Em
meu post sobre Drácula,
escrevi que os conceitos do vampirismo foram durante muito tempo um
dos assuntos mais interessantes que escritores de horror tiveram à
sua disposição, até ficarem "desgastados pelo uso excessivo".
De fato, parece que já faz muito tempo que não aparece alguém que
consiga criar uma verdadeira atmosfera de terror utilizando os
"sanguessugas". Eles continuam aparecendo (e muito) em
manifestações da cultura pop em geral – livros, quadrinhos, e, é
claro, cinema –, mas essas produções parecem quase sempre tender
para outros gêneros: Blade
é ação, não terror, por mais que haja vampiros em cena;
Crepúsculo
é uma saga de aventura e romance em que, por acaso, o mocinho tem
caninos longos e pontudos. E é quase tudo assim. Foi preciso que eu
topasse com este livro de um autor pouquíssimo conhecido no nosso
meio, e vindo de um país tão improvável quanto a Suécia, para
recuperar a fé de que ainda é possível, sim, produzir narrativas
de terror – terror genuíno e eficiente – apostando em vampiros.
John
Ajvide Lindqvist começa por nos mostrar um lado da Suécia sobre o
qual raramente pensamos. Por ser esse um dos países mais prósperos
e desenvolvidos do mundo, nós, os não-suecos, tendemos a imaginar
(sem refletir muito a respeito) que lá todos tenham vidas
perfeitamente ordenadas, com objetivos claros e todos os meios à
disposição para atingi-los. Um país onde as pessoas não têm
problemas? Ilusão. O autor, sem pedir licença, leva-nos a
participar do cotidiano dos moradores de Blackeberg, um subúrbio de
Estocolmo que realmente existe – ele, Lindqvist, cresceu lá. Nessa
vizinhança, temos a oportunidade de conhecer, por exemplo, o grupo
formado por Morgan, Lacke,
Larry, Jocke
e Karlson:
cinco homens de meia-idade, com pouco dinheiro e nenhuma perspectiva,
que costumam se reunir num restaurante chinês, onde pouco comem, mas
muito bebem. Esses personagens aparecem para dar uma ideia do
panorama local, e provavelmente são inspirados em pessoas que o
autor conheceu. Porém, o protagonista é Oskar, que tem 12 anos e
sofre. Morando com a mãe, ele raramente vê o pai. Embora ela seja
afetuosa e mostre preocupação com o filho, parece preferir fechar
os olhos a certos problemas, e não ajuda o fato de que Oskar, como
todo pré-adolescente, tem seu orgulho, de modo que há coisas sobre
as quais prefere silenciar.
O
maior espinho na carne do garoto são os valentões da escola, que
tentam aliviar o tédio perseguindo-o. Nem sempre é fácil dizer por
que é uma
determinada criança, e não outra qualquer, que acaba escolhida como
alvo desses tipos; no caso de Oskar, talvez tenha sido por ser
gorducho e estar mais para introspectivo que para popular, mas, no
fim, tanto faz: outras crianças são perseguidas por usarem óculos,
por pertencerem a qualquer minoria étnica, religiosa ou de outra
espécie, por serem muito altas, muito baixas, por alguma assimetria
de feições que as afaste do padrão de aparência considerado
ideal, ou por qualquer outra bobagem irrelevante na qual os
"perfeitos" consigam pensar. Se por acaso não houver numa
turma ninguém que se encaixe em nenhuma dessas situações, a
escolha provavelmente caberá ao azar: o certo é que alguém precisa
ser a vítima. Há momentos em que Oskar se odeia ainda mais do que odeia
seus algozes, porque por vezes se submete à humilhação para evitar
apanhar. E assim vai levando a vida aos trancos e barrancos. Para
consolar-se, o garoto se entope de doces, quer comprados ou
surrupiados. E lê. Muito.
Acontece
então que chegam novos vizinhos ao prédio de apartamentos onde
Oskar mora: um homem e uma menina. Todos imaginam que sejam pai e
filha, e eles deixam que as pessoas continuem pensando assim. A
menina, Eli, é estranha, mas fascina Oskar. Dona de uma
extraordinária e exótica beleza, ela jamais aparece durante o dia,
tem modos misteriosos, um jeito estranho de falar, que por vezes
parece mais próprio de um ancião que de uma criança, e parece
incapaz de entrar em qualquer recinto a menos que seja convidada em
voz alta, de forma explícita: "Você pode entrar", ou algo
equivalente. Oskar, apreciador de filmes e livros de terror, sabe
muito bem o que isso tudo junto costuma significar, mas "vampiros
não existem", não é mesmo? A amizade que se forma entre as
duas crianças respeita certos limites: há coisas sobre Eli que
deixam Oskar curioso, mas ela tem seus meios de fazê-lo compreender
quando deve parar com as perguntas. É graças à paixão que começa
a sentir por Eli – a primeira de sua vida, coisa que nunca se
esquece – que o menino decide começar a enfrentar seus problemas:
não quer que ela o veja como um covarde. Parte do impacto da
história está na justaposição chocante de toda essa inocência
infantil com os terríveis detalhes da parte da vida de Eli que Oskar
não conhece.
O
acompanhante de Eli não é seu pai – nem poderia. Håkan
(pronuncie Hôkan) é um personagem que causa pena. Já foi professor
de sueco, de modo que é um homem de considerável cultura e já
soube o que é ser um membro respeitado da sociedade. Seus desvios
sexuais o arruinaram: Håkan é um pedófilo – um pedófilo que
sofre, dilacerado entre seus desejos inconfessáveis e o senso do
certo do errado. Eli o encontrou quando ele já havia alcançado o
fundo do poço, ao ponto de cair bêbado em praças, só esperando
pela morte, e o reergueu, pelo menos até onde era possível, para
que ele servisse a suas necessidades. A princípio, como o próprio
Håkan reflete, Eli parecia perfeita para ele: tem o corpo infantil
que o atrai, mas não é uma criança – na verdade é muito mais
velha, experiente e sábia do que ele próprio, o que lhe daria,
finalmente, a chance de satisfazer seus desejos sem sentir culpa.
Isso, é claro, se Eli estivesse disposta a cultivar intimidades com
Håkan, o que não parece ser o caso: ela sabe que ele a ama e a
deseja, e apenas usa isso para mantê-lo dominado. Ele a ajuda a
salvar as aparências (já que uma criança vivendo e circulando
sozinha chamaria demasiada atenção) e "caça" para ela;
no começo, não se compreende por que, já que em diversos momentos
da história a menina mostra-se perfeitamente capaz de obter "comida"
sozinha: a explicação aparece mais adiante. A tarefa de Håkan
consiste em emboscar pessoas, sedá-las e drenar-lhes o sangue para
que Eli se alimente. É claro que tal atividade não poderia passar
despercebida por muito tempo, de modo que a dupla precisa mudar-se
constantemente. O leitor notará que, nas partes que são narradas
sob o ponto de vista de Oskar, todos os adjetivos e particípios que
se referem a Eli estão no feminino – claro –, ao passo que,
quando o ponto de vista é o de Håkan, estão no masculino. O que
diabos isso pode significar, faz parte dos mistérios da história.
Eli
possui muitas das características dos vampiros clássicos, sendo que
o livro enfatiza especialmente (e já no próprio título!) a de não
poder entrar sem ser convidada, mas ela também não pode sair ao ar
livre durante o dia em hipótese alguma, o que a mataria na hora – e isso, até onde sei, foi inventado no filme Nosferatu
(1922), de Friedrich Murnau, e popularizado por centenas de outros
filmes durante as décadas seguintes, mas não faz
parte
das lendas originais, nem está nos escritos de Bram Stoker: conforme
essas fontes essenciais, o vampiro pode, caso precise, circular
durante o dia eventualmente – a luz do dia lhe é incômoda e anula
temporariamente a maior parte de seus poderes, mas não o mata de
forma instantânea. Outra coisa a se notar é que Eli, para uma
vampira tão pequena, parece possuir um tremendo apetite: precisa
alimentar-se a cada poucos dias, e, a cada vez, consumir o
equivalente a todo o sangue que um indivíduo adulto ou jovem tem no
corpo; além disso, a menos que a vítima seja morta no ato,
transforma-se em vampiro também. Certo, são duas crenças populares
a respeito dos vampiros, mas que, se fossem verdadeiras, tornariam
inviável a existência dessas criaturas, e que, por isso, são hoje
unanimemente desprezadas pelos especialistas. Vamos ver por quê? Vai ser interessante!
Em primeiro lugar, um vampiro que precisasse matar uma pessoa uma ou duas vezes por semana duraria muito pouco: seria rapidamente caçado e morto. A ideia corrente entre os autores atuais é a de que o vampiro pode dominar uma pessoa por meio de hipnotismo (ou atacá-la enquanto dorme) e então sugar uma pequena quantidade de sangue, suficiente para mantê-lo vivo durante alguns dias, sem causar dano sério à vítima, que provavelmente terá um pesadelo, ficará indisposta e cansada durante um dia ou dois, e depois seguirá com sua vida normal – e o vampiro, graças a sua discrição, poderá fazer o mesmo! Em segundo, se toda pessoa que fosse sugada por um vampiro se transformasse em outro, o mundo, dentro de pouco tempo, seria povoado só por vampiros. A versão mais aceita hoje é a de que, para transformar-se, um ser humano precisa, primeiro, ser sugado, e depois, por sua vez, levado a provar o sangue do vampiro, o que significa dizer que não existem transformações acidentais: quando um vampiro converte um humano, faz isso de forma consciente e premeditada. Em todo caso, é provável que Lindqvist tenha optado por seguir as noções populares apenas por serem mais adequadas a seu objetivo literário.
Em primeiro lugar, um vampiro que precisasse matar uma pessoa uma ou duas vezes por semana duraria muito pouco: seria rapidamente caçado e morto. A ideia corrente entre os autores atuais é a de que o vampiro pode dominar uma pessoa por meio de hipnotismo (ou atacá-la enquanto dorme) e então sugar uma pequena quantidade de sangue, suficiente para mantê-lo vivo durante alguns dias, sem causar dano sério à vítima, que provavelmente terá um pesadelo, ficará indisposta e cansada durante um dia ou dois, e depois seguirá com sua vida normal – e o vampiro, graças a sua discrição, poderá fazer o mesmo! Em segundo, se toda pessoa que fosse sugada por um vampiro se transformasse em outro, o mundo, dentro de pouco tempo, seria povoado só por vampiros. A versão mais aceita hoje é a de que, para transformar-se, um ser humano precisa, primeiro, ser sugado, e depois, por sua vez, levado a provar o sangue do vampiro, o que significa dizer que não existem transformações acidentais: quando um vampiro converte um humano, faz isso de forma consciente e premeditada. Em todo caso, é provável que Lindqvist tenha optado por seguir as noções populares apenas por serem mais adequadas a seu objetivo literário.
Publicado
originalmente em 2004 (embora a ação seja ambientada em 1981),
Deixa
Ela Entrar
já ganhou um lugar entre os grandes romances de terror dos últimos
tempos e gerou duas adaptações para o cinema. A primeira é uma
produção sueca de 2008, dirigida por Tomas Alfredson; eu vi e
recomendo. Como ocorre com todo livro que é adaptado para a tela, a
trama teve que ser bastante enxugada, reduzida ao essencial, de modo
que as histórias paralelas de personagens secundários foram
deixadas de fora. Não acompanhamos, por exemplo, o que ocorre com
Tommy, um vizinho de Oskar alguns anos mais velho, usuário de
drogas, e sua relação difícil com a mãe viúva e o novo namorado
dela, que, por acaso, é um policial; já os dramas e o tédio da
existência do grupo do restaurante chinês até são retratados, mas
muito de passagem. As atuações dos estreantes Kåre Hedebrant
(Oskar) e Lina Leandersson (Eli) surpreendem. O outro filme,
intitulado Deixe-me
Entrar,
é um remake
norte-americano, e, pelos comentários que li, bastante açucarado,
tendo tido todas as partes chocantes do livro e do filme original
limadas, para não falar na "americanização" forçada,
que já desvirtuou tantas boas histórias. Quando li na sinopse que
Oskar tinha virado "Owen", que Eli passara a ser "Abby"
e que a trama estava ambientada no Novo México, desisti de assistir,
e pretendo deixar a coisa assim. Meu conselho é que leiam o livro e
vejam o filme de Alfredson.
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