sexta-feira, dezembro 16, 2011

Politicamente... corretos??

Hesitei um pouco antes de decidir o lugar mais adequado para postar este texto. Por um lado, trata-se de uma reflexão de natureza pessoal, de modo que não estaria deslocada no meu outro blog, o Inner Wilderness; por outro, refere-se a literatura, de modo que também podia vir para cá, pois comentários e resenhas de livros específicos não são a única maneira de se "falar de literatura". Esse último fator acabou pesando mais – então, aqui estamos.

A revista Aventuras na História de dezembro traz uma matéria sobre a série de livros em quadrinhos (hoje dir-se-ia "graphic novels") intitulada Tintim, criada pelo jornalista e cartunista belga Hergé entre o fim da década de 20 e sua morte em 1986. Os aficionados por quadrinhos saberão na hora do que estou falando: embora menos popular, Tintim é tão clássico quanto Asterix. Para ser mais exato, a matéria é sobre as posições "discutíveis" tomadas pelo autor em praticamente todas as suas histórias, e especula um pouco sobre como Steven Spielberg terá contornado esse fato no filme que fez sobre o personagem, com estreia prevista para janeiro no Brasil.

As tais posições discutíveis consistem basicamente numa visão "eurocêntrica" do mundo. Tintim é um repórter do jornal belga (que existe mesmo: Hergé trabalhava nele quando criou o personagem) Le Vingtième Siècle, que viaja pelo mundo no exercício de sua função – mas, como teria que acontecer numa série de aventuras dirigidas ao público jovem, suas expedições jornalísticas nunca são tranquilas: ele sempre se mete em situações perigosas. Mais que isso: suas atitudes (muitas vezes de uma maneira não proposital, o que é mais revelador) deixam transparecer a ideia, apresentada como óbvia a ponto de não merecer reflexão, de que tudo o que vale a pena ou é digno de atenção, ou está na Europa ou deriva direta ou indiretamente de lá. Partindo desse ponto de vista, o colonialismo, que na época estava sendo contestado tanto nas próprias colônias quanto nas metrópoles, era plenamente justificável e até mesmo natural. Cito:

Quando Tintim foi ao Congo, em 1931, o país africano ainda era uma colônia belga (a independência veio só em 1960) e os quadrinhos reproduziam a visão eurocentrista da época. Na primeira versão do álbum, os congoleses falavam um francês primitivo e eram extremamente submissos. Em um dos trechos, Tintim substitui um professor em uma escola missionária e começa a aula apontando para um mapa da Europa: "Meus queridos amigos, hoje eu vou falar sobre o seu país: a Bélgica". Nas versões posteriores, o mapa foi substituído por um quadro-negro, e a lição sobre a Bélgica, por uma de matemática.


Gostaria de deixar algo claro antes de prosseguir: não é meu objetivo aqui defender o colonialismo (o que seria no mínimo burrice vindo de um brasileiro, cujo país começou sua história como colônia e até hoje tenta se livrar dos traumas inerentes a essa condição) ou qualquer das outras atitudes "discutíveis" que aparecerão mais adiante neste texto. O que questiono é o que nos dá o direito de "corrigir" obras que retratam uma época – e muitas vezes a retratam de maneira valiosa – para que se enquadrem nas regras daquilo que hoje é tido como "aceitável". Tintim tem atitudes eurocêntricas porque seu criador, como a maior parte dos europeus daqueles dias, tinha essas mesmas atitudes. Suas aventuras retratam um ponto de vista que prevaleceu durante muito tempo e que, gostemos ou não disso, ajudou a moldar uma época. Pergunto: faz sentido, ao invés de aprender com esses fatos e permitir que eles nos ajudem a aquilatar tudo o que mudou desde então, simplesmente querer reescrever as histórias para adequá-las àquilo que é considerado de bom tom hoje em dia?

Atravessando o oceano, encontramos mais exemplos: as obras de Mark Twain (1835-1910) estão sendo reescritas nos Estados Unidos para atender às demandas da tirania politicamente correta. No texto de Twain, é largamente utilizada a palavra
nigger – uma designação pejorativa para pessoas negras –, agora substituída por slave ('escravo'). Note-se que a situação dos negros não é um ponto de pouca importância nessas obras, já que o escravo Jim, fiel amigo dos imortais anti-heróis Tom Sawyer e Huckleberry Finn, é um dos personagens mais atuantes nas histórias. Eu já tinha lido, creio que numa dissertação sobre a vida e a obra de Samuel Langhorne Clemens (Mark Twain era pseudônimo) que, já em meados do século passado, portanto bem antes da babaquice politicamente correta ser inventada (ou seria ela bem mais antiga do que imaginamos?), as Aventuras de Huck (1885), geralmente consideradas sua obra mais importante, haviam sido alvo de protestos por parte de pessoas que consideravam o livro racista. Pessoalmente, acho que o racismo estava muito mais na cabeça de tais pessoas do que nas páginas dessa obra essencial da literatura norte-americana. De outra forma, como teria sido possível alguém não perceber que o que Twain estava fazendo era sair em defesa dos negros, que eram particularmente marginalizados no sul dos Estados Unidos, região onde ele nasceu e viveu? A escravidão foi abolida no país com a vitória dos estados do norte na Guerra Civil, em 1865, quando Mark Twain tinha 30 anos de idade; já as aventuras de Tom Sawyer e Huck Finn são ambientadas nos anos da adolescência do autor, quando a escravidão era vista como um fato cotidiano, e seria ingenuidade esperar que uma emenda constitucional tivesse o poder de mudar instantaneamente a atitude que a maioria dos americanos brancos tinha em relação aos negros. Há um trecho em que Huck inventa, para uma senhora com quem se encontra, que esteve viajando num barco a vapor e que chegou atrasado porque a cabeça de um cilindro da embarcação saltou devido à pressão, exigindo uma parada para conserto. A tal senhora então pergunta se alguém se feriu e, ao ouvir em resposta que um negro morreu, manifesta alívio, "porque em acidentes desse tipo, às vezes, pessoas se machucam". O autor estava sendo racista? Claro que não: se no livro os negros são vistos por muitos como seres sub-humanos, é porque era isso mesmo o que acontecia na época que a história retrata – e também na época em que ela foi publicada, mesmo que entre uma coisa e outra a escravidão tivesse sido abolida. Esquecer esses fatos, ou escondê-los das novas gerações, fará bem a alguém? Acredito que muito pelo contrário: como escreveu Sêneca (se não me engano), quem esquece o passado condena-se a repeti-lo, e isso não vale só para indivíduos: aplica-se também às sociedades. Observe-se ainda, de passagem, que defender a igualdade das pessoas independentemente de raça, nos tempos de Mark Twain, exigia muito mais coragem do que hoje, porque essa ideia não era unanimidade: muitas pessoas que se consideravam "de bem" davam como certo que os negros, e qualquer outra raça não-caucasiana, eram inferiores, e fim de papo. Isso era ensinado em escolas e universidades; havia cientistas que acreditavam tê-lo provado.

O que fico me perguntando é: d
epois de terem purgado as obras de Twain de todas as partes supostamente racistas, qual será o próximo alvo da patrulha politicamente correta? Suponho que os próprios Tom e Huck, cuja maior qualidade enquanto criações literárias é (era?) precisamente o fato de representarem garotos reais, de carne e osso, do sul dos Estados Unidos em meados do século XIX: garotos criados soltos nos brejais do Mississípi, que fumavam cachimbo, pregavam mentiras sempre que achavam necessário e preferiam com toda a certeza perambular pelo mato e remar de ilha em ilha pelo rio ao invés de ir à escola. Agora, se depender dessa turma, provavelmente as próximas edições de Tom Sawyer e das Aventuras de Huck terão protagonistas vegetarianos, que fazem ginástica ao acordar e trabalho voluntário para causas sociais...

Não estou dizendo que os preconceitos de época presentes em obras literárias devam ser considerados normais ou assim apresentados aos novos leitores. O que acontece é que o melhor caminho, aquele que mais contribuiria para a edificação cultural e para a própria formação das novas gerações, mais uma vez, não é o caminho mais fácil. Temos um exemplo mais perto de nós: Monteiro Lobato (1882-1948), que pode não ter revolucionado a literatura brasileira como Mark Twain fez com a norte-americana, mas sem dúvida marcou a infância de muitos brasileiros e foi responsável por despertar em pelo menos alguns o gosto pela leitura. Há, sim, detalhes racistas nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, mas seria ignorância culpar o autor por isso: ele era simplesmente um homem de sua época. Nos anos 30 e 40, quando esses livros foram publicados pela primeira vez, muitas pessoas que haviam sido escravas, ou donas de escravos, ainda estavam vivas; era, portanto, normal que Tia Nastácia chamasse sua patroa, Dona Benta, de "sinhá" – mas como uma criança de hoje iria interpretar isso? Depende apenas dos instrumentos de interpretação que a família e a escola lhe houverem fornecido. Mais complicado: sempre que a boneca Emília queria fazer uma malcriação com Tia Nastácia (o que acontecia em média umas duas vezes por livro), chamava-a de "negra beiçuda" ou de outros insultos de teor racista. Em pelo menos uma ocasião, Dona Benta vem em defesa da cozinheira dizendo que "todos sabem que Nastácia só é preta por fora" (!), declaração que consegue ser mais racista que os xingamentos dos quais tentava defendê-la.

Entretanto, eu defendo que a solução para isso não é nem banir as obras de Lobato (que são literatura infantil de qualidade, que já se provou capaz de resistir ao tempo) nem "reescrevê-las" para que não choquem os mais sensíveis nem disseminem ideias preconceituosas entre os jovens. Esse tipo de "reescrita" (e o que digo agora vale para as obras de Hergé, Twain, Lobato e dezenas de outros) teria o efeito de criar nesses jovens a noção de que o mundo foi sempre como é agora, tirando-lhes qualquer chance de vir a compreender na prática o que significam variações de cultura e perspectiva histórica – coisas sem as quais, a meu ver, não é possível alcançar a verdadeira maturidade intelectual. Devíamos, isso sim, investir em esforços para que a educação oferecida a cada nova geração a tornasse capaz de fazer seus próprios julgamentos, de modo que, quando fosse o caso, pudesse apreciar uma obra literária pelo que tem de belo e interessante, sem necessariamente aceitar como verdade todas as ideias que ela apresente. Não é fácil? Certamente que não. Mas quem aí já obteve algo de bom na vida fazendo as coisas do jeito mais fácil?

Infelizmente, a brigada politicamente correta que domina certos setores da cultura contemporânea, seja por mera ignorância ou por desonestidade intelectual, uma determinação consciente de fazer ouvidos surdos a qualquer coisa que desqualifique seus argumentos (e, não raro, tudo isso), não demonstra qualquer senso de perspectiva: já vi censurarem Cristóvão Colombo por não ter tido preocupações ecológicas no início da colonização das Américas, e absurdos ainda maiores. É até natural que cada geração tenha a tendência de pensar que suas próprias crenças e visões de mundo são as "certas" – mas aqueles que, em qualquer geração, vêm a alcançar algum grau de sabedoria, não demoram a compreender o quanto tais coisas são frágeis. Embora não seja uma coisa fácil de aceitar, Salman Rushdie estava certo ao dizer que verdade é o que a maioria vê como verdade  mas a maioria também pode mudar de opinião ao longo da História. É muito possível que ideias que hoje aceitamos como normais sejam consideradas absurdas e preconceituosas daqui a alguns séculos. Não há saída: toda pessoa que tenha a pretensão de estender sua compreensão um pouco além de sua vidinha cotidiana tem que aceitar o fato de que tudo é transitório, tudo é nebuloso, e de que não temos certeza de coisa alguma.



quarta-feira, novembro 23, 2011

Rei Morto, Rei Posto

A escritora britânica Mary Renault (1905-1983) foi durante décadas a grande dama da ficção histórica de língua inglesa. Para dar uma ideia de sua importância, hoje ela é citada como influência por sujeitos como Steven Pressfield, Conn Iggulden, Simon Scarrow e outros desse calibre. Sobre ela, a crítica chegou a dizer que era capaz de escrever sobre a Grécia antiga como se nela tivesse vivido. Deve ser verdade, pois suas narrativas têm o poder de nos dar a sensação de que nós, leitores, é que estamos vivendo lá. 

Dos quatro livros da autora que li até hoje, Rei Morto, Rei Posto (no original, The King Must Die, literalmente 'O Rei Deve Morrer') é sem dúvida o meu favorito; lido na adolescência, foi relido agora por nenhum motivo em especial, a não ser a vontade de curtir novamente a história envolvente e o estilo narrativo agradavelmente trabalhado que caracteriza a autora. Suas frases são por vezes tortuosas, dizendo as coisas de maneiras não óbvias, mas sem cair num pedantismo cansativo. O texto é pontilhado por longas metáforas que lembram irresistivelmente o estilo de Homero, de quem Renault era sem dúvida uma profunda conhecedora. Este livro em particular, ambientado nos primórdios da civilização helênica, antes mesmo da Guerra de Troia, é uma versão romanceada da lenda do herói Teseu, que procura dar aos elementos míticos tradicionais uma interpretação histórica crível. 

Teseu é um dos heróis mais importantes da mitologia grega clássica. Embora seus feitos não rivalizem em número nem em grandeza com os de Hércules - de quem, segundo algumas fontes, teria sido contemporâneo -, pode-se dizer que deixou um legado bem mais importante. Sim, pode-se falar em legado, pois tudo aponta para a probabilidade de ter havido um Teseu de carne e osso, que só não se pode dizer "histórico" porque viveu antes que a escrita fosse introduzida na Grécia. Seu papel, afora muitas façanhas guerreiras, foi o de libertar os gregos do domínio cretense e unificar as diversas pequenas cidades da região da Ática num Estado forte, tendo Atenas como capital. 

Obs.: Em Rei Morto, Rei Posto há algumas menções à escrita, inclusive uma parte em que Teseu escreve do próprio punho uma carta a seu pai. Não sei dizer se isso teria sido uma falha da autora - coisa pouco provável em se tratando de alguém que tão evidentemente possuía vasto conhecimento sobre a Antiguidade - ou se apenas estaria de acordo com as informações que a arqueologia podia oferecer na época em que o livro foi escrito (década de 50). Em todo caso, isso pode ser relevado, e de modo algum tira o mérito da história. 

A narrativa de Renault é em primeira pessoa e segue a lenda de perto. Teseu, rei de Atenas e já de idade avançada, rememora sua vida, desde sua infância na cidade de Trezena, onde nasceu, neto do rei local, Piteu. A princesa Etra, mãe de Teseu, foi a única filha legítima que restou ao rei, que perdeu os outros, bem como a esposa, vitimados por uma epidemia - e filhos bastardos, embora ele os tenha em quantidade, não contam para fins de sucessão, de modo que o pequeno Teseu é o presumível herdeiro do trono. Além de princesa, Etra é uma alta sacerdotisa; nunca se casou e há quem acredite que o pai de seu filho não é outro senão Poseidon, deus do mar. Teseu, é claro, gosta dessa ideia, mas, à medida em que cresce, vai achando-a cada vez mais improvável. Embora a questão de sua paternidade vá ter implicações bem mais sérias que essa em sua vida futura, por muito tempo a coisa que mais o preocupa é o fato de ser menor que a maioria dos rapazes de sua idade, enquanto era crença geral que os filhos de deuses distinguiam-se por serem muito mais altos que os outros homens - e, na Grécia da época, todo jovem desejava ser alto, o que representava uma vantagem na maioria das modalidades atléticas, além de deixá-los mais impressionantes no campo de batalha, portando elmo, escudo e lança.

O mistério de sua origem é esclarecido quando Teseu faz 17 anos: sua mãe conta-lhe que seu pai (que ela ainda se recusa a dizer quem é) ocultou algo sob uma grande pedra, que ele, Teseu, ao atingir a idade adulta, deveria ser capaz de erguer sozinho. Se o jovem se mostrasse à altura do desafio e recuperasse o que estava escondido, ela deveria mandá-lo ao pai; caso contrário, ele poderia terminar seus dias em Trezena. E Teseu não decepciona: cumpre a tarefa não com força bruta, mas com inteligência, usando o princípio da alavanca, e encontra sob a rocha a espada e as sandálias que pertenceram a seu pai. Finalmente é chegada a hora das respostas: a mãe e o avô revelam-lhe que ele é filho de Egeu, rei de Atenas, a quem a então adolescente Etra entregou a virgindade num ato cerimonial, obedecendo à determinação de um oráculo. Na ocasião, Egeu insistiu em que, se dessa breve união resultasse um filho homem, este deveria ser mantido na ignorância de sua origem até que tivesse crescido e demonstrado sua capacidade, pois, caso se tornasse público que era seu filho, o menino correria o risco, mesmo ali em Trezena, de tornar-se um alvo para os ambiciosos parentes da casa real ateniense. 

Teseu parte para Atenas pela perigosa Estrada do Istmo, e pelo caminho elimina uma série de bandidos - essa, conforme a lenda, foi a primeira façanha a dar algum destaque a seu nome, mas Renault não entra em detalhes nem se alonga a respeito (leiam aqui sobre um certo Procusto, cuja história vale a pena conhecer). Quando Teseu chega à cidade de Elêusis, aí sim, a autora por fim o tem onde o queria desde o início. Essa cidade segue a religião antiga, a do "povo da costa", que ocupava a Grécia antes da chegada dos helenos, e por quem estes últimos parecem sentir um incômodo misto de desprezo e fascínio (posso estar enganado - se alguém puder retificar ou ratificar minha teoria, agradeço -, mas pela descrição física desse povo, mais o fato de eles chamarem a si mesmos de "mínios", suponho que fossem um ramo da civilização minoica, e, portanto, aparentados com os cretenses, embora muito menos poderosos que eles na época. Na verdade, "minoico" é um nome cunhado pelos arqueólogos, pois não se sabe como esse povo chamava a si mesmo, mas Renault naturalmente precisava designá-los de algum modo). 

A "religião antiga" mencionada é essencialmente matriarcal. A principal sacerdotisa é também a rainha, e é quem de fato governa: o rei não passa de seu marido, pouco mais que uma figura decorativa, além de um acessório indispensável se ela pretende ter filhos. É muitíssimo bem tratado e altamente honrado por todos - só que seu reinado é extremamente curto. Depois de um ano, deve ser sacrificado e substituído por outro, que se casa com a mesma rainha, e assim sucessivamente. O sacrifício anual do rei é considerado essencial para que a terra produza e as mulheres concebam. É a morte gerando a vida, e vice-versa: a serpente Ouroboros, com a cauda na boca. O círculo infinito. 

Quanto à escolha do novo rei, ela é deixada nas mãos dos deuses: será o primeiro forasteiro que entrar na cidade no dia determinado. No caso, Teseu. Suponho que para proporcionar um espetáculo melhor, ou apenas por questão de tradição local, a fórmula do sacrifício é um tanto diferente da comum. Em vez de ser colocado numa ara e ter o pescoço cortado por um sacerdote, o "antigo" rei enfrenta seu sucessor presumido numa luta até a morte. Não fica claro o que aconteceria se o primeiro vencesse; na verdade, na narração da cena, a sensação que se tem é a de que o rei se deixa vencer, como num sacrifício mesmo. Assim que ele morre, é como se jamais tivesse existido, e Teseu torna-se o novo queridinho da rainha e do povo de Elêusis - mas, mesmo com 17 anos de idade, ele mantém a perspectiva das coisas, e não esquece em momento algum que a areia na ampulheta já está correndo também para ele. 

Terei falado demais?? Então, melhor dizer que quem quiser saber de que maneira Teseu irá escapar da ratoeira real onde se enfiou terá que ler o livro. Daqui até o fim do post, abordarei alguns dos motivos da importância da figura de Teseu para a nação grega e o modo como esses pontos são abordados por Mary Renault.

Cnossos em sua glória

A Grécia foi durante séculos a civilização mais pujante do Mediterrâneo e de todo o ocidente, embora, por causa de suas divisões, nunca tenha possuído uma estatura política que igualasse suas realizações culturais - a menos que consideremos a época de Alexandre, mas, mesmo então, o que houve foi uma unificação forçada e artificial, que durou pouquíssimo tempo. De todo modo, antes dos gregos, um outro povo detinha a supremacia na região: os cretenses. 

Embora os gregos fossem conhecidos como marinheiros notáveis, os cretenses estavam ainda vários passos à frente deles nessa arte - e, numa época em que os poucos países civilizados que existiam dependiam quase completamente do tráfego marítimo para poderem interagir, dominar as rotas de navegação significava ter poder. Graças a sua invejável frota, Creta por muito tempo manteve as cidades gregas situadas na costa ou em ilhas (ou seja, quase todo o território do país!) sob um controle estreito. Por um lado, os cretenses mantinham o mar livre de piratas; por outro, cobravam pesados tributos e impunham restrições ao desenvolvimento de uma navegação independente pelos gregos. O rei de Creta, que governava de sua capital, Cnossos - sem dúvida uma das maiores e mais ricas cidades do mundo na época - era sempre chamado de Minos, o que não era um nome, e sim um título. 

Até aqui, é fato histórico. Daqui para a frente, é mito - e, se eu puder deixar aqui uma nota de protesto contra a conotação negativa que muita gente atribui a esta palavra, quero fazer isso citando um dos maiores estudiosos de mitos de todos os tempos, Joseph Campbell. As frases não devem ser exatamente assim, porque estou citando de memória, mas, em essência, dizem: "O mito é a verdade do homem, pois o homem se exprime no mito: portanto, o mito não é mentiroso. Não podemos ignorar o mito se quisermos compreender o homem" (o grifo é meu). Isto posto, vamos em frente. 

Conta-se que o rei Minos (um deles), após ter vencido disputas dinásticas para chegar ao trono, pediu a Poseidon um sinal: se seu reinado contasse com a aprovação dos deuses, que lhe aparecesse um touro branco, o qual ele prometia oferecer em sacrifício em seguida. Dito e feito: um grande e magnífico touro, branco como a neve, apareceu nos arredores do palácio, trazendo a confirmação que o rei desejava. Minos, porém, acabou desonrando sua promessa e, em vez de sacrificar aos deuses o valioso animal, manteve-o para si. Como castigo, a deusa Afrodite, a pedido de Poseidon, incitou na rainha Pasífae uma paixão insana pelo touro - paixão que ela, de alguma maneira, consumou. Dessa união não natural nasceu um monstro com corpo humano e cabeça de touro, que, embora tivesse recebido da mãe o nome de Astérion, ficou conhecido simplesmente como Minotauro, o "touro de Minos". Minos, aliás, sem dúvida pensou em mandar matar a criatura logo que nasceu, mas deve ter concluído que fazer isso atrairia ainda mais ira divina contra ele: os deuses haveriam de querer que Astérion permanecesse como um vergonhoso lembrete de seu crime. 

Logo que o Minotauro cresceu um pouco, tornou-se evidente sua natureza feroz, e, apesar de suas afinidades bovinas, estava longe de ser um herbívoro pacífico: seu alimento favorito era carne humana. Minos, então, incumbiu o famoso arquiteto Dédalo de construir um labirinto por onde Astérion pudesse perambular à vontade sem nunca achar a saída, o que foi feito. Em seguida, pensando ao mesmo tempo numa maneira de manter seu monstruoso enteado sem ter que sacrificar seu próprio povo, e em vingar a morte do filho Androgeu, que fora assassinado em Atenas, o rei determinou que, em acréscimo ao tributo anual que já lhe pagava em metais preciosos, cereais, vinho e azeite, aquela cidade, de agora em diante, deveria enviar a cada ano sete moças e sete rapazes, que seriam conduzidos ao labirinto para servir de alimento ao Minotauro. 

Essa situação já durava anos quando Teseu, tendo chegado a Atenas e sido reconhecido como filho pelo rei Egeu, decidiu que era hora de dar um basta. Ofereceu-se voluntariamente para ser uma das vítimas daquele ano, e, antes de embarcar no navio cretense, prometeu ao pai que, se voltasse vitorioso, trocaria as velas negras que a embarcação ora levava por outras brancas. 

Em Creta, a princesa Ariadne, filha de Minos e meia-irmã do Minotauro, apaixonou-se à primeira vista pelo jovem grego. Em segredo, antes que Teseu fosse para o labirinto, entregou-lhe uma espada e um novelo de lã, que, amarrado firmemente junto à porta e desenrolado à medida em que fosse avançando, lhe permitiria, depois, encontrar a saída. Teseu matou o Minotauro e embarcou de volta com seus companheiros, mas esqueceu-se de mudar as velas do navio como havia prometido. Ao avistar as velas negras aproximando-se do porto, o rei Egeu, desesperado pensando que seu filho tivesse morrido, lançou-se ao mar e morreu. Daí em diante, o mar que banha o leste da Grécia recebeu seu nome, que tem até hoje. 

Teseu teve muitas outras aventuras, desde raptar Helena de Esparta (mais tarde celebrizada como Helena de Troia) quando ela ainda era quase uma criança e ele já um homem de meia-idade, até raptar (também) Antíope, a rainha das ferozes amazonas da Ásia Menor, o que causou o lendário ataque delas contra Atenas. De Antíope, Teseu teve seu único filho legítimo, Hipólito, que protagonizaria uma autêntica tragédia, bem ao gosto dos gregos. Mas isso tudo daria (e talvez dê mesmo) assunto para mais uns três textos. Por ora, para finalizar este post, eu gostaria de chamar atenção para a realidade histórica por trás do mito do Minotauro e do labirinto.

Além de seu poderio naval, a ilha de Creta era famosa por seu gado - vacas e touros formidáveis, bem maiores e mais possantes que a raça criada pelos gregos. A figura lendária do Minotauro, que fundia homem e touro, surgiu lá, e para os cretenses tinha provavelmente um significado muito diferente do que a lenda grega mais tarde lhe daria: não um sinal de infâmia nem um monstro cruel, mas sim um símbolo de força e poder. Com essa conotação, foi adotado como uma espécie de emblema oficial pelo Estado cretense, como a águia seria mais tarde para Roma: a figura do Minotauro ornava as velas dos navios de Creta e as fachadas de seus palácios, e passou a ser associada, tanto pelos próprios cretenses quanto pelos gregos, à nação cretense em si mesma. Portanto, "matar o Minotauro" significa provavelmente que Teseu liderou os gregos numa rebelião, que derrubou o poder de Creta e transformou a ilha em possessão helênica. De fato, quem for ler a Ilíada de Homero encontrará, nessa narrativa sobre a Guerra de Troia, um personagem chamado Idomeneu, que é apresentado como rei de Creta, e é, em tudo e por tudo, um heleno. Portanto, tudo sugere que, poucas décadas depois do tempo de Teseu, Creta havia sido colonizada pelos gregos e era agora um reino helênico. O labirinto, por sua vez, pode ser uma referência ao palácio real de Cnossos, que tinha tantas salas e corredores que seria fácil perder-se dentro dele. 

Quanto ao sacrifício anual de sete moças e sete rapazes, Mary Renault adota a versão de que eles iriam na verdade participar de algo que era ao mesmo tempo parte de um ritual religioso e espetáculo popular: a Dança do Touro, na qual uma equipe de atletas - homens e mulheres jovens, de preferência pequenos, leves e ágeis - realizava uma exibição que era um misto de tourada com ginástica artística. Um touro furioso era solto na arena com os dançarinos, que, além de sobreviver, deviam dar um bom espetáculo, por meio de saltos, esquivas ágeis e assim por diante. A façanha suprema, que assegurava ao dançarino o respeito dos companheiros e a adoração da plateia, consistia em equilibrar-se plantando bananeira sobre o dorso ou os chifres do bicho. Nem é preciso dizer que o índice de mortalidade entre os Dançarinos do Touro devia ser altíssimo, de modo que, quando cada novo grupo chegava, deviam restar muito poucos do ano anterior ainda vivos. 

Há muitos outros detalhes interessantes que quem ler Rei Morto, Rei Posto e tiver algum conhecimento sobre história e mitologia gregas perceberá, e eu bem gostaria de mencionar tudo o que encontrei, mas, mesmo que quem lê este blog já haja demonstrado que não tem medo de textos longos (risos), acho que ainda assim é bom manter um pouco de moderação, então vou colocando o ponto final por agora. Creio que os livros de Mary Renault devem estar fora de catálogo no Brasil, mas não tive dificuldade em achá-los em bons sebos. E qualquer um desses livros que caia nas mãos de vocês pode ser plenamente recomendado. 

Em tempo: quando li o livro pela primeira vez, foi numa edição diferente, não lembro de que editora era, e a capa fugiu-me quase completamente da memória. O exemplar que tenho hoje foi comprado num sebo faz algum tempo e foi lançado pelo Círculo do Livro, com a capa que aparece no início deste post - capa, por sinal, péssima. Já vi chifres maiores e caras mais assustadoras num tambo de leite que visitei certa vez do que no Minotauro nela representado, e, quanto ao herói que aparece, lembra muito mais a descrição tradicional de Hércules que a de Teseu.

terça-feira, outubro 18, 2011

Harry Potter e o Enigma do Príncipe

Tudo bem, Harry Potter é literatura mainstream – mas por que isso é necessariamente um demérito? Certo, seria hipócrita negar que, para o viciado em literatura, existe um tipo de satisfação egoísta em conhecer livros magníficos dos quais pouca gente ouviu falar, mas a radicalização desse prazer leva o tal viciado, por vezes, a torcer automaticamente o nariz para obras que estão na boca do povo, que fazem furor, vendem exemplares às toneladas e viram fenômenos de mídia. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, eu diria: achar que algo deve ser bom só porque todo mundo está comentando é um comportamento burro – mas não é menos burro achar que algo tem que ser ruim pelo mesmo motivo.

E Harry Potter, fenômeno de mídia ou não, é uma das mais interessantes séries de fantasia surgidas entre o final do século passado e o início deste. Quem não conhece realmente a saga, apenas ouviu falar, viu imagens aqui e ali e talvez tenha assistido – sem prestar atenção – a um segmento de um dos filmes quando passou na TV, acha que trata-se de "literatura infantil", e dá o assunto por encerrado. Grande erro. Muitas crianças podem achar legal usar uns óculos sem lente, pintar uma cicatriz na testa com caneta hidrocor e gritar "Vingardium Leviosa!" agitando um espanador de pó, mas eu não conheço ninguém com menos de 16, 17 anos (e bem pouca gente acima dessa idade) que tenha encarado do início ao fim as mais de 3000 páginas que compõem os sete volumes da série escrita pela inglesa Joanne Kathleen Rowling. Sem contar que esses livros podem facilmente prender a atenção de qualquer leitor que disponha da necessária dose de imaginação, independentemente da idade. Pois trata-se de uma história de magia e heroísmo calcada em valores atemporais, que nunca deixarão de tocar e comover qualquer ser humano saudável: amor, amizade, lealdade e coragem.

A autora parece ter planejado que uma geração de leitores fosse crescendo junto com o herói: dos enredos simples e textos relativamente breves do início, a série foi aumentando em número de páginas e em grau de complexidade a cada novo volume: o quinto, Harry Potter e a Ordem da Fênix, tem mais de 700 páginas, mas, daí em diante, houve uma ligeira redução. Ao mesmo tempo, a própria Rowling também experimentou uma evolução: os últimos volumes são barbaramente melhor escritos que os primeiros. Como há muita informação sobre a série espalhada pela internet, acho desnecessário resumir o enredo geral: quem já conhece HP não precisará disso, e quem ainda não o conhece, não é por meio deste humilde post que ficará conhecendo. Tudo o que farei será comentar o livro que acabo de ler, o sexto volume, Harry Potter e o Enigma do Príncipe, introduzindo apenas as informações necessárias à compreensão do que irei dizer... O que, receio, dará praticamente no mesmo!

Para começar, o título é discutível: por que Harry Potter and the Half-blood Prince virou Harry Potter e o Enigma do Príncipe em vez de Harry Potter e o Príncipe Mestiço, como seria o correto? Como já disse antes neste blog, não devemos ser apressados ao culpar o tradutor em casos assim (embora eu realmente discorde em muitos pontos da tradução de Lia Wyler): muitas vezes a decisão final sobre o título parte do setor de publicidade da editora, quando alguém lá é de opinião que a tradução literal do título original não soaria bem ou não seria suficientemente chamativa. Desconfio que, no presente caso, a proeza tenha sido de alguém que não sabia muito sobre a série e achou que a palavra "mestiço" não seria bem compreendida pelas "crianças". Se é que não foi resultado da neurose politicamente correta, uma tentativa de evitar qualquer alusão que pudesse, mesmo remotamente, ser considerada "racista".

Uma pena, pois racismo, ainda que sob uma roupagem de fantasia, é um dos temas mais discutidos na série. No mundo da magia por onde transitam Harry, seus amigos e inimigos, não parece haver discriminação pela cor da pele ou dos olhos, mas existem bruxos que se consideram superiores aos outros por terem o que chamam de "sangue puro" – o que consiste em ter exclusivamente ancestrais bruxos em suas árvores genealógicas. Naturalmente, há diversidade de opiniões: existem bruxos de sangue puro que não dão a mínima para isso e consideram mestiços e trouxas (os não-bruxos) como seus iguais – e há também bruxos mestiços que tentam fazer parecer que são puros-sangues para ganhar status em certos meios. O potencial de intolerância gerado nesse cenário já levou, como seria previsível, a muitos conflitos através dos séculos, e no último deles o mundo mágico assistiu à ascensão do mais temido bruxo das trevas de todos os tempos, que se autointitulava Lorde Voldemort – e tal era o pavor que ele inspirava, que a maioria dos bruxos tem medo até de pronunciar seu nome, preferindo referir-se a ele como "Você-Sabe-Quem" ou "Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado". Esse bruxo matou os pais de Harry quando ele ainda era um bebê – mas, por razões que ninguém compreende muito bem, não conseguiu matar o próprio Harry, e teve seus poderes e corpo destruídos quando o terrível feitiço que lançara contra o menino ricocheteou e o atingiu. Harry foi criado pelos tios trouxas, sofrendo negligência e todo tipo de implicância, até os onze anos de idade, quando teve a revelação de quem era e foi levado para a prestigiosa Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, onde iniciou a educação necessária para viver no mundo a que realmente pertencia. E, muito para sua surpresa, descobriu que era famoso: no mundo dos bruxos, a maioria das pessoas o considera um herói por ter (aparentemente) destruído Voldemort. Uma crença que, infelizmente, demonstrou-se errada: Voldemort estava enfraquecido e privado de um corpo, mas continuava vivo. Só agora, cinco anos e muitas aventuras depois, Harry está prestes a descobrir como isso foi possível.

Aos 16 anos, começando a cursar o sexto ano em Hogwarts, Harry está na altura da vida em que a maioria dos jovens bruxos está pensando a respeito do que fazer ao terminar a escola. Ele, porém, tem muito mais do que isso a preocupá-lo: Voldemort recuperou o corpo e a plenitude de seu poder, conseguiu reunir muitos de seus antigos seguidores, bem como recrutar novos, e o mundo mágico está em guerra. É óbvio para todos que o Lorde das Trevas fará de Harry um de seus alvos principais; o rapaz só pode continuar a levar uma vida quase (quase!) normal por estar em Hogwarts, cujo diretor é Alvo Dumbledore – tido por muitos como o maior bruxo dos tempos modernos e como a única pessoa que Voldemort teme no mundo.

A narrativa deste episódio começa durante as férias de verão: como costuma acontecer nessa época do ano, Harry está atolado na casa dos tios, contando os dias para a volta a Hogwarts, quando, para sua surpresa, o próprio Dumbledore vai pessoalmente buscá-lo, a fim de escoltá-lo até a Toca – a casa dos Weasley, a família de seu melhor amigo, Rony – para passar lá o restante das férias. Pelo caminho, os dois visitam um antigo professor, Horácio Slughorn, e o convencem a interromper sua aposentadoria e voltar a ensinar em Hogwarts. Tudo indica que Slughorn irá assumir a disciplina de Defesa Contra as Artes das Trevas, um cargo que parece estar sob algum tipo de mau-olhado, pois, desde o início da vida escolar de Harry, ninguém conseguiu permanecer nele por mais de um ano – mas, ao iniciar-se o período letivo, Harry e seus colegas têm uma surpresa: Slughorn assume a disciplina de Poções, que costumava ser ensinada por Severo Snape, um antigo desafeto do pai de Harry na época em que ambos estudaram em Hogwarts, e que tem perseguido o filho de seu rival de todas as maneiras possíveis, desde que este chegou à escola. E Snape, por sua vez, é quem passa a ensinar Defesa Contra as Artes das Trevas.

Por acaso, Harry se vê de posse de um velho livro de Poções cheio de anotações manuscritas feitas por um antigo estudante de Hogwarts que se identificava apenas como o "Príncipe Mestiço" – e essas anotações acabam se mostrando mais úteis que o conteúdo do livro propriamente dito. Além de dicas que rapidamente fazem de Harry um prodígio no preparo de poções (atividade na qual ele nunca se havia mostrado particularmente talentoso), as anotações do Príncipe incluem feitiços aparentemente inventados por ele próprio e cuja utilidade não é conhecida – coisa que pode ser bem perigosa, na opinião de Hermione Granger, a outra melhor amiga de Harry e melhor aluna de sua série. 

Paralelamente às aulas normais, Harry, de tempos em tempos, é chamado ao escritório de Dumbledore, que, por meio de lembranças colhidas de diversas pessoas, vai revelando a ele (e ao leitor) uma série de informações até então ocultas sobre o passado de Voldemort. O modo como essas lembranças são partilhadas foi uma criação particularmente brilhante de Rowling: por meio de um artefato conhecido como "Penseira", Harry e Dumbledore mergulham nas lembranças de outras pessoas e as vivenciam como se estivessem na época e no local dos acontecimentos. O diretor é da opinião de que Harry deve saber o máximo possível sobre o inimigo, a fim de preparar-se para o confronto inevitável: uma profecia feita logo após Harry nascer revelou que, no final, ele terá que matar Voldemort ou ser morto por ele.

Parte do encanto (ops!) da história está no fato de que, ao mesmo tempo em que se vê implicado em acontecimentos grandiosos e terríveis e convive com o fato de que o destino do mundo bruxo pode vir a estar em suas mãos a qualquer momento, Harry também precisa lidar com os mesmos desafios de um adolescente comum: trabalhos da escola, o time de quadribol (o esporte mais popular entre os bruxos) em que joga, e a paixão que descobre estar sentindo por Gina Weasley, a irmã mais nova de Rony. E, antes que seu sexto ano termine, ele terá mais uma vez que enfrentar provas muito mais penosas que as da escola, nas quais estará em jogo muito mais do que sua vida, e que exigirão toda a sua coragem, habilidade em magia, e a ajuda de seus fiéis amigos. Mais dramático que isso: sem ter ainda se recuperado totalmente da morte de seu padrinho, Sirius Black, que tombou no ano anterior combatendo as forças das Trevas, Harry perderá outra das pessoas mais importantes de sua vida.

Ler Harry Potter é uma daquelas experiências que me fazem sentir uma grande pena do fato de que tão poucas pessoas possuam cultura suficiente para perceber todas as alusões, alegorias e brincadeiras que vou encontrando. Muita gente aponta para a influência que J. K. Rowling recebeu de J. R. R. Tolkien, o imortal autor de O Senhor dos Anéis – mas, até aí, qual escritor moderno de fantasia não deve alguma coisa a Tolkien? É bastante óbvio, por exemplo, que Dumbledore nada mais é que a versão rowlinguiana de Gandalf – mas quantos leitores se deram conta de que este último, que no início do SdA é conhecido como Gandalf, o Cinzento, a certa altura passa a ser Gandalf, o Branco, e que o primeiro nome de Dumbledore é Alvo, ou seja, "branco"?



Saindo do assunto da influência de Tolkien, mas ainda falando de pistas escondidas nos nomes, há muito mais para descobrir: Sirius Black é um "animago", um bruxo com o poder de transformar-se em determinado animal – no caso dele, um enorme cão preto. Ora: Black, como todo mundo sabe, quer dizer preto; Sirius é uma estrela da constelação do Cão Maior. Portanto, "Sirius Black" é apenas uma maneira disfarçada de dizer "cachorro grande e preto". Remo J. Lupin é um bruxo que sofre a maldição da licantropia – e, enquanto "Lupin", em português 'lupino', quer dizer "próprio ou semelhante a lobo", Remo era o irmão gêmeo de Rômulo, o fundador de Roma, que, juntamente com ele, teria sido amamentado por uma... loba. O zelador de Hogwarts, que anda pela escola vigiando tudo o que os estudantes fazem, chama-se Argo Filch – Argo, como o gigante de cem olhos da mitologia grega. A professora de Adivinhação chama-se Sibila Trelawney e é descendente de uma famosa vidente chamada Cassandra Trelawney; Sibila era o nome dado às profetisas da Roma antiga, e Cassandra era a filha do rei de Troia, igualmente uma profetisa. O grupo musical mais popular entre os adolescentes bruxos é chamado na tradução de As Esquisitonas, mas no original o nome era The Weird Sisters – literalmente, 'as Irmãs Estranhas', uma referência ao trio de feiticeiras que aparecem na peça Macbeth, de Shakespeare... Esta lista poderia continuar por páginas e páginas.


Porém, o sentido oculto mais interessante que encontrei na série foi o paralelo – inegável quando se analisa todas as pistas – entre Lorde Voldemort e Hitler. Vamos somar dois mais dois: Voldemort é idolatrado pelos bruxos que se orgulham de seu sangue puro e consideram mestiços e trouxas ralé – embora seja, ele próprio, um mestiço, filho de mãe bruxa e pai trouxa. Já Hitler arquitetou e liderou a maior e mais terrível campanha de extermínio já movida contra um grupo étnico na história da humanidade – e, muito provavelmente, era neto de um judeu. Voldemort cerca-se de um grupo de seguidores terríveis, os Comensais da Morte, muitos dos quais também são mestiços que se declaram leais até a morte à causa da pureza do sangue bruxo; da mesma forma, seria preciso ser muito ingênuo para acreditar que todos os membros do Partido Nazista ou das SS fossem "arianos puros"... Trata-se, sem meias palavras, de uma alegoria extremamente inteligente para evidenciar a incoerência intrínseca de todas as ideologias baseadas em preconceitos; e ainda mais inteligente se torna por exigir uma certa dose de conhecimento e capacidade de raciocínio para ser detectada. Quem acha que Harry Potter é só literatura consumível ou coisa para criança poderia se surpreender muito se deixasse o preconceito de lado e experimentasse lê-lo.

quarta-feira, setembro 28, 2011

Conan, o Bárbaro

E eis que a aventura A Hora do Dragão, único romance escrito por Robert E. Howard sobre seu mais famoso personagem, o bárbaro Conan, chega finalmente ao Brasil numa edição caprichada, embora intitulada simplesmente Conan, o Bárbaro e com a imagem do cartaz do filme servindo de capa... É incômodo dependermos das marés da indústria do cinema para ter acesso a obras que deveriam estar sempre em catálogo, mas vá lá: pior seria não termos acesso a essas obras de maneira nenhuma, como aconteceu durante muito tempo.

Howard (1906-1936) foi um jovem gênio de destino trágico. Filho de um médico da pequena cidade texana de Cross Plains, cresceu num "mundo real" bastante limitado, típico de cidades interioranas em quase qualquer lugar, mas compensou esses limites com uma poderosa imaginação, exercitada desde a primeira infância, e com uma insaciável curiosidade sobre o mundo. O Dr. Isaac Howard depressa perdeu as esperanças de que seu único filho seguisse seus passos na medicina, mas também via com grande desconfiança as ambições do rapaz de ser escritor – o que era naquela época, como ainda hoje, um ganha-pão muito incerto, mesmo para os dotados de talento. O jovem Bob passou por diversos empregos, desde balconista até carteiro, mas não criou raízes em nenhum. Seu primeiro passo para a profissionalização como escritor aconteceu quando sua história Spear and Fang ('Lança e Presa', um conto de homens das cavernas, escrito quando ele tinha 15 anos) foi publicada, na edição de julho de 1925 da revista Weird Tales. Durante os anos seguintes, Howard escreveu e vendeu literalmente dezenas de histórias, em vários gêneros: esporte, faroeste, ficção histórica, terror e fantasia. Dentro desta última, foi notável sua contribuição para o subgênero hoje conhecido como sword and sorcery ('espada e feitiçaria'), ao ponto de muitas pessoas acreditarem, equivocadamente, que tenha sido o seu criador – na realidade, o britânico Lord Dunsany publicou histórias nesse estilo ainda durante a primeira década do século XX. O primeiro expoente howardiano de sword and sorcery foi uma história escrita em 1929 e ambientada numa era perdida da pré-história da Terra, cerca de 20 mil anos atrás, um mundo dominado por impérios poderosos e onde a magia era comum. Para compor a geografia e as características humanas dessa era fictícia, o escritor costurou uma verdadeira colcha de retalhos, usando referências históricas e míticas oriundas das fontes mais diversas – e sem fazer a menor cerimônia para misturar elementos que, na origem, não tinham qualquer ligação de contemporaneidade entre si. Nesse mundo próprio repleto de esplendores e perigos desenrolou-se a saga de um personagem que, embora subestimado até mesmo por muitos fãs de Howard, em minha opinião possui potencial heroico próximo ao de Conan, e um potencial dramático bem superior: Kull da Atlântida, que vai me render outro post.

Por ora, digamos apenas que a primeira aventura de Kull foi rejeitada pela Weird Tales e ficou na gaveta da escrivaninha de Howard durante os três anos seguintes, enquanto o autor dedicava-se a outros projetos. Em 1932, ele a retomou e reescreveu, mantendo a linha geral do roteiro, mas mudando o nome e algumas características do herói e ambientando-a numa outra era fantástica, que teria existido oito mil anos depois dos tempos de Kull e 12 mil anos antes dos dias atuais. Desta vez aceito pela WT e publicado na edição de dezembro daquele ano, esse conto, The Phoenix on the Sword ('A Fênix Sobre a Espada'), marcou a primeira aparição de Conan, já como rei da Aquilônia – o reino mais poderoso da época –, enfrentando uma conspiração para destroná-lo e matá-lo, envolvendo inimigos tanto naturais quanto sobrenaturais.

Se a Era Pré-cataclísmica de Kull era uma fabulosa miscelânea de elementos tirados de todos os lugares possíveis e imagináveis, a Era Hiboriana de Conan é tudo isso elevado ao quadrado. "Hiborianos", por falar nisso, é uma designação genérica usada para se referir aos reinos correspondentes à atual Europa, que teriam sido os mais influentes e poderosos de tal época. Examinando o mapa do mundo onde viveu Conan, a impressão que se tem é a de que Howard quis certificar-se de que nele estivessem presentes os ambientes e ingredientes necessários para praticamente qualquer tipo de aventura que se pudesse imaginar: existem bárbaros orgulhosos e violentos em reinos gelados no norte, existem mares infestados de piratas, existem desertos povoados de belicosos beduínos e de mistérios ao estilo de As 1001 Noites, existem savanas e selvas tropicais com suas tribos selvagens e feras exóticas (os reinos negros ao sul da Stygia), existem reinos regidos por estruturas feudais de poder, como a própria Aquilônia, nitidamente inspirada na França medieval, existem países orientais esplendorosos e quase desconhecidos pelos hiborianos – e, claro, há vastas extensões ainda inexploradas, onde aventureiros audazes podem encontrar todo tipo de maravilhas e horrores.

O próprio Howard apenas começou a narrar as aventuras de seu herói nesse mundo extraordinário: não viveu o suficiente para levar as histórias muito adiante. Nele conviviam uma imensa criatividade e uma carga nada desprezível de conhecimentos gerais, particularmente sobre História (conhecimentos esses adquiridos de maneira autodidata, pois ele nunca concluiu uma faculdade), mas também uma personalidade atormentada e emocionalmente imatura. Quando ficou sabendo que sua mãe estava em coma e sem chance de se recuperar, ele tirou a própria vida: não era capaz de se imaginar vivendo sem ela. Tinha pouco mais de 30 anos. A Sra. Howard faleceu horas depois do suicídio do filho, e os dois foram enterrados juntos. Imaginem o que foi isso para o pobre Dr. Howard: perder esposa e filho de uma vez só...


Como uma última informação importante sobre o autor, deve-se lembrar que Robert E. Howard manteve durante anos uma extensa correspondência com vários outros escritores notáveis do gênero de fantasia, como H. P. Lovecraft, Clark Ashton Smith, August Derleth e outros, e que a leitura atenta das obras de todos esses autores mostrará a influência exercida reciprocamente entre eles.

A obra de Howard sofreu um período de ostracismo após a morte do autor. Nos anos 50 apareceu nos Estados Unidos um livro reunindo alguns contos sobre Conan; na década seguinte, os escritores L. Sprague de Camp e Lin Carter conseguiram ter acesso aos papéis pessoais deixados por Howard, entre os quais encontraram desde esboços rudimentares de enredo para contos que não chegaram a ser escritos até histórias inacabadas em variados estágios de progresso. Assumindo o encargo de novos cronistas da Era Hiboriana, De Camp e Carter completaram muitas dessas histórias, que vieram a ser publicadas. Também criaram histórias novas baseadas em simples anotações feitas por Howard, como a saga Conan, o Libertador, que contava sobre a revolução que o cimério teria liderado para derrubar o tirânico rei Numedides, vindo então a ocupar o trono da Aquilônia.

Em 1970, a Marvel adquiriu os direitos de adaptação para os quadrinhos de Conan e outros personagens de Howard, dando início àquela que seria a fase mais produtiva (em número de publicações) do bárbaro. Roy Thomas, já então um renomado argumentista de quadrinhos do selo, tornar-se-ia célebre pelo trabalho realizado com Conan. Não tenho certeza se as primeiras histórias em quadrinhos do herói a aparecerem no Brasil chegaram antes ou depois da estréia do primeiro filme sobre ele, mas a editora Bloch lançou algumas publicações antes de a Abril, então parceira da Marvel no país, começar a publicar A Espada Selvagem de Conan, versão nacional de The Savage Sword of Conan, revista em formato grande, preto e branco, que, no Brasil, durou de 1984 a 2001. Também saíram algumas aventuras de Conan nas revistas Heróis da TV e Superaventuras Marvel, que eram coloridas e em formato pequeno. Mais recentemente, a Dark Horse Comics publicou uma revista intitulada simplesmente Conan, também em quadrinhos. No tocante à publicação de contos em sua forma original, um único conto de Conan aparece no livro Magos, segundo volume da série de coletâneas Os Mundos Mágicos da Fantasia, coordenada por Isaac Asimov, Martin H. Greenberg e Charles G. Waugh e publicada no Brasil pela Melhoramentos no início da década de 90. Em 1995, a editora Unicórnio Azul lançou cinco edições de Conan – Espada & Magia, contendo contos originais de Howard e também trabalhos de De Camp & Carter. A editora Conrad publicou dois volumes, atualmente fora de catálogo, com contos do bárbaro. Por fim, agora, aproveitando o embalo do novo filme, a Generale nos traz esta edição, que inclui o romance A Hora do Dragão e mais três contos. Edição essa da qual vejo que terei que falar em outra oportunidade, pois já escrevi muito e não posso concluir sem dizer uma palavra sobre os filmes. Vamos a isso...

Conan nas telas – then & now...

Os fãs de Robert E. Howard e de filmes de aventuras em geral sempre se perguntaram o porquê de Conan e seu universo terem sido tão pouco explorados pelo cinema, fato esse que se torna ainda mais inexplicável se pensarmos no Tarzan de Edgar Rice Burroughs e nas dezenas de filmes já rodados sobre ele, com vários atores diferentes. Ora, o bárbaro de Howard teve a mesma origem do homem-macaco de Burroughs – as pulp magazines das décadas de 20 e 30 –, é um herói de nível, no mínimo, comparável, e com possibilidades infinitamente maiores, considerando o mundo onde viveu e a longa e variada carreira que teve. Apesar disso, e por alguma razão, até este ano só existiam dois filmes sobre as aventuras do cimério: Conan, o Bárbaro (1982) e Conan, o Destruidor (1984), ambos estrelados por Sua Excelência (respeito, afinal o homem já foi governador), o austríaco naturalizado ianque Arnold Schwarzenegger. E, verdade seja dita, se Schwarzenegger jamais chegou a ser um ator digno desse nome, nesses filmes, ainda em início de carreira, ele praticamente deu um novo sentido à palavra "canastrão". O máximo que se pode dizer a seu favor é que sempre esteve perfeitamente consciente de suas limitações e nunca tentou posar de prodígio dramático: alguns anos depois, comentou, bem-humorado, que até o cavalo que montara em Conan, o Bárbaro era mais expressivo que ele. Apesar disso, esse filme, dirigido por John Milius, marcou época, e há excelentes razões para que seja visto... Só que, por ser uma adaptação extremamente livre, não é aconselhável como primeiro contato com o personagem, embora um enorme número de pessoas (incluo-me) tenha conhecido Conan justamente por meio dele.

O roteiro foi criado de forma livre por John Milius e Oliver Stone, tendo os escritos de Howard apenas como fonte de inspiração. Por exemplo, a infância e adolescência atribuídas a Conan no filme não têm qualquer compromisso com a (incompleta e fragmentada) biografia do personagem deixada por Howard: embora o escritor tenha registrado, em cartas e anotações, que a tribo de Conan vivia perpetuamente envolvida em conflitos – fosse com aesires, vanires, hiperbóreos, ou com outros clãs cimérios –, não escreveu em parte alguma que ela teria sido massacrada, ou que o próprio Conan tivesse crescido como escravo. Na verdade, Howard chegou a mencionar que a primeira batalha de que Conan participou foi numa ocasião em que vários clãs da Ciméria uniram forças, pondo temporariamente de lado suas rixas, para atacar e arrasar a fortaleza de Venarium, construída pelos aquilonianos em solo cimério como primeiro passo de uma tentativa de conquista – e o escritor diz explicitamente que Conan teria então uns 15 anos, idade na qual, a dar-se crédito ao filme, ainda deveria estar movimentando uma pedra de moinho. Portanto, vejam o filme, mas não acreditem cegamente nele.

O vilão principal, o feiticeiro Thulsa Doom (interpretado por James Earl Jones, de longe a melhor atuação do filme), nunca enfrentou Conan nos livros ou nos quadrinhos: em vez disso, era o arquiinimigo do rei Kull, que teria vivido oito mil anos antes. O arqueiro e ladrão Subotai (Gerry Lopez), até onde sei, foi criado para o filme, enquanto Valéria (Sandahl Bergman), mostrada como sendo uma ladra e o amor da vida de Conan, na verdade era uma pirata, e apenas uma entre as muitas mulheres de sua carreira. É verdade que há citações a várias histórias de Howard: a sequência em que Conan encontra uma espada num velho túmulo foi tirada do conto A Coisa na Cripta, enquanto a invasão da fortaleza de Thulsa Doom tem vários detalhes que lembram A Torre do Elefante, sem mencionar que a promessa de Valéria a Conan ("Se eu estivesse morta e você lutasse por sua vida, eu voltaria do inferno para ajudá-lo!") é feita, na verdade, pela rainha pirata Bêlit – ela, sim, o grande amor do cimério, ou ao menos de sua juventude –, no conto A Rainha da Costa Negra (1934). E há mais detalhes assim. Ao mesmo tempo, o filme tenta ter o seu quantum satis de atualidade ao mexer com o tema da sedução de jovens por seitas estranhas, problema que havia alcançado dimensões preocupantes em diversos países na época. Por fim, é impossível negar que o clima épico e grandioso está lá, que há inúmeras cenas visualmente soberbas, que o ritmo e a narrativa prendem, que a magnífica trilha sonora de Basil Poledouris faz a sua parte (Anvil of Crom está entre as músicas com maior poder de causar arrepios de empolgação que já ouvi) e que o final é bem sacado por abrir possibilidades ilimitadas para os próximos filmes que viessem a ser rodados, ainda que isso tenha sido muito pouco explorado mais tarde. Resumindo tudo, Conan, o Bárbaro atualmente figura na minha coleção de DVDs, como acredito que deva figurar na de todo apreciador de fantasia e de aventuras épicas.

Pena que seja, até o momento, o único filme sobre Conan merecedor de tal distinção!...


Conan, o Destruidor, não chega a ser um desastre total, mas decepcionou, e muito, a quem esperava ver uma continuação digna do primeiro filme. É apenas uma aventurazinha feijão-com-arroz, do tipo que esperaríamos encontrar em alguma edição meia-boca d'A Espada Selvagem de Conan lá por meados dos anos 90, quando tanto as histórias originais de Conan escritas por Howard quanto as melhores criações de Roy Thomas e da dupla L. Sprague de Camp & Lin Carter já haviam sido todas publicadas e a revista tentava sobreviver com o material (muitas vezes pífio) disponível.

(Obs.: Para tornar a coisa toda ainda mais difícil de entender, o roteiro desse filmeco leva a assinatura de Roy Thomas em pessoa... Inexplicável.)

No filme, a rainha-bruxa Taramis (nome emprestado de uma personagem de uma história de Howard, embora a personagem em si não seja a mesma) contrata Conan para escoltar sua sobrinha Jenna (idem) na busca pelo Chifre de Dagon, um artefato de magia divina extremamente poderoso, e que somente Jenna, uma predestinada, pode tocar. O bárbaro é acompanhado por um amigo ladrão metido a engraçado (Tracey Walter) e pelo gigantesco guarda-costas de Jenna, Bombaata (Wilt Chamberlain); no caminho juntam-se ao grupo o mesmo mago do filme anterior (Mako) e uma guerreira negra, Zula (Grace Jones). O Chifre está guardado na fortaleza do mago Thoth Amon, e o grupo de heróis precisará invadir o local para obtê-lo. Há lutas, monstros, armadilhas, muitas cabeças decepadas e sangue à vontade, mas falta um algo mais que pudesse ter feito o filme sobressair acima do comum. Conan, o Destruidor vale para um passatempo inconsequente, mas não ficará marcado na memória como seu antecessor.

(Thoth Amon, a propósito, é um personagem que Howard parece ter criado meio às pressas, batizando-o com os nomes de dois deuses egípcios escolhidos ao acaso, apenas para que Conan tivesse um grande mago do mal como inimigo, assim como Kull tinha Thulsa Doom; de qualquer forma, embora nas histórias originais tenha dado muita dor de cabeça ao herói durante muito tempo, aqui ele aparece reduzido a um vilão de ocasião.)

E o que dizer do Conan versão 2011? Que é um festival de clichês? Bem, isso poderia ser dito dos dois filmes anteriores, e, vamos concordar, clichê não é sempre e necessariamente uma coisa ruim. Porém, dependendo de como são usados, os clichês podem dar forma a alguma coisa que empolgue  ou não.

O novo filme começa como nenhum filme de Conan pode deixar de começar: com uma voz que poderia pertencer a algum velho erudito recitando "
Entre os anos em que os oceanos tragaram a Atlântida e a ascensão dos filhos de Aryas..." Aqui, porém, essa introdução é emendada com uma história que repercutirá diretamente na aventura a ser narrada: no antigo e sombrio reino de Acheron, que teria existido antes do mundo hiboriano tomar forma, foi fabricado um artefato maligno, uma máscara capaz de dar poderes inimagináveis àquele que a usar  só que, para isso, precisa ser "abastecida" com o sangue de moças virgens. Quando o reino de Acheron caiu, as tribos bárbaras vitoriosas dividiram a máscara em três partes, "para que ninguém mais viesse a usar seus poderes malignos" (Obs.: Embora o filme nada diga a respeito, suponho que essa máscara tivesse algum tipo de magia que a tornava indestrutível, mais ou menos como o Um Anel de Sauron; é a única explicação para que os bárbaros não a tenham destruído de uma vez e encerrado o assunto. Aliás, por que será que de repente me lembrei de Hellboy II?). E, como seria inevitável que acontecesse, séculos depois surge um sinistro vilão disposto a tudo para encontrar as três partes e ganhar os poderes ilimitados que a máscara promete. Para falar a verdade, o vilão em questão poderia ser mais sinistro: Khalar Zym (Stephen Lang) lembra demais o zelador Argo Filch, dos filmes de Harry Potter, para ser capaz de meter medo em alguém.

Entrementes, o pequeno Conan nasce no seio da tribo ciméria que guarda um dos pedaços da máscara – e nasce, literalmente, num campo de batalha (Robert E. Howard escreveu de passagem algo a respeito). Em poucos anos mostra a que veio, vencendo rapazes bem mais velhos nas rudes competições atléticas que acontecem na tribo e, de quebra, matando alguns pictos, inimigos hereditários de seu povo, antes mesmo de ter idade para fazer a barba. Porém, antes que ele tenha tempo de se tornar um guerreiro de fato, Khalar Zym descobre o paradeiro do pedaço da máscara e vem buscá-lo, de modo que a tribo é dizimada (de novo), com o acréscimo de um requinte de crueldade: Khalar obriga Conan a assistir à morte de seu pai e mestre, o ferreiro e guerreiro Corin (Ron Perlman – puxa, Hellboy está me perseguindo hoje), ironicamente vitimado pelo mesmo elemento com o qual ganhava a vida: ferro derretido.

Não é difícil imaginar a vida de privações e perigos que o jovem cimério enfrenta a partir daí, mas isso fica implícito: o ator adolescente sai de cena e é substituído por Jason Momoa, o Conan "definitivo" – e preciso dizer: Momoa visivelmente se esforça, mas, embora eu bem que tenha tentado, não consigo achar que ele tenha a cara do personagem: talvez seja por ser havaiano, mas sempre vai me lembrar mais um surfista bombado que um guerreiro bárbaro. Como seria mais do que previsível, o cimério vai atrás de Khalar Zym para vingar a morte do pai, só que, a essa altura, o vilão está muito próximo de conseguir o que quer: já juntou todos os pedaços da máscara e só precisa encontrar uma mulher de "sangue puro" (seja lá o que isso queira dizer) para sacrificar a fim de ativar o poder da coisa. Essa é Tamara (Rachel Nichols), que está sendo educada para sacerdotisa até o templo onde vive ser atacado pela horda de Khalar Zym e todas as suas colegas e mestres serem chacinados. Ela própria escapa graças a Conan, e, se até aí não tinha havido surpresas, daí em diante muito menos: a bela mocinha passa quase todo o resto do filme a tiracolo do herói musculoso enquanto ele despacha filas e filas de vilões e monstros, e, a certa altura, é salva por ele de um destino trágico, por um triz, é claro. Gritando muito o tempo todo.

Visualmente, o novo Conan é cansativo em várias partes: a tentativa de evocar um clima "sombrio" faz com que haja muitas cenas escuras, em que os olhos do espectador se fatigam tentando acompanhar a ação no que parece ser apenas uma confusão de formas indistintas em movimento – em 3D fica ainda pior –, e, quando essas cenas terminam, tem-se sempre a sensação de haver perdido alguma coisa. O diretor alemão Marcus Nispel poderia ter aprendido com 300, no qual o uso inteligente da fotografia em sépia dá o tom soturno sem prejudicar a visibilidade.

Muito do que eu disse sobre Conan, o Destruidor também se aplica a Conan, o Bárbaro 2011: não é propriamente uma catástrofe, e não se pode negar que tem tudo o que uma aventura do gênero sword and sorcery que se preza (e até as que não se prezam) precisa ter: sequências vertiginosas de ação, lutas bem coreografadas, intervenções sobrenaturais, monstros, cenários exóticos... O problema é que, depois de assisti-lo, fica-se com a sensação de que, com tudo isso, teria sido possível fazer um filme muito melhor. Sabe como é quando você prova um prato que, embora tenha levado todos os ingredientes que devia, mesmo assim ficou insosso, porque faltou ao cozinheiro aquele "pulo do gato"? Resumindo: o filme até consegue seu objetivo de divertir – mas está muito, muito longe de fazer com que tenham valido a pena os 27 anos de espera para ver Conan nas telas novamente. Um filme sword and sorcery pode, sim, ir além de ser uma aventurazinha vulgar: pode empolgar, encher os olhos e a imaginação, inspirar e emocionar. Só que ainda continuamos esperando por uma produção sobre Conan que se mostre capaz de provar tudo isso: o filme de Nispel, definitivamente, não prova.