quinta-feira, março 23, 2023

O Gênio do Crime

Devo meu primeiro contato com a obra de João Carlos Marinho (1935-2019) ao meu colega e amigo Fábio, que estudou comigo da quinta à oitava série, lá na segunda metade da década de 80, e isso aconteceu de um jeito muito legal. Sempre fui o "leitor da turma", talvez o único entre 30 e poucas crianças que realmente lia por prazer. Como o Fábio e eu já tínhamos essa camaradagem e conversávamos sobre tudo, eu naturalmente comentava com ele sobre as histórias que estava lendo ou havia lido, falava sobre como ler é legal, e, com o tempo, isso despertou sua curiosidade e fez com que ele também começasse a ler. Depois que terminamos o ensino fundamental eu o vi poucas vezes, e agora faz muitos anos que não tenho notícias dele; espero que tenha mantido o hábito, e, se assim for, posso somar isso ao pequeno rol das coisas boas que fiz na vida. Porém, na época tive uma recompensa mais imediata e mais concreta: uma vez mordido pelo bicho da leitura, o Fábio também começou a fuçar a biblioteca da escola, e eventualmente me dava dicas de coisas interessantes com as quais eu ainda não havia topado. Foi dessa forma que vim a conhecer pelo menos dois nomes-chave da recente literatura infanto-juvenil brasileira: Pedro Bandeira, com seu excelente A Droga da Obediência, que se tornaria o piloto da aclamada série Os Karas, e o próprio João Carlos (ou J. C.) Marinho, com O Gênio do Crime.

E O Gênio do Crime começa falando sobre uma coisa que marcou e ainda marca muitas infâncias: álbuns de figurinhas. É claro que eles existem até hoje, mas, embora possa ser só impressão minha, me parece que antigamente esse filão era bem mais explorado, talvez porque a molecada de décadas passadas não tivesse à disposição tantas opções de diversão quanto as crianças de hoje. Havia até editoras cuja principal área de atuação era a criação de álbuns. Eu mesmo nunca fui um dos maiores adeptos desse hobby, que me lembre tive dois álbuns durante toda a infância, um de bichos e outro dos personagens da Disney, mas lembro que todo ano saíam vários, a maioria com repercussão modesta, mas havia sempre um ou dois que viravam febre entre a garotada. Alguns álbuns eram destinados às crianças em geral, enquanto outros visavam claramente os meninos ou as meninas (hoje em dia não faltaria um imbecil lacrador para "problematizar" isso). Os álbuns de futebol, por exemplo, eram território dos meninos, e um deles (fictício, é claro) é o mote para esta aventura.

É preciso ter em mente que o livro foi publicado originalmente em 1969, antes da promulgação da lei 5.768, de 1971, que proibiu a realização de concursos com distribuição de prêmios vinculados a coleções de figurinhas. De fato, nos álbuns que eu tive, vinha impressa na contracapa a informação de que todas as figurinhas (que o texto chamava de "cromos") eram fabricadas e distribuídas em quantidades iguais, não havendo, portanto, "figurinhas difíceis", e também a de que o preenchimento do álbum não dava direito a quaisquer prêmios. No livro, um álbum de figurinhas de futebol se tornou mania entre os garotos, e, além da curtição de colecionar, há também um concurso que oferece a quem completar a coleção um conjunto de camisas do time favorito e uma bola oficial – coisas que os meninos da época, e desconfio que também muitos dos de hoje, matariam para ter. O garoto Edmundo, como todo mundo (hehehe) está fazendo de tudo para completar seu álbum, e já faz muito tempo que só lhe falta uma figurinha, a do jogador Rivelino, um dos craques mais admirados daquela época que também foi a de Pelé, Garrincha e outras lendas. É quando seu amigo Pituca vem com a informação de que há um cambista no centro de São Paulo que vende as figurinhas difíceis, naturalmente que por um valor muito superior ao de "mercado". Dessa forma Edmundo completa o álbum e, em companhia de Pituca, vai até a fábrica de figurinhas para reclamar seu prêmio – e encontra lá um ajuntamento de garotos que vieram com o mesmo objetivo, só que os prêmios não estão sendo entregues, o que gera tanta revolta que acaba num quebra-quebra. A fábrica está para ser incendiada pelos moleques enfurecidos, e a coisa só não chega a vias de fato graças à intervenção de Edmundo, que convence os outros a exigir os prêmios pelas vias legais.

Dias depois, Edmundo recebe em casa a visita do dono da fábrica, seu Tomé, que lhe conta seu drama: há uma quadrilha de falsários fabricando réplicas perfeitas das figurinhas difíceis e vendendo-as por altos preços para a garotada. Com isso, a quantidade de álbuns cheios está atingindo patamares absurdos, e ele, na obrigação de dar os prêmios prometidos, está rapidamente se aproximando da falência. Seu Tomé viu, da janela de seu escritório, o início de tumulto na frente de sua fábrica, e viu também como Edmundo convenceu os outros a desistir do vandalismo e fazer as coisas dentro da lei. Impressionado com a coragem e a presença de espírito do garoto, o industrial vem pedir a ele que tente descobrir a fábrica clandestina, já que, como diz, figurinhas são coisa que pertence ao mundo das crianças, e um adulto investigando despertaria suspeitas. É claro que os pais de Edmundo vetam a ideia na hora, mas o garoto não resiste à tentação de uma aventura detetivesca batendo em sua porta, e decide ajudar mesmo sem o consentimento deles. Ao seu lado estão Pituca e o Bolacha, também conhecido como "o gordo". E o gordo… bem, é o gordo.


Quem começa a ler O Gênio do Crime tem a impressão de que Edmundo vai ser o herói, e é fato que, nas partes da aventura que envolvem ação, que exigem coragem e agilidade, ele é o membro da turma que se sobressai; o Bolacha, por outro lado, tem outra coisa: miolos. Pituca ajuda, mas é basicamente um papagaio-de-pirata na história, já que não é tão arrojado quanto Edmundo e muito menos tão esperto quanto o gordo.

Pois não é por acaso que a série de livros que cresceu a partir de O Gênio do Crime, e da qual Marinho deixou 13 volumes, não se chama As Aventuras da Turma do Edmundo, e sim As Aventuras da Turma do Gordo. Esse personagem sem nome, conhecido apenas pelos apelidos Bolacha, Bolachão ou "o gordo" (sem maiúscula) é o que realmente movimenta as tramas. Vendo com os olhos de hoje, é mais ou menos claro que, se ele fosse uma pessoa real, diríamos que sofre de um grau leve de autismo: distraído, volta e meia está com a cabeça longe, como num trecho impagável em que todos estão discutindo o caso em investigação, exceto o gordo, que está com o olhar parado e não abre a boca. Quando interpelado, nem ele parece saber direito no que estava pensando: "acho que era numa vaca que tem na fazenda do meu pai". Quando resolve raciocinar, porém, ele é brilhante, tanto que demonstra ser o único capaz de quebrar o sofisticado esquema de despistamento que o líder dos falsários (o tal gênio do crime do título) arquitetou para impedir a localização de sua fábrica clandestina a partir dos cambistas que vendem as figurinhas. Bolacha consegue deixar para trás até mesmo Mr. John Smith Peter Tony, renomado detetive escocês que também está envolvido na investigação.

O Gênio do Crime é o tipo de livro que, depois de ter lido na infância ou adolescência, você tem vontade de apresentar aos seus filhos (eu certamente teria essa vontade, caso tivesse filhos). Até a pontuação desleixada contribui para o estilo coloquial, e o resultado é tão bom que eu, sempre bastante chato quando se trata de correção de texto em livros, consegui fechar um olho para essa característica, de tão agradável que flui a leitura. Uma aventura para garotos, protagonizada por garotos, cheia de boas ideias e narrada com uma baita eficiência… Exigir ainda mais que isso deste pequeno livro seria muito injusto, mas o fato é que sim, ele oferece mais: um vislumbre de como era a infância em São Paulo na década de 60 – muito diferente da de hoje, e isso é fato em São Paulo como no resto do mundo. Destaque para o jogo conhecido como "abafa" ou "bafo", que consistia em colocar figurinhas no chão, com a face para baixo, e tentar virá-las com tapas; como as próprias figurinhas eram a aposta envolvida, esse era outro meio do qual os garotos dispunham para tentar conseguir as que faltavam em seus álbuns. Cheguei a ver isso quando eu ainda era bem pequeno, mas pouco depois, lá por meados da da década de 80, as figurinhas passaram a ser autocolantes, o que foi prático para os colecionadores, mas também condenou o jogo de abafa ao gradual esquecimento, já que as novas figurinhas eram mais rígidas e pesadas, difíceis de virar. E a garotada de hoje, provavelmente, nem sabe que houve um tempo em que as figurinhas não eram autocolantes, tal como pensam que a TV já foi inventada com o controle remoto. O tempo passa mesmo, não tem jeito.


Para concluir, como de costume, um pouco de informação prática. O exemplar que tenho (comprado em sebo, como boa parte da minha biblioteca) é da edição do Círculo do Livro, que inclui também O Caneco de Prata, uma "aventura surrealista" na definição do autor, que trata de um campeonato de futebol entre escolas, narrado de forma… bem… surrealista, enquanto paralelamente também explora a paixão do gordo por Berenice, uma menina que ele conheceu em O Gênio do Crime. Curiosamente, como vocês talvez consigam distinguir na imagem do início deste post, e por razões que desconheço, essa edição do Círculo do Livro grafou o nome do autor como João Carlos Marinho Silva, embora ele sempre tenha assinado suas obras como apenas João Carlos Marinho – e fica ainda mais difícil de entender se levarmos em consideração que seu nome completo era João Carlos Marinho Homem de Mello, sem "Silva" nenhum. Todas as Aventuras da Turma do Gordo estão disponíveis em volumes individuais pela editora Global, que também oferece um box contendo a "saga" completa. Se vocês estiverem procurando por bons livros para dar de presente às crianças ou pré-adolescentes das suas famílias, ou simplesmente quiserem revisitar suas próprias infâncias por algumas horas, essa é uma ótima pedida.

quinta-feira, novembro 17, 2022

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro

Guillermo del Toro já foi assunto aqui no blog por várias vezes, por conta de Hellboy, da Trilogia da Escuridão e da série de TV derivada, The Strain, de seu envolvimento com a trilogia cinematográfica O Hobbit… Que eu me lembre, é isso. Existem vários outros de seus trabalhos que admiro pacas, filmes como Cronos (1993), A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), entre outros, que também poderiam virar assunto, e talvez ainda virem. E o cara sempre volta: desta vez, com a série antológica O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro, cuja primeira temporada, com oito episódios, ficou disponível na Netflix agora em outubro.

Os primeiros comentários que ouvi e li, antes de ter contato direto com o material, foram no sentido de que se tratava de uma série bastante macabra e pesada, feita sem aliviar a mão, fosse nos conceitos perturbadores ou nas cenas aflitivas – e esse é um lado que Del Toro, como muitos autores ou realizadores do gênero fantasia, sabidamente possui: basta lembrar de O Labirinto do Fauno, que tem cenas delicadas de magia e encantamento, mas tem também um punhado de criaturas horripilantes e uma cena de um homem sendo assassinado a sangue frio a golpes de garrafa. É fato que, aqui, os episódios são dirigidos por outras pessoas, mas, na qualidade de produtor executivo e criador do conceito da série, coube a Del Toro a escolha dos diretores e, presumivelmente, a supervisão geral, de modo que podemos dizer que seu estilo pessoal perpassa tudo. Ele aparece no início de cada episódio, fazendo um breve comentário enigmático sobre o que veremos a seguir, e apresentando o diretor ou diretora. Por sinal, a julgar pelo rápido levantamento que fiz na internet, são, em sua maioria (mas nem todos), diretores pouco conhecidos, com relativamente pouca coisa em seus currículos, pelo menos enquanto diretores – a australiana Jennifer Kent, por exemplo, que dirigiu O Murmúrio, último episódio desta primeira temporada, teve uma extensa carreira como atriz, mas assina a direção de apenas três filmes até o momento (é verdade que um deles é o muito comentado e elogiado O Babadook, que ainda preciso ver). O importante é notar que Del Toro parece estar apostando em diretores que ainda estão em ascensão, sejam os que ainda não acumularam um grande currículo por serem relativamente jovens, ou os que sempre trabalharam em outras funções no cinema ou TV e estão agora se acostumando com a cadeira da direção.

Assisti a essa primeira temporada num espaço de alguns dias e, por tratar-se de uma série antológica, quer dizer, com cada episódio contando uma história fechada e independente, aplica-se, também aqui, o que sempre digo a respeito de livros de contos: existem altos e baixos e isso é natural – mais que natural, é inevitável. A impressão geral foi muito favorável, e torço para que venham mais temporadas num futuro relativamente próximo. Também à semelhança do que tenho feito com livros de contos, não pretendo comentar cada episódio em detalhes; falarei daqueles que, como espectador, eu tiver achado notáveis e/ou que apresentem alguma… hã… curiosidade.

Muitos fãs de Guillermo del Toro devem ter pensado o mesmo que eu pensei sobre esta série: que faltou ter ao menos um episódio dirigido por ele. Como se fosse para compensar em parte isso, há dois episódios baseados em contos de sua autoria. O primeiro, Lote 36, é dirigido por outro Guillermo, o Navarro, também mexicano e seu colaborador antigo, que trabalhou como diretor de fotografia em vários de seus filmes. Foi inevitável pensar em Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, mas só os títulos é que são parecidos. A história se ambienta em janeiro de 1991 – uma datação tão precisa é possível porque o episódio começa com um personagem vendo na TV o pronunciamento do presidente George Bush (pai) logo após o primeiro ataque aéreo americano contra Bagdá, que deu início à fase "quente" da Guerra do Golfo, que já se arrastava desde meados do ano anterior. O protagonista (que não é o personagem da primeira cena) é Nick Appleton, um veterano do Vietnã que está devendo a um agiota, o qual lhe tem feito ameaças regularmente. Para tentar conseguir o dinheiro que pode ser a diferença entre a vida e a morte, Nick recorre a diversos expedientes, e um deles requer uma breve explicação… Nos Estados Unidos são comuns os self storages, lugares onde as pessoas podem alugar depósitos individuais, numerados, para pôr a tralha que não têm mais onde guardar em casa; se o locatário de um depósito morre sem herdeiros, desaparece ou deixa de pagar o aluguel durante um determinado número de meses, a administração do storage procede a uma espécie de "despejo": o conteúdo do depósito é levado a leilão, e o comprador tem um prazo para retirar tudo, a fim de que o espaço possa ser alugado novamente. Um "lote", então, é a totalidade do conteúdo de um desses depósitos abandonados. O detalhe interessante, por assim dizer, é que esses leilões são uma loteria: os participantes fazem seus lances sem saber o que vão encontrar quando abrirem o lugar. Pode estar cheio de objetos raros que renderão uma pequena fortuna num antiquário, ou conter apenas pilhas de jornais velhos, mobília quebrada, roupas roídas por traças, e todo tipo de quinquilharia sem valor que pessoas idosas (geralmente) guardaram ali porque seus familiares estavam ameaçando jogá-las fora. Nick, então, arrisca o dinheiro que tem comprando alguns desses lotes, na esperança de encontrar algo que dê lucro. O mais recente é o de número 36, que pertenceu ao mesmo "velhote esquisito" desde que o storage começou a funcionar, logo após o fim da Segunda Guerra, e agora o velhote acaba de morrer. Em meio à costumeira montanha de inutilidades empoeiradas, Nick descobre um móvel valioso e curioso, uma mesa feita especialmente para a invocação de espíritos, e, dentro de suas gavetas, três livros muito raros e sinistros. O ex-soldado é do tipo cético – e mais que isso, um cético chato: quando um especialista em ocultismo, que ele procura em busca de uma avaliação dos itens, tenta lhe explicar sobre os mistérios e histórias sombrias envolvendo aqueles livros, ele interrompe impaciente, pois a única coisa que lhe interessa é saber quantos dólares pode conseguir pelo conjunto. Tudo o que posso dizer sem revelar mais do que devo é que ele vai ver-se numa situação na qual seu ceticismo não lhe servirá de nada. Nick é o tipo de protagonista do qual é importante que o espectador não goste, e o roteiro se encarrega disso: além de sua rabugice, ele é preconceituoso, mostrando uma evidente má vontade para com negros, latinos e, provavelmente, para com qualquer estrangeiro – embora eu lhe dê razão num ponto, o de não gostar do fato de que aparentemente só determinados tipos de pessoa é que têm o direito de exigir respeito e de se indignar caso não o recebam: negros são protegidos pela lei e pelo senso comum contra ofensas de cunho racial, mas, por outro lado, eles próprios são livres para dirigir ofensas (inclusive de cunho racial) contra brancos, à vontade, sem que nada aconteça; já era assim em 1991, e hoje muito mais. O mesmo se aplica aos gays em relação aos héteros, às mulheres em relação aos homens e por aí afora: basta apresentar o seu crachá de membro de qualquer "minoria oprimida", que você tem carta branca para fazer e dizer o que quiser, incluindo as coisas mais escrotas e absurdas, e ninguém pode protestar, sob pena de ser rotulado de ista e fóbico. Desculpem-me os politicamente corretos, mas isso não é certo; a verdade não deixa de ser verdade só porque quem está dizendo-a é um sujeito desagradável como Nick Appleton. Mas esse não é o ponto aqui: Lote 36 é um episódio forte e envolvente, um excelente pontapé inicial para a série, além de nos deixar com vontade de ler mais dos trabalhos de Del Toro no campo da literatura.

O segundo episódio, Ratos de Cemitério, é baseado num conto de alguém chamado Henry Kuttner, nome que não me é estranho e que pretendo pesquisar. O episódio é várias coisas, mas, antes de mais nada, é claustrofóbico, motivo pelo qual minha namorada, Cintia, achou-o uma experiência bastante desagradável – e, pelo que ela me contou depois, foi ainda pior para uma amiga, que ficou tão incomodada que nem foi até o final: "dropou" o episódio e a série. E eu entendo: há muitas maneiras de abordar o terror, muitas "pontas por onde pegá-lo" (acho que a expressão é de Stephen King, mas não tenho certeza), e a claustrofobia é uma delas, usada ao longo da história do gênero por muitos autores e diretores. Aqui especificamente, a maior parte da ação transcorre debaixo da terra, dentro de túmulos ou em túneis tão apertados que mal dá para uma pessoa rastejar por eles, e, para algumas pessoas, ambientes apertados, mesmo vistos numa simples tela, podem ser desesperadores. O ano é 1919 (assim consta na lápide de uma jovem sepultada poucos dias antes) e o local é a cidade de Salém, Massachusetts, palco dos famosos julgamentos de bruxaria no século XVII. O protagonista é um homem de nome Masson, que, assim como Nick Appleton, está gravemente endividado. Masson vive de perambular pelos cemitérios saqueando sepulturas, "aliviando" os mortos de quaisquer objetos de valor com os quais eles tenham sido enterrados, mas sua atividade não lhe tem rendido muito ultimamente, e seu credor está pressionando. É então que ele fica sabendo da morte de um figurão da sociedade, um comerciante muito rico e influente, cuja viúva faz questão de enterrar com ele uma de suas posses mais valiosas: um sabre cerimonial que o falecido ganhou de presente do próprio rei da Inglaterra. É claro que Masson imediatamente coloca o túmulo do comerciante no topo de sua lista de prioridades, mas, embora ele esteja acostumado a brigar com ratos em suas andanças noturnas em cemitérios, nem imagina o que vai encontrar desta vez. O episódio é mesmo aflitivo, mas também tem toques irresistíveis de humor (geralmente negro). O ator David Hewlett está magistral no papel de Masson. Vincenzo Natali (de Cubo e Monstro do Pântano) dirige.

Guillermo del Toro sempre foi um grande fã de H. P. Lovecraft. Um de seus sonhos já de muitos anos, e bem conhecido por quem acompanha sua carreira, é dirigir um grandioso filme adaptando um dos contos mais ambiciosos do escritor, Nas Montanhas da Loucura, mas, pelo que li tempos atrás, ele teria brigado feio com os produtores em potencial porque eles queriam meter uma trama romântica na história (!). De vez em quando circulam rumores de que o projeto está em vias de finalmente engrenar, mas, até o momento em que escrevo, nenhum boato sobre o qual eu tenha lido me pareceu ser mais que isso – boato. Enquanto Nas Montanhas da Loucura não acontece, Del Toro nos traz em seu Gabinete as adaptações de duas outras histórias de Lovecraft, estas de porte mais modesto, mas nem por isso menos cultuadas, e muito merecidamente, pelos fãs do autor: O Modelo de Pickman e Os Sonhos na Casa da Bruxa.

O primeiro, dirigido por Keith Thomas e estrelado por Ben Barnes (de O Retrato de Dorian Gray e Westworld), é apenas frouxamente inspirado no texto original, e eu entendo o motivo: o conto é muito discursivo, o que não funcionaria bem na tela. Barnes interpreta o protagonista Thurber, que no conto era também o narrador, e que no episódio ganhou um primeiro nome, William. Nesta versão, Thurber, ainda rapazote, é um dos mais destacados estudantes de arte na Universidade Miskatonic (fundada em 1690 e cuja simples menção deixa qualquer fã de Lovecraft de orelha em pé) quando sua turma recebe um novo aluno, um tal Richard Upton Pickman, um sujeito mais velho, já nos seus 30 ou quase isso, e de passado misterioso. Thurber imediatamente sente uma curiosidade intensa a respeito do novo colega, que demonstra já ser um artista de grandes capacidades, dotado de um talento natural aperfeiçoado por um número muito maior de anos de prática do que qualquer um de seus colegas pós-adolescentes pode ter tido – mas com um detalhe: seja qual for o motivo artístico proposto, Pickman transforma-o em imagens assustadoras, repletas de sugestões de elementos do oculto, da feitiçaria e do além-túmulo, e sempre com uma habilidade prodigiosa. No início é Thurber quem repetidamente procura a companhia de Pickman (que claramente preferiria ser deixado só), fascinado que está tanto por sua arte macabra quanto por sua personalidade misteriosa – mas então a narrativa dá um salto de vários anos, e encontramos um William Thurber já maduro, casado e com um filho, além de membro conceituado da comunidade dos artistas em Massachussetts; nesse ínterim Richard Pickman reaparece, depois de uma longa ausência. Agora é Pickman quem parece ansioso por reatar a antiga amizade, declarando que o julgamento crítico de Thurber é valioso para ele, enquanto Thurber, tomado de desagradáveis suspeitas a respeito de qual pode ser a verdadeira origem da arte de Pickman, prefere não ter ligações com o pintor, e, principalmente, não gosta da ideia de vê-lo rondando sua família… Não irei mais adiante para evitar spoilers, o que é ainda mais importante aqui porque, como a adaptação é muito livre, o episódio reserva surpresas inclusive para quem leu a história, e longe de mim querer estragá-las. Pode-se discutir (e seria uma discussão deveras interessante) se a versão de O Modelo de Pickman trazida por Del Toro e Keith Thomas ainda é Lovecraft, mas, mesmo que não seja, é inegável que o roteirista Lee Patterson soube apropriar-se do legendarium do autor e com ele produzir uma história digna de respeito, que consegue manter-nos durante uma hora inteira com os olhos pregados na tela. Barnes não surpreende – considero-o um ator correto, mas talhado para papéis de galã e que dificilmente nos apresentará algo muito diferente disso; por outro lado, Crispin Glover, no papel de Richard Pickman, é um pesadelo à parte (no sentido elogioso!), com uma atuação ao mesmo tempo feroz e irônica e um olhar que é simultaneamente o de um visionário que enxerga outros mundos e o de um maníaco.

Acho necessário fazer um parágrafo separado apenas para comentar o magnífico trabalho de arte que vemos em O Modelo de Pickman. É atordoante pensar na quantidade de horas de trabalho investidas por um artista (aliás, provavelmente vários) para criar pinturas que a câmera iria mostrar apenas de relance (e confesso que apertei o pause várias vezes para tentar analisar mais detidamente as imagens). Seria interessante saber se todas essas pinturas foram feitas especialmente para o episódio ou se algumas delas eram trabalhos preexistentes, usados com permissão dos autores – pois, como já comentei em outro lugar, muitos artistas plásticos fãs de Lovecraft já fizeram suas tentativas de materializar os terríveis quadros de Pickman a partir das descrições fornecidas no texto. As pinturas de Pickman em si eram a parte que mais me intrigava nesse conto, e continuam a sê-lo nesta adaptação. Assumindo todos os riscos (tal como o de enlouquecer), eu bem que gostaria de fazer uma visitinha ao atelier dele.

A outra adaptação de um conto de Lovecraft presente nesta temporada é Os Sonhos na Casa da Bruxa, com direção de Catherine Hardwicke (Crepúsculo) e tendo como ator principal Rupert Grint (o Rony Weasley dos filmes de Harry Potter). Numa comparação com O Modelo de Pickman, Os Sonhos na Casa da Bruxa até tem um pouquinho mais de correlação com o conto que lhe deu origem – e, apesar disso, entrega um resultado menos bom. No conto, o protagonista Walter Gilman é um estudante de graduação da Universidade Miskatonic que, curiosamente, mistura sua exaustiva dedicação a alguns dos campos mais complexos da alta matemática com um interesse por folclore e pelas histórias dos julgamentos de bruxaria – e acaba fundindo os dois campos de conhecimento. Gilman acredita, ou, melhor dizendo, tem certeza, com base nas conclusões teóricas da matemática, de que a existência de outras dimensões é um fato, ao qual só falta a prova material. Ele acredita também (e isso sim é uma crença) que as antigas bruxas conheciam o segredo de como viajar entre as dimensões; as velhas histórias de voos noturnos em vassouras ou no dorso de animais mágicos poderiam não ser mais que uma representação simbólica disso. Dos registros que leu sobre a época dos julgamentos, chamou-lhe especial atenção a história de uma tal Keziah Mason, que teria fugido da Cadeia de Salém em 1692. A casa onde morou essa célebre bruxa ainda existe, e Gilman consegue alugar o exato quarto onde ela viveu e, presumivelmente, praticou seus feitiços. As paredes da decrépita habitação estão rabiscadas com símbolos e diagramas que todos sempre supuseram tratar-se de algum tipo de escrita demoníaca, mas que o estudante reconhece como sendo matemática avançadíssima, um tipo de conhecimento que deveria ser impossível para uma velha comum e provavelmente analfabeta do século XVII. E, ao dormir naquele quarto, Gilman passa a ter sonhos cada vez mais perturbadores envolvendo Keziah e seu suposto "familiar", uma criatura semelhante a um grande rato com cara humana (um "familiar", ao que se acreditava, era um pequeno demônio em forma animal, ou semi-animal, que o diabo dava de presente a cada bruxa por ocasião de sua iniciação, e que prestava serviços a ela). Para Lovecraft, a obsessão intelectual de Gilman, sua determinação de provar perante a ciência que outras dimensões existem e que viajar entre elas é possível, era motivação válida e plenamente suficiente para seu protagonista; nesta adaptação, o roteirista deve ter achado que um objetivo tão abstrato e impessoal quanto esse não atrairia a empatia do público para o personagem, e assim, inventou para ele uma história trágica: Gilman, na infância, tinha uma irmã gêmea a quem era muito ligado, e que morreu em tenra idade, com o detalhe de que o pequeno Walter a viu ser arrastada, em sua forma espiritual (ou fantasmal, se quiserem) para uma espécie de limbo que ficaria em outra dimensão, enquanto seu corpo físico ficava para trás. Daí em diante, o rapaz ficou obcecado por parapsicologia, por fenômenos mediúnicos e pela possibilidade da comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, vindo inclusive a fazer parte de uma sociedade espiritualista. É por esse caminho que ele acaba indo parar no velho quarto de Keziah Mason. Na minha opinião, essa "humanização" da trama pode funcionar para os espectadores que nunca leram Lovecraft, mas os que conhecem o conto vão achar o novo enredo uma coisa prosaica e novelesca, que apaga muito da sensação de estranheza extraterrena que conferia à história original a maior parte de seu interesse; além disso, a novidade de fazer com que as viagens de Gilman entre as dimensões sejam possibilitadas por uma espécie de poção foi, a meu ver, um recurso bastante ordinário. Visualmente, achei a representação de Keziah exagerada: poderia ficar mais assustadora se a apresentassem simplesmente como uma velha de olhar maligno em trajes de época, em vez de um espectro hollywoodiano padrão, totalmente criado em CG, que poderia ter saído de algum filme da franquia Invocação do Mal ou de qualquer outro "terrorzão de shopping". Por outro lado, Brown Jenkin, o familiar da bruxa, ficou perfeito – adequadamente macabro.

A Autópsia, dirigido por David Prior, aposta no já tantas vezes bem-sucedido crossover entre ficção científica e terror, propondo uma versão ainda mais assustadora para o clássico Invasores de Corpos (1978). O veterano ator F. Murray Abraham (de quem eu sempre me lembro como o compositor Antonio Salieri, o rival de Mozart em Amadeus) interpreta o Dr. Carl Winters, um igualmente veterano médico legista que atende ao chamado de um velho amigo, o xerife Nate Craven, delegado de uma outrora tranquila cidadezinha mineradora que, há algum tempo, vem sendo assolada por uma onda de desaparecimentos; agora aconteceu um acidente inexplicável na mina que emprega a maior parte da população e que é a base da economia da cidade, tirando a vida de vários trabalhadores. Winters confidencia ao amigo que está sofrendo de um câncer terminal e tem poucos meses de vida – e faz isso pouco antes de entrar na gelada e tétrica sala onde realizará sozinho a autópsia dos mineiros mortos e fará descobertas horrendas. O episódio é muito bom, tenso do início ao fim e com um conceito de arrepiar os cabelos. Só estejam avisados de que, como ele trata em grande parte de autópsias, vocês poderão achar algumas cenas um tanto difíceis de assistir. Eu achei.

Como tantas vezes, o melhor de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro ficou para o final: é justamente O Murmúrio (The Murmuring), dirigido pela já citada Jennifer Kent e tendo como principais atores Essie Davis (também australiana e que atuou em O Babadook) e Andrew Lincoln (da série The Walking Dead). E, assim como o primeiro, este último episódio da temporada é baseado num conto de Del Toro. O primeiro comentário que me veio à cabeça ao terminar de assisti-lo foi que nunca devemos achar que determinado tema já está batido demais para render uma boa história de terror, seja na literatura, cinema ou TV: parece-me que o velho tema da casa assombrada, contanto que seja explorado com competência, nunca deixará de causar calafrios. A história se passa nos anos 50 e os protagonistas são Nancy e Edgar Bradley, um casal de ornitólogos que recentemente passou por uma tragédia pessoal, a perda da filha ainda bebê. Fazendo da dedicação ao trabalho sua terapia, os dois partem para uma pesquisa de campo a fim de estudar os hábitos dos pilritos (pássaros semiaquáticos e migratórios, espécie comum na Europa), o que exigirá que passem um longo tempo numa desabitada região de charcos – o local não é nomeado, mas parece ficar em alguma parte das Ilhas Britânicas. Lá, o casal se aloja numa grande e antiga casa, completamente isolada, parecendo ser a única na pequena ilha onde fica. Está desabitada há 30 anos, mas os retratos nas paredes sugerem que já foi a moradia de uma família perfeitamente normal e feliz – um casal e seu filho pequeno. Nancy se intriga imaginando por que eles teriam partido deixando para trás seus móveis e todos os objetos pessoais, incluindo até mesmo um grande número de cartas, mas seu trabalho com os pilritos ocupa demais seu tempo e energia para que ela possa pensar muito a respeito… Até começar a ouvir e ver certas coisas na casa. Coloquei nessa ordem de propósito: primeiro ela ouve, em meio às horas e horas de gravações dos sons dos pássaros, uma voz infantil sussurrando que está com frio. É indispensável observar que, de acordo com as explicações da própria Nancy, murmuring, em inglês, pode ter dois sentidos: um, bem conhecido e de uso comum, é o de falar baixo, sussurrar; o outro se refere às formações que bandos de pássaros em voo podem assumir, às vezes sugerindo certas figuras (eu nunca tinha ouvido falar nessa segunda acepção). Mais tarde, ela passa a ver o menino andando pela casa às escuras durante a madrugada, às vezes encharcado, com a roupa escorrendo água… É apavorante de verdade, e nisso há muito mérito da diretora, cuja condução é ora sensível, ora implacável. Outra coisa que o espectador nota é que o fato de apenas Nancy ter consciência dessa presença não pode ser mero acaso; Edgar declara repetidamente que nunca viu nem ouviu nada. Isso pode significar, de modo implícito, que, embora tenha sofrido (e ainda sofra) tanto quanto a esposa com a morte da filhinha, ele já conseguiu "ir em frente"; Nancy ainda não. A incapacidade dela de falar sobre sua perda, e o fato – observado pelo marido – de que não verte nenhuma lágrima, indicam que toda a sua dor está trancada dentro dela, atormentando-a dia a dia. Talvez seja essa dor recolhida o que a coloca em sintonia com a dor daqueles que moraram (e aparentemente ainda moram) naquela casa. O Murmúrio chega muito perto da perfeição, conseguindo em uma hora o que muitos longas-metragens de terror não conseguem no dobro desse tempo, e reforça minha vontade de conhecer os filmes anteriores de Jennifer Kent, bem como minha expectativa do que mais ela poderá nos trazer no futuro.

Seguindo minha resolução de só entrar em detalhes sobre um episódio no caso de ele ter chamado muito a minha atenção, percebo que acabei falando (mais longamente ou menos) sobre seis dos oito; houve dois episódios dos quais eu não gostei, e por esses passarei muito rapidamente. Um deles foi o terceiro, Por Fora, que, embora abordando temas importantes (até que ponto uma pessoa é capaz de ir em busca de aceitação social e o poder da TV para influenciar comportamentos e criar necessidades), simplesmente não me "pegou"; não consegui construir uma ligação com a protagonista e achei o desenrolar tedioso, de modo que, mesmo que o episódio tenha a mesma duração que a maioria dos outros, com cerca de uma hora, me pareceu muito mais longo que isso. O outro foi o penúltimo, A Inspeção, cujo maior mérito, a meu ver, é o de conseguir imergir com perfeição o espectador na atmosfera dos anos 70 (o ano citado é 1979), por meio do visual dos personagens e da trilha e efeitos sonoros, evocando aquele mundo psicodélico e com tendência ao exagero estético; a fotografia também parece ter sido planejada para remeter a filmes daquela década ou do comecinho da seguinte, como Alien e O Enigma de Outro Mundo – e vamos descobrir que todo o trabalho investido em criar essa semelhança foi com bons motivos, motivos que têm a ver com o roteiro. Infelizmente, esse roteiro nunca chega a dizer a que veio: a maior parte do episódio é preenchida por longas e tediosas conversas entre os personagens, e, quando o componente fantástico é finalmente apresentado, mostra-se genérico, gratuito e jogado de qualquer maneira. Valeu a curiosidade de rever o agora idoso Peter Weller, ator que protagonizou Robocop, um dos melhores filmes de ficção científica de ação da década de 80.

Enfim, Guillermo del Toro fez um belo trabalho criando e produzindo esta série, que, embora irregular, certamente recompensa bem o tempo investido para assisti-la, para os amantes do terror em geral e para os fãs de Del Toro em particular. Pelo que vi na internet, a receptividade do público tem sido boa, o que nos permite cultivar a esperança de que essa primeira temporada não seja a última. Seria excelente se, nas próximas, fossem trazidos contos de outros autores notáveis de terror, fossem antigos ou contemporâneos – Arthur Machen, Edgar Allan Poe, Stephen King, Clive Barker… Mas torço para que, se isso acontecer, as adaptações sejam mais fiéis que as de Lovecraft que vimos. Seria bom, ainda, que Del Toro assumisse a direção em alguns episódios. É esperar para ver.

quinta-feira, agosto 25, 2022

O Minotauro

Meu primeiro contato com a obra de Monteiro Lobato, isso lá nos meus quatro ou cinco anos de idade, foi por meio da primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo para a TV, aquela clássica, com Zilka Salaberry como D. Benta, Jacira Sampaio como Tia Nastácia, André Valli como o Visconde de Sabugosa, entre outros. Mesmo agora, mais de 40 anos depois, lembro nitidamente de muitos detalhes que se tornaram queridos para mim – músicas, cenas específicas, bordões de personagens, as caras dos atores que os interpretavam –, mas nenhuma lembrança é mais vívida que a da fase baseada no livro O Minotauro, por causa da sensação que eu, pequenino, tinha quando o referido monstro aparecia. A fantasia usada pelo ator (na verdade, a máscara e pouca coisa mais) era bem elementar, mas é claro que aos quatro anos de idade eu não tinha critério para avaliar isso, e, quando ele aparecia, andando lentamente, de forma ameaçadora, ao som de uma música tenebrosa, eu, sentadinho no chão diante da velha TV preto-e-branco que tínhamos na época, me encolhia – mas nem pensava em parar de assistir. Lembro-me da sensação com uma clareza espantosa: parecia que uma bola de chumbo se formava instantaneamente no meu estômago, e continuava ali por um bom tempo, mesmo depois que o temível homem-touro saía de cena.

Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com o universo de Lobato quando cheguei à idade escolar, e tive a sorte de ter professoras que me incentivaram a ler (coisa que meus pais também faziam em casa) e tinham especial reverência para com o autor: provavelmente elas próprias o haviam lido na infância. E foi o que eu também fiz. Na já famosa biblioteca do SESI perto de onde cresci (vejam aqui e aqui) existia uma edição em oito volumes contendo todas as histórias do Sítio. Peguei todos emprestados, um por um (sem me preocupar em seguir a ordem numérica), embora precise confessar que "dropei" algumas histórias, como O Poço do Visconde e Aritmética da Emília, porque o que queria eram aventuras, de modo que achei esses livros "didáticos" demais (mas li a História do Mundo para as Crianças de cabo a rabo; sempre tive uma "coisa" com História). Ainda tenho planos de corrigir esses meus deslizes da infância.

Uma coisa da qual eu gostava especialmente era quando Lobato se deixava levar por sua paixão pela Grécia antiga, e os dois maiores exemplos disso são O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules, sendo que falei um pouco sobre este último num post que tratava desse herói. Já o primeiro começa onde termina uma outra história, O Picapau Amarelo, na qual todos os seres e personagens do universo das fábulas e das lendas pedem permissão para se mudarem para o Sítio, e, para acomodá-los, D. Benta compra algumas propriedades vizinhas, usando parte do dinheiro ganho com a extração do petróleo em O Poço do Visconde (essas histórias estão todas encadeadas mesmo). Esse Sítio do Picapau Amarelo estendido vira então uma espécie de versão caipira do Império de Fantasia, e sei que isso dá origem a várias aventuras e surpresas, embora não me lembre mais da maioria delas. Uma das últimas coisas a acontecer é a festa do casamento de Branca de Neve (ela mesma, a do conto de fadas) com Codadade, um príncipe das 1001 Noites, e essa festa é interrompida pelo ataque combinado de todos os monstros da mitologia grega. Na confusão, Tia Nastácia desaparece, e em seguida, não lembro por que, todos os seres da fábula voltam para seus locais de origem. Deduzindo que a velha cozinheira tão querida por todos deve ter sido capturada e carregada por algum dos monstros, D. Benta, seus netos, Emília e o Visconde partem para a Grécia para tentar resgatá-la (nas histórias de Lobato, nem espaço nem tempo são empecilhos para coisa alguma, desde que se tenha imaginação suficiente).

Está claro que, se o objetivo da expedição é resgatar Tia Nastácia das garras de algum monstro mítico, o período histórico ao qual os aventureiros devem se dirigir é aquele anterior à Guerra de Troia, em plena Idade do Bronze, quando se supõe que tenham vivido os grandes heróis gregos como Hércules, Teseu, Jasão e tantos outros; entretanto, o mergulho no passado é feito, por assim dizer, de forma gradual. A primeira parada é a Atenas do século V a.C., o assim chamado "século de Péricles", período em que, sob a administração inteligente desse notável ditador de múltiplos talentos, a cidade conheceu seu apogeu cultural. As Guerras Greco-pérsicas tinham-se encerrado com a vitória dos gregos, e, livres dessa ameaça externa, estes últimos puderam dedicar um volume sem precedentes de recursos e trabalho às artes plásticas, à arquitetura e à literatura. D. Benta, uma senhora de muita cultura, sempre teve esse como seu período favorito na História grega, e acaba decidindo ficar ali mesmo, com sua neta Narizinho, enquanto Pedrinho, Emília e o Visconde continuam sua odisseia no passado em busca de Tia Nastácia. Para isso, os três viajam para os tempos da "Grécia heroica", que, para os gregos dos dias de Péricles, já são um passado remoto. A partir daí, o livro alterna capítulos ambientados nas duas épocas. Como hóspedes de Péricles, D. Benta e Narizinho têm a chance de conhecer grandes vultos das artes, ciências e filosofia da Grécia, como os escultores Fídias e Policleto, o historiador Heródoto, o dramaturgo Sófocles, o filósofo Sócrates, entre outros. Enquanto isso, nos tempos míticos, Pedrinho, Emília e o Visconde sobem o monte Olimpo para xeretar como vivem os deuses, assistem escondidos Hércules liquidar a terrível hidra de Lerna no segundo de seus famosos Doze Trabalhos, e, é claro, vão ao resgate de Tia Nastácia, depois de terem consultado o célebre Oráculo de Delfos para descobrir-lhe o paradeiro.

Mesmo sendo apenas um "aperitivo" para Os Doze Trabalhos de Hércules, livro muito mais extenso e ambicioso, O Minotauro é uma pequena joia da literatura infanto-juvenil brasileira, que, no tempo em que crianças e adolescentes ainda liam livros (bem, pelo menos algumas crianças e adolescentes liam), deve ter plantado em muitas jovens cabeças a primeira noção a respeito da importância verdadeiramente inestimável que a civilização grega teve para o mundo ocidental em todos os aspectos da vida. As conversas que D. Benta mantém com Péricles e seus eminentes convidados fazem a proeza de estarem num nível de compreensão acessível para qualquer criança esperta, sem serem rasas, e estão cheias de "iscas" para a curiosidade infantil, que provavelmente levaram muitos meninos e meninas a quererem saber mais sobre as personalidades e os acontecimentos que são mencionados. (Na época da publicação original, essas informações tinham que ser procuradas em enciclopédias, e por vezes me pergunto se não era melhor desse jeito, já que é uma tendência natural no ser humano dar mais valor àquilo que custou esforço para obter – inclusive conhecimento. Easy comes, easy goes.) E há pelo menos uma fala dela, já perto do final do livro, que só fez ficar mais atual nesses 83 anos que se passaram desde que O Minotauro foi escrito. A convite de Péricles, D. Benta e Narizinho vão assistir, com ele e seus amigos, a uma encenação da tragédia Alceste, de Eurípedes – na época, uma obra que estava estreando. Ao final da peça, conversando sobre ela com Sófocles, D. Benta declara:

– Este drama me fez compreender muita coisa, e sobretudo o que para um povo inteligente significa uma "arte geral".
Sófocles não entendeu.
– Sim, uma arte que interessa a todos da cidade, absolutamente a todos, desde gênios como Sófocles, Péricles, Aspásia e Sócrates, até modestos vendedores de figos, como aquele ali – e apontou para um vendedor de rua, que se sentara perto e que "sentira" o drama de Eurípedes tão bem quanto o próprio autor. – Isto, meu senhor, é o que nos falta no mundo moderno, esta absoluta identidade entre o sentimento do povo e a arte. A arte lá é uma coisa para os eleitos, para as chamadas elites; aqui é para todos, sem a menor exceção – para ricos e para pobres.

O que resta a dizer depois dessas palavras? Não há nada a acrescentar, dá apenas para comentar e ilustrar, e sei de um exemplo que cai como uma luva. Quando minha namorada, Cintia, se cansa do ajuntamento de vizinhos batendo papo na calçada diante de sua porta (é aquele tipo de gente com vocabulário de umas 40 palavras, para quem "caraio" é vírgula, e que parece não saber falar baixo), ela costuma tocar música clássica bem alto. É tiro e queda: não dá 60 segundos e todo mundo some. Quer dizer, esse pessoal está tão idiotizado pela exposição a funk, "sertanejo universitário" e outras atrocidades, que positivamente não suporta ouvir Mozart; qualquer coisa que lembre arte ou cultura os repele, faz com que se sintam mal. Não se enganem, não há nada de casual nisso; muita gente trabalhou com afinco e durante muito tempo para que o nível intelectual médio do nosso povo descesse até esse ponto. Exceto por algum milagre, nenhum desses "mano" (o erro de concordância é proposital) jamais vai ler um livro na vida, nem se perguntar o que está fazendo no mundo ou por que as coisas são como são e não de outro jeito, e, para os que querem o fim da civilização ocidental (não pela sua destruição propriamente dita, e sim por meio de uma sutil e gradual remodelagem feita de dentro para fora), é ótimo que seja assim. Ainda acho que Monteiro Lobato tinha uma visão idealizada demais da Grécia antiga, mas o mero fato de que na época os teatros precisavam ter capacidade para 20, 30, 50 mil pessoas já diz algo sobre o nível cultural de seu povo no tempo de Péricles. Como é explicado no livro, na Atenas de então, como em outras cidades, todo mundo ia ao teatro; o ingresso custava um valor simbólico, e os que mesmo assim não pudessem pagar, recebiam ingressos gratuitos, custeados por um fundo do tesouro público destinado a fins culturais e artísticos. O resultado disso, e de outras ações semelhantes, podia ser sentido dando-se uma volta pelo mercado para ouvir as conversas: havia gente que nem mesmo sabia ler discutindo pontos de filosofia ou trocando análises argutas sobre a política da cidade. É claro que era bem mais complicado governar gente assim do que um povo que mal sabe falar, e, mesmo assim, Péricles e outros ditadores fizeram tudo ao seu alcance para que o teatro, a filosofia, a poesia, a literatura em geral, e todas as outras formas de engrandecimento cultural, florescessem o máximo possível, promovendo uma elevação contínua das capacidades intelectuais de seus povos. (A palavra "ditador" tem um sentido odioso para nós, mas na época queria dizer algo diferente.) A única explicação para isso é que possuíam virtude, uma palavra (e um conceito) que nos soa tão pouco familiar nos dias de hoje.

Por fim, preciso fazer um alerta. O que despertou em mim a vontade de reler O Minotauro foi o acaso de encontrar (numa daquelas feirinhas temporárias de livros que aparecem e desaparecem periodicamente nos corredores de certos shoppings) uma pilha de exemplares de uma edição recente publicada por uma para mim desconhecida editora Pé da Letra. Cada exemplar custava módicos dez reais, então adquiri um e me preparei para um delicioso reencontro com um pedaço tão querido da minha infância… Sabe de nada, inocente. Trata-se de uma edição de péssima qualidade (vai ver é por isso que é barata) e, muito pior que isso, toda estropiada pela censura politicamente correta, algo que, pensando bem, não é nenhuma surpresa, pois antecedentes não faltam (vejam aqui). Entre os personagens do Sítio há um que é muito significativo, apesar de só aparecer uma vez ou outra, o Tio Barnabé, que é uma espécie de personificação da sabedoria popular dos rincões interioranos do estado de São Paulo na época de Monteiro Lobato; pelo que me lembro, sua principal aparição é no livro O Saci, no qual ele conta tudo sobre o próprio, para atender à curiosidade de Pedrinho, menino da cidade. Pois bem… Em O Minotauro, Emília, tentando explicar a um personagem grego o hábito moderno do fumo, cita Tio Barnabé como exemplo:

Lá no Sítio há o Tio Barnabé, um negro de mais de noventa anos, que não tira o cachimbo da boca. Os médicos dizem que se ele não fumasse estaria já com cem anos.

Isso era o que dizia o texto original… Na edição woke da Pé da Letra, a palavra negro foi substituída por senhor. Eu sei, não tem lógica, nem coerência, nem honestidade intelectual alguma: esperar qualquer uma dessas coisas dessa galera lacradora é como esperar que uma macieira dê jacas. Hoje em dia certas livrarias têm uma estante separada para livros de "autoria negra", onde colocam, entre outros, Machado de Assis, que, para mim, sempre foi "apenas" o maior escritor brasileiro e um dos maiores do mundo em todos os tempos; o fato de ele ter sido negro (na verdade era mulato) nunca sequer entrou nas minhas considerações. Por outro lado, simplesmente dizer que um personagem é negro é considerado ofensivo ao ponto de precisar ser censurado. Se refletirmos a respeito, as duas coisas (e muitas outras) apontam para uma mesma realidade: o Brasil, que sempre teve uma identidade de país miscigenado, e que até recentemente, de modo geral, lidava bem com isso, está se transformando numa sociedade na qual as pessoas são classificadas e julgadas, antes de qualquer coisa, pela cor de sua pele – e os promotores dessa nova "cultura" juram que estão combatendo o racismo.

E fica pior. Procurando por Tia Nastácia nos cafundós da Grécia heroica, a mesma Emília pergunta a um pastor se por acaso a teria visto, o que dá lugar ao seguinte e impagável diálogo:

– Que jeito tem essa criatura? – perguntou o pastor.
– Uma beiçuda – respondeu Emília – com reumatismo na perna esquerda, nó na tripa, analfabeta, mil receitas de doces na cabeça, pé chato, gengiva cor de tomate, assassina de frangos, patos e perus, boleira aqui na pontinha, pipoqueira, cocadeira…
– Pare, Emília! – gritou Pedrinho. – Estou vendo que o pó desandou você duma vez.
Foi inútil o berro. Emília estava mesmo desandada e continuou:
– Uma negra pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas beiço o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma velha cor de carvão, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de beiços deste tamanho na boca? Se viu, é ela.
– Não repare, pastor – disse o menino. – Emília é como certos despertadores que às vezes desandam.
O pastor ficou na mesma, porque não sabia o que era despertador.

(Não farei comentários sobre os "outros efeitos" do pó de pirlimpimpim que possibilita todas essas viagens no tempo e no espaço; sei que é um ponto problemático, mas mesmo assim não sou a favor de mutilar o texto.)

Senhoras e senhores, com vocês versão da Pé da Letra:

– Que jeito tem essa criatura? – perguntou o pastor.
– Lábios carnudos – respondeu Emília. – (…) Uma senhora pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas lábios o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma senhora, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de lábios carnudos? Se viu, é ela.

Emília do Sítio do Picapau Amarelo, a marquesa de Rabicó em pessoa, referindo-se a Tia Nastácia não mais como uma "negra beiçuda", e sim como uma "senhora de lábios carnudos"… Lábios carnudos. Pois é. É isso. Suponho que já devamos agradecer por terem permitido que ao menos o pito continuasse a ser descrito como preto. Alguém pode me explicar como, de que raio de maneira omitir a palavra negro (como se o mero ato de mencionar a etnia de uma pessoa fosse ofensivo por si) ajuda a "combater o racismo"? Por que é que, em um momento, separar escritores uns dos outros pela cor da pele é importante, e em outro, é preciso adulterar um texto escrito há mais de 80 anos só porque ele tinha a "ousadia" de descrever as características físicas de uma personagem, entre elas o fato de ser negra? Vocês podem dizer "ei, não ponha tudo no mesmo saco: quem teve a ideia de jerico de criar a 'estante da autoria negra' foi uma pessoa, e quem fez essa barbaridade contra a obra de Monteiro Lobato foi outra". É, mas ambas foram movidas pela mesma ideologia, e, para essa, não há problema algum em dizer uma coisa agora e o seu exato oposto daqui a cinco minutos. Quando não se acredita que exista uma verdade, incoerência e hipocrisia não são motivo de vergonha.

Vamos mais longe. Admitamos por um momento que as falas de Emília no texto original de O Minotauro sejam preconceituosas: isso nos dá o direito de "corrigir" o que o autor escreveu? Eu entenderia se o editor acrescentasse ao livro uma nota preliminar explicando que a linguagem e os conceitos da época do autor eram diferentes dos atuais, mas colocar uma expressão como "lábios carnudos" na boca da Emília é um total despropósito, algo como fazer o Cebolinha, de repente, começar a pronunciar todos os erres corretos. Pior? Provavelmente pior. Há mais exemplos, entre os quais sobressai o momento em que Tia Nastácia, já resgatada, emociona-se ao rever sua querida patroa D. Benta e corre para abraçá-la, gritando: "Sinhá! (…) Sou eu, sua negra velha, Tia Nastácia…" Na edição da Pé da Letra ela diz "sou eu, sua ajudante". Ajudante. Ajudante. AJUDANTE. Pelo menos não puseram "colaboradora", que é como agora são chamados os que antigamente eram "empregados" ou "funcionários", mas soa igualmente morto, frio, sem emotividade, sem as conotações afetuosas do "sua negra velha". Sei o que estão pensando e concordo plenamente: é deprimente mesmo.

Entretanto, Monteiro Lobato ainda é Monteiro Lobato e assim será sempre; esse tipo de vandalismo praticado contra sua obra apenas reflete os tempos nojentos que estamos atravessando, e que, Deus o permita, ficarão para trás e serão lembrados somente como uma lição a ser aprendida. E, como eu não queria dar o serviço pela metade, tratei de procurar por outra edição que pudesse ser lida sem causar náuseas. A L&PM tem uma, dentro de sua coleção L&PM Pocket, que, até onde pude verificar, respeita o texto original. Ou então, se vocês forem da mesma geração que eu e estiverem se sentindo nostálgicos, pode valer a pena dar uma fuçada na Estante Virtual para tentar conseguir um exemplar de uma das velhas edições da Brasiliense (editora fundada pelo próprio Lobato), com as pra lá de clássicas ilustrações de Manoel Victor Filho.

terça-feira, fevereiro 22, 2022

Cobra Kai


Pratiquei caratê durante uns seis anos, dos 12 aos 18 (isso foi de meados dos anos 80 até o início dos 90), chegando à faixa verde, que é a terceira na categoria kyu ('discípulo'; a contagem é das mais altas para as mais baixas). A outra categoria chama-se dan ('mestre') e também tem suas graduações, embora todos os dan usem faixa preta. Como minha namorada, Cintia (neta de japoneses) já me ouviu recordar, receio que mais de uma vez, aprendi a contar até quatro em japonês graças a um dos vários exercícios que fazíamos no dojo ('academia'). Esse exercício era assim: obedecendo à contagem do sensei ('mestre'), dávamos um passo em frente, acompanhado do golpe que estivéssemos praticando no momento, a cada número que ele enunciava. Ao chegar à parede, fazíamos meia-volta e a contagem recomeçava. Ou seja, se a sala fosse maior, eu teria aprendido mais números!

Essa piadinha pueril que circulava no dojo ilustra bem o fato de que, ainda que o caratê nos desse um nível de foco e disciplina que a maioria não tem na nossa idade, mesmo assim éramos garotos (garotOs: em seis anos no dojo, acho que vi umas quatro ou cinco meninas, e uma era filha do professor), e, como nove entre dez garotos, adorávamos filmes de artes marciais. Entre os mais populares estava a trilogia Karate Kid, cujos filmes saíram em 1984, 86 e 89; vi o primeiro quando fazia cerca de um ano que treinava – passou na TV, que era como a gente via filmes na época, de modo que todo mundo viu ao mesmo tempo, e, a partir daí, ele foi o assunto forte na academia durante semanas. O segundo chegou aos cinemas pouco depois que o primeiro passou na TV, e o terceiro, alguns anos depois, e eles também causaram seu impacto, ainda que menor. Nosso sensei nunca disse uma palavra sobre esses filmes; pensando a respeito hoje, creio que ele apreciava a motivação que aquilo nos trazia, e preferia não nos desiludir explicando que muito do que os filmes mostravam era pura fantasia. De todo modo, descobriríamos isso mais cedo ou mais tarde, caso continuássemos treinando.

Acho difícil que alguém que esteja me lendo não tenha visto o primeiro Karate Kid, ou não teria se interessado em ler a respeito de Cobra Kai, então talvez eu nem precisasse falar sobre ele, mas não parece certo não dar ao menos um resumo básico (prometo tentar mantê-lo realmente básico). O jovem Daniel Larusso (Ralph Macchio) começa a frequentar uma nova escola depois de mudar-se, e nela conhece e se interessa por Alison "Ali" Mills (Elizabeth Shue), uma garota bonita, rica e popular que é animadora de torcida (é um filme para adolescentes, então relevem os clichês). Ela também gosta dele, embora Daniel seja apenas um calouro magrelo, pobre e sem nada de excepcional (relevem também as inverossimilhanças). Ocorre que Ali, até pouco tempo antes, namorava Johnny Lawrence (William Zabka), que por acaso é o campeão regional de caratê e não aceitou a decisão dela de terminar. Como resultado, Daniel passa a sofrer bullying violento com frequência – e nem sempre de forma inocente: por vezes ele bem que provoca. Quando está levando uma surra particularmente dura aplicada por Johnny e vários de seus amigos que também são lutadores, o garoto é salvo pelo Sr. Miyagi (Noriyuki "Pat" Morita), que trabalha como zelador e faz-tudo no condomínio modesto onde ele mora. Ao ver aquele japonês idoso e baixinho nocautear cinco atletas de caratê de uma vez só, Daniel percebe que o homem é muito mais do que aparenta, e o convence a lhe ensinar caratê para que possa se defender. Durante seu treinamento, ele recebe de Miyagi uma série de lições que, embora direcionadas ao caratê, encontram aplicação nas mais diferentes situações da vida. O filme termina com Daniel e Johnny se enfrentando no torneio regional, e o final dá a entender que a vitória (dramática, como teria que ser) alcançada pelo primeiro deve ter posto fim ao seu tormento.
 
Os outros dois filmes são apenas desdobramentos do primeiro. O segundo, ambientado na maior parte em Okinawa (a província natal do Sr. Miyagi, no sul do Japão, e provável local de origem do caratê) é legal; o terceiro é fraco, praticamente uma reciclagem do roteiro do primeiro, mudando apenas os detalhes. Existe um quarto filme que, apesar de contar com Morita novamente no papel de Miyagi, é considerado constrangedor por quase todos os fãs da saga; nele, o mestre treina uma nova aluna, interpretada por Hilary Swank. Ralph Macchio não participa – não que sua ausência seja o motivo da ruindade do filme, pois no terceiro ele está tão irritante que dá vontade de socá-lo, não fosse ele um lutador treinado. Esse quarto filme é solenemente ignorado nos roteiros de Cobra Kai, que têm sempre o maior cuidado em levar em consideração cada mínimo detalhe dos três primeiros.

A série estreou em 2018 no YouTube Premium, mas, depois de duas temporadas bem recebidas pelo público, foi adquirida pela Netflix. A terceira temporada saiu no início de 2021, e a quarta, no final do mesmo ano; a quinta já foi confirmada e é esperada para algum momento de 2022. A primeira coisa que chama atenção é o fato de os produtores terem conseguido trazer de volta praticamente todos os atores principais dos filmes (com exceção de Morita, que faleceu em 2005) e até mesmo muitos dos secundários. Os protagonistas são Daniel Larusso e Johnny Lawrence, novamente interpretados por Ralph Macchio e William Zabka, mas, diferente do que acontecia nos filmes, aqui a história é narrada, a priori, do ponto de vista do segundo. Isso fica evidente já no início do primeiro episódio, que exibe as cenas finais do primeiro Karate Kid, com Daniel nocauteando Johnny com o hoje clássico golpe do grou (ou garça), mas, depois do chute que decidiu a final do torneio em 1984, a câmera deixa de lado a comemoração de Daniel e seus amigos para focar em Johnny caído no tatami, atordoado e vencido. A seguir, corta para os dias atuais. Trinta e poucos anos depois de perder o título de campeão de caratê, Johnny sobrevive fazendo serviços de manutenção residencial e mora num condomínio humilde, muito parecido com aquele onde Daniel morava na adolescência – de certo modo, os papéis se inverteram, pois, na época, Johnny parecia ser um rapaz rico, que circulava numa imponente moto e frequentava o elitista country club local. Ficamos sabendo então que ele tem um padrasto rico, mas com quem nunca se deu bem e de quem não quer aceitar favores. Para piorar, tem uma tendência a beber demais. Daniel, em contrapartida, subiu na vida, e agora é dono de várias concessionárias de veículos espalhadas pelo Vale de San Fernando, um distrito de Los Angeles, bem perto de Hollywood e famoso por concentrar as produtoras de filmes adultos (não que isso tenha algo a ver com a história – risos). É casado com Amanda (Courtney Henggeler) e tem dois filhos, a patricinha Samantha (Mary Mouser) e o caçula Anthony (Griffin Santopietro), típico pré-adolescente pé-no-saco que sofre crise de abstinência se ficar uma hora sem celular ou videogame. Samantha, na infância, chegou a aprender caratê com o pai e com o Sr. Miyagi (agora já falecido), mas não pratica há anos, enquanto Anthony nunca teve o menor interesse na arte marcial.
 

Johnny encontra algum estímulo para sair de sua estagnação ao conhecer Miguel Diaz (Xolo Maridueña), filho de uma imigrante equatoriana, que acaba de se mudar para o mesmo condomínio junto com a mãe e a avó. Meio por acaso, salva-o de levar uma surra de um grupo de valentões da escola (é curioso como o mundo dá voltas), e nota-se sua satisfação, apesar de tudo, ao constatar que ainda é um excelente lutador. Começa por recusar os pedidos de Miguel para ensiná-lo, mas acaba não só aceitando, como decide recriar o Cobra Kai, nome do dojo no qual treinava na juventude. O Cobra Kai foi originalmente fundado por John Kreese (Martin Kove), um veterano da Guerra do Vietnã que, ao ensinar caratê, punha ênfase na agressão, inculcando em seus discípulos que "compaixão é para os fracos", o que explica, ao menos em parte, o comportamento truculento de Johnny e seus amigos nos velhos tempos. Portanto, as recordações de Johnny a respeito de seu mestre e do lugar onde aprendeu a lutar são ambivalentes: ali ele não aprendeu apenas como dar golpes e como defender-se deles – aprendeu também sobre disciplina e autoconfiança, lições que lhe podem ser úteis agora, que ele está novamente tentando dar um rumo a sua vida; por outro lado, sofreu uma lavagem cerebral que o transformou num indivíduo irracional e violento, um condicionamento do qual ele ainda luta para se livrar. Seu objetivo é passar aos jovens somente o que havia de bom nos ensinamentos que recebeu: como ele próprio diz, quer ensiná-los a "serem durões sem serem babacas". Infelizmente, nem todos os seus alunos assimilam essa lição, e alguns se aproveitam do fato de agora saberem lutar para virarem eles próprios os bullies.

Daniel fica inconformado ao saber que Johnny trouxe o Cobra Kai de volta e decide contra-atacar abrindo seu próprio dojo, o Miyagi-do, para ensinar caratê focado na autodefesa, tal como aprendeu com seu falecido sensei. Isso reacende a rivalidade entre os dois, mas nota-se que ambos amadureceram (embora nem sempre aparentem) e que têm respeito um pelo outro como lutadores, ainda que cada um ache que sua abordagem do caratê é superior. Em vários momentos chega a parecer que estão a ponto de se tornar amigos, mas, é claro, algo sempre acontece para estragar tudo.
 
 
Paralelamente ao conflito entre os dois senseis, a série também acompanha o que se passa com seus discípulos. Miguel, o primeiro aluno de Johnny, faz progressos impressionantes e torna-se um lutador de primeira linha, ao mesmo tempo que se envolve com Samantha, a filha de Daniel, que, por sua vez, redescobre o interesse pelo caratê e volta a treinar. Johnny, embora nunca tenha se casado, tem um filho com uma ex-namorada; o rapaz, Robby (Tanner Buchanan), tem a mesma idade de Miguel e Samantha e faz o tipo adolescente revoltado. Não quer ver o pai nem pintado e vive com a mãe, mas ela também não é nenhum grande exemplo de comportamento, nem se responsabiliza de fato por ele, de modo que Robby aprendeu a se virar sozinho desde muito cedo – a se virar do jeito errado, diga-se de passagem. Anda nas piores companhias, não estuda e se dedica a praticar pequenos furtos e outras contravenções. Consegue um emprego na concessionária de Daniel apresentando um currículo falso, e, na verdade, é tudo parte de um plano que fez com seus amigos pilantras para infiltrar-se no local e mais tarde roubá-lo, mas acaba se afeiçoando a seu chefe, que o trata de forma justa e lhe ensina muitas coisas – caratê inclusive – sem saber que ele é filho de seu velho rival, pois o garoto usa o sobrenome da mãe. Os ensinamentos de Daniel e o equilíbrio trazido pela prática do caratê vão gradualmente colocando Robby nos eixos; para Johnny, é como se Daniel estivesse roubando seu filho, tal como lhe "roubou" o título de campeão tanto tempo atrás. A certa altura, as coisas entre Miguel e Samantha desandam, e, por treinarem juntos no Miyagi-do, a garota já tinha proximidade com Robby, que sempre foi a fim dela (que é muito bonita, meiga, e ao mesmo tempo corajosa) e aproveita o afastamento entre ela e o namorado para "atacar"; esse triângulo amoroso está destinado a render muita história ao longo da série. Outros personagens jovens também têm lugar na trama, e a maior parte do elenco teen se sai surpreendentemente bem.

Sem dar muito spoiler, adianto que outros rostos do passado vão surgindo e trazendo reviravoltas que obrigam Johnny e Daniel a trabalharem juntos, o que, no entanto, nunca acontece sem atritos. A série tem roteiros ágeis, com as doses certas de ação e drama; as partes românticas não são exageradas a ponto de se tornarem enjoativas, nem as partes de luta a ponto de cansarem (há também momentos de humor aqui e ali). Como dito acima, muitos atores da trilogia de longas-metragens (muitos mesmo) vão reaparecendo um por um, dando vida novamente a seus antigos personagens, o que é empolgante e divertido – puro fan service da melhor qualidade! Para dar uma ideia, até Randee Heller, que interpretava Lucille Larusso, mãe de Daniel, está de volta, velhinha como sua personagem teria que estar depois de mais de 30 anos. Rob Garrison, que fazia o papel de Tommy, um dos lutadores do Cobra Kai original e amigo de Johnny, retorna num episódio que investe na nostalgia – já muito debilitado pela doença que o mataria pouco depois.
 
No que diz respeito ao caratê em si, não sou um especialista, mas, como contei, cheguei a ter contato com a coisa e digo que, nesse quesito, Cobra Kai supera bastante os filmes que lhe deram origem. Nos filmes, sempre me incomodaram a falta de postura (postura mesmo, física) e os movimentos moles de Ralph Macchio; mesmo um aprendiz como eu podia ver que ninguém conseguiria lutar um caratê decente daquele jeito. Nosso sensei sempre nos cobrou energia e firmeza: cada movimento devia ser feito com força, os músculos precisavam funcionar. Em comparação com os filmes, a série cuidou muito melhor dessa parte; com certeza contou com mestres de artes marciais como consultores, e provavelmente os atores tiveram que treinar de verdade, o que não significa que tudo ali seja realista. Entre outras coisas (naturalmente), no mundo real ninguém se torna um lutador em questão de algumas semanas, como os alunos de Johnny e Daniel, mas, na minha opinião, dá para perdoar essa "licença poética" numa boa.
Vou confessar, tive um certo receio do que iria encontrar quando decidi assistir Cobra Kai; teria sido péssimo descobrir que o legado dos filmes Karate Kid só estava sendo usado como pretexto para empurrar um monte de lacração (o que não seria inesperado vindo do YouTube, e ainda menos da Netflix), mas, depois de ver alguns episódios e ter tempo de sentir a vibe da série, a sensação foi de alívio, além da empolgação. Pois Cobra Kai, surpreendentemente, não só nos poupa do insuportável discurso politicamente correto, como até mesmo tem a ousadia de tirar um leve sarro dele. Johnny é o próprio estereótipo do "macho hétero top" que, para os progressistinhas de Twitter, resume tudo o que há de errado no mundo (em muitos círculos, "hétero" virou pejorativo): gosta de cerveja, de rock das antigas (nada posterior aos anos 80), de carros, motos, filmes de ação (tem uma epifania ao assistir a uma reprise do clássico Águia de Aço), esportes de combate (claro!!) e não entende muito bem o mundo moderno com sua tecnologia e suas frescuras – e isso tudo rende momentos engraçados, mas não é apresentado de forma negativa. Mesmo com seu passado de vilão, Johnny é um personagem com quem nos importamos e por quem torcemos. Há uma cena impagável em que uma nova aluna se apresenta à turma e, depois de dar o nome, acrescenta que seus pronomes são "ela" e "dela". (Parêntese: para quem não sabe que besteira é essa, é costume na Lacrolândia colocar no seu perfil nas redes sociais os pronomes que você quer que as pessoas usem para falar de você, porque, no mundo do politicamente correto, é considerado violência presumir o sexo [ou "gênero", como eles dizem] de alguém mediante uma mera inspeção visual; se um sujeito barbudo, peludo e musculoso, cujo RG o identifica como Alcides, declarar que está se sentindo mulher, quiser ser chamado de Shirley e que se refiram a ele como "ela", todo mundo tem que fazer isso. Fim do parêntese.) Johnny replica que os únicos pronomes que importam ali são "sensei" e "aluno". A garota diz que esses são substantivos, e o mestre encerra o papo: "Oh, desculpe. Eu quis dizer CALE A BOCA!" Perfeito!! Ao longo da série, mais de um garoto moloide e cheio de não-me-toques se transforma depois de algum tempo no dojo – em qualquer dos dojos.

Colocando a questão em palavras simples, o fato é que o caratê e outras artes marciais são a antítese dessa cultura da glorificação da fraqueza que nos cerca hoje. O mundo está cheio de jovens "floquinhos de neve" – mimados, frágeis, hipersensíveis – que se ofendem e se magoam com tudo e são absolutamente incapazes de qualquer coisa que exija um mínimo de determinação ou sacrifício, e isso nem é o pior: o pior é que a mídia e grande parte da sociedade incentivam e recompensam esse tipo de atitude. No caratê, você precisa de força de vontade para obter qualquer progresso, precisa se acostumar à obediência pronta, a treinar sempre, não importa se está disposto ou não, a conviver com a dor, a esforçar-se pela vitória mas encarar serenamente a possibilidade da derrota, e precisa aprender a não se abalar com um corretivo severo aplicado pelo seu sensei; precisa fortalecer o corpo e o espírito. Enfim, ele desenvolve virtudes que aqueles que controlam a mídia atual não querem que as pessoas tenham. Portanto, apostar numa série com essa temática foi uma iniciativa corajosa, e a excelente recepção que ela vem tendo é um bem-vindo sinal de que ainda podemos ter alguma esperança de que a humanidade não acabe morrendo afogada num oceano de cancelamentos e pronomes neutros.

segunda-feira, novembro 22, 2021

O Ano em que a Terra Parou

Seguidor

Acalme-se e preste atenção
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Vende seus olhos e pule de cabeça
Não questione, não pense
Não exista.

A verdade é real demais para você.
Ela estraga a imagem, não é?
Não queira acreditar, não queira ver,
pois a realidade é o inimigo.

Um cenário nascido de
imagens censuradas na TV
Um mundo construído a partir
de uma realidade censurada.

É tão simples apenas entrar na linha
Faça o que disserem,
o que todos os outros fazem.
Não conserte o que está errado,
apenas faça brilhar o que é legal.
Não questione, não pense
Nem mesmo abra a boca.

Cada história cortada para caber
na tela e nos olhos do público
Transformada para caber
na sua mente pequena e frágil.

É longe demais...

Certeza inquestionável,
uma fé cega na autoridade
e uma confiança que vai
mantê-lo subjugado.

É longe demais... 


                                        Machinae Supremacy
                                        Follower
                                        Álbum: Arcade (2003)

  *       *       *

Este blog sempre foi muito mais voltado para a literatura de ficção, e, embora algumas obras de não-ficção tenham eventualmente ganho espaço (como O Culto do Amador, de Andrew Keen, e, mais recentemente, os Manuais Politicamente Incorretos), procuro comentar temas ligados a política e sociedade apenas quando eles se imiscuem na literatura – o que inevitavelmente acontece: a coisa mais magnífica a respeito da literatura é sua capacidade de retratar (e transformar em objeto de reflexão) todo e qualquer aspecto da experiência humana, de modo que esses não seriam exceções. De qualquer forma, há momentos em que um tema se impõe, e assim foi com O Ano em que a Terra Parou, livro que praticamente me atropelou e me manteve num estado reflexivo durante vários dias. Preciso esclarecer, a priori, que meu conhecimento sobre os temas tratados pelo autor Luciano Trigo não é profundo, e estou ciente disso; na verdade, vai pouco além daquilo que qualquer pessoa minimamente bem informada e sem antolhos presos na cara pode ver todos os dias nesses tempos estranhos e ruins que atravessamos, mas concluí que escrever a respeito desse livro será bom para mim, porque me ajudará a organizar as ideias. É inevitável que em algum momento eu escreva alguma bobagem e/ou acredite ter entendido algo que, na verdade, é muito diferente de como eu imagino; tudo o que posso dizer em minha defesa é que mesmo esses tropeços terão sido motivados por um esforço sincero para entender uma realidade muito, muito confusa. Caso meus estudos posteriores me façam identificar algum erro, volto e corrijo. E, se por acaso alguém ler este post e se beneficiar de algum ponto dele, ou eventualmente chegar a ler o livro por causa do que vou dizer, melhor ainda.

Quem lê o título O Ano em que a Terra Parou pensa, é claro, em 2020, quando a explosão da pandemia de COVID-19 e suas consequências viraram de pernas para o ar a vida da maioria das pessoas em todos os países, e, de fato, o assunto é tratado nestas páginas, mas não é o assunto principal do livro, e também não será o meu aqui, pois não quero deixar o texto exageradamente longo e há outros pontos abordados por Trigo sobre os quais tenho bem mais a dizer. O subtítulo, Polarização da política e a escalada da insanidade, dá uma ideia de quais são. O livro, publicado no início de 2021, é baseado em vários artigos sobre política e sociedade que o autor escreveu ao longo do ano anterior.

Vivemos tempos muito estranhos, mas não dá para dizer que não fomos avisados. George Orwell, em seu 1984 (cuja primeira edição é de 1949) previu uma sociedade na qual a simples constatação da realidade não seria mais permitida: nela, as coisas só teriam permissão de existir, ou de ser desta ou daquela forma, com a condição de se coadunarem com a ideologia dominante – e é exatamente o que acontece hoje. A diferença é que o mundo previsto por Orwell era mais sincero: a ideologia era imposta, na maior parte das vezes, de maneira franca, por meio de uma repressão violenta de qualquer visão discordante. Hoje, por outro lado, o que vemos é uma miríade de grupos e movimentos que invariavelmente apregoam defender a liberdade, o respeito, a democracia e o amor – e, em nome da liberdade, do respeito, da democracia e do amor estão sempre prontos a lançar ataques virulentos e covardes contra qualquer um que discorde deles, ou que simplesmente não seja como eles acham que deveria ser. Movimentos que afirmam defender a dignidade dos negros, na verdade só estimulam o ódio contra os brancos. O feminismo há muito tempo que deixou de lutar por igualdade de direitos para as mulheres (se é que esse já foi alguma vez seu objetivo); hoje só faz reclamar por privilégios e, talvez mais importante, tentar desmoralizar os homens e ensinar o maior número possível de garotas a odiá-los (dando lugar, entre outras coisas, ao curioso fenômeno das adolescentes ou jovens universitárias que dedicam seus dias a entupir as redes sociais com frases feitas de apelo misândrico como "morte ao pênis" e "abaixo o patriarcado", usando o smartphone que ganharam do papai). Grupos "LGBT" propagam (em geral de forma velada, mas às vezes nem se dão ao trabalho) que heterossexuais são escória. De tudo isso se conclui que, se você é homem, branco e heterossexual, já está errado pelo mero fato de existir, e sua única possibilidade de se redimir um pouco (porque totalmente é impossível) é pedir desculpas diariamente por ser o que é, reconhecer que nenhum homem branco hétero merece qualquer tipo de respeito ou consideração, e ainda ouvir quieto as pessoas papagaiarem que você é "privilegiado" e "opressor". E a grande mídia abraça com entusiasmo toda essa ideologia, o que explica por que já não se pode confiar nem mesmo em veículos de imprensa que tinham outrora uma reputação sólida. Hoje, noticiar a realidade já não tem importância; o que importa é corroborar as narrativas que estiverem na ordem do dia.

Em meio a esse cenário, a internet tem um papel ambivalente. Como não se pode mais confiar na mídia mainstream, o que nos resta é recorrer a sites, blogs e vídeos produzidos de maneira independente para buscar informações e interpretações menos tendenciosas (não que isso seja fácil, pois também não faltam produtores independentes de conteúdo alinhados com essa agenda "progressista"). Ao mesmo tempo, as redes sociais se transformaram no paraíso dos haters, pessoas cuja razão de viver consiste em destilar ódio contra qualquer um que seu movimento identitário favorito rotule como O Mal. E, é preciso reconhecer, esses movimentos sabem como explorar a necessidade básica que os seres humanos sentem de fazer parte de algo, de pertencer a uma "tribo". Como, ao longo das últimas décadas, instituições como religião e família, que, historicamente, sempre cumpriram o papel de ajudar o indivíduo a achar seu lugar no mundo, vêm sendo sistematicamente demolidas, a militância digital tornou-se, para muitas pessoas – quase sempre jovens – a única âncora que encontram, a única coisa que lhes proporciona um simulacro de sentido e evita que sintam que suas vidas são um completo desperdício. Escondidas por trás da tela de um computador (hoje em dia, aliás, quase sempre do celular), multidões de pessoas medíocres e covardes se deliciam a praticar o linchamento virtual de quem ousar levantar alguma objeção ao discurso hegemônico – discurso hegemônico esse que sempre se apoia no pretexto de defender as "minorias". O mais assustador é ver que um número enorme dessas pessoas realmente não percebem o absurdo da contradição em que caem: escrevem "textões" ou gravam longos vídeos pedindo por uma sociedade mais "plural" e "inclusiva", condenando os preconceitos e o "discurso de ódio", para, um instante depois, liberar todo o seu ódio contra qualquer um que pense diferente sobre qualquer assunto, ou que meramente não faça parte de nenhuma das "minorias" pelas quais essas pessoas acreditam estar lutando. Não basta, por exemplo, defender os negros: se você insinuar que os brancos também merecem respeito, você é um "racista" desgraçado e se transforma automaticamente num alvo; daí em diante, enxames de heroicos militantes, defensores incansáveis da liberdade e da democracia, começarão a bombardear suas redes sociais com milhares de mensagens xingando-o de tudo em que conseguirem pensar e desejando abertamente a sua morte – é o que chamam de "cancelamento". Para alguém que é apenas um cidadão anônimo, com um trabalho comum, pode parecer que esse tipo de perseguição cibernética não tem um potencial de dano tão grande assim (desde que você seja adulto e tenha uma cabeça forte): basta esperar que a "galera do bem" se canse de ofendê-lo e ameaçá-lo e parta em busca do próximo alvo. Já para pessoas públicas, que dependem de sua imagem para sobreviver, o buraco é bem mais embaixo, já que o "cancelamento" não move apenas indivíduos isolados: não faltam exemplos de atores, músicos, jornalistas etc. que perderam contratos e patrocínios, ficando, na prática, impossibilitados de trabalhar, simplesmente por terem expressado alguma opinião conservadora ou de outra forma impopular, o que os grandes conglomerados de mídia não podem tolerar, para não ficarem mal na foto com o pessoal lacrador, que será sempre uma fatia expressiva de seu público, e, dependendo do segmento, forma com frequência a maioria dele. Pensando bem, dependendo de onde aquele cidadão anônimo de que eu falava há pouco trabalhe (leia-se: dependendo de quem seja o seu empregador), virar alvo da militância pode acabar em desastre também para ele.

Novamente é inevitável pensar em George Orwell. Winston Smith, o protagonista de 1984, tem um diário no qual registra pensamentos esparsos – muitos deles, coisas que o Partido consideraria subversivas, e por isso ele mantém o segredo. Espero que não se importem se não cito com exatidão literal, pois li o livro há mais de 30 anos e nunca o reli (por sinal, talvez esteja na hora), mas lembro que uma das anotações de Winston é, na ideia geral, assim: "Liberdade é a liberdade de dizer que dois e dois são quatro. Admitindo-se isso, tudo o mais decorre." Para a minha versão adolescente, o sentido dessas palavras não era muito claro; hoje é, graças, em parte, a um outro autor, Michael Ende, que escreveu que "os homens vivem de ideias, e as ideias podem ser dirigidas". Se isso é verdade para o indivíduo, também o é para a sociedade, que é feita de indivíduos. E hoje vivemos um tempo em que a liberdade de dizer que dois e dois são quatro nos foi tirada. Não se pode mais olhar para as coisas, analisá-las por meio dos sentidos e da razão, e concluir "isto é assim". Agora, é a ditadura do politicamente correto que decide como as coisas são e como não são, e, se os fatos refutarem a ideologia, então "cancelam-se" os fatos; simples assim. Dentre inúmeros exemplos possíveis, virou "fascismo" e "discurso de ódio" afirmar que um ser humano com pênis e testículos é um homem, e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher. Agora cada um decide o que quer ser, e todo o restante da sociedade precisa acatar sua doideira em vez de acatar a realidade – e, se você não aceita, merece ser "cancelado", porque é um "fascista", o que virou um xingamento-padrão, sempre na ponta da língua de milhões de pessoas que não têm a menor ideia do que essa palavra significa. Chamam de fascista qualquer um de quem não gostem por qualquer motivo; é o equivalente pós-moderno de "feio e bobo".


Isso me leva a outro ponto abordado por Trigo: a total dominação do ambiente universitário pela esquerda, que abandonou o discurso clássico da "luta de classes" (que não cola mais, nem mesmo no meio acadêmico) para adotar as pautas identitárias mencionadas acima. Dizendo de outro modo, as faculdades se tornaram essencialmente antros de lacração – todas elas, mas em especial as de ciências humanas, cuja esfera de estudos oferece mais espaço a essas pautas – e, hoje em dia, são pouca coisa além disso, o que vem agravar um problema que já existia antes: o baixíssimo nível de conhecimento com que a maior parte dos alunos do ensino superior sai das faculdades. Pode não ser politicamente correto dizer isso, mas o fato é que nem todo mundo nasceu para o trabalho intelectual; porém, ao longo dos últimos dois séculos mais ou menos, um diploma universitário passou a ser um acessório indispensável para que uma pessoa alcançasse sucesso profissional e financeiro (é verdade que hoje em dia um diploma não garante mais nada, mas funcionava assim até recentemente). Isso fazia com que milhares de pessoas sem qualquer talento para trabalhos acadêmicos, ou sequer interesse por eles, seguissem qualquer caminho torto que fosse necessário para obter o famigerado diploma; adquirir conhecimento não era uma preocupação. E hoje está ainda pior: com uma ou outra exceção, o universitário brasileiro (e os de outros países) sai da faculdade sem saber interpretar um texto simples, que dirá escrevê-lo, mas plenamente capacitado para repetir um discurso pronto cheio de palavras compridas e levantar mil e uma bandeiras "em prol das minorias", sem enxergar que está agindo como um idiota útil para movimentos que na verdade nunca ligaram a mínima para mulheres, negros, homossexuais ou o que for, e sim para seus próprios objetivos puramente políticos. E o problema nem é o fato de o estudante ser exposto a pautas esquerdistas – é o fato de ele ser exposto exclusivamente a pautas esquerdistas, sem nenhum contraponto, nenhuma possibilidade de comparar ideias e informações para formar a própria opinião. Há todo um aparato cultural, dentro e fora das universidades, dedicado a inculcar nas cabeças ainda em formação dos jovens a noção de que essa é a única forma aceitável de pensar e que, se alguém vier com qualquer discurso diferente, a coisa certa a fazer é tapar os ouvidos e xingar (aos berros, de preferência) essa pessoa de fascista, sem nem querer saber o que ela tem a dizer e se faz algum sentido ou não. É claro que jovens assim sempre existiram, pois a juventude é, por definição, uma fase da vida em que sabemos pouco e temos um monte de certezas (quanto mais uma pessoa sabe, menos certezas ela tem, mas isso é algo que ela só compreende quando fica mais velha; algumas, nem mesmo então), mas talvez seja a primeira vez na História que vemos isso numa escala tão absurdamente grande e com tal potencial destrutivo.

É fácil notar, olhando-se para o passado e o presente, que, enquanto muitas coisas mudam constantemente de uma época para outra, algumas permanecem sempre iguais, e uma destas é o fato de que, quando algum projeto social mal-intencionado precisa de uma numerosa massa de manobra, são sempre os jovens o alvo preferencial. Eles têm uma tendência natural ao entusiasmo (que pode facilmente se converter em fanatismo), e, como ainda estão construindo suas identidades, também têm inseguranças; o anódino mais comum para essa sensação angustiante e crônica consiste em se verem aceitos num grupo – e, se o grupo que encontrarem for alguma militância progressista, está feita a porcaria. Em geral eles são presas fáceis, já que esses movimentos, além de tudo, dão ao jovem a sensação de ter o poder de fazer alguma diferença no mundo. Além disso, por ainda não terem tido tempo de adquirir um grande conhecimento do mundo, os jovens tendem a não enxergar a complexidade das coisas e a ver tudo de maneira binária: tudo é preto ou branco, bom ou mau, "nós" ou "os outros"; ou seja, é mais fácil convencê-los a aderir a uma determinada visão de mundo (por mais incoerente e estúpida que seja) do que seria convencer um adulto. É claro que mesmo um adolescente pode já ter princípios firmados e conceitos morais bem definidos, dependendo da educação que tenha recebido. No passado, movimentos como o nazismo e o comunismo precisaram de muito trabalho para remodelar todas aquelas mentes jovens; já para os movimentos esquerdistas identitários de hoje, está muito mais fácil, porque a maioria da juventude atual recebeu pouca ou nenhuma formação moral e só tem noções vagas e "elásticas" a respeito de certo e errado. Também há o fato de que, graças à educação "inclusiva" e à tecnologia que nos dá tudo fácil e na hora, no século XXI estamos testemunhando um fenômeno inédito na história: crianças e jovens com QI mais baixo que o de seus pais e avós. Esse conjunto de fatores talvez explique a aparente incapacidade de muitos militantes de rede social para compreender, por exemplo, que não apoiar o Black Lives Matter, que promove terrorismo e incita a violência, não faz de ninguém um racista; que ser contra o feminismo, que tem como único resultado prático transformar mulheres em criaturas azedas e histéricas, cheias de ódio, não significa ser machista; que não é preciso ser socialista ou comunista para se preocupar com os pobres. Não: se tecer a menor crítica a qualquer um desses movimentos, você é um "fascista" e merece a morte. Enquanto isso, naturalmente, eles podem dizer o que quiserem de quem quiserem, pois, afinal, a liberdade de expressão é sagrada – a deles, é claro. E essas são as pessoas que estarão conduzindo o mundo daqui a alguns anos… Sem querer ser apocalíptico demais (mas já sendo), acho que estamos vendo o palco armado para a instauração de uma nova forma de totalitarismo que o próprio Orwell provavelmente nunca imaginou, nem em seus piores pesadelos.

(Como seria inevitável acontecer num quadro como o já descrito, os vários discursos "em prol das minorias" volta e meia entram em colisão, o que coloca as militâncias numa sinuca de bico. O movimento negro [esse sim, racista até não poder mais] e o feminismo, por exemplo, deveriam ser aliados naturais, já que ambos têm os mesmos objetivos – fomentar a discórdia e criar conflitos –, mas como se supõe que eles devam se posicionar num caso como o da mulher que deu piti dentro de uma daquelas megapadarias de São Paulo e, durante seu surto, ofendeu e agrediu, fisicamente inclusive, vários funcionários, alguns deles negros e/ou gays? Havia seguranças e policiais no local, mas nenhum se atreveu a fazer nada, pois sabiam que poderiam ser presos por encostar a mão numa mulher, não importa o que ela estivesse fazendo [ela também sabia disso, como se nota no registro em vídeo que um funcionário fez do incidente – confiram este vídeo do Canal Tragicômico, que, além do registro em si, traz comentários pertinentes sobre o caso e sobre os absurdos da cultura da lacração em geral; por sinal, esse canal é excelente, considerem a possibilidade de inscrever-se]. Nessa situação, o que um militante que honra sua conta no Twitter deve fazer? Por um lado, ela é mulher e, portanto, é intocável e está sempre certa. Por outro, está tendo condutas racistas e homofóbicas! Apesar de tudo, não deixa de ser engraçado ver as múltiplas cabeças da hidra identitária lutando entre si.)

(Por mais que eu fosse adorar receber o crédito por bolar essa magnífica imagem comparando a esquerda identitária a uma hidra com várias cabeças, preciso assinalar, por uma questão de honestidade, que não fui eu o autor da façanha, e também não lembro quem foi: ouvi isso em algum outro vídeo no YouTube.)

Não será novidade para ninguém que siga este blog (ou que tenha, no mínimo, dado uma olhadela nele) a minha admiração pela civilização romana, mas nem por isso fecho os olhos ao fato de que muitas de suas conquistas só foram possíveis graças ao expediente maquiavélico (palavra que não existia naquele tempo, mas que serve bem) do divide et impera – dividir para dominar. Em geral não era preciso fazer muita coisa para promover a divisão entre os povos da época, que, em sua maioria, se organizavam em tribos, frequentemente inimigas entre si, mas, quando necessário, os romanos eram hábeis em achar maneiras de jogar essas tribos umas contra as outras, sabendo que assim seria muito mais fácil conquistá-las do que se todas elas se pusessem lado a lado contra o invasor. A esquerda do século XXI (ironicamente, financiada pelo grande capital internacional, aquele mesmo que os marxistas abominavam e queriam combater) também conhece esse método, conta com todo o poder da mídia a seu favor, e é isso o que ela tem feito e continua fazendo: criar o máximo possível de divisões dentro da sociedade, jogando negros contra brancos, mulheres contra homens, gays contra héteros e assim por diante, pois, dessa forma, a sociedade como um todo tem muito menos condições de oferecer resistência a um plano de dominação cultural em grande escala. Os movimentos que compõem essa esquerda identitária não têm o menor interesse no fim do racismo, do sexismo ou da homofobia, porque, se essas formas de segregação e discriminação desaparecessem, os tais movimentos perderiam sua justificativa para existir. O que eles realmente fazem é açular cada vez mais os conflitos, a fim de sempre terem munição para seus discursos e transformar isso em ganho político – da mesma forma como não é do interesse da maioria dos políticos do Brasil erradicar a miséria em meio à população, e sim administrá-la, de modo a sempre contar com uma massa de eleitores pobres e desesperados que vendam facilmente seus votos em troca de qualquer pequeno benefício financeiro que lhes permita sobreviver por mais um mês. Trigo dedica algumas páginas a isso também.

O Ano em que a Terra Parou é leitura altamente recomendável para todos os que já perceberam o quanto o mundo mudou nos últimos poucos anos, notaram que essa mudança não foi para melhor, mas ainda estão tentando entender o que aconteceu, o que ainda está acontecendo, e como as coisas ficaram e podem ficar nos próximos anos. Ou seja, é recomendável para muita gente. Para mim, ajudou muito a interpretar certos fenômenos que eu já tinha observado, mas ainda não tinha compreendido completamente o que podiam significar, e também a fazer as ligações entre certas coisas e certas outras – e sempre entendemos melhor a situação geral quando conseguimos estabelecer ligações entre fatos que, à primeira vista, podem parecer não ter nada em comum. Naturalmente que não concordo com todos os pontos do autor (com a grande maioria, mas não com tudo), mas, concordando ou não, posso atestar que ele nunca falha em estimular o leitor a refletir. Há muito mais que eu poderia comentar sobre os assuntos em que já toquei acima e sobre outros que estão presentes no livro, mas o texto já está mais longo do que eu pretendia. Além disso, creio que não faltarão oportunidades de abordar esses assuntos – mais oportunidades do que eu gostaria, já que, para infelicidade nossa, esses fenômenos estão aí, e ignorá-los é inútil.