terça-feira, dezembro 31, 2013

Deixa Ela Entrar

Em meu post sobre Drácula, escrevi que os conceitos do vampirismo foram durante muito tempo um dos assuntos mais interessantes que escritores de horror tiveram à sua disposição, até ficarem "desgastados pelo uso excessivo". De fato, parece que já faz muito tempo que não aparece alguém que consiga criar uma verdadeira atmosfera de terror utilizando os "sanguessugas". Eles continuam aparecendo (e muito) em manifestações da cultura pop em geral  livros, quadrinhos, e, é claro, cinema , mas essas produções parecem quase sempre tender para outros gêneros: Blade é ação, não terror, por mais que haja vampiros em cena; Crepúsculo é uma saga de aventura e romance em que, por acaso, o mocinho tem caninos longos e pontudos. E é quase tudo assim. Foi preciso que eu topasse com este livro de um autor pouquíssimo conhecido no nosso meio, e vindo de um país tão improvável quanto a Suécia, para recuperar a fé de que ainda é possível, sim, produzir narrativas de terror – terror genuíno e eficiente – apostando em vampiros.

John Ajvide Lindqvist começa por nos mostrar um lado da Suécia sobre o qual raramente pensamos. Por ser esse um dos países mais prósperos e desenvolvidos do mundo, nós, os não-suecos, tendemos a imaginar (sem refletir muito a respeito) que lá todos tenham vidas perfeitamente ordenadas, com objetivos claros e todos os meios à disposição para atingi-los. Um país onde as pessoas não têm problemas? Ilusão. O autor, sem pedir licença, leva-nos a participar do cotidiano dos moradores de Blackeberg, um subúrbio de Estocolmo que realmente existe – ele, Lindqvist, cresceu lá. Nessa vizinhança, temos a oportunidade de conhecer, por exemplo, o grupo formado por Morgan, Lacke, Larry, Jocke e Karlson: cinco homens de meia-idade, com pouco dinheiro e nenhuma perspectiva, que costumam se reunir num restaurante chinês, onde pouco comem, mas muito bebem. Esses personagens aparecem para dar uma ideia do panorama local, e provavelmente são inspirados em pessoas que o autor conheceu. Porém, o protagonista é Oskar, que tem 12 anos e sofre. Morando com a mãe, ele raramente vê o pai. Embora ela seja afetuosa e mostre preocupação com o filho, parece preferir fechar os olhos a certos problemas, e não ajuda o fato de que Oskar, como todo pré-adolescente, tem seu orgulho, de modo que há coisas sobre as quais prefere silenciar.

O maior espinho na carne do garoto são os valentões da escola, que tentam aliviar o tédio perseguindo-o. Nem sempre é fácil dizer por que é uma determinada criança, e não outra qualquer, que acaba escolhida como alvo desses tipos; no caso de Oskar, talvez tenha sido por ser gorducho e estar mais para introspectivo que para popular, mas, no fim, tanto faz: outras crianças são perseguidas por usarem óculos, por pertencerem a qualquer minoria étnica, religiosa ou de outra espécie, por serem muito altas, muito baixas, por alguma assimetria de feições que as afaste do padrão de aparência considerado ideal, ou por qualquer outra bobagem irrelevante na qual os "perfeitos" consigam pensar. Se por acaso não houver numa turma ninguém que se encaixe em nenhuma dessas situações, a escolha provavelmente caberá ao azar: o certo é que alguém precisa ser a vítima. Há momentos em que Oskar se odeia ainda mais do que odeia seus algozes, porque por vezes se submete à humilhação para evitar apanhar. E assim vai levando a vida aos trancos e barrancos. Para consolar-se, o garoto se entope de doces, quer comprados ou surrupiados. E lê. Muito.

Acontece então que chegam novos vizinhos ao prédio de apartamentos onde Oskar mora: um homem e uma menina. Todos imaginam que sejam pai e filha, e eles deixam que as pessoas continuem pensando assim. A menina, Eli, é estranha, mas fascina Oskar. Dona de uma extraordinária e exótica beleza, ela jamais aparece durante o dia, tem modos misteriosos, um jeito estranho de falar, que por vezes parece mais próprio de um ancião que de uma criança, e parece incapaz de entrar em qualquer recinto a menos que seja convidada em voz alta, de forma explícita: "Você pode entrar", ou algo equivalente. Oskar, apreciador de filmes e livros de terror, sabe muito bem o que isso tudo junto costuma significar, mas "vampiros não existem", não é mesmo? A amizade que se forma entre as duas crianças respeita certos limites: há coisas sobre Eli que deixam Oskar curioso, mas ela tem seus meios de fazê-lo compreender quando deve parar com as perguntas. É graças à paixão que começa a sentir por Eli – a primeira de sua vida, coisa que nunca se esquece – que o menino decide começar a enfrentar seus problemas: não quer que ela o veja como um covarde. Parte do impacto da história está na justaposição chocante de toda essa inocência infantil com os terríveis detalhes da parte da vida de Eli que Oskar não conhece.

O acompanhante de Eli não é seu pai – nem poderia. Håkan (pronuncie Hôkan) é um personagem que causa pena. Já foi professor de sueco, de modo que é um homem de considerável cultura e já soube o que é ser um membro respeitado da sociedade. Seus desvios sexuais o arruinaram: Håkan é um pedófilo – um pedófilo que sofre, dilacerado entre seus desejos inconfessáveis e o senso do certo do errado. Eli o encontrou quando ele já havia alcançado o fundo do poço, ao ponto de cair bêbado em praças, só esperando pela morte, e o reergueu, pelo menos até onde era possível, para que ele servisse a suas necessidades. A princípio, como o próprio Håkan reflete, Eli parecia perfeita para ele: tem o corpo infantil que o atrai, mas não é uma criança – na verdade é muito mais velha, experiente e sábia do que ele próprio, o que lhe daria, finalmente, a chance de satisfazer seus desejos sem sentir culpa. Isso, é claro, se Eli estivesse disposta a cultivar intimidades com Håkan, o que não parece ser o caso: ela sabe que ele a ama e a deseja, e apenas usa isso para mantê-lo dominado. Ele a ajuda a salvar as aparências (já que uma criança vivendo e circulando sozinha chamaria demasiada atenção) e "caça" para ela; no começo, não se compreende por que, já que em diversos momentos da história a menina mostra-se perfeitamente capaz de obter "comida" sozinha: a explicação aparece mais adiante. A tarefa de Håkan consiste em emboscar pessoas, sedá-las e drenar-lhes o sangue para que Eli se alimente. É claro que tal atividade não poderia passar despercebida por muito tempo, de modo que a dupla precisa mudar-se constantemente. O leitor notará que, nas partes que são narradas sob o ponto de vista de Oskar, todos os adjetivos e particípios que se referem a Eli estão no feminino – claro –, ao passo que, quando o ponto de vista é o de Håkan, estão no masculino. O que diabos isso pode significar, faz parte dos mistérios da história.

Eli possui muitas das características dos vampiros clássicos, sendo que o livro enfatiza especialmente (e já no próprio título!) a de não poder entrar sem ser convidada, mas ela também não pode sair ao ar livre durante o dia em hipótese alguma, o que a mataria na hora – e isso, até onde sei, foi inventado no filme Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau, e popularizado por centenas de outros filmes durante as décadas seguintes, mas não faz parte das lendas originais, nem está nos escritos de Bram Stoker: conforme essas fontes essenciais, o vampiro pode, caso precise, circular durante o dia eventualmente – a luz do dia lhe é incômoda e anula temporariamente a maior parte de seus poderes, mas não o mata de forma instantânea. Outra coisa a se notar é que Eli, para uma vampira tão pequena, parece possuir um tremendo apetite: precisa alimentar-se a cada poucos dias, e, a cada vez, consumir o equivalente a todo o sangue que um indivíduo adulto ou jovem tem no corpo; além disso, a menos que a vítima seja morta no ato, transforma-se em vampiro também. Certo, são duas crenças populares a respeito dos vampiros, mas que, se fossem verdadeiras, tornariam inviável a existência dessas criaturas, e que, por isso, são hoje unanimemente desprezadas pelos especialistas. Vamos ver por quê? Vai ser interessante!

Em primeiro lugar, um vampiro que precisasse matar uma pessoa uma ou duas vezes por semana duraria muito pouco: seria rapidamente caçado e morto. A ideia corrente entre os autores atuais é a de que o vampiro pode dominar uma pessoa por meio de hipnotismo (ou atacá-la enquanto dorme) e então sugar uma pequena quantidade de sangue, suficiente para mantê-lo vivo durante alguns dias, sem causar dano sério à vítima, que provavelmente terá um pesadelo, ficará indisposta e cansada durante um dia ou dois, e depois seguirá com sua vida normal – e o vampiro, graças a sua discrição, poderá fazer o mesmo! Em segundo, se toda pessoa que fosse sugada por um vampiro se transformasse em outro, o mundo, dentro de pouco tempo, seria povoado só por vampiros. A versão mais aceita hoje é a de que, para transformar-se, um ser humano precisa, primeiro, ser sugado, e depois, por sua vez, levado a provar o sangue do vampiro, o que significa dizer que não existem transformações acidentais: quando um vampiro converte um humano, faz isso de forma consciente e premeditada. Em todo caso, é provável que Lindqvist tenha optado por seguir as noções populares apenas por serem mais adequadas a seu objetivo literário.

Publicado originalmente em 2004 (embora a ação seja ambientada em 1981), Deixa Ela Entrar já ganhou um lugar entre os grandes romances de terror dos últimos tempos e gerou duas adaptações para o cinema. A primeira é uma produção sueca de 2008, dirigida por Tomas Alfredson; eu vi e recomendo. Como ocorre com todo livro que é adaptado para a tela, a trama teve que ser bastante enxugada, reduzida ao essencial, de modo que as histórias paralelas de personagens secundários foram deixadas de fora. Não acompanhamos, por exemplo, o que ocorre com Tommy, um vizinho de Oskar alguns anos mais velho, usuário de drogas, e sua relação difícil com a mãe viúva e o novo namorado dela, que, por acaso, é um policial; já os dramas e o tédio da existência do grupo do restaurante chinês até são retratados, mas muito de passagem. As atuações dos estreantes Kåre Hedebrant (Oskar) e Lina Leandersson (Eli) surpreendem. O outro filme, intitulado Deixe-me Entrar, é um remake norte-americano, e, pelos comentários que li, bastante açucarado, tendo tido todas as partes chocantes do livro e do filme original limadas, para não falar na "americanização" forçada, que já desvirtuou tantas boas histórias. Quando li na sinopse que Oskar tinha virado "Owen", que Eli passara a ser "Abby" e que a trama estava ambientada no Novo México, desisti de assistir, e pretendo deixar a coisa assim. Meu conselho é que leiam o livro e vejam o filme de Alfredson.

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