, contraditório, e isso é algo sobre o qual não tem poder. Costuma ofender-se quando o chamam de homem, mas não hesita em recorrer a uma certa autoridade natural que sua condição humana lhe confere até mesmo sobre aqueles com quem aprendeu tudo, como Bagheera e Baloo. Não há animal na selva que consiga encará-lo sem desviar o olhar, e a combinação do "ser homem" com o conhecimento profundo da vida selvagem, dos costumes e da língua de cada espécie, acaba por fazer dele o senhor absoluto da selva e de todos os que nela habitam – o que não impede que sofra momentos de incerteza e insegurança. Sua ambivalência em relação à humanidade fica mais evidente na história O Avanço da Selva, na qual, já se acostumando a seu papel de senhor, ele decide que a aldeia não deve continuar a existir, e consegue a ajuda de diferentes animais, passando a destruir sistematicamente as colheitas e danificar as construções, até que o povo seja obrigado a ir embora e a selva retome o lugar – mas faz tudo isso sem matar ninguém.


Esta nova edição d'Os Livros da Selva traz as histórias na ordem em que aparecem nas publicações originais, diferentemente da edição que li na infância, que apresentava primeiro todas as aventuras de Mowgli, e depois as outras histórias. Isso nos permite observar que o primeiro The Jungle Book incluía apenas três histórias sobre o menino-lobo, e quatro com outros temas; provavelmente o fato de Mowgli ter-se tornado seu personagem mais querido levou Kipling a dar-lhe maior destaque no The Second Jungle Book, no qual, de oito histórias, cinco o têm como protagonista. Também é importante notar que as aventuras de Mowgli estão numa ordem cronológica aproximada, mas não rigorosa: a primeira, Os Irmãos de Mowgli, fala de sua adoção pelos lobos e, depois, de sua primeira ida para os homens, aquela da qual ele voltaria; a última, A Corrida da Primavera (que, na tradução de Lobato, chamava-se A Embriaguez da Primavera; o título original era The Spring Running, que permite diferentes interpretações, mais ou menos literais) é sobre sua ida definitiva. Por outro lado, A Caçada de Kaa, por exemplo, fica em algum lugar entre o início e o fim de Os Irmãos de Mowgli, sendo uma das inúmeras aventuras que o autor "pula", dizendo ao leitor que ele deve "simplesmente imaginar a vida magnífica que Mowgli teve entre os lobos, pois se isso fosse escrito preencheria uma infinidade de livros". Como apêndice, temos ainda Dentro do Rukh, publicada em 1893, a primeira história na qual Mowgli aparece – só que, nela, ele já é adulto e deixou a selva (apesar de ainda parecer muito ligado a ela), de modo que seria na verdade a última por ordem cronológica.

Não se pode negar que as aventuras de Mowgli são a parte mais apetitosa de Os Livros da Selva, mas estão longe de ser a única coisa interessante. No primeiro The Jungle Book, temos A Foca Branca, uma das duas únicas histórias não ambientadas na Índia. Embora Kipling se refira aos animais ali apresentados pelo nome de "focas", trata-se claramente de leões-marinhos, como as notas de rodapé da nova edição esclarecem. A foca branca do título é Kotick, um jovem macho nascido nas praias do mar de Bering, que, inconformado com o assassinato de milhares de seu povo a cada ano por caçadores de peles, decide dedicar a vida a procurar por um lugar onde as "focas" possam viver em paz, e o relato de suas viagens pelos quatro cantos dos oceanos é algo digno de acompanhar – e tanto mais admirável por sabermos que esses incríveis mamíferos marinhos são mesmo capazes de tais deslocamentos, nadando por milhares de quilômetros e passando meses a fio sem tocar terra firme. Temos também Rikki-tikki-tavi, sobre a inimizade mortal entre mangustos e serpentes. Servos de Sua Majestade é uma fábula que tem como personagens diferentes animais do exército indo-britânico: cavalos, camelos, mulas, bois de tração, elefantes e outros, todos conversando entre si, e que nos leva à conclusão de que cada um "luta" conforme sua natureza e suas capacidades, o que não significa que um tenha mais valor que outro. E, ainda no primeiro The Jungle Book, encontramos o que talvez seja a melhor história sem Mowgli de ambos os livros: Toomai dos Elefantes, sobre a vida dos homens que trabalhavam com os referidos paquidermes na Índia, na época da ocupação britânica. Um desses homens é o Grande Toomai, filho e neto de famosos mahouts (tratadores e condutores de elefantes), que alcançou um cargo bem remunerado e de certo prestígio a serviço do governo britânico na Índia, e, naturalmente, espera que seu filho, o Pequeno Toomai, siga seus passos... Só que o menino de dez anos gosta é da vida na selva, e sonha em tornar-se um dos homens que se dedicam a capturar e domar elefantes selvagens, o que, na opinião do pai, seria um retrocesso de vida.

No segundo The Jungle Book, temos O Milagre de Purun Bhagat, uma história diferente, com pouca ação, mas também interessante a seu modo, que trata de um homem originário de uma das famílias mais conceituadas da casta dos brâmanes, a mais alta da Índia, e que vem a ser um alto funcionário do governo, com excelentes conexões tanto em Délhi e Bombaim quanto na própria Inglaterra, o que lhe garantiria uma vida de poder e riqueza... Só que ele decide abandonar tudo para tornar-se um homem santo errante, passando a percorrer a pé as estradas poeirentas do interior da Índia e a viver da caridade dos que encontra.

A outra história não ambientada na Índia, como referi ao falar sobre A Foca Branca, também está em The Second Jungle Book; é Quiquern, uma aventura esquimó fortemente marcada pela estranha e macabra mitologia desse povo. Os Agentes Funerários narra a Revolta dos Sipaios, de 1857, através das memórias de um velho crocodilo que conta suas histórias a um marabu e um chacal; o réptil interpreta as reviravoltas da sociedade dos humanos de acordo com a quantidade de cadáveres que encontra boiando no rio, e que lhe poupam o trabalho de caçar. Trata-se de uma fábula também, projetando um pouco do pior da humanidade (prepotência, vaidade, servilismo, covardia) sobre as figuras dos três animais. O título parece enigmático à primeira vista, mas torna-se claro quando o leitor se dá conta de que os personagens são dois animais necrófagos por excelência (o chacal e o marabu) e um que parece bem adaptado a essa vida (o crocodilo).

O Livro da Selva chegou às telas pela primeira vez em 1942, com direção de Zoltán Korda e o ator indiano Sabu Dastagir no papel de Mowgli, mas essa produção é pouco lembrada hoje em dia; a versão mais famosa é, sem dúvida, o longa-metragem de animação da Disney, lançado em 1967, cujo roteiro, entretanto, tinha pouco a ver com as histórias originais de Mowgli escritas por Rudyard Kipling. A nova versão, também da Disney, que acaba de ser lançada, responsável pelo hype que possibilitou o surgimento desta nova edição, combina atores reais (na verdade, praticamente só o garoto Neel Sethi) com animais criados por computação gráfica; é visualmente magnífico, mas tem praticamente o mesmo roteiro que o desenho animado, deixando de fora quase todas as partes mais significativas e emocionantes das aventuras de Mowgli e pintando os personagens Baloo e Kaa, a serpente, de formas totalmente deturpadas: Baloo, que, nos livros, é um mestre austero, virou um urso bonachão e boa-vida; Kaa, que salva a vida de Mowgli na história A Caçada de Kaa e, daí por diante, torna-se sua amiga e mestra, assim como Baloo e Bagheera, nos filmes da Disney só está interessada em comer o garoto (o filme de 1942 era mais justo com ela). Para não dizer que o novo filme não traz nenhuma melhoria em relação ao desenho, ele mostra um dos momentos mais interessantes das histórias, a Trégua da Água, que tem início quando a Pedra da Paz emerge das águas do rio, o que só acontece em tempos de grande seca; enquanto essa pedra estiver exposta, é proibido aos animais carnívoros caçar junto ao rio, porque "beber é mais importante que comer". Em condições normais, os bebedouros estão entre os melhores lugares para um predador espreitar sua presa; enquanto dura a trégua, Bagheera, Shere Khan e os lobos bebem lado a lado com cervos e antílopes. Lei é Lei!

Para finalizar, uma nota de rodapé sobre as imagens: a edição da Zahar traz algumas ilustrações das primeiras edições de ambos os The Jungle Book, feitas por ninguém menos que John Lockwood Kipling, pai do autor – mas, embora eu ache isso formidável, optei por não reproduzi-las aqui, porque foi impossível resistir à tentação de usar as ilustrações da edição francesa, que são do grande Pierre Joubert, tal como a capa da mesma edição, que também estou incluindo.

domingo, abril 17, 2016

A Espada do Destino

Pegar um volume das aventuras do bruxo Geralt de Rívia, de Andrzej Sapkowski, é sempre garantia de encontrar boas narrativas de fantasia, que agradarão em cheio aos fãs dos clássicos do gênero, mas com um estilo próprio, capaz de garantir que a série não vire um mero sub-Senhor dos Anéis. Agora que o leitor já teve um vislumbre do mundo da saga e travou conhecimento com seus principais personagens, a leitura deste segundo livro flui mais fácil que a do primeiro, e, se bem que tanto aquele livro quanto este tenham altos e baixos (coisa absolutamente natural), em média a qualidade das histórias não decaiu nada em relação àquele esplêndido início.
No começo do primeiro conto deste segundo volume, intitulado O Limite do Possível, encontramos Geralt caçando um basilisco, a pedido da população de uma vila qualquer; por acaso, ou assim parece, ele vem a conhecer um simpático sujeito que diz chamar-se Borch, apelidado Três Gralhas, que viaja (sabe-se lá com qual objetivo) acompanhado de dois guarda-costas, que, vejam só, são Tea e Vea, duas sensuais e sanguinárias guerreiras zerricanas, que honram a fama de seu povo, de falar pouco e manejar a espada com a velocidade de um raio. Os quatro seguem viagem juntos, até chegarem a uma ponte que está interditada por ordem de Niedamir, o rei adolescente de Caingorn. Motivo: o rei e seu séquito estão perseguindo um dragão, que parece ter se refugiado nas montanhas do outro lado, e não querem que ninguém venha a competir com eles pela glória da caçada – uma glória um tanto duvidosa, já que o monstro foi envenenado e tudo indica que já esteja nas últimas. Geralt, por princípio, não mata dragões, mas fica interessado ao saber que há dois feiticeiros acompanhando o rei, e que um deles é ninguém menos que sua antiga amante, Yennefer. A relação dos dois parece ser bem tempestuosa… No primeiro volume narra-se como foi que se conheceram, e, ao final dele, o romance parecia ir bem; já aqui, ficamos sabendo que se separaram de forma quase violenta quatro anos antes, e Geralt, por mais de uma vez, pede a Yennefer que o perdoe de alguma coisa, que não sabemos o que é, o que ela recusa obstinadamente. Tanto a caçada ao dragão quanto o relacionamento complicado entre o bruxo e a feiticeira servem de eixos à história daí em diante, mas talvez a melhor parte seja a variada galeria de personagens que se juntam a Niedamir na perseguição ao dragão – desde um paladino idealista que o rei Artur teria orgulho de ter em sua Távola Redonda, até os Rachadores, três mercenários que matam qualquer coisa que lhes ordenem matar, desde que a recompensa seja boa.
A história seguinte é Um Fragmento de Gelo. Geralt e Yennefer, aparentemente com as pazes feitas (mas a toda hora tendo pequenas discussões, ou nem tão pequenas assim), estão hospedados numa cidade chamada Aedd Gynvael, nome originário da língua dos elfos, e que, traduzido, dá título ao conto. Para Geralt, trata-se de uma ironia desagradável que a cidade tenha um nome tão belo e etéreo, pois, para ele, ela não passa de um pardieiro infecto – embora essa opinião pouco lisonjeira tenha sido influenciada pelo fato de que, logo ao chegar, ele foi contratado para matar um monstro repelente que se escondia no lixão, e desde então tem a nítida impressão de que o fedor do lugar se estende pela cidade toda. Se dependesse de Geralt, ele e Yennefer já teriam ido embora, mas ela insiste em permanecer, e o motivo para isso não agrada mais ao bruxo que a história do lixão: ela tem visitado regularmente outro feiticeiro, um tal Istredd, com quem já teve um relacionamento no passado, e Geralt tem lá suas dúvidas de que o objetivo dessas visitas seja apenas a troca de conhecimentos profissionais. É noção corrente que os bruxos não têm sentimentos, mas aqui está um deles que positivamente sente ciúme, além de ter todas as reações normais de um homem que tem a desventura de ser completamente louco por uma mulher de cujos verdadeiros sentimentos nunca se pode ter certeza – talvez nem mesmo ela saiba ao certo quais são. Apesar de ser provavelmente muito mais velha do que sua estonteante aparência permite imaginar, Yennefer, não raro, comporta-se como uma adolescente marrenta, e quem já passou pela dolorosa experiência de se apaixonar por uma dessas (não necessariamente uma adolescente, mas uma mulher que age desse jeito, seja qual for sua idade) compreende bem os estados de espírito vividos por Geralt nesse conto: depressão e raiva (inclusive as duas ao mesmo tempo). Entre outras coisas, é a primeira vez que vemos o bruxo ficar bêbado de cair. O conto também contribui com pelo menos mais um momento a ser registrado na galeria dos diálogos deliciosos que caracterizam a saga:
– (…) Pelo que ouvi falar, nem adianta tentar determinados feitiços sem o sangue de uma donzela, de preferência morta por um raio em noite de lua cheia. Em que ele difere do sangue de uma mulher da vida que, bêbada, caiu sobre uma paliçada?
– Em nada – concordou o feiticeiro, com um sorriso amável. – No entanto, se fosse revelado que a tarefa poderia ser feita igualmente com o sangue de um porco, tão fácil de encontrar, o povaréu todo começaria a se envolver em feitiçaria. De outro lado, se a ralé tivesse de colher e usar esse sangue de donzela que tanto o fascina, lágrimas de dragão, veneno de tarântulas brancas, sopa feita de mãos decepadas de recém-nascidos ou de um cadáver exumado à meia-noite, pensaria duas vezes antes de se aventurar em tal mundo.
Não é mesmo uma explicação convincente para o fato de nove entre dez supostas fórmulas mágicas exigirem o uso de ingredientes quase impossíveis de se conseguir??
Na terceira história, O Fogo Eterno, Geralt está em Novigrad, uma das maiores cidades do continente, levado pela prosaica necessidade de fazer compras, quando topa com o bardo Jaskier, que, esqueci de dizer, também aparece em O Limite do Possível. Em ambas o encontro parece ser casual, mas, sei lá, coisas casuais não costumam ser tão frequentes… Seja como for, e apesar de falar feito uma matraca (a ponto de, por vezes, quase enlouquecer o sisudo e introspectivo bruxo), de beber vinho ou cerveja até no café da manhã, e de ter uma capacidade inesgotável para arrumar encrenca (especialmente quando há um rabo-de-saia envolvido), Jaskier é o melhor amigo de Geralt, e é também um bardo extremamente talentoso. Faz parte de sua filosofia que, embora seja possível compor uma balada com base num relato, as melhores, aquelas que caem na boca do povo e continuam a ser cantadas séculos depois da morte de seus autores, são feitas por quem testemunhou em primeira mão os acontecimentos – mas não por uma questão de fidelidade aos fatos: se for necessário mudar uma coisa aqui e outra ali para dar um sabor mais romântico e poético, ele o faz sem cerimônia, como os bardos do mundo real também faziam.
Em Novigrad, como seria inevitável numa grande cidade de um mundo multirracial, convivem humanos, elfos, anões e mais um punhado de raças minoritárias; uma delas é a dos "ananicos" (palavra que eu nunca tinha visto), que, embora tenham esse nome que sugere alguma relação com anões, lembram irresistivelmente os hobbits de J. R. R. Tolkien: são pequenos, têm pés peludos, gostam de uma vida pacata e de boa comida… Ou seja, se esses tais ananicos não são hobbits, então têm muito azar de se parecer tanto com eles (risos). Um deles, de nome Biberveldt, é conhecido de Jaskier e um comerciante próspero e conceituado na cidade, e, no momento, está às voltas com um problema embaraçoso: uma criatura transmórfica, de uma raça já tida por muitos como extinta, resolveu assumir sua aparência e anda se intrometendo em seus negócios, passando-se por ele com tanta habilidade, que até seus parceiros comerciais de muitos anos são enganados. Sobra para Geralt e Jaskier o desafio de achar um jeito de ajudá-lo a sair dessa. Quem vê Supernatural deve ter lembrado dos metamorfos da série, e talvez tenha achado a coisa meio sinistra, mas a verdade é que o conto é engraçadíssimo! Além de todas as suas outras qualidades como escritor, Sapkowski demonstra que também é versátil.
Em outra história, Um Pequeno Sacrifício, Geralt está envolvido com uma empreitada que deve ser insólita até mesmo para ele: está servindo como intérprete entre o príncipe Agloval, que governa uma cidade portuária, e a, aham, bem, "moça" por quem ele está apaixonado, a sereia Sh'eenaz. É claro que a barreira linguística não é nem de longe o maior obstáculo no caminho desse romance tão pouco convencional. O relacionamento encontra-se num impasse, já que nenhum dos dois está disposto a abandonar o meio vital onde cresceu – leia-se: o príncipe não quer se transformar num tritão, e a sereia tampouco quer se converter numa mulher humana, embora, pelo que se diz, existam meios mágicos capazes de realizar ambas as coisas. Exceto pela roupagem de fantasia, parece haver pouca diferença entre as picuinhas desse casal e as de vários que eu conheço, e vocês, provavelmente, também… É Sapkowski dando seguimento a sua curiosa experiência de imaginar como os contos de fadas seriam, caso o mundo onde eles têm lugar fosse habitado por pessoas de carne e osso. Para dar um vislumbre de como a realidade vira conto de fadas, Jaskier descreve a Geralt a balada que está compondo sobre o episódio – e que é nada mais, nada menos que o famoso conto de fadas A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen (mas esqueçam o desenho da Disney: leiam o conto original de Andersen, que é muito forte e não tem final feliz).


Ainda em Um Pequeno Sacrifício, Geralt experimenta um lance inesperado em sua sofrida vida amorosa ao conhecer a poetisa Essi, a "Olhuda" – encantadora, inteligente e cheia de personalidade. Só é um tanto difícil explicar o fato de que Jaskier, que a conhece há anos, consiga interagir com ela em termos de pura amizade e coleguismo: embora este seja apenas o segundo volume da saga, já deu para perceber que o bardo não é o tipo de homem de ter amigas. Talvez seja algum tipo de ética profissional: vai ver, ele prefere não se envolver com uma colega de profissão, que, dependendo da situação, pode ser para ele tanto uma colaboradora quanto uma concorrente. Seja como for, o conto, que tem momentos engraçados e outros cheios de ação, termina com um lirismo melancólico, até agora inédito nas aventuras de Geralt. O que eu dizia há pouco sobre a versatilidade de Sapkowski torna-se mais verdadeiro ainda.
A história seguinte é a que dá título ao livro, e, nela, Geralt se envolve num conflito territorial entre humanos e dríades (que os humanos, em alguns lugares, chamam de "pantânamas"). Novamente, a fantasia serve de tela para apresentar problemas do mundo real, neste caso o fato de que todo conflito por espaço vital entre diferentes povos é também um conflito de culturas e visões de mundo. Aqui, os humanos, com seu ímpeto de expansão, representam a civilização moderna, baseada na indústria, no comércio e no "progresso", enquanto as dríades simbolizam os povos selvagens, que ainda vivem na dependência da natureza e, no fundo, não têm chance de resistir ao avanço da civilização, restando-lhes a escolha entre integrar-se a ela ou desaparecer. Para tornar as coisas ainda mais difíceis para as dríades, elas dependem dos humanos para se perpetuarem: como são todas mulheres, precisam acasalar com homens para poderem procriar – e parece que, nos últimos tempos, têm apelado também para o simples expediente de raptar meninas humanas para criá-las entre elas; uma vez crescidas, essas meninas são consideradas dríades, tanto quanto as outras. E, claro, esses raptos tornam-se um fator de conflito a mais. As aventuras de Geralt de Rívia acontecem numa época em que seu mundo está em pleno processo de transformação, com o crescimento da civilização humana gradualmente causando a extinção dos seres fantásticos, ou obrigando-os a buscar refúgio nos poucos cantos inacessíveis que ainda restam. Geralt conta que existem lugares onde elfos e outros povos fizeram acordos com os humanos e puderam continuar vivendo em relativa tranquilidade – ainda que sua cultura, provavelmente, tenha sido profundamente modificada (e é claro que isso só é possível para espécies dotadas de inteligência e capacidade de contemporizar; para monstros irracionais como os que Geralt caça, parece não haver alternativa à extinção). As dríades poderiam fazer o mesmo, mas estão irredutíveis em sua recusa de qualquer acordo, o que leva o bruxo a não ter expectativas muito otimistas em relação ao seu futuro. Eithné, a líder da comunidade das dríades, inevitavelmente nos faz lembrar a rainha élfica Galadriel, de O Senhor dos Anéis, com a diferença de ser teimosa e não ter a mínima empatia ou simpatia para com os seres humanos. Por fim, A Espada do Destino (o conto) também marca o aparecimento da pequena princesa Ciri, uma personagem cuja origem está entrelaçada com uma antiga aventura de Geralt, narrada em O Último Desejo, e que provavelmente terá um papel importante em acontecimentos ainda por vir.
Há uma observação que fatalmente me arrastará para uma longa digressão, e que, portanto, talvez eu devesse me abster de fazer, mas não adianta, não resisto (risos). Na terra das dríades, Geralt reencontra um sujeito de nome Freixenet, que lhe manifesta gratidão por havê-lo livrado, tempos antes, de um feitiço que o transformara num pelicano. O curioso é que, antes do bruxo lançar seu contrafeitiço bem-sucedido, a irmã de Freixenet – uma jovem linda e bobinha, casada com um rei – havia tentado inutilmente desenfeitiçá-lo utilizando um manto feito de urtigas. Durante o diálogo dos dois, Geralt conta a Freixenet que sua história ganhou o mundo, está sendo contada e recontada (e cantada, pois os bardos não ficariam de fora), mas, é claro, com algumas modificações. Parece que alguém achou que o pelicano era um pássaro pouco romântico e o substituiu por um cisne, além de dar a Freixenet um lote de dez irmãos, que teriam, todos, sofrido a mesma maldição que ele. Nessa versão, Geralt nem aparece: os onze rapazes-cisnes são efetivamente salvos pelos mantos de urtigas feitos por sua irmã. Em resumo, o que temos aí é o enredo de outro conto de Hans Christian Andersen, Os Cisnes Selvagens! Pelo visto, Sapkowski, neste volume, estava decidido a homenagear o escritor dinamarquês. No tempo de Andersen (que viveu de 1805 a 1875), os contos de fadas haviam-se tornado muito populares, graças, principalmente, ao trabalho dos irmãos Grimm, que compilaram, redigiram e publicaram muitos deles, levando também a uma revivescência do interesse pela obra de Charles Perrault (1628-1703). Por causa dessa popularidade, muitos escritores do século XIX tentaram criar histórias originais no mesmo estilo desses contos, mas, embora alguns tenham até feito certo sucesso em sua época, Andersen (por sinal, amigo pessoal dos Grimm) foi o único que conseguiu criar novos contos de fadas que perduraram. Vale lembrar que os Grimm não inventaram histórias – apenas puseram por escrito contos folclóricos, a maioria deles de provável origem medieval, que circulavam oralmente nas regiões rurais de seu país natal, a Alemanha.
A última história chama-se Algo Mais. Outro detalhe interessante da escrita de Sapkowski é que o título de cada conto costuma aparecer diversas vezes nos diálogos dos personagens, não raro assumindo diferentes significados, todos importantes para a trama. E aqui não é diferente: o conto trata da ideia de que, mesmo que o destino seja real (coisa na qual Geralt não acredita, mas muita gente em seu mundo, sim), o fato de alguma coisa estar predestinada não basta – é preciso algo mais. Tudo começa quando Geralt, percorrendo uma região selvagem e perigosa, encontra-se por acaso (?) com Yurga, um mercador que está em sérios apuros: sua carroça sofreu um acidente no meio de uma ponte e, com a aproximação da noite, os dois empregados que o acompanhavam deram no pé, aterrorizados com os sons vindos da floresta circundante. Sons esses que não são um alarme falso: a região é o lar de uma raça de criaturas diminutas, porém malignas, e que compensam seu pequeno tamanho atacando sempre em bandos numerosos. Geralt concorda em proteger e auxiliar o comerciante, frisando que não pode dar garantia alguma de que o episódio não vá terminar com ambos mortos – e, como vai arriscar a vida, pede uma recompensa muito especial. Nada de dinheiro: o que o bruxo quer em troca de seus serviços é a promessa de Yurga de que lhe dará "aquilo que encontrar em casa ao retornar e que não esperava". Isso, é claro, costuma significar uma criança, e é assim que os bruxos normalmente asseguram a continuidade de sua ordem, já que não podem constituir famílias e são estéreis… Não vou entregar mais detalhes do conto, exceto um: ferido, Geralt toma um elixir misterioso dentre os vários que sempre leva consigo, e que, ao mesmo tempo em que tem poderes curativos, age de forma estranha sobre a mente, levando-o a sonhar com diferentes momentos de seu passado, desde um encontro melancólico com Yennefer até a ocasião em que testemunhou o desesperado êxodo dos sobreviventes da cidade de Cintra, destruída por invasores vindos de Nilfgaard. Tudo isso antes de um final pra lá de inesperado.
A Espada do Destino é o segundo volume da série sobre as aventuras de Geralt de Rívia, e o último a ter o formato de uma coletânea de contos às vezes (aparentemente) soltos, outras vezes interligados entre si; o próximo, O Sangue dos Elfos, marca uma mudança de rumo, ou, pelo menos, de método, pois, daí em diante, a série prossegue com romances. É fácil imaginar como a coisa se deu: Sapkowski começou pelos contos, que podiam ser publicados em revistas e, mais tarde, caso houvesse demanda por isso, reunidos em livros, que foi o que de fato ocorreu; com a boa recepção que sua criação teve por parte do público, o escritor e seu editor devem ter tido uma conversa e decidido por essa mudança – e eu realmente espero que Sapkowski tenha recebido gordos adiantamentos por todos os volumes seguintes, bem como uma boa participação em suas vendas, na cessão dos direitos para a TV e para a série de videogames The Witcher, e assim por diante. O cara merece.

sábado, março 19, 2016

Dança Macabra

Embora eu seja um fã de Stephen King (como quem acompanha este blog, se é que alguém acompanha, já deve ter percebido), não tenho a pretensão de ser um grande conhecedor de sua obra… E vamos concordar, ser um grande conhecedor de King é uma empreitada que requer um tremendo investimento em termos de tempo, dinheiro e espaço na estante: vai ser prolífico assim lá no Maine! Portanto, não estou (muito) envergonhado de só agora ter lido Dança Macabra, cuja publicação original é de 1981.

Trata-se de uma leitura muito interessante, além de muito útil para todos os aficionados do terror em qualquer de suas apresentações: literatura, cinema, TV, quadrinhos e o que mais imaginarmos. H. P. Lovecraft escreveu O Horror Sobrenatural na Literatura, sobre o qual já falei aqui uma pá de vezes, mas que nunca me senti à vontade para transformar em assunto de um post próprio; já Dança Macabra, tão logo percorri suas 20 ou 30 primeiras páginas, já deixou claro o fato de que eu teria que escrever sobre ele. Por quê? Não sei. Talvez (e isso não passa de um palpite) porque já tenha lido mais coisas de King que de Lovecraft, e por isso tenha a sensação de entender melhor como funciona a cabeça do autor. No mais, acredito que o paralelo (não é uma comparação) procede: cada um procurou apresentar um panorama da tradição que o precedeu na ficção fantástica. Lovecraft, em sua época, praticamente só tinha a literatura da qual tratar, e, nesse campo, cobriu quase três séculos de obras e autores europeus e norte-americanos. Já King, escrevendo entre o fim da década de 70 e o começo da de 80, precisava cobrir uma gama muito maior de mídias, e, talvez por isso, optou por restringir o arco de tempo a ser abrangido pelo ensaio: seu assunto propriamente dito é a produção de terror das décadas de 50, 60 e 70, embora seja impossível evitar, vez por outra, uma incursão no passado em busca das origens de determinados horrores. Também à diferença de Lovecraft, King não se detém apenas em obras de terror, dando alguma atenção também à fantasia e à ficção científica, em especial a segunda, já que, durante o período que ele analisa, ficção científica e terror frequentemente interagiram, dialogaram e se interpenetraram, na literatura e sobretudo no cinema.

Já que estamos falando de gêneros, peço a indulgência de meus leitores para também expor um pouco de teoria de minha própria lavra. Gosto de agrupar ficção científica, terror e fantasia (na literatura, claro está) debaixo de um mesmo e enorme guarda-chuva que chamo de "literatura de imaginação". Os três têm em comum o fato de não terem suas temáticas limitadas pelas amarras do "possível" (para não falar no fato de, muitas vezes, serem produzidos e/ou consumidos pelas mesmas criaturas estranhas), mas também têm entre si grandes e importantes diferenças. Desse trio, a ficção científica é a que mantém maior distância em relação a seus "irmãos" terror e fantasia, os quais, por sua vez, são muito próximos um do outro – King chega a dizer que o terror não é propriamente um gênero, e sim um subgênero dentro da fantasia, uma asserção com a qual eu não sei se concordo. E o que é que causa essa distância? Bem, a ficção científica é um gênero jovem, não no sentido de atrair o público jovem, mas no de existir há pouco tempo mesmo: seus primeiros expoentes dignos de nota são do século XIX. O terror e a fantasia, por outro lado, são muito antigos; nem sequer é possível fixar um marco exato de onde começam, herdeiros diretos que são da mitologia e do folclore – coisas que acompanham nossa espécie desde que ela passou a merecer o nome de humana. E, se a ficção científica teve um início recente, isso foi porque ela só pôde aparecer quando a ciência em si já estava madura a ponto de poder servir de inspiração para um gênero literário. Temos, então, que histórias de ficção científica são aquelas baseadas na ciência, ou, ao menos, em uma imitação aceitável de ciência; é um gênero que precisa oferecer explicações. A fantasia e o terror não precisam de explicações: sua matéria é a magia, o misticismo e o sobrenatural. Numa palavra, o inexplicável.


É claro que isso não significa que não possam ocorrer crossovers entre esses gêneros – e aqui devolvo o microfone a King. Obrigado, mestre. Logo no começo do livro, ele usa a miríade de filmes sobre invasões alienígenas que o cinema norte-americano produzia e exibia durante seus tempos de infância como ponto de partida para tecer uma reflexão. King, que nasceu em 1947, frequentemente se refere a sua própria geração como os "filhos da guerra" – a geração que colheu os frutos da vitória na Segunda Guerra Mundial. Todos os frutos. Por um lado, essa geração de norte-americanos cresceu em meio a uma prosperidade econômica com a qual seus pais e avós só poderiam ter sonhado; por outro, também cresceu em plena Guerra Fria, cercada pela paranoia constante da "ameaça comunista" (pois a União Soviética, outrora a mais importante aliada dos Estados Unidos contra as potências do Eixo, lideradas pela Alemanha nazista, era agora o inimigo a ser temido) e, pior ainda, convivendo com o fato de que uma guerra nuclear de extermínio total poderia estar à distância de um apertar de botão. A pergunta é inevitável: o que metia medo naquelas crianças e jovens? Por muito tempo, foram esses filmes (em geral toscos, é verdade) sobre invasores do espaço, que resultavam numa alegoria sobre a possível investida do inimigo – e, como bem observa o autor, a alegoria estava lá, pouco importa que o diretor tivesse feito a coisa de propósito ou que (nas palavras de King) o subtexto tivesse simplesmente acontecido. O resultado final de tudo era que, embora esses filmes partissem de elementos da ficção científica – civilizações extraterrestres, espaçonaves –, o efeito obtido era de terror. Em outro exemplo semelhante, King nos apresenta a lenda do "maníaco da mão de gancho", que era contada ao redor de muitas fogueiras de acampamento quando ele era garoto (e antes, e depois) e explica por que ela não deixaria de ser terror, mesmo que alguém decidisse recontá-la substituindo o maníaco por um ser de outro planeta ou de outra dimensão.

Continuando com suas teorizações, o autor apresenta a ideia – surpreendente de certa forma, mas que não deixa de fazer sentido – de que, por mais que o terror pareça um gênero transgressor (já que muitas vezes choca, seja com as alusões sexuais, ousadas para a época, de um Drácula, ou com o horror explícito de revirar o estômago de um Alien, o Oitavo Passageiro), o papel do escritor de terror, no fundo, é o de um agente do status quo, ou, se preferirem, o de um guardião da normalidade. Seguindo essa linha de raciocínio, a narrativa de terror não seria mais que uma variação da velha dicotomia "nós versus os outros". "Nós", nesse caso, significaria a sociedade e o modo de vida que conhecemos, e que talvez não propriamente amemos, mas com os quais, ao menos, nos sentimos confortáveis, rodeados pelo que nos é familiar; os "outros" seria qualquer tipo de criatura ou elemento que surgisse para subverter a ordem estabelecida dessa sociedade e desse modo de vida, quer falemos aqui de fantasmas, vampiros, serial killers ou alienígenas malvados – ou de qualquer das inúmeras coisas às quais esses seres podem servir de metáfora. Caberia ao autor, então, deixar bem marcada a distinção entre… Putz, eu estava pronto para escrever "entre o bem e o mal", mas isso é simplista demais. Talvez seja melhor dizer que o trabalho do autor de terror consiste em acumular sobre alguma figura, seja real ou imaginária, tudo aquilo que nos inquieta e atormenta, inclusive em nós mesmos, dando-nos, assim, um objeto conveniente ao qual direcionar nosso ódio, temor, ou nossa simples perplexidade. E, como o leitor mais perspicaz já deve estar pensando, isso pode ser usado de muitas maneiras. Pode nos proporcionar uma saudável catarse, permitindo que exorcizemos nossos impulsos violentos transferindo-os para um lobisomem fictício, ou pode ser usado com objetivos de controle social e político, com resultados catastróficos – vide o que aconteceu quando os nazistas conseguiram convencer o povo alemão de que eram os judeus o "monstro" que ele devia temer.

(Falar em lobisomem me fez lembrar de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, que King considera uma variação moderna do velho mito, e que mereceu uma análise detida e comentários elogiosos. Para o autor, o livro de Stevenson forma, com Drácula, de Bram Stoker, e Frankenstein, de Mary W. Shelley, a tríade das grandes obras da ficção gótica, sendo ainda, segundo ele, a mais bem escrita das três, por conta de sua narração fluente e concisa, o que não é uma característica das outras duas.)

Em diferentes momentos ao longo do livro, King deixa-se arrastar (de forma deliberada, não tenho dúvida) para reminiscências autobiográficas. Na época, embora já se tivesse firmado como um escritor de sucesso, ele não tinha como saber que viria um dia a ser considerado um nome-chave na história da literatura fantástica, de modo que, ao partilhar essas reminiscências, ainda não sabia da importância que elas viriam a ter, e, então, apresenta-as somente como uma espécie de testemunho pessoal – valioso, de qualquer forma. Embora o gosto pela fantasia, e, em particular, pelo seu lado mais sinistro, pareça ter feito parte dele desde sempre, o autor arrisca apontar alguns acontecimentos de sua infância que podem ter tido sua parcela de culpa. Muito para minha surpresa, fiquei sabendo que o pai de King (que abandonou a família quando o pequeno Stephen tinha dois anos de idade e nunca mais foi visto pelos filhos), marinheiro de profissão, era um fã de ficção científica e terror, gêneros que lia avidamente e nos quais chegou a tentar a sorte como escritor, embora nunca tenha conseguido publicar nada. King, que não lembra de nada sobre o pai, acredita que seu definitivo "despertar" para o terror aconteceu quando, aos dez ou onze anos, encontrou, num sótão empoeirado, um caixote contendo alguns livros que haviam pertencido a ele, com destaque para uma coletânea dos contos de H. P. Lovecraft. Anos antes disso, porém, outra "epifania" já havia acontecido, numa ocasião em que um namorado de sua mãe levou toda a família para ver O Monstro da Lagoa Negra, filme que, hoje em dia, dificilmente ainda conseguiria meter medo em alguém (os sereianos de Harry Potter são, de longe, bem mais assustadores que o tal monstro, e isso para ficar só nas criaturas aquáticas), mas que deixou uma impressão profunda na imaginação de um garoto de sete anos naqueles meados da década de 50. E antes, ainda, outro evento pode ter deixado sua marca: aos quatro anos, King talvez tenha sido testemunha ocular da morte de um vizinho da mesma idade com quem costumava brincar, e que foi atropelado por um trem (digo "talvez” porque ele afirma não se lembrar de nada, sabendo do caso somente pelo relato da mãe, que não estava presente no momento do acidente; pode ser que, afinal de contas, ele não estivesse na companhia do amigo quando o fato aconteceu, mas também é possível que sua mente tenha simplesmente bloqueado essa memória, como dizem que acontece em casos de grandes traumas). King considera rematada tolice atribuir toda uma carreira literária a um trauma de infância, como alguns tentaram fazer desde que ele contou esse caso numa palestra, mas o episódio parece ter dado origem a uma história em particular: levante a mão aí quem lembrou do belíssimo filme Conta Comigo (Stand by Me), baseado em seu conto The Body, que, no Brasil, pode ser lido na coletânea Quatro Estações.

Outra obra que sem dúvida teve o seu peso na formação de King foi Além da Imaginação (The Twilight Zone), série criada por Rod Serling e exibida pela rede de TV americana CBS de 1959 a 1964. King dedica um bom espaço a essa série, e, mesmo que o tom no qual se refere a ela nem sempre possa ser considerado reverente (ele não hesita em apontar o que considera ruim), nota-se que, de modo geral, lembra dela com carinho. Além da Imaginação tinha formato de antologia, apresentando em cada episódio uma história fechada, independente das demais, com a temática variando entre terror, fantasia e ficção científica. No começo, quase todos os roteiros levavam a assinatura de Serling, às vezes adaptando contos de autores consagrados da literatura de imaginação, como Manly Wade Wellman, Richard Matheson e Ray Bradbury, entre outros menos famosos. Ainda durante a primeira temporada, o próprio Matheson, fisgado pelo projeto, passou a colaborar, de forma mais ou menos regular, com roteiros originais. Cancelada ao final de sua quinta temporada, Além da Imaginação seria, mais tarde, retomada por duas vezes. A primeira foi na década de 80, poucos anos depois da publicação de Dança Macabra; ainda lembro de muitos episódios dessa versão, à qual assistia na adolescência. Stephen King em pessoa escreveu ao menos um episódio, Gramma ('Vovó'), estrelado pelo garoto Barret Oliver, de A História Sem Fim, e os nomes de um punhado de outros escritores de peso também podem ser encontrados nos créditos: Harlan Ellison, Theodore Sturgeon, Ray Bradbury e George R. R. Martin. O segundo revival teve 44 episódios, exibidos entre 2002 e 2003, e é considerado pelos fãs a menos inspirada das três encarnações da série. Existe, ainda, um longa-metragem de 1983, intitulado Twilight Zone: the Movie, lançado no Brasil como No Limite da Realidade. O filme traz quatro histórias independentes, cada uma com cerca de 30 minutos de duração; três são remakes de episódios da série original, e uma é inédita. A produção é de Steven Spielberg, que também dirigiu um dos segmentos. Vários atores que participaram da série reaparecem. Note-se, de passagem, que esse formato de filme (longa-metragem composto de várias histórias mais curtas, quase sempre de terror) andou bastante em voga durante os anos 80 – posso lembrar de pelo menos mais dois exemplos: Nightmares ('Pesadelos Diabólicos'), de 1987, e Tales from the Darkside ('Contos da Escuridão'), de 1990. E deve haver outros. Puxa, que nostalgia bateu agora…

Dança Macabra, vamos admitir, parece ter uma organização um tanto caótica ("organização caótica"… Isso não é uma contradição?), fato para o qual o autor, de forma absolutamente honesta, já nos havia advertido em sua introdução; parece uma mistura de caderno pessoal de anotações, trechos de roteiros de palestras, e até mesmo apontamentos de tópicos levantados em conversas com amigos que também estavam envolvidos, de uma forma ou de outra, com a ficção de terror. Há, é claro, capítulos dedicados à ficção impressa, ao cinema, à TV e até ao rádio, mas o autor parece ter achado impossível se restringir, em cada um deles, àquele que deveria ser seu assunto específico: fazer isso implicaria em perder inúmeras oportunidades de traçar paralelos e construir ligações interessantes. E, para falar a verdade, essa ligeira balbúrdia acaba por ter um efeito positivo: dá ao produto final um ar mais informal e simpático, evitando o ranço de academicismo que poderia facilmente se formar num trabalho desse tipo.

A prosa ágil e por vezes irônica de King é tão agradável de acompanhar neste ensaio quanto em qualquer de seus trabalhos de ficção, mas não dá para fechar os olhos aos defeitos, e o maior deles, ou, ao menos, eu senti assim, é algo que talvez só seja um defeito para leitores estrangeiros como nós: o tom excessivamente norte-americano do texto, em geral concretizado nas constantes menções a coisas e principalmente pessoas que não temos ideia de quem sejam. Não me refiro a escritores ou cineastas, pois, embora muitos dos autores e obras dos quais o autor fala sejam mesmo desconhecidos para nós, eles são pertinentes ao assunto, e acabam se tornando parte do nosso acervo de referências, mesmo que não os tenhamos lido ou assistido e, por consequência, só os conheçamos por meio do que King diz; o que por vezes incomoda são as pencas e mais pencas de nomes de esportistas, políticos, cantores, apresentadores, celebridades locais e outros tipos que só um norte-americano, e digo mais, em muitos casos só um norte-americano daqueles dias, poderia saber quem eram. (Calma! Eu sei quem foram Eddie Cochran e John F. Kennedy, mas há nomes muito mais obscuros que esses, que não consigo me sentir culpado por não conhecer.) Além disso, noto em King uma dificuldade que eu também tenho: é duro resistir à tentação de incluir uma informação interessante ou um comentário mordaz quando eles nos vêm à cabeça no meio de uma frase, mesmo sabendo que, por amor à concisão e à clareza, deveríamos fazer o sacrifício. Isso resulta em longas interpolações que, não raro, fazem com que o leitor perca completamente o fio da meada e precise voltar atrás, reler a parte da frase que estava antes dessa intromissão, e pular para o que está depois, para conseguir juntar os sentidos. Esse cacoete, por sua própria natureza, aparece com muito mais frequência num ensaio que num texto de ficção; felizmente, a estrutura do ensaio permite o uso de notas de rodapé (às quais King, por sinal, recorre a toda hora), o que minimiza o problema. É preciso lembrar, também, que Dança Macabra foi escrito quando King tinha apenas 33 anos – e, como escritor não é jogador de futebol, essa era uma idade bastante jovem. Mais tarde, ao longo do tempo, ele iria lixando essa aresta.

Dança Macabra é interessante por ao menos duas boas razões: além de nos levar a uma compreensão mais profunda do fenômeno do terror na cultura popular do século XX, também traz informações sobre o próprio King que todos os fãs do escritor certamente vão apreciar conhecer – tanto informações sobre seu background por meio das partes autobiográficas, quanto sobre seu modus operandi e o porquê de algumas características que são indissociáveis de sua obra. Pena que a qualidade da edição nacional deixe tanto a desejar: há muitos erros de concordância, e inúmeros nomes próprios estão grafados errado (o escritor de ficção científica Poul Anderson virou "Paul Andersen", e Robert W. Chambers, o autor de O Rei de Amarelo, virou "Chalmers", entre muitos outros exemplos); além de tudo, até mesmo a fonte usada não é das que tornam a leitura mais confortável, sinto dizer. Na época desta edição (2003), as obras de King eram publicadas no Brasil pela Objetiva; não sei qual é a relação entre essa editora/selo e a Suma de Letras, que as publica atualmente, mas, por ocasião da transição, vários dos livros continuaram a ser impressos com as mesmas capas e o mesmo visual, mudando apenas o selo na lombada e no canto inferior direito de cada capa. Em todo caso, tenho a impressão de que as edições mais recentes são mais bem cuidadas. Espero não me decepcionar! Bons pesadelos a todos.