"Sabe, as máquinas nunca têm peças sobrando. Elas têm o número e o tipo exato de peças que precisam. Então, eu imagino que, se o mundo inteiro é uma grande máquina, eu devo estar aqui por algum motivo. E isso quer dizer que você, também, deve estar aqui por algum motivo."
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Eis aqui um livro diferente e interessante, que eu talvez não chegasse a ler se não fosse por uma feliz conspiração de fatos. Perto do final de 2012, só para estar preparado para a eventualidade de que o Natal chegasse sem que o mundo tivesse acabado antes, como estavam anunciando então, perguntei a minha namorada, Cintia, o que gostaria que eu lhe desse de presente, e ela me falou de A Invenção de Hugo Cabret. Então, durante minha ida seguinte a São Paulo, comprei o livro para ela, aproveitando nossa inevitável "passadinha" pela Livraria Cultura do shopping Bourbon Pompeia (a propósito, ela costuma dizer, meio a sério, meio brincando, que não gosta desse lugar, porque sempre sai com uma sensação de frustração por não poder levar todos os livros e DVDs que gostaria). Agora peguei o livro emprestado e gostei bastante. Não conhecia o autor, Brian Selznick, responsável tanto pelo texto quanto pela (farta) ilustração, e essa foi uma apresentação bem favorável: ele realizou um belo trabalho - algo verdadeiramente muito artístico.
Estamos em Paris, em 1931. Na imensa estação ferroviária central da cidade, Hugo Cabret, um garoto de 12 anos, vive sozinho e escondido. Vindo de uma família toda de relojoeiros, ele herdou esse talento, e agora realiza sozinho a manutenção de todos os relógios da estação, que são muitos, e alguns deles gigantescos. O pai de Hugo, que tinha uma relojoaria, morreu num incêndio num museu onde prestava serviços; o menino, então, ficou sob a guarda de seu tio Claude, que fazia a manutenção dos relógios da estação e fez dele seu aprendiz. Quando o tio, dado a bebedeiras, desapareceu, Hugo passou a fazer o trabalho dele, e por uma razão muito pessoal: se os relógios pararem de funcionar, a administração da estação irá investigar, descobrirá o desaparecimento de Claude, e também descobrirá que ele, Hugo, está morando lá clandestinamente. Além de não ter qualquer vontade de ir para um orfanato, o menino tem outro motivo para não querer deixar a estação: lá, no pequeno apartamento que ficou para ele desde que o tio se foi, está escondida uma maravilha da arte e da mecânica - um autômato, um pequeno homem mecânico que o pai de Hugo descobriu no sótão do museu onde trabalhava e onde morreu. Hugo salvou a curiosa máquina das ruínas, e, durante os meses que se passaram desde então, tem tentado consertá-la. O autômato foi feito para escrever - uma atração de show de mágica -, e a ideia de ler a mensagem que ele escreveria se voltasse a funcionar tornou-se uma obsessão para o garoto.
Para consertar qualquer máquina, geralmente são necessárias peças de reposição. Hugo, então, começa a furtar brinquedos mecânicos de uma loja na própria estação, a fim de desmontá-los e usar as peças em sua obra. O proprietário, gerente e atendente da loja é um velho misterioso, que às vezes recebe visitas de uma menina que adora ler. Hugo ainda não sabe, mas já está ligado a essas pessoas antes mesmo de conhecê-las; e, quando as conhecer, seu mundo sofrerá uma revolução.
O grande volume de A Invenção de Hugo Cabret engana: é um livro para se ler numa "sentada" só. Aliás, seria mais exato dizer que é também um livro para se ver. O texto é frequentemente intercalado por longos trechos de narrativa exclusivamente visual, dando seguimento à história por meio de recursos tomados de empréstimo aos quadrinhos e ao cinema. Por isso o tamanho do livro: a maior parte dele corresponde às ilustrações, feitas pelo próprio autor, e, por sinal, belíssimas. Infelizmente, na edição brasileira, todas estão em página dupla, o que faz com que a encadernação do livro prejudique a visualização de muitas delas.
Misturando ficção com fatos e personagens históricos, Brian Selznick aproveita a história que está contando para prestar uma homenagem a Georges Méliès (1861-1938), que pode ser considerado com justiça o pai do cinema tal como conhecemos. Certo, se formos consultar uma enciclopédia, veremos que o crédito da invenção do cinema é atribuído aos irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), e está correto, pois eles de fato criaram o "cinematógrafo", máquina que deu início a tudo. Só que, a julgar pelo que os cronistas da época registraram, os Lumière, a exemplo de muitos outros inventores, tinham pouca ou quase nenhuma ideia do verdadeiro potencial de sua invenção - e parece que tampouco a imaginação era o forte de qualquer dos dois. Eles filmavam trens chegando à estação, operários saindo de uma fábrica, coisas desse tipo, e esses filmes só atraíam espectadores porque, na época, o simples fato de se ver imagens em movimento já era considerado formidável e emocionante. O pioneirismo na ideia de usar o cinema para contar histórias coube mesmo a Méliès, que, até então, atuava como mágico, cartunista e pintor.
O pai de Auguste e Louis, Antoine Lumière, era um empresário do ramo da fotografia. Orgulhoso da realização dos filhos, Monsieur Lumière convidou muitas pessoas para a primeira exibição pública de cinema da História, marcada para 28 de dezembro de 1895. Um dos convidados foi seu amigo Georges Méliès, a quem ele teria dito que, se comparecesse, veria um novo tipo de mágica que talvez lhe interessasse. E não deu outra: Méliès ficou imediatamente fascinado pela engenhoca, e viu logo suas vastas possibilidades, nas quais seus próprios criadores não tinham pensado. Começou imediatamente a fazer filmes, e não parou durante os 18 anos seguintes: fez mais de 500 deles, nenhum com mais que alguns minutos de duração - estava-se ainda muito longe da era dos longas-metragens. Esses filmes eram, em sua maioria, fantasias, sem esquecer que a Méliès se atribui o mérito de ter feito o primeiro filme de terror, Le Manoir du Diable ('A Mansão do Diabo' - podem vê-lo completo aqui; como não há trilha sonora, sugiro que sincronizem com o Concerto para Piano n.º 1 de Tchaikovsky). Tudo bem, o filme não assusta ninguém, e provavelmente já não assustava nem naquela época: parece ser um terror-pastelão, mais puxado para a comédia. Ainda assim, é um marco histórico, e, junto com o restante da obra de Méliès, obriga-nos a refletir que o nosso tão querido cinema fantástico foi o gênero pioneiro da sétima arte e, mesmo assim, mais de um século depois, continua subestimado e alvo de preconceitos persistentes.
A habilidade ilusionística e o senso de cena adquiridos na carreira de mágico foram muito úteis a Méliès. Com a técnica que inventou e batizou de stop-action (que consistia simplesmente em parar a câmera, alterar o cenário e então voltar a filmar), conseguia dar a impressão de que personagens ou objetos apareciam e desapareciam de repente - como se fosse magia, por assim dizer. Criou, ainda, diversos outros truques, que o levaram a ser considerado, além de iniciador do cinema de ficção, também o inventor dos efeitos especiais. Sua carreira teve fim com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e os últimos 25 anos de sua vida são obscuros - fato esse do qual Brian Selznick soube aproveitar-se de forma magistral em seu livro.
A Invenção de Hugo Cabret é uma história de amizade, lealdade e amor à arte, narrada de maneira original e cativante. Recomendo para qualquer leitor, mas muito especialmente para os que também são amantes de cinema.
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