sexta-feira, dezembro 03, 2010

O Imperador - A Morte dos Reis

Terminei de ler o segundo volume da série O Imperador e continuo sem saber o que o título A Morte dos Reis tem a ver com seu enredo. O primeiro, vá lá, chamava-se Os Portões de Roma porque foi nele que Júlio César entrou na cidade pela primeira vez. Agora, A Morte dos Reis?... Roma só teve quatro reis "legítimos": seu fundador Rômulo, Numa Pompílio, Tulo Hostílio e Anco Márcio, e isso foi nos séculos VIII e VII a.C.; depois, caiu sob domínio etrusco e passou a ser governada por reis provenientes desse povo, o último dos quais, Tarquínio, o Soberbo, foi derrubado em 509 a.C. Por causa do tempo vivido sob domínio estrangeiro, os romanos haviam criado uma antipatia instintiva por reis e realezas em geral, que, aos seus olhos, tinham-se tornado sinônimo de tirania; de modo que, por ocasião da queda de Tarquínio, juraram que nunca mais seriam governados por rei algum: estava fundada a República. Mais de quatro séculos antes de Júlio César nascer, como se vê.

Durante esse tempo, a República havia tentado conciliar os interesses dos diferentes setores da sociedade romana - o que, embora nunca tivesse sido fácil, era com certeza menos difícil enquanto Roma foi uma pequena nação de agricultores-guerreiros, tornando-se cada vez mais complicado à medida em que ela crescia em população, poder e riqueza. Na época em que se ambienta esta história, o sistema encontrava-se enfraquecido por disputas de poder, pelo tráfico de influências e pela corrupção - mas, mesmo assim, ainda conseguia assegurar aos romanos viver numa sociedade mais justa que 90% dos outros povos da época. Ou, pelo menos, mais próxima de ser justa.

"Sabe o que significa a palavra 'república'? (…) Poucos dos meus colegas senadores parecem entender. Vivemos uma ideia, um sistema de governo que permite a todos terem voz, até mesmo o homem comum. Percebe como isso é raro? Cada outro pequeno país que eu conheço tem um rei ou um chefe governando. Ele dá terras aos amigos e tira dinheiro dos que se desentendem com ele. É como ter uma criança à solta com uma espada. Em Roma temos o governo da lei. Ainda não é perfeito, e nem mesmo justo como eu gostaria, mas tenta ser, e é a isso que dedico minha vida. Vale minha vida; e a sua também, quando chegar a hora." Essas palavras, na verdade, estão no primeiro volume da série, e são ditas pelo senador Caio Júlio César ao filho ainda pequeno; coloco-as aqui porque é em A Morte dos Reis que tem início, propriamente, a complicada relação entre o Júlio César mais jovem e a República romana, instituição que ele começou servindo, mas à qual acabaria pondo um fim.

Os Portões de Roma termina com a tomada da capital por Cornélio Sila, arquirrival do tio e mentor de César, Mário. Este último é assassinado e todos os que o apoiavam são obrigados a fugir para evitar a vingança de Sila. O meio que o jovem Júlio encontra para escapar é alistando-se para dois anos de serviço militar no mar. É nessa situação que vamos encontrá-lo no início deste segundo volume, servindo a bordo de uma galera, com o posto de tesserário - um oficial de baixa patente, auxiliar de um centurião. Começa a destacar-se por sua coragem e capacidade de liderança por ocasião da tomada da fortaleza de Mitilene, numa ilha grega que se havia rebelado contra o domínio romano, mas mostra seu verdadeiro calibre mais tarde, quando a galera é afundada por piratas e os poucos sobreviventes são aprisionados à espera de resgate. Durante os duros e intermináveis meses de cativeiro, sua força de vontade e seu dom para inspirar coragem aos companheiros são reconhecidos por quase todos - inclusive o capitão Gadítico, antigo comandante da galera, que acaba cedendo o comando ao jovem. Quando o resgate finalmente chega, o escasso punhado de agora esquálidos e maltrapilhos oficiais navais é por fim libertado numa praia do norte da África, próximo de um povoado romano de onde, com alguma sorte, poderão tomar um navio para casa. Só que, ao invés de fazer isso, César decide tomar nas próprias mãos a tarefa de punir os piratas, tanto para restaurar seu orgulho abalado quanto para tentar reaver os vultosos resgates pagos pelas cabeças de todos eles e que, na maioria dos casos, deixaram suas famílias à beira da miséria. Para tanto, ele e seus companheiros começam a percorrer os povoados romanos da região, recrutando jovens que são na maioria filhos de legionários reformados, treinando-os por conta própria e equipando-os da melhor maneira possível.

Por mais disparatado que pareça o plano de César, de caçar um navio pirata entre as centenas que infestam o Mediterrâneo naqueles dias (sem esquecer que achar os piratas é a parte fácil, pois, uma vez isso feito, ainda será preciso derrotá-los), o fato é que consegue levá-lo a bom termo, e nem mesmo ele imagina que essa ainda está longe de ser a maior proeza que realizará durante esse tempo de exílio. Ao aportar na Grécia, César fica sabendo de duas coisas. Uma é boa: Sila morreu, de modo que, em teoria, ele poderia voltar a Roma; a outra, nem tanto: o rei grego Mitrídates do Ponto, que certa vez já se levantara contra Roma, sendo subjugado por Sila, está encabeçando uma nova e sangrenta rebelião que já custou as vidas de centenas de cidadãos romanos. Enquanto, em Roma, os senadores discutem interminavelmente e não conseguem determinar um curso de ação por causa de suas rivalidades e picuinhas, César e seus companheiros mais uma vez encaram o desafio. Juntando os jovens recrutados na África com algumas centenas de idosos soldados veteranos, que eles mesmos reconvocam pelas cidades gregas, formam uma curiosíssima unidade onde novatos e anciãos combatem lado a lado (essa reconvocação, por falar nisso, é verossímil: os veteranos das legiões, ao retornarem à vida civil, recebiam terras ou uma quantia em dinheiro suficiente para iniciar um negócio, e juravam apresentar-se novamente a qualquer momento, caso Roma necessitasse deles). Com cerca de mil homens - um quinto do efetivo normal de uma legião -, valendo-se de táticas de guerrilha, César enfrenta o exército de Mitrídates, dez vezes maior (para saber mais detalhes e qual o desfecho da campanha, leiam o livro - hehehe).

Um dos pontos mais fascinantes (pelo menos para mim) deste segundo volume da série, é a descrição fluente e convincente da vida nas legiões, que chega a permitir até mesmo a quem jamais vestiu uma farda (como eu, por exemplo) ter um vislumbre das coisas que um soldado deve sentir e viver - e de modo especial, não qualquer soldado, e sim os das incríveis legiões romanas, de longe o melhor exército que já existiu. A carreira de um legionário típico eram 20 longos anos de disciplina férrea, treinamento intenso, trabalho exaustivo, desconforto, risco de vida e, não raro, privações - e no entanto, os que se reformavam sentiam saudades da vida na caserna e diziam a todos que aqueles tinham sido os melhores anos de suas vidas. Talvez fosse porque a legião acabava tornando-se uma espécie de família para seus integrantes - e, para os romanos, família tinha real importância -, devido ao tipo sui generis de camaradagem que só enfrentar a morte lado a lado cria entre as pessoas. Ou por causa do sentimento de orgulho e poder que vinha de fazer parte de um exército cuja disciplina e habilidade, conquistadas mediante anos de treinamento duro, não podia ser igualada por nenhum outro exército do presente ou do passado - e, embora eles não pudessem sabê-lo, nem o seria no futuro. Devia ser uma coisa extraordinária sentir-se parte de uma unidade de combate acostumada a enfrentar inimigos duas, três vezes mais numerosos, no próprio território deles - e vencer.

A Morte dos Reis abrange um período de vários anos, e durante grande parte desse tempo César e seu melhor amigo, Brutus, permanecem separados: enquanto o primeiro está às voltas com os piratas e com a revolta de Mitrídates, o outro acaba de concluir um período de serviço militar na Macedônia e Grécia, e, tendo alcançado o posto de centurião, retorna a Roma, onde finalmente conhece sua mãe, Servília - que, na versão de Conn Iggulden, é uma prostituta de luxo; na verdade, quando o filho a encontra, ela praticamente já deixou de exercer a profissão, limitando-se agora a administrar um dos bordéis mais suntuosos de Roma, frequentado por muitos dos homens mais notáveis e poderosos da cidade, incluindo vários senadores. Graças à natureza de suas atividades, Servília tem mais e melhores contatos nas altas rodas de poder do que muitos de seus clientes, e é graças a ela que Brutus obtém do Senado permissão para reconstituir a Primogênita, a antiga legião de Mário, que foi praticamente exterminada quando Sila tomou o poder: como sua simples existência poderia suscitar a rebeldia dos cidadãos que eram leais a Mário, os poucos sobreviventes haviam sido obrigados a abandonar a vida militar, e o nome da legião fora removido das listas oficiais. Brutus, com a ajuda de seu antigo mestre Rênio, e contando com o apoio dos senadores Pompeu e Crasso, conquistados para sua causa por Servília, trata de reunir esses sobreviventes e de começar a recrutar novos soldados, prevendo que, quando Júlio voltar a Roma, precisará de uma força que lhe seja leal.

Outros personagens históricos vão pipocando na narrativa, adaptados aos objetivos ficcionais de Iggulden. Por exemplo, quem assistiu à série Roma terá dificuldade em reconhecer Atia (pronuncie Ácia), lá uma dama ambiciosa da alta sociedade, aqui uma mulher pobre mas orgulhosa, que não esqueceu suas origens nobres e trabalha duro para sustentar-se e ao filho, Otaviano. Os graus de parentesco foram mudados para que Otaviano ficasse mais próximo de César: historicamente, Atia era sobrinha de César, filha de uma irmã mais velha dele, e, portanto, Otaviano era seu sobrinho-neto; neste livro, Otaviano transforma-se em primo de Júlio, com a diferença de idade entre os dois enormemente reduzida. Mesmo assim, é engraçado ler sobre as peripécias do moleque magricela e de cara suja que vagabundeia pelos mercados de Roma praticando pequenos furtos - para desespero da mãe - e pensar que esse mesmo moleque será um dia o primeiro imperador (o próprio Júlio César nunca foi imperador, embora, na prática, tenha tido o poder de um).

O último feito de César e Brutus (novamente reunidos) neste volume, é sua participação na repressão à rebelião de Espártaco, que sobressai entre as muitas revoltas de escravos registradas na história romana, principalmente por suas dimensões, que foram tais que alguns historiadores referem-se ao episódio como a "Guerra Servil". O exército sob o comando de Espártaco chegou a ter 80 mil homens - o dobro do efetivo somado das oito legiões enviadas para enfrentá-lo -, sem contar mulheres, crianças e outros não-combatentes, e não era formado apenas por escravos fugidos ou libertados das propriedades invadidas, mas também por camponeses livres, descontentes com sua vida de trabalho duro e poucos ganhos, e por bandidos comuns, atraídos pela oportunidade de saquear o que encontrassem pelo caminho. Pior que o tamanho do exército era o fato de Espártaco já ter sido um legionário, de modo que conhecia o estilo de luta e as estratégias dos que agora enfrentava. É fato histórico (e está no romance) que faltou muito pouco para que alcançasse Roma e a arrasasse. Já a participação de César no combate ao exército rebelde não tem evidências documentais que a comprovem, embora seja muito possível, já que é sabido que ele era, na época, um jovem oficial nas legiões. A descrição que Iggulden faz das marchas exaustivas e das batalhas desesperadas dessa campanha é um dos (muitos) pontos fortes deste segundo livro.

A Morte dos Reis, independentemente de não casar muito bem com seu título, não frustra em momento algum as altas expectativas criadas por quem leu Os Portões de Roma. Prosa marcante, personagens vivos, sequências de ação de tirar o fôlego, descrições poderosas que evidenciam por parte do autor um sólido e vasto conhecimento sobre a civilização romana - está tudo aqui. Até o momento, não estou nem um pouco cansado da série, de modo que pretendo passar imediatamente ao terceiro volume. Me aguardem...

domingo, novembro 14, 2010

O Imperador - Os Portões de Roma

"- Os vitoriosos sempre serão odiados. É o preço que pagamos. Se eles o amarem, vão fazer o que você quer, mas quando quiserem. Se o temerem, farão sua vontade quando você quiser. Então, é melhor ser amado ou temido?
- Os dois - disse Caio, sério."

* * *

Existem figuras históricas para todos os gostos, e qualquer uma que tenha sido efetivamente importante é sempre alvo de polêmica. O mesmo homem pode ser considerado por alguns como um estadista brilhante e patriótico, e por outros um tirano desprezível; uns podem vê-lo como um herói destemido, outros como um carniceiro vulgar. Isso é particularmente verdadeiro quando se trata de alguém que já em vida era amado e odiado com intensidades quase iguais, e ainda mais quando, amando-o ou odiando-o, é impossível negar sua importância. Concluo que, resumindo tudo o que disse até aqui, talvez a nenhum outro personagem histórico esses fatos se apliquem tão bem quanto a Caio Júlio César.

Nascido por volta de 100 a.C., numa família da pequena nobreza romana, não havia diferença entre ele e centenas de jovens oriundos de outras famílias com a mesma projeção. Alguns de seus biógrafos registram que não teve irmãos, apenas irmãs muito mais velhas - o que, por significar que deve ter sido o último filho de seus pais, e o único do sexo masculino, pode, em parte, explicar a obsessão por grandes feitos que o acompanharia por toda a vida: é provável que se sentisse responsável por glorificar o nome da família. Isso, pelo menos, pode ter sido o impulso inicial, que o levou a enamorar-se da fama e do poder em si mesmos - e de fato, Júlio César, o jovem de origem modesta, viria a alcançar um poder que nenhum romano antes dele tivera, e que bem poucos depois teriam.

Por ser uma figura tão ímpar, César não é fácil de biografar. Muitas tentativas já foram feitas, sendo que aquela que continua a ser a mais célebre foi ainda na Antiguidade - trata-se de Alexandre e César, do grego Plutarco (século II d.C.), que, como o título já deixa óbvio, compara as vidas dos dois maiores generais surgidos até então. Ressalve-se que César era um admirador devotado de Alexandre, que o precedeu em dois séculos e meio, e não se considerava tão genial quanto ele em matéria militar, embora se achasse (e, sem dúvida, fosse) mais habilidoso quando o assunto era a política. O que direi agora é basicamente uma impressão pessoal de alguém que desde a infância leu compulsivamente sobre ambos os personagens e sonhou com suas glórias, mas parece-me que, enquanto Alexandre era um idealista, César era predominantemente um homem prático - o que não significa que não tivesse seu lado sonhador, sem o qual ninguém jamais consegue realizar grandes coisas. De qualquer forma, a idade de cada um deve ter tido seu peso nesse ponto: Alexandre realizou seus maiores feitos com vinte e poucos anos e morreu antes de completar 33; César, por sua vez, não foi nenhum menino-prodígio: só começou a se notabilizar quando já tinha 37, 38 anos, e viveu até seus maduros 56.

Ufa... Depois dessa longa introdução (não tenho culpa se o assunto me empolga...), acho que já é tempo de começar a falar do livro - na verdade, livros - em si. A série O Imperador, escrita pelo inglês Conn Iggulden, é uma leitura absolutamente deliciosa. Para quem possui um conhecimento ao menos básico da história e cultura romanas, ela flui com facilidade e se torna rapidamente um ato febril. Iggulden soube modelar seu herói incluindo todos os traços de personalidade que o homem de carne e osso indubitavelmente teve, e mais alguns que é bem possível que tenha tido, o que resulta num personagem literário (frise-se a distinção entre isso e o personagem histórico) fascinante. É preciso ter em mente que trata-se de uma obra de ficção, para a qual a História serviu apenas de inspiração: ao final de cada volume, o autor incluiu uma nota onde detalha quais foram as liberdades que tomou em prol de seu objetivo de entretenimento. A principal dessas liberdades - e que resulta num dos aspectos mais cativantes da história (sem H maiúsculo) - refere-se à relação entre César e Brutus. Acho que convém dedicar um parágrafo a isso, pegando o assunto pelo início.

Todo mundo sabe que Brutus foi um dos assassinos de César - o problema é que isso é a única coisa que a maioria das pessoas sabe sobre ele. Algumas fontes dão, erroneamente, que ele era filho adotivo do ditador; oficialmente, os dois não tinham qualquer parentesco, fosse sanguíneo ou legal. Oficialmente, eu disse. O que havia era que César manteve um caso de muitos anos com Servília, que vinha a ser a mãe de Brutus, de modo que algumas pessoas acreditavam que este último, embora assumido como filho pelo marido de Servília, tivesse, na verdade, César como pai natural. E, como naquele tempo não havia teste de DNA, a dúvida nunca pôde ser tirada a limpo... De todo modo, César teve algumas atitudes paternais para com Brutus, interessando-se por sua educação e depois pelo encaminhamento de sua carreira. Brutus serviu no exército sob as ordens de César, e, mais tarde, iniciou-se na política sob os seus auspícios. César, portanto, o considerava seu amigo e aliado, o que justifica a surpresa desiludida com que o reconheceu entre seus assassinos, soltando então a frase célebre: "Et tu, Brute?" ('Até tu, Brutus?') O caráter de Brutus é assunto polêmico: os amigos de César, sedentos por vingança, o rotularam como um traidor desprezível e ingrato, movido pela ambição; outros o viam como um patriota corajoso, defensor irredutível da República, que, embora com dor no coração, teria concluído que César precisava morrer justamente porque havia se tornado um ditador, uma ameaça aos ideais republicanos. Esse último ponto de vista é adotado por Shakespeare em sua peça Júlio César, onde, depois de consumado o crime, Brutus declara: "Não é que eu não amasse César, mas meu amor por Roma é bem maior".

Como se vê, portanto, Brutus era muito mais jovem que César, já que podia mesmo ser seu filho. Essa é a primeira e maior liberdade tomada por Iggulden na série de que estamos falando: seus César e Brutus (aliás, Caio e Marco, como chamam informalmente um ao outro quando garotos) têm a mesma idade e são criados juntos na pequena fazenda do pai de Caio, nos arredores de Roma, desenvolvendo entre si uma amizade sólida e fraterna. Não fica claro como foi que Marco veio a ficar sob a tutela do pai de Caio - este apenas diz, vagamente, que prometeu ao pai do menino, quando este estava morrendo, tomar conta dele. Durante poucos anos inocentes, nos intervalos entre uma e outra aula com seus tutores, Marco e Caio fazem todas as travessuras a que têm direito - mas, a partir dos dez anos, começam a ser treinados pelo implacável Rênio, por sinal outra figura fascinante, um velho legionário reformado e ex-gladiador, considerado um dos maiores lutadores de Roma, que faz muito mais do que ensiná-los a manejar o gládio - a mortífera espada curta com a qual as legiões romanas puseram de joelhos inúmeros exércitos bárbaros que empunhavam armas bem mais impressionantes: endurece-os por meio de um treinamento ainda mais rígido que o imposto aos legionários, além de calculadamente fazer com que o odeiem, o que quase termina em desastre numa das passagens mais dramáticas do primeiro volume, Os Portões de Roma. Como resultado, Caio e Marco convertem-se em dois jovens rijos, espertos e perigosos, capazes de enfrentar o destino grandioso e cheio de riscos que os espera.

Os dois amigos se veem subitamente jogados no mundo adulto quando estão com 14 para 15 anos: uma grande rebelião de escravos estoura em Roma, e não poupa as propriedades rurais das redondezas. A fazenda é atacada por uma multidão de escravos em fúria e, na mesma noite em que os dois jovens têm seu batismo de sangue, sua primeira batalha, o pai de Caio tomba lutando. O jovem César é obrigado a tomar a frente dos negócios da família e assumir a responsabilidade por sua mãe, que, se já era desequilibrada, enlouquece de uma vez após perder o marido. Caio vai então a Roma procurar por seu tio Mário - general e cônsul, personagem histórico real e extremamente importante: entre outras coisas, Mário reformulou a organização interna das legiões e aboliu a exigência que existia até então, de se possuir terras para se alistar nelas. Com isso, cada legionário passou a poder viver de seu soldo, o que, na prática, fez da carreira militar uma profissão propriamente dita. Isso viria a fazer uma diferença enorme na história futura de Roma, não só no aspecto militar, mas também no social.

Com Mário, Caio começa a aprender sobre a intrincada e por vezes traiçoeira estrutura política da capital, conhecimento que lhe será essencial para que possa ocupar o lugar do pai no Senado e honrar a tradição da família. Porém, ele chega num momento crítico, exatamente quando seu poderoso tio e o rival deste, o outro cônsul, Cornélio Sila, estão no meio de uma dificílima queda-de-braço pelo poder supremo em Roma. Enquanto Marco, que, embora sem berço, impressionou Mário por sua coragem e capacidade, recebe deste uma carta de recomendação e parte para começar sua carreira militar na Macedônia, Caio permanece junto do tio, aprendendo a ser um membro da nobilitas, conhecendo as forças e as fraquezas de Roma e dos romanos, a lei e os costumes, as artes da guerra e da política, e, principalmente, aprendendo sobre a natureza humana - tudo o que mais tarde faria dele um dos homens mais famosos e admirados que já viveram.

Costumo dizer que o problema em ler séries de livros é que, se você tenta ler todos de uma enfiada só, acaba cansando, e, por outro lado, se lê um, deixa passar algum tempo, lê outras coisas, para só então pegar o próximo volume, acaba esquecendo detalhes importantes e fica meio perdido. Desta vez vou correr o risco e experimentar ler a coisa toda de uma vez - e, pela primeira vez, tentarei comentar todos os volumes de uma série, pois acho que esta merece o esforço - e a diversão. Espero que as resenhas fiquem à altura dos livros em si! Desejem-me sorte.

sábado, outubro 16, 2010

Coraline

Quem primeiro me falou de Neil Gaiman foi a minha muito, muitíssimo especial amiga Aline Valek - não preciso ficar aqui falando longamente das qualidades dessa garota adorável e genial: vocês podem visitar pessoalmente o blog dela e conferir por si mesmos. Para mim, até então, Gaiman era "apenas" o responsável por Sandman, obra considerada cult pelos aficionados por quadrinhos, mas que eu só conhecia de nome e de capa. Como, porém, a Aline tinha esse jovem escritor britânico em altíssima consideração - a palavra mais comedida que usava para se referir a ele era "mestre" - e, para mim, a opinião dela sempre teve enorme peso, anotei o nome do autor na minha "agenda infinita" mental, como algo que devia valer a pena conhecer. E, por a agenda ser infinita, no sentido de que são infinitas as obras e autores que a gente deveria conhecer e ainda não conhece (olá de novo, Ítalo Calvino...), só agora, anos depois, é que efetivamente peguei um livro de Gaiman, corri a cortina em volta de mim mesmo para dispor de um isolamento adequado, e disse: "Bom, agora eu vou ler mesmo!" O livro foi Coraline, e eu não estava preparado para o que encontrei. Acho que ninguém pode estar.

Coraline é uma menina - típico, afinal crianças são os melhores protagonistas para histórias bizarras, onde a tessitura comum do mundo que vulgarmente chamamos de "real" começa a ficar incerta: crianças não perdem tempo duvidando dos próprios sentidos nem dizendo bestamente a si próprias que "isso é impossível", embora a coisa esteja bem diante de seus olhos. Uma menina não diferente das outras de sua idade, a não ser, talvez, por ter um gosto ainda maior que o da maioria das crianças por explorar, achar coisas, reconhecer o ambiente ao seu redor. Ela parece gostar do próprio nome (cuja correlação com "coral" pode ocultar algum significado), pois faz questão de que as pessoas o pronunciem direito - o que é um problema, pois adultos em geral insistem em chamá-la de Caroline. Isso também é típico.

Coraline e seus pais acabam de mudar-se para uma enorme e antiga casa de três andares, que foi dividida em vários apartamentos. Abaixo deles, moram duas idosas ex-atrizes; acima, um velho solitário e excêntrico. Além disso, ainda há na casa apartamentos vazios. Na sala de visitas do apartamento dos pais de Coraline existe uma porta que, aparentemente, não vai dar em lugar algum: abre-se para uma parede de tijolos que, como a mãe explica, foi erguida para vedar a passagem quando a casa foi desmembrada. Acontece (e isso só Coraline parece notar) que a parede nem sempre está ali: às vezes, ao ser aberta, a porta dá acesso a um corredor longo, escuro e frio. Do outro lado existe um apartamento, à primeira vista, igual ao que ela conhece - mas só à primeira vista. Ali ela tem outro pai e outra mãe, que, diferentemente dos originais, que têm seu trabalho e seus próprios assuntos para ocupá-los, parecem estar ali só para ela, cercando-a de toda a atenção. De resto, parecem-se muito com o pai e a mãe que Coraline conhece, só que são ligeiramente estranhos. Ao sair para explorar, ela descobre que também existem outras duas velhas senhoras no andar de baixo e outro velho solitário no andar de cima, todos muito parecidos com suas contrapartes do outro lado do corredor, só que todos, também, ligeiramente estranhos. E, como ela não demora a descobrir, o fato de nesse estranho lugar todos terem botões pretos no lugar dos olhos está longe de ser a coisa mais estranha ali.

E outras coisas bizarras e horripilantes começam a surgir e acontecer. Ao retornar pelo corredor ao mundo que conhece, Coraline descobre que seus pais verdadeiros desapareceram, e só podem estar num lugar: aprisionados do outro lado, como uma isca para forçá-la a voltar. Há um gato que parece saber de tudo o que acontece ali e ser capaz de circular livremente entre os dois mundos, mas não está lá muito interessado em ajudar Coraline. Três crianças presas por trás de um espelho - fantasmas, ou menos que isso, pois suas almas foram roubadas. Presenças misteriosas e sem forma que perambulam pelo corredor escuro. Para ganhar sua própria liberdade e a de seus pais, Coraline terá de vencer um jogo contra sua "outra mãe", o que irá exigir dela toda a sua coragem. Coragem que, como ela explica sabiamente ao gato, não consiste em não ter medo, mas em fazer o que se deve, apesar do medo.

É incrível a facilidade com que um leitor pode ser envolvido por esta história. Nela, entra-se num mundo que poderíamos ficar tentados a qualificar de "irreal", mas essa palavra perde o sentido quando tudo o que costuma servir de referência para definir o que é real e o que não é, começa a ser questionado e se torna objeto de dúvida. A linguagem e o desenvolvimento da narrativa são simples, quase do modo como uma criança contaria uma história, e mesmo assim (ou, quem sabe, em grande parte por causa disso), os arrepios experimentados não serão facilmente esquecidos. As imagens oníricas evocadas por Gaiman me lembraram em diversos momentos o alemão Michael Ende, não tanto em sua obra mais conhecida, A História Sem Fim, mas principalmente em outros livros onde o elemento surrealista aparece com mais força, como O Espelho no Espelho. Pois a proposta do surrealismo, expressada da maneira mais simples, consiste em transformar em imagem - seja gráfica ou literária - as manifestações do inconsciente, sem fazê-las passar pela peneira da razão. Vocês já acordaram com a sensação de terem tido um sonho estranho, que parece ainda estar roçando quase na superfície da mente, mas que não conseguem lembrar, embora a sensação perturbadora que ele causou ainda esteja bem nítida? Pois Neil Gaiman nos convida a reencontrar alguns desses sonhos esquecidos, se tivermos essa coragem - a coragem da qual Coraline fala ao gato. Por fim, para registro, já estou com dois outros livros de Neil Gaiman na fila: Coisas Frágeis e O Mistério da Estrela. Não se surpreendam se logo, logo, eu voltar a falar no mestre.

quinta-feira, setembro 30, 2010

A Águia da Nona

Séculos de luta - Décadas de guerra ficaram para trás.
Inúmeros foram os homens que derrotamos.
Mas agora, meus irmãos, temos de enfrentar
Um inimigo mais valente que todos os outros.
A mão direita de Roma, o martelo da Espanha
A Nona Legião...


* * *

Esses versos são parte de uma música da banda alemã Suidakra, de seu álbum Caledonia (2006). Quem os conhece já sabe da fascinação que têm por histórias arturianas, mas nesse disco suas viagens líricas vão mais fundo no passado da Bretanha, até os dias da ocupação romana. E talvez tenham até se inspirado, pelo menos em parte, neste e em outros romances da autora inglesa Rosemary Sutcliff. Sei que já tinha lido o nome dela em algum lugar - pensei que pudesse ter sido na parte final do manual de RPG GURPS Império Romano, onde o autor dá inúmeras sugestões de livros, filmes e outras fontes de inspiração para a criação de aventuras, mas, por mais que procurasse, não achei menção a Sutcliff lá. Em todo caso, ao topar com este livro, o nome e o título imediatamente fizeram "tocar um sino" na memória, de modo que o interesse foi automático. E não me arrependi.

Caledônia é o nome que os romanos davam à Escócia, terra que desistiram de conquistar no século II, sob o imperador Adriano. Antes, durante o último quarto do século I, o célebre general Cneu Júlio Agrícola chegara a obter consideráveis sucessos no esforço de conquista, de modo que toda a parte do país ao sul do Firth of Forth (o estuário do rio Forth, o "grande braço de mar", como diz Sutcliff, que pode ser visto no mapa, quase separando as metades norte e sul da Escócia) veio a ser uma província romana, com o nome de Valentia (pronuncia-se Valência, curiosamente o mesmo nome da capital romana da Espanha; não sei o porquê da homonímia). Mais tarde, Adriano, que era contra a política de "conquista pela conquista" de alguns de seus predecessores, determinou o abandono de Valentia, cuja manutenção estava tendo um custo alto tanto em recursos quanto em vidas. Ordenou, então, a construção da muralha que levou seu nome e marcou, grosso modo, o que até hoje é a fronteira da Inglaterra com a Escócia. A Muralha visava proteger a província romana da Bretanha contra os ataques dos povos do norte - os pictos (do latim picti, "pintados"), um povo semisselvagem, e os escotos, um ramo dos celtas que, ao contrário de outras tribos, continuava quase intocado pela cultura romana e ferozmente obstinado em sua recusa em fazer parte do Império. E o isolamento propiciado pela construção da Muralha só fez aumentar a percepção que os habitantes da parte da ilha ao sul dela - o povo formado pela miscigenação de celtas e romanos que, aos poucos, passou a ser conhecido como bretão - tinham das terras do norte como um lugar misterioso, envolto em névoa, e não apenas a névoa natural. De acordo com Sutcliff, a Legio IX Hispana (a Nona Legião Espanhola) teria marchado para o norte a fim de dominar a insurreição de uma tribo na fronteira, e desaparecido - nenhum soldado retornou e ninguém mais teve notícias dela. Não há comprovação de que tal fato tenha realmente ocorrido, mas isto é um romance histórico, que, antes de ser histórico, é romance, ou seja, ficção; mais importante que a fidelidade férrea aos fatos é que haja uma boa história (sem H maiúsculo), e isso o livro oferece.

Só como curiosidade, a Nona Legião pode ter sido recrutada por Pompeu na própria Espanha por volta de 65 a.C., ou por Júlio César, na Gália, sete anos depois - os defensores da segunda hipótese apontam que ela só ganhou o epíteto de "Hispana" décadas mais tarde, por sua valente participação numa campanha contra certas tribos espanholas, durante a década de 20 a.C. Entre outros momentos-chave da história militar romana, a Nona apoiou César na primeira guerra civil e Augusto na segunda, tendo participado das célebres batalhas de Farsalos e Actium, e, depois, da segunda invasão da Bretanha, sob o imperador Cláudio, em 43 d.C. E na Bretanha a Nona permaneceu estacionada, como parte das forças de ocupação, durante os próximos cerca de 80 anos; depois de 120, deixa de haver registros sobre ela. Alguns indícios sugerem que tenha sido transferida para a Germânia, e lá tenha presumivelmente sido destruída num de vários confrontos com as tribos do Reno, os soldados sobreviventes incorporados a outras unidades e seu número excluído do ranqueamento oficial das legiões imperiais. Mas isso é apenas especulação.

É possível que, quando Rosemary Sutcliff escreveu seu livro, em meados do século XX, houvesse ainda menos informações históricas e arqueológicas disponíveis a respeito do possível destino da Nona Legião do que hoje - e, como sabiamente escreveu C. C. Humphreys, é precisamente nas lacunas que o romancista histórico encontra espaço para trabalhar. De modo que Sutcliff sentiu-se livre para adotar a versão de que a Nona teria desaparecido em direção ao norte. O protagonista do livro é Marcus Flavius Aquila (a autora não lhe deu o sobrenome "Águia" por acaso), um jovem centurião que recebe como primeira missão de comando levar uma coorte de auxiliares gauleses até uma pequena fortaleza nos arredores da cidade de Isca Dumnoniorum, no sul da Bretanha, e, chegando lá, assumir o comando do forte. Marcus vem de uma família de longa tradição militar, e é filho de um dos oficiais desaparecidos da Nona. Além de toda a empolgação de início de carreira, o fato de ter sido enviado justamente à Bretanha faz com que não consiga deixar de ter uma pequena esperança de, de alguma forma, talvez descobrir algo sobre o destino do pai. Porém, suas expectativas pouco duram: está há poucas semanas em seu posto quando estoura a rebelião de uma tribo local. Durante a batalha, num ato tão heroico quanto doido, o jovem oficial ataca a pé uma carruagem de guerra bretã na tentativa de salvar um grupo de seus companheiros. Uma de suas pernas fica praticamente moída, mas, contra toda a expectativa - inclusive a sua própria -, Marcus sobrevive.

Como tem pela frente pelo menos um ano de convalescença, e mancará pelo resto da vida, isso representa o fim de sua carreira militar - a carreira com a qual sonhava desde criança e a única na qual já se imaginara. Marcus vai então para a casa de um tio, também reformado do exército, em Calleva, para recuperar-se. É lá que, já refeito do ferimento, ouve de um oficial amigo do tio certos rumores que o inquietam: os bárbaros do extremo norte da ilha teriam em seu poder uma águia romana, que tudo indica ser a mesma que desapareceu com a Nona Legião.

É de se imaginar que a maioria dos leitores modernos não tenha a exata dimensão do que significava o estandarte da águia para um soldado romano. Tratava-se do símbolo máximo da honra de sua legião. Como o próprio Marcus explica no livro, mesmo que só reste um punhado de soldados, se a águia estiver com eles a legião ainda existirá; se a águia for perdida, a legião acaba. Esperava-se de um bom legionário que morresse antes de permitir que inimigos se aproximassem da águia. Carregá-la durante a batalha era uma grande honra, e perdê-la, uma desgraça. Há poucos registros de casos em que a águia efetivamente caiu em mãos inimigas; em diversos deles, o portador do estandarte preferiu suicidar-se ainda no campo de batalha a ter que se apresentar diante de seu comandante e dizer que perdera a águia.

E Marcus, mesmo não estando mais na ativa, não deixou de ser um soldado em sua essência. A Nona foi a legião de seu pai, o que torna a história toda uma questão profundamente pessoal para ele, que decide então arriscar-se numa louca aventura pela Caledônia, acompanhado apenas por seu escravo pessoal, o ex-gladiador Esca Mac Cunoval, para tentar recuperar a águia, resgatar a honra de seu pai e, quem sabe, conseguir que a legião seja reconstituída. Será uma viagem perigosa e talvez sem volta, por uma terra selvagem habitada por um povo orgulhoso que odeia os romanos (embora os admire como guerreiros), mas abrirá os olhos de Marcus para uma visão diferente da vida, através do contato com uma gente que vive segundo um ritmo diferente, mais próximo da natureza. Há inclusive a narração de uma cerimônia religiosa realizada pelos nativos em honra ao Chifrudo, o grande deus da natureza, à qual Marcus, sendo um adorador de Mitra - deus de origem persa que havia se tornado muito popular entre os soldados das legiões romanas na época -, assiste com o distanciamento que lhe é possível, sem conseguir evitar que emoções estranhas aflorem diante do mistério. Mas talvez o encantamento que faz de A Águia da Nona um livro que prende, seja o seu aspecto mais humano: a relação entre Marcus e Esca, que passam gradualmente a se ver e tratar como iguais - não mais senhor e escravo, mas amigos, unidos por uma lealdade que passa por cima de ódios ancestrais e diferenças de cultura. Marcus representa o que de melhor a civilização romana tinha: sua determinação a seus objetivos, a fidelidade inflexível a seus princípios e valores, o apego à honra e à família, e um olhar esclarecido, capaz de ser tolerante para com as diferenças. Esca, por sua vez, lembra muito a imagem estereotipada, mas sempre simpática, do "bom selvagem", chegando a se parecer com os heroicos guerreiros indígenas de romances como O Último dos Moicanos: um braço forte e um coração fiel, fala pouco, mas quando o faz, é com toques poéticos e uma sabedoria simples e certeira - que romanos mais arrogantes, como um ou dois personagens do livro, talvez desprezassem, mas que Marcus respeita e leva em grande consideração.

Uma observação para finalizar: na segunda orelha do livro, lê-se que "adaptado para o cinema pelo diretor Kevin Macdonald, o mesmo de O Último Rei da Escócia (...), A Águia da Nona promete arrebatar o público de todo o mundo." Ahhhh! Eu estava mesmo estranhando que um livro publicado pela primeira vez há mais de 50 anos, e para o qual as editoras brasileiras nunca deram pelota em todo esse tempo, fosse lançado por estas bandas justamente agora, assim no más, como dizemos aqui no Rio Grande do Sul. Não dá para a gente não se aborrecer ao constatar que para que nós, brasileiros, possamos ter acesso a uma joia como esta, primeiro é preciso esperar que Hollywood a descubra. Resta esperar que o filme não repita o fiasco de A Última Legião, que transformou o belo romance de Valerio Massimo Manfredi na abobrinha que se viu nas telas.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Vlad: a Última Confissão

"(...) - Quanto ao contexto dos meus pecados, é simples. (...) Eu preciso governar.
- Você governa.
- Não. Eu me sento no trono. Ele está colocado no centro da terra mais sem lei do mundo. E fui colocado nele para mudar isso. Este é o meu kismet.
- Não conheço essa palavra.
- É uma palavra dos turcos. Uma tradução aproximada seria um 'destino inalterável'. Dado por Deus no nascimento. (...)
- Você está dizendo que não pode evitar o que faz?
- Sim.
- Este não é o ensinamento de nossa Igreja, de sua fé. Cada homem tem uma escolha, fazer o bem ou o mal.
- Então talvez eu tenha me desviado da Ortodoxa nesse ponto. Porque sei o que estou destinado a fazer e como fazê-lo. Não posso fazer outra coisa."

* * *

Vlad III Basarab (1431?-1476), príncipe da Valáquia, não é uma figura histórica como outras. É difícil obter alguma informação sobre ele além do que todo mundo sabe: que serviu de inspiração para que o escritor irlandês Bram Stoker criasse o mais famoso vampiro da literatura, Drácula. Experimentem uma busca rápida no Google com o nome dele, ou com qualquer de seus apelidos mais famosos, Vlad Tepes ou Vlad Drácula: praticamente só vão encontrar uma lista infindável de textos em sites sobre vampirismo, enfatizando o vasto derramamento de sangue que ele promoveu em sua terra (na época um principado subordinado ao reino da Hungria, hoje uma das províncias que formam a Romênia), e talvez mencionando o desconcertante fato de que, quando seu túmulo foi aberto, em 1933, só ossos de cavalo foram encontrados - o que, em se tratando de um homem sobre cujas supostas afinidades sobrenaturais já se cochichava desde quando ele era vivo, levantou as inevitáveis dúvidas sobre se ele teria realmente morrido, se, morrendo, teria permanecido morto, ou... Bem, vocês entenderam.

O que C. C. Humphreys faz neste livro é tentar encontrar o homem por trás do mito, reconstituindo a vida de Vlad desde sua juventude (boa parte da qual passada como refém dos turcos) para tentar entender os porquês de seus atos. Não há propriamente um juízo de valores nestas páginas, mas o autor consegue, sem formular a questão em termos explícitos, fazer com que o leitor se pergunte qual a explicação para que o mesmo homem considerado um herói em seu país (pois Vlad o é) seja visto no resto do mundo como um mero assassino psicótico que, para o azar da humanidade, herdou uma coroa e um trono, numa época em que os atos dos poderosos não eram contestados.

O romance começa em 1481, cinco anos após a morte de Vlad, quando o cavaleiro húngaro Janos Horvathy, ele próprio um membro da Ordem do Dragão (à qual também pertencia Vlad) chega à Valáquia com a missão de investigar e descobrir a verdade sobre o príncipe; se possível, tentar reabilitar seu nome, já que o excesso de sangue que manchou sua história acabou prejudicando a reputação dessa irmandade outrora venerável. Para tanto, ele reúne as últimas três pessoas vivas que privaram da intimidade de Vlad: Ion Tremblac, cavaleiro valáquio, que foi seu braço direito e melhor amigo; Ilona, amante do príncipe; e o ex-monge Vasilie, seu confessor. É através dos depoimentos deles que a extraordinária história de Vlad Drácula será recuperada.

A vida de Vlad desenrolou-se em situações limítrofes, tanto no tempo quanto no espaço. Em sua época, a Europa atravessava o traumático período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna - é possível que ele tenha sido testemunha ocular da queda de Constantinopla nas mãos dos turcos (1453), evento que, por convenção, costuma ser tomado como linha divisória entre as duas eras. Ao mesmo tempo, seu pequeno país estava cravado exatamente onde o Ocidente cristão encontrava o Oriente Médio muçulmano: onde dois mundos colidiam. E, a exemplo do que seus irmãos maometanos do norte da África - mouros, berberes - haviam feito na Península Ibérica séculos antes, os turcos do Império Otomano pretendiam agora expandir a influência do Islã pelo leste europeu. E a Valáquia estava em seu caminho.

O pai de Vlad, príncipe Vlad II, era conhecido tanto pela coragem em batalha quanto pela forma impiedosa como costumava tratar inimigos vencidos. E inimigos não faltavam, tanto externos - os turcos, cujo furor expansionista estava no auge nessa época - quanto internos: boa parte dos boiardos, isto é, dos nobres, não tinham nada contra cooperar com os invasores, desde que a margem de lucro fosse suficientemente alta, além de cobiçarem o trono e não recusarem qualquer ajuda para chegar a ele, viesse de onde viesse. Por sua participação na resistência contra o invasor muçulmano, Vlad II recebera do patriarca da Igreja Ortodoxa a alta honraria de ser nomeado membro da Draculea, a Ordem do Dragão, e por isso ficou conhecido como Dracul (dragão, em romeno), passando seus filhos homens a terem o direito de usar o epíteto de Dracula: os "filhos do dragão".

Vlad II acabou derrotado pelo sultão turco Murad na batalha de Galípoli, e, entre as concessões que teve de fazer, entregou os dois filhos mais jovens, Vlad e Radu, como reféns ao inimigo vitorioso, enquanto apenas o mais velho, Mircea, permanecia em sua companhia. O tratamento dispensado aos reféns segundo o romance faz lembrar o que os romanos davam aos filhos de chefes bárbaros sob sua tutela: confortos condizentes com sua posição social e, mais importante, a melhor educação possível - dentro da cultura do povo vitorioso, é claro. Vlad aprende várias línguas, poesia, literatura, matemática, além de ser iniciado naquela que se tornaria sua grande paixão, a falcoaria. Também estuda a fundo o Corão, o que não o leva a abraçar a fé islâmica, mas é de suma importância para que compreenda melhor os turcos, contra os quais não duvida em nenhum momento de que um dia terá de lutar. Até que um passo em falso dado por seu pai tem consequências terríveis: Vlad é transferido para a fortaleza de Tokat, onde amarga longas semanas num calabouço e depois é integrado à força a uma turma de estudantes que se dedicam a matérias bem menos edificantes que as que estudara até aí: métodos de tortura, alguns dos quais o jovem sente na própria pele. E é em Tokat que Vlad pela primeira vez vê um homem ser empalado, técnica que os turcos aprenderam com os saxões da Transilvânia e aperfeiçoaram.

Paradoxalmente, Vlad acaba contando com o favor de Murad para não só recuperar sua liberdade, como para conquistar seu direito: durante seu período como refém, seu pai e seu irmão mais velho haviam sido assassinados por uma liga de boiardos traidores, e aos 18 anos, à frente de um pequeno exército de valáquios fiéis e de tropas cedidas pelo sultão (que provavelmente imaginou que um príncipe coroado graças a sua benevolência se tornaria um fantoche útil), Vlad recupera o trono da Valáquia e senta-se nele pela primeira vez - ao longo de sua turbulenta carreira esse trono seria perdido e recuperado nada menos que três vezes. É só mais tarde, durante seu segundo e mais longo período de governo (1456-1462), que ele ganha a fama que o acompanharia até o túmulo e muito além: começa empalando os nobres que conspiraram contra seu pai e depois instaura a mesma pena para todos os crimes, de qualquer tipo, que venham a ser cometidos. Com isso, consegue transformar a Valáquia de uma terra sem lei, onde o enorme número de bandidos nas estradas havia inviabilizado o comércio, num país seguro e próspero, o que faz com que a população comum o veja com bons olhos. Isso, mais as diversas vitórias que obteve contra os turcos, mesmo em grande inferioridade numérica, valeu-lhe o status de herói nacional de que ainda hoje goza na Romênia. E no entanto...

É difícil separar fato de ficção em relação a qualquer vulto histórico, e talvez nenhum outro seja tão difícil nesse ponto quanto Vlad. Pode-se (e isso já foi feito) retratá-lo simplesmente como um patriota obstinado que desejava o melhor para seu país e para isso estava disposto a tudo - inclusive a atos brutais e chocantes - ou como um perfeito monstro, que se deliciava com o derramamento de sangue e aproveitava qualquer pretexto que se apresentasse para ordenar verdadeiros holocaustos. Os romenos gostam de acreditar que seu antigo príncipe sabia usar o terror como uma arma para alcançar objetivos válidos: punir com brutalidade exemplar qualquer criminoso apanhado era uma maneira de fazer outras pessoas pensarem mil vezes antes de cometer crimes, enquanto, para os soldados turcos, marchar por uma estrada ladeada pelos cadáveres empalados de centenas de seus camaradas era sem dúvida um golpe severo no moral, o que só podia beneficiar os valáquios. E, para quem quiser entrar nesse mérito, o que não farei aqui, é interessante lembrar que, além de todos os outros motivos de notoriedade, Vlad provavelmente foi o primeiro governante da História a ter o poder da imprensa mobilizado contra si: a então recente invenção de Gutenberg permitiu que panfletos narrando seus crimes fossem copiados aos milhares e amplamente distribuídos em vários países. Tenha isso sido um golpe de difamação orquestrado por seus inimigos, ou mero resultado do faro comercial de alguns indivíduos que perceberam que podiam lucrar com a curiosidade do público por histórias assustadoras (ei, isso não é uma maravilha? A imprensa marrom nasceu praticamente junto com a própria imprensa!), o fato é que fica praticamente impossível saber quanto do que dizem esses folhetos é verdade e quanto é fantasia.

Humphreys parece ser o tipo de escritor que gosta de personagens complexos e contraditórios, e soube fazer de "seu" Vlad um exemplo perfeito e completo disso: ora ele ganha nossa admiração, ora nos causa horror. As qualidades que o autor atribui ao príncipe são aquelas que já eram imaginadas por quem conhecia um pouco mais sobre ele do que apenas seus atos sanguinolentos: qualquer um que tenha tido a trajetória de vida que Vlad teve só podia tratar-se de um homem com uma vontade de ferro e uma coragem inabalável. Além disso, ele tem facetas diferentes: pode ser incrivelmente cruel, mas também gentil - enfim, é humano. E o melhor é que há no livro vários outros personagens fascinantes, além de uma narrativa vigorosa, envolvente, como há tempos eu não via. Pena que o autor ponha tudo isso a perder com um final que tenta ser surpreendente, mas só consegue parecer absurdo: no lugar de Humphreys, eu teria terminado o livro no capítulo 50, pois os dois últimos e o epílogo são um delírio só. Não que eu seja um daqueles chatos que ficam cobrando "verossimilhança" em obras de ficção (e Vlad: a Última Confissão é ficção, mesmo que baseada em fatos históricos), mas há ficções que convencem e outras que soam artificiais. Até o capítulo 50, o livro de Humphreys se enquadra no primeiro tipo; daí para diante, cai no segundo.

quarta-feira, julho 14, 2010

Conhecimento Prático - Literatura

Como este é o meu "blog de literatura", e trata-se de um fato deveras relevante para as minhas aspirações literárias, peço licença aos meus leitores para registrar que, pela primeira e espero que não última vez, tive um texto de minha autoria publicado numa revista de circulação nacional. Refiro-me à revista Literatura, do grupo Conhecimento Prático, da editora Escala Educacional, que também inclui Língua Portuguesa, Filosofia e Geografia. Meu modesto trabalho intitula-se Eneida: a evolução do herói, e é um breve ensaio sobre a visão do heroísmo retratada na obra-prima do poeta romano Virgílio, que veio a ser também o grande poema nacional de Roma, tal como a Ilíada e a Odisseia foram para a Grécia. O assunto despertou minha curiosidade quando estava redigindo meu trabalho de conclusão da faculdade e, ao fazer um estudo comparativo entre a obra de Virgílio e as de Homero, dei-me conta de que, apesar de toda a influência que este último exerceu sobre o outro, a ideia do que fosse um herói não era a mesma para ambos. É um assunto sobre o qual pode-se escrever todo um livro - projeto que continuo acalentando -, mas considero-me, por ora, satisfeito com o resultado que pode ser visto nas páginas da revista, e ficaria deveras lisonjeado se algumas das pessoas que acompanham meu blog porventura a lessem e me enviassem suas impressões, não importa que não especializadas. Como dizem os aficionados por futebol ao verem seu time fazer o primeiro gol numa partida que até aí ameaçava terminar no zero a zero, "por onde passa um boi, passa uma boiada", então já tenho cá os meus planos para mais alguns artigos.

segunda-feira, junho 28, 2010

A Maldição do Titã

OK, OK, pode parecer meio suspeito que uma série para adolescentes ocupe tanto espaço num blog cujo autor já vai adiantado na casa dos 30 e, para completar, é formado em Letras e um leitor com muitas "horas de voo" e um conhecimento não desprezível dos clássicos da literatura universal, mas não dá para resistir à empolgação de ver que, contra todas as expectativas, surgiu um autor capaz de dar à mitologia grega clássica uma roupagem que a torna assimilável pela garotada de hoje, sem desvirtuá-la! Não é difícil imaginar um dos jovens leitores de Rick Riordan, após terminar este livro, indo para a internet procurar mais informações sobre mitologia ou, ainda melhor, abrindo um daqueles velhos volumes encadernados que juntam poeira na sala de visitas da casa dos avós para saber em mais detalhes quem eram os Titãs, Héracles, Ártemis, Apolo... O que, como já disse e repito, é um dos maiores serviços que um escritor pode prestar à humanidade nos dias de hoje.

A Maldição do Titã é o terceiro volume da série Percy Jackson e os Olimpianos, e, se eu fosse pôr os títulos na ordem em que mais me agradaram, colocaria este em segundo lugar, por não ser tão bom quanto O Ladrão de Raios, mas melhor que O Mar de Monstros. Percy está agora com 14 anos e recebe a missão de ir, com as também meios-sangues Annabeth e Thalia, atender a um chamado de seu velho amigo Grover, o sátiro, que, como já tantas vezes antes, está infiltrado numa escola, como olheiro, para investigar a possível presença de outros filhos de deuses. E ele localizou dois, cuja filiação divina ainda é desconhecida, mas que são obviamente poderosos: Bianca di Angelo, de 12 anos, e seu irmão Nico, de dez. Como não é difícil prever, Percy e seus amigos logo se veem envolvidos numa luta com monstros a fim de tirar os irmãos Di Angelo da escola e levá-los em segurança até o Acampamento Meio-Sangue - mas surgem dois fatos não tão previsíveis: o primeiro é que, prestes a ser derrotado, o quarteto é salvo pela deusa Ártemis e suas Caçadoras virgens, que parecem surgir do nada justamente no momento certo; o segundo é que um monstro, em sua fuga, acaba levando Annabeth consigo.

Essa, aliás, é uma das grandes sacadas do livro: Annabeth não aparece durante a maior parte da história, mas, de certa forma, está presente o tempo todo, já que o fato de saber que ela está em algum lugar, sendo mantida prisioneira pelo inimigo, leva Percy a, pela primeira vez, refletir de verdade sobre a natureza de seus sentimentos por ela. E ele não se sente melhor ao descobrir que Annabeth pensava em juntar-se às Caçadoras de Ártemis - donzelas adolescentes que acompanham a deusa em suas aventuras, ganhando a imortalidade em troca do juramento de renunciarem para sempre ao amor. Esse pensamento nunca é formulado de forma explícita, já que Percy é o narrador da história e Riordan, habilmente, faz com que haja coisas que o jovem herói não admitiria nem perante si próprio, mas é fácil compreender que a questão que mais o tortura é: "Ela faria mesmo isso? Mas... e eu?" Não há como não se solidarizar com sua angústia.

Porém, o sofrimento de Percy parece insignificante diante dos acontecimentos que se desenrolam: fica-se sabendo que o exército de Cronos - o Senhor dos Titãs, que tem a ambição de retomar o poder que os Olimpianos lhe tiraram há milhares de anos - tem um novo comandante, um misterioso "General", sob cujas ordens estão agindo Luke, o filho rebelde de Hermes, um ex-campista do Acampamento Meio-Sangue, e seu bando de monstros e semideuses renegados. Toda essa buona gente está atrás de um monstro em especial, um tão terrível que, dizem as profecias, seria capaz de destruir o Olimpo. Ártemis decide partir sozinha para tentar localizar e liquidar esse monstro antes que os lacaios de Cronos o encontrem - e, como Annabeth, cai nas garras do inimigo. Organiza-se então um grupo de busca misto, formado por campistas e Caçadoras, para partir numa missão de triplo objetivo: resgatar Ártemis, descobrir o monstro da profecia e, se possível, tentar libertar Annabeth.

A presença de Thalia contribui para tornar o convívio do grupo de aventureiros mais complicado, já que, como filha de Zeus, ela tem um gênio um tanto tempestuoso, mas isso é apenas a ponta de um iceberg: em O Mar de Monstros Percy tomou conhecimento de uma profecia que dizia que, quando um meio-sangue, filho de um dos Três Grandes (Zeus, Poseidon ou Hades) completasse 16 anos, ele ou ela teria de tomar uma decisão que poderia salvar o Olimpo ou destruí-lo - e, se o Olimpo for destruído, toda a civilização ocidental vai para o beleléu. O detalhe interessante é que Thalia estava morta na ocasião, de modo que Percy, como o único filho vivo conhecido de um dos Três Grandes, parecia, sem sombra de dúvida, ser a pessoa da profecia. Porém, a partir do momento em que Thalia foi trazida de volta à vida pela magia do Velocino de Ouro, já não há certeza: pode ser ela ou Percy.

A aventura segue a receita já conhecida dos fãs de Rick Riordan: doses de tensão, ação e humor alternadas de forma habilidosa, personagens cativantes, um uso inteligente do potencial infinito de gerar coisas "pitorescas" que existe em misturar a mitologia com o mundo moderno (o deus Apolo retratado como um playboy que guia um Maseratti em vez da tradicional carruagem do Sol é simplesmente impagável!), muitos mistérios a desvendar, e um final surpreendente. O único defeito da saga de Percy Jackson e os Olimpianos é que, mais cedo ou mais tarde, ela terá que acabar...

sábado, maio 29, 2010

Fúria de Titãs


Acabo de voltar do cinema, onde assisti ao remake do clássico Fúria de Titãs (1981), um dos filmes que marcaram minha infância. E para falar a verdade, tendo em vista toda a expectativa que eu naturalmente havia criado, preciso confessar que esperava bem mais... O novo filme não faz justiça a seu antecessor, e muito menos à mitologia grega que inspirou a ambos.

Primeiramente, eu não assisti ao Fúria de Titãs original quando foi lançado no cinema - em 1981 eu tinha seis para sete anos de idade, devia ter ido ao cinema duas ou três vezes na vida, e um filme como esse seria provavelmente considerado "forte", como se dizia na época e região, para uma criança da minha idade (pode parecer piada se pensarmos nas coisas a que as crianças de hoje assistem livremente e todo mundo acha normal, mas eram os tempos). Vi o filme quando passou na TV, dois ou três anos depois. Mais tarde o revi em VHS e, faz agora uns três anos, encontrei em DVD e comprei: ele hoje integra uma pequena coleção de filmes que dizem muito sobre minha pessoa, pois, juntamente com um monte de livros, foram realmente uma influência, de uma forma ou de outra.

Não foi esse filme que me despertou o interesse por histórias de deuses, heróis e monstros: tanto quanto posso lembrar, eu já nasci fascinado por mitologia. Já conhecia a lenda de Perseu antes de ver Fúria de Titãs, e, por alguma razão, ele sempre foi o meu preferido entre os heróis gregos - eu gostava das narrativas dos trabalhos de Hércules, mas me parecia que, tendo a força que ele tinha, ser um grande herói não era mais que sua obrigação. Também gostava de Teseu, Jasão e seus Argonautas, e dos outros, e, não obstante, Perseu era meu preferido. Talvez fosse pelas circunstâncias de seu nascimento, aquilo de ser lançado às águas e salvo delas (crianças lançadas às águas são um tema recorrente em muitas lendas e histórias: foi igual com Moisés, Rômulo e Remo, Amadis de Gaula...), pelo fato de ter cavalgado o magnífico Pégaso (um cavalo alado foi por muito tempo uma das coisas que eu mais desejei) ou pela natureza impossível de sua principal façanha: combater e matar uma criatura sem poder olhar para ela. Não importa: fosse por que motivo fosse, o fato é que Perseu era meu herói preferido, e por isso, a princípio, não gostei muito das liberdades que o primeiro Fúria tomou em relação à lenda original, mas, depois de me acostumar à ideia, adorei o filme, ainda que só mais tarde fosse aprender que não adiantava esperar que nenhuma história que eu já tivesse lido fosse continuar igual ao ser transformada em filme. Agora, ao ver o remake, minha contrariedade por ver as liberdades tomadas para com a lenda se soma à de ver outras liberdades tomadas para com o primeiro filme... Meio difícil explicar.

Fúria de Titãs, dirigido por Desmond Davis, com Harry Hamlin como Perseu, foi o último e, para muitos, melhor trabalho de Ray Harryhausen, o mago da animação stop motion, que utilizava modelos fotografados quadro a quadro para dar vida a criaturas fantásticas em filmes. Outro trabalho dele do qual me lembro (e que adoraria ter em minha DVDteca - será que não está em catálogo? Há tantos filmes antigos sendo relançados... Preciso verificar) é Simbad e o Olho do Tigre, uma de várias produções sobre o heroico marinheiro árabe.

A Lenda de Perseu

A lenda original de Perseu é relativamente simples. Acrísio, rei de Argos, tem uma filha, Dânae, de beleza incomparável. O pai, como era costume na época, consulta um oráculo sobre o futuro da menina, e o vaticínio que ouve não poderia ser pior: ela terá um filho, que irá um dia causar a morte dele. Numa tentativa de evitar o destino (o que, como todo grego sabia, era inútil, mas personagens de lendas tinham que fazê-lo para servirem de exemplo), Acrísio decide nunca permitir que Dânae conheça homem algum, para que a criança profetizada nunca nasça. Então, tranca a filha numa torre, onde Zeus, o deus supremo, entra sob a forma de uma chuva de ouro. Uma vez lá, seduz a jovem e a engravida. Quando a criança nasce, Acrísio, tendo certeza de que nenhum homem poderia ter visitado Dânae sem que ele soubesse, é obrigado a acreditar no que ela conta sobre a paternidade do menino, mas, ainda aterrorizado pela profecia, tenta mais uma vez fugir ao destino: manda encerrar Dânae e Perseu numa arca e lançá-los ao mar para morrerem - mas é claro que não morrem. A arca é encontrada, próximo à ilha de Sérifos, por um pescador, que confia os dois náufragos a seu amo, Polidectes, rei da ilha. Ele os acolhe, mas, tempos depois, começa a assediar Dânae. Quando Perseu chega à idade adulta, o rei, pensando em tirá-lo do caminho, dá-lhe a missão de ir matar a górgona de nome Medusa, um monstro em forma de mulher, com serpentes em vez de cabelos, cujo simples olhar transforma qualquer ser vivo em pedra. Perseu recebe ajuda dos deuses, que lhe dão armas divinas e um par de sandálias aladas para vencer as vastas distâncias (não, não foi o Pégaso, ainda). No caminho de volta, Perseu passa pela Etiópia, que, para os gregos antigos, não era o humilde país africano que conhecemos, e sim uma terra fabulosa, mais ou menos como o reino Tão-Tão Distante do Shrek, e vê uma linda jovem acorrentada a um rochedo na praia, enquanto um apavorante monstro marinho dirige-se para ela. A certa distância estão os chorosos pais, que, naturalmente, são os reis do lugar, Cefeu e Cassiopeia. Perseu conversa rapidamente com eles e fica sabendo que Tétis, uma deusa do mar (sim, ela mesma: a futura mãe de Aquiles), exigiu o sacrifício da princesa Andrômeda ao apetite do monstro Cetus, como expiação por ter Cassiopéia tido a insensatez de comparar a beleza da filha à da própria Tétis. Em algumas versões, Perseu vence Cetus num combate leal, com sua espada e sua coragem; em outras, simplesmente usa a cabeça (no caso, a de Medusa, não a sua própria) e transforma o monstro num monumento. Depois disso, prometendo retornar, parte de volta a Sérifos e apresenta orgulhosamente o troféu que fora mandado buscar, a cabeça da górgona - petrificando instantaneamente Polidectes e sua corte e livrando sua mãe do assédio indesejado. Depois de casar com Andrômeda, Perseu parte com ela numa peregrinação a sua terra natal, Argos, onde, participando de uma competição atlética, arremessa o disco com tamanha força, que o objeto bate no chão e, quicando, vai atingir violentamente no peito um velho que passa pelo local - e que, é claro, é seu avô, Acrísio, e sofre morte instantânea, de modo que mais uma vez fica provada a inutilidade de lutar contra o destino: o fatalismo era uma das características básicas do pensamento grego clássico. Resta a dizer apenas que Perseu aparentemente não herdou dos sogros o reino da Etiópia (talvez Andrômeda tivesse irmãos mais velhos; a lenda nada diz a respeito), já que, segundo a tradição, teria fundado Micenas - que, no devido tempo, iria tornar-se a mais poderosa das cidades gregas - e sido seu primeiro rei.

Curiosidades Mitológicas

De acordo com a lenda, Perseu não montou Pégaso ao ir em busca da Medusa, já que o fabuloso garanhão alado só nasceria depois da decapitação da górgona. A lenda colateral que narra a origem da Medusa conta que ela teria sido sacerdotisa de Atena, e uma mulher de grande beleza. Tão bela, de fato, que tentou Poseidon, o deus do mar, que a procurou sob forma humana, como um belo guerreiro portando uma espada de ouro, e os dois fizeram amor dentro do templo onde ela servia - o que deve ter sido visto por Atena, uma deusa casta, como uma injúria grave. Na segunda vez, sabendo que Atena já estaria desconfiada, Poseidon adotou um estratagema: apareceu sob a forma de um garanhão (o cavalo era seu animal favorito) e transformou Medusa numa égua, após o que os dois galoparam até um local distante para novamente consumar seu amor. Mas Atena não se deixou enganar: furiosa, e não podendo fazer nada contra Poseidon, que afinal era seu tio e um deus mais poderoso que ela, descontou sua fúria na sacerdotisa, privando-a para sempre de sua beleza e de qualquer convívio humano ao transformá-la no monstro horripilante que sabemos. Muitos anos mais tarde, quando Perseu decapitou Medusa, do sangue que escorreu do cadáver nasceram os dois filhos que Poseidon lhe havia feito: o primeiro foi o filho que Poseidon gerou sob forma humana, e por isso nasceu também humano. Apossando-se da espada de ouro que seu pai deixara no templo (donde lhe veio o nome, Crisaor, "o da espada de ouro"), veio a praticar certas façanhas notáveis que, infelizmente, eu não conheço; o segundo foi justamente Pégaso, que Poseidon gerara sob a forma de cavalo. De que maneira Perseu encontrou Pégaso, eu não sei, mas consta que ele realmente o montou. Mais tarde, o cavalo alado serviria ainda a outro herói de menor projeção, Belerofonte, o matador da Quimera.

Em ambos os Fúria de Titãs, o monstro marinho que aparece é chamado de Kraken, nome que na verdade pertence à mitologia germânica/nórdica, onde designava uma lula gigante, capaz de afundar navios. No primeiro filme, ao ordenar a Poseidon que liberte o tal Kraken, Zeus refere-se a ele como "o último dos titãs" - coisa que não faz nenhum sentido. Os titãs não eram monstros, eram deuses, na verdade a geração anterior aos Olimpianos: um deles, Cronos (o Tempo) foi o pai dos seis deuses maiores do Olimpo - Zeus, Poseidon, Hades, Hera, Deméter e Héstia, que, direta ou indiretamente, deram origem a todos os outros. Além disso, mesmo que Kraken fosse um titã, seria tolice dizer que era "o último": Zeus e os irmãos travaram uma guerra contra os titãs, mas não puderam matar nenhum deles, já que eram imortais também. Em vez disso, tiveram que aprisioná-los no Tártaro, a região mais profunda do submundo que Hades passou a governar.

Como já mencionei acima, o verdadeiro nome do monstro que Perseu derrotou para salvar Andrômeda era Cetus, nome que, graças à lenda, passou a significar "monstro marinho" de um modo geral - tanto, que foi adotado pela moderna zoologia para designar as baleias e seus parentes: os "cetáceos". Em Moby Dick, Herman Melville dedica todo um divertidíssimo capítulo à tentativa de demonstrar as origens antigas e nobres da balearia - entre outras coisas, tenta provar por A mais B que o tal Cetus da lenda era mesmo uma baleia, o que faria de Perseu, provavelmente, o primeiro baleeiro de que se tem notícia! :)


O Novo Filme

O novo
Fúria de Titãs, estrelado por Sam "Avatar" Worthington (não que Avatar possa me servir de referência, já que até agora não o vi) parte de uma premissa bastante absurda, mesmo para um filme de fantasia: os homens teriam declarado guerra (guerra mesmo, literalmente!) contra os deuses, levando a cabo ataques que vão desde demolir seus templos e estátuas até pôr cerco ao monte Olimpo (!!). Não que não seja plausível a ideia de que muitas pessoas se revoltassem contra os desmandos dos muitas vezes fúteis e cruéis deuses gregos, capazes de desgraçar vidas e destruir nações só para satisfazer paixões condenáveis como luxúria ou vingança ou para acariciar a própria vaidade; o que eu não consigo "engolir" é que alguém, e ainda mais um grande número de pessoas, pudesse ter apostado na viabilidade prática de lutar contra um inimigo de poder ilimitado e que simplesmente não podia ser morto. O cerco ao Olimpo, aliás, teria sido movido pelo rei Acrísio, que, aqui, não é avô, e sim padrasto do herói Perseu: no novo filme, foi a esposa, e não a filha do rei quem foi seduzida por Zeus. Presumivelmente como castigo pelo cerco, e pelo que fez a Perseu e sua mãe, Acrísio é amaldiçoado com deformidade física (e, por alguma razão misteriosa, ao mesmo tempo abençoado com força sobre-humana e poderes especiais) e passa a ser conhecido como Calibos - personagem não mitológico, importado do primeiro filme, se bem que apenas o nome foi mantido: sua origem, histórico, motivações e aparência mudaram completamente.

Embora Perseu, criado por um pescador, tenha visto toda a sua adorada família adotiva perecer como vítimas inocentes numa batalha sem sentido entre homens e deuses (sem sentido, tanto na visão do personagem quanto pelos motivos que expus no parágrafo anterior) e, por consequência, esteja tão revoltado contra os Olimpianos quanto muitos outros homens, seu pai Zeus (interpretado por Liam Neeson) ainda assim aposta que ele poderá ser uma peça chave para restabelecer a paz entre mortais e imortais. Desta vez, o que causa a libertação do Kraken e a exigência do sacrifício de Andrômeda são as blasfêmias da rainha Cassiopeia, não motivadas por uma justa revolta, e sim por mera soberba. De passagem, registro que Andrômeda, no novo filme, parece uma versão Grécia Antiga da rainha-santa D. Isabel de Portugal, e é interpretada pela francesa Alexa Davalos - nem de longe tão bonita quanto Judi Bowker (*suspiro*), que no esplendor dos 27 anos fez a personagem no filme de 1981.

Pelo visto, o Perseu versão 2010 também não achou Davalos tão fascinante assim, pois os dois não terminam juntos - o que não surpreende, já que, nos poucos minutos de filme em que contracenam, não chega a rolar a menor sugestão de algum clima. Para que o herói não termine chupando o dedo, o que seria inadmissível em Hollywood, o roteirista enxertou uma personagem chamada Io (Gemma Arterton), oriunda de outra lenda que nada tem a ver com a de Perseu.

Mais uma vez, tocou ao pobre Hades (interpretado pelo excelente Ralph Fiennes) o papel de deus-vilão: Hollywood não perde a mania de tentar imputar aos antigos a mesma atitude hipócrita que a sociedade moderna tem em relação à morte. Se Hades governa o reino dos mortos, ele tem que ser "mau"... Uma noção absolutamente estúpida e que não encontra apoio nenhum na mitologia ou no modo de pensar de gregos e romanos (ambos povos que sempre tiveram uma atitude natural e serena em relação à morte), mas que a indústria cultural atual continua explorando.

Nem é preciso dizer que o filme é uma verdadeira vitrine de efeitos especiais mirabolantes, usados principalmente nas criaturas míticas - Medusa, o Kraken, Pégaso, os escorpiões gigantes, os
djinns (mais um enxerto: não sei bem o que os djinns são, mas sei que pertencem ao folclore árabe), mas, embora eu admita que são todos visualmente perfeitos, sou um tanto chato quanto a isso: como sei que já escrevi em outro post, a meu ver, excesso de realismo é antes prejudicial que meritório quando se quer mostrar seres fabulosos num filme - uma aparência um pouco mais irreal os tornaria mais fascinantes. Conclusão: eu gostava mais dos monstros de Harryhausen... Por isso, e também por não ter gostado do roteiro, dou no máximo uma nota cinco a esse novo Fúria de Titãs, que, quando sair em DVD, certamente não figurará na minha estante ao lado da versão antiga, que continuo preferindo sem a menor dúvida.

quarta-feira, abril 14, 2010

Cerimônias Satânicas


O título deste livro é um exemplo típico de adaptação com objetivos marketeiros, um daqueles casos em que não é ao tradutor que deve ser atribuída a culpa: o pessoal da editora que publicou a obra no Brasil deve ter achado que a tradução direta do título original, que era simplesmente The Ceremonies, não soaria forte o bastante em português (e talvez estivessem certos nesse ponto...) e lascou o "satânicas" para atiçar a curiosidade dos fãs de literatura de terror. Na verdade, não há nada de especificamente satanista no enredo deste excelente romance. Na capa, lê-se uma opinião altamente elogiosa atribuída a ninguém menos que Stephen King! Talvez não haja como checar a autenticidade de tais palavras, mas, ao chegar ao fim do livro, não é difícil acreditar que essa é uma história da qual o "home" teria gostado.

Como em muitos romances do gênero, temos aqui um prólogo enigmático, seguido de um "início da história propriamente dita" aparentemente corriqueiro e inocente. No prólogo, uma "coisa" não nomeada assume o controle da vontade de um menino que a encontra por acaso (será?) ao afastar-se da fazenda onde mora e embrenhar-se na mata, nos Estados Unidos do século XIX, e começa a "instruí-lo"... A natureza dessa "coisa" permanece misteriosa: talvez tenha origem extraterrestre, talvez seja sobrevivente de um passado pré-humano ao estilo Lovecraft, mas nada se sabe com certeza. Em qualquer caso, nada tem a ver com o Satã da tradição judaico-cristã.

No início da história propriamente dita, já "nos dias de hoje" – o que, quando o livro foi escrito, significava algum momento da década de 1980 –, conhecemos Jeremy Freirs, estudante e professor em Nova York, que, às vésperas de completar 30 anos, ganha a vida ministrando cursos livres sobre literatura e cinema, enquanto prepara uma dissertação sobre o romance gótico – é claro que Klein gosta de literatura gótica, e, a bordo dos estudos de Jeremy, demonstra possuir invejáveis conhecimentos nesse campo: reencontrei nas páginas de Cerimônias Satânicas muitos dos autores e livros mencionados por H.P. Lovecraft em seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura (para mais detalhes, consultem meu texto sobre Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino), a maioria dos quais, infelizmente, continua inacessível ao público brasileiro. Klein chega a mencionar esse próprio ensaio! Mas desviei-me do assunto.

Jeremy encontra por acaso (?), no mural da biblioteca onde faz suas pesquisas, um anúncio de aluguel de verão colocado por um casal de Gilead, localidade rural não distante de Nova York, e decide passar lá suas férias, aproveitando a tranquilidade do campo para dedicar-se a sua dissertação. O casal, Sarr (que raio de nome é esse?) e Deborah Poroth, como quase todos os moradores do lugarejo, pertence à Confraria do Redentor, uma fictícia seita cristã fundamentalista cujos membros vivem isolados do mundo moderno e ainda guardam muitos preceitos do Velho Testamento há muito considerados ultrapassados pelas denominações cristãs principais (embora Sarr fale desdenhosamente da seita Amish, está na cara que esta foi o modelo direto para Klein criar a Confraria). A mãe de Sarr é uma espécie de Sibila local, cujos poderes proféticos despertam nos membros da comunidade uma mistura de respeito e temor. E ela descende justamente dos Troet, que vêm a ser a família do menino Absolom – aquele possuído pela "coisa" mais de um século antes.

Urdindo tudo, manipulando as pessoas sem que elas percebam, arquitetando cuidadosamente as interações entre elas, está um misterioso "Velho", que, de humano, conserva a aparência e pouco mais – é um servo da "coisa", totalmente dedicado aos misteriosos desígnios dela. Não estou dando spoiler ao revelar que o Velho é o próprio Absolom, já com uns 110 anos de idade ou mais: Klein não diz isso explicitamente até bem avançado o livro, mas qualquer leitor deduziria facilmente o fato. Ele encontra um meio de aproximar Jeremy de Carol, uma jovem que trabalha na biblioteca, e os dois iniciam um romance, mas o Velho tem o maior cuidado no sentido de sabotar qualquer oportunidade que pudessem ter de chegar às "vias de fato" – pois Carol é virgem, e é da máxima importância para os planos do Velho que permaneça assim. Para poder vigiá-la de perto e conseguir que confie nele, apresenta-se no papel de um velhinho bondoso, meio caduco, mas muito culto e viajado, que a contrata como auxiliar de pesquisa para um livro que alega estar escrevendo sobre a origem obscura de certas rimas e brincadeiras infantis, muitas das quais, segundo ele, remontam a rituais pagãos pré-históricos. Aproveitando-se dessa proximidade, o Velho desenvolve com Carol uma espécie de relação de avô e neta, e vai conduzindo os atos da moça na direção que interessa a ele e à força misteriosa à qual ele serve.

Eu chegaria a dizer que o elemento sobrenatural  que, embora magistralmente tratado, ocupa uma parte surpreendentemente pequena do livro – não é o principal em The Ceremonies. A história chama bem mais atenção por suas fugidias mas fascinantes referências a tradições antigas que continuam bem mais presentes no nosso dia-a-dia do que normalmente imaginamos (e bem mais do que muitos de nós gostam de acreditar) e pelo confronto entre visões de mundo diferentes – muitas vezes, dentro de uma mesma cabeça. Sarr Poroth, o jovem fazendeiro, membro fervoroso da Confraria do Redentor, pasmem, já foi estudante universitário fora da comunidade; trata-se de um homem de certa instrução, que voluntariamente renunciou ao mundo da cultura e do conhecimento para dedicar-se ao trabalho da terra (que ele considera "a única ocupação digna" que conhece) e voltar a viver no mundo simples, sem meios-tons, oferecido pela visão fundamentalista de sua seita: Deus está no céu e a Seus servos compete cultivar os Seus campos e louvá-Lo – qualquer coisa que vá além disso é pecado e mal. Uma ojeriza toda especial é reservada pelos Irmãos ao trabalho intelectual, que, na verdade, eles nem mesmo consideram trabalho: ficar sentado lendo e escrevendo, para eles, não passa de um disfarce para o pecado do ócio. Trabalho só é trabalho se deixar um homem suado e extenuado ao final do dia e lhe der calos nas mãos. De modo que Jeremy, trancado em seu anexo na fazenda dos Poroth, lidando o tempo todo com livros e papéis, torna-se alvo de desconfiança e desprezo generalizados na comunidade.

Mesmo assim, Sarr não consegue apagar a marca que o fato de ter tido estudo deixou nele. Uma das passagens mais interessantes do livro é uma na qual todos os seus vizinhos próximos, com as respectivas famílias, comparecem para ajudá-lo no plantio do milho – que é realizado à noite, com muitos toques ritualísticos que os Irmãos não percebem: simplesmente receberam a fórmula por tradição e não lhes parece existir outra maneira de fazer a coisa. A horas tantas (isso também faz parte da tradição), todos interrompem o trabalho e reúnem-se em torno de uma mesa ao ar livre para devorar um gigantesco pão de milho em forma de estrela de cinco pontas, maior que um homem. Enquanto os outros participam alegremente do trabalho e da refeição, sem se questionarem sobre coisa alguma, Sarr, se lembra do que leu na biblioteca da universidade sobre a origem desse costume: a estrela de cinco pontas é uma representação estilizada de um corpo humano, o da vítima sacrificial que outrora era oferecida aos deuses para propiciar uma boa colheita. Inquieta-o um pouco pensar que todos aqueles bons cristãos ali estão, sem saber, participando do que já foi em tempos um sangrento ritual pagão. Ter mais cultura significa ter consciência de muitas coisas que escapam às pessoas sem instrução – e isso nem sempre é agradável: pode, por vezes, ser bem perturbador. Sarr preferiria poder apagar da própria mente muitas coisas que aprendeu e voltar a partilhar a paz da ignorância com seus irmãos de seita, mas isso não está em seu poder. Por causa dessa mesma dualidade, ele é provavelmente o personagem mais complexo do livro, às vezes mostrando-se surpreendentemente inteligente e tolerante em questões religiosas ("A trovoada era uma colisão de moléculas, e também a voz de Deus; ambas deviam ser verdade. [...] Deus atende por muitos nomes diferentes e é adorado de muitas maneiras. Mas Ele é sempre o mesmo Deus. [...] A princípio [...] perturbavam-me as muitas e diferentes formas que Deus podia tomar. Mas, no final, descobri que podia voltar a acreditar com ainda mais fé do que tinha antes, porque consegui compreender que, mesmo quando Ele tinha nomes diferentes, era sempre o mesmo Deus que eu conhecia"), e outras, absurdamente ignorante em relação a essas mesmas questões ("Olhou para sua tia inconsciente [...]. 'Ela vai morrer, se não a levaram para um hospital...' Mas essa providência fora sugestão do demônio [...], remanescente dos anos que ele passara no perverso mundo exterior. Sabia agora que a oração funcionava tão bem quanto os instrumentos de um cirurgião"). Esse é o exemplo mais flagrante, mas de modo algum o único, da característica fascinante que tem The Ceremonies de conseguir oferecer uma multiplicidade de pontos de vista. Os personagens principais parecem ser Jeremy e Carol, mas a cada passagem temos uma visão diferente dos mesmos fatos, através dos olhos de um personagem diferente: além dos dois, também Sarr, Deborah, o Velho (cujos pensamentos são assustadoramente objetivos e desprovidos de emoção) e até figuras de pouca importância como Rochelle, a colega de quarto de Carol, e um ou outro dos Irmãos da Confraria, todos dão a sua versão das coisas.

Klein conseguiu a proeza de escrever um livro que, mesmo tão longo (mais de 600 páginas), não deixa o leitor impaciente em momento algum – não é como em outros livros extensos em que a gente enfrenta algumas partes chatas porque outras são interessantes: aqui, até mesmo o que não é (ou não parece) essencial para a trama tem o seu sabor próprio, e o estilo é sempre agradabilíssimo. Os personagens são convincentes e bem construídos, enfim, são pessoas de verdade, às quais o leitor consegue se afeiçoar, e, embora haja longos trechos com pouquíssimo ou nenhum teor sobrenatural, quando ele aparece, é de uma forma que o leitor dificilmente esquecerá. O destino do mundo está em jogo, e, de certa forma, o próprio fato de isso não ser aparente, nem do conhecimento da maioria dos personagens, aumenta o seu potencial ameaçador, ainda mais porque a tênue esperança que existe está nas mãos de pessoas comuns, que nem mesmo sabem com o que estão lidando.

Não será fácil achá-lo, já que trata-se de uma edição já antiga e, pelo menos até onde sei, não tem sido reimpresso, mas a quem tiver a sorte de encontrar The Ceremonies em seu sebo preferido, aconselho não pensar duas vezes: o pequeno investimento irá render muitas horas de leitura absorvente.