quarta-feira, dezembro 19, 2018

Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo

Quer dizer então que você está numa situação na qual precisa demonstrar inteligência e "espírito independente", mas não sabe muito bem como fazer isso? Precisa fazer uma média com aquele seu professor marxista de História ou de sociologia? Quer causar uma boa impressão naquela rodinha de colegas "intelectuais" que se reúnem no bar da faculdade e com quem você está tentando se enturmar? Quer "lacrar" numa discussão na internet? Nada mais fácil: ataque a Igreja Católica. Nem precisa entrar em controvérsias teológicas (aliás, isso nem é aconselhável, pois o seu "público-alvo", incluído aí o professor marxista, não entenderia nada): basta falar de como ela incitou o ataque (gratuito e sem provocação, é claro) aos coitadinhos dos muçulmanos nas Cruzadas, matou milhões de pessoas inocentes (todas inocentes, naturalmente) na Inquisição, tramou esquemas manipulando reis e Estados, só para ficar mais rica e poderosa, empatou o progresso da ciência durante séculos, legitimou a escravidão declarando que os negros "não tinham alma"… Isso são apenas alguns exemplos. A lista de distorções, meias-verdades, exageros e simples mentiras deslavadas é longa e você pode escolher à vontade sem perigo de errar. Basta enfileirar duas ou três observações (pouco importa o quão tolas e sem fundamento: sendo contra a Igreja, qualquer coisa serve, e não é preciso provas) sobre qualquer um desses pontos, e pronto: você deu a impressão de que é inteligente e estão garantidos os aplausos.

Muito bem, mas e a verdade? A Igreja Católica, praticamente sozinha, foi a responsável por manter a civilização ocidental viva quando o Império Romano desmoronou e povos bárbaros tomaram conta da Europa; mais tarde, também foi ela, e ainda praticamente sozinha, quem conseguiu domar esses mesmos povos bárbaros e criar condições para que a civilização voltasse a florescer – e não torçam o nariz quando falo em civilização: barbárie só é bacana em história do Conan. Dentro dos muros de mosteiros e abadias (católicos, não é demais lembrar), bibliotecas bem organizadas preservaram o conhecimento do mundo greco-romano, em livros que os bárbaros teriam queimado sem pensar duas vezes… Que digo eu? Sem pensar sequer uma vez. Foi dentro desses mesmos muros que a ciência moderna deu seus primeiros passos, sim senhor. Foi em torno da fé católica que tribos e grupos étnicos que não tinham mais nada em comum se uniram para formar os primeiros Estados nacionais da forma como os entendemos. Hospitais e universidades? Devemos à Igreja Católica. Devo continuar? Poderia ir longe, mas creio que basta por enquanto.

Este livro, escrito por um sujeito chamado John Zmirak (uma das principais cabeças por trás do site e jornal The Stream), mostra mais uma vez que sempre há coisas a aprender, mesmo sobre assuntos que acreditamos já dominar. Não que eu alguma vez tenha alimentado a ilusão de saber tudo sobre a Igreja Católica, apesar de haver congregado nela durante toda a minha vida, o que, agora, já significa um tempinho bem considerável. Porém, a Igreja é uma realidade imensa e complexa, que não se pode ver ou abarcar com a inteligência de uma vez só, e há de fato um ou dois temas específicos ligados a ela que eu acreditava conhecer bem – até agora. A oportunidade de aprender mais sempre me deixa contente, e ainda mais se for num livro como este, escrito do jeito que me agrada: com uma levada dinâmica, um assunto conduzindo ao outro com fluência, mas sem nunca perder o foco, numa linguagem rica e elaborada, sem pedantismo desnecessário, e valorizada, nesta edição, por uma tradução de qualidade, coisa que, infelizmente, vem se tornando cada vez mais rara em edições brasileiras – parabéns e obrigado ao tradutor Raul Martins (OK, há alguns problemas de português aqui e ali, mas nada que comprometa). Por outro lado, recomendo que desconsiderem a capa de péssimo gosto, feita por um tal Fernando Mena. O que dá pena é saber que o livro será lido mais por católicos mesmo, e dificilmente chegará às mãos daqueles que mais precisariam lê-lo. Mas vamos ver o lado bom: há tantos assuntos importantes aqui, e esmiuçados de forma tão eficiente, que quase nenhum católico do planeta poderá percorrer estas 367 páginas e, ao final, dizer que não leu nada que já não soubesse.

Nota-se que Zmirak se esforçou, entre outras coisas, para dar ao leitor um panorama o mais atual possível da situação vivida pela Igreja (talvez um cacoete trazido do jornalismo), o que terá a desvantagem de deixar parte do livro datada depois de alguns anos. Por outro lado, a maior parte dele trata de temas que serão sempre atuais – e mesmo aquilo que ficar datado terá o valor de registro histórico deste turbulento início de milênio. Como boa parte dos católicos mundo afora, Zmirak não parece lá muito contente com certas atitudes do atual papa, Francisco. Partindo disso, o autor aborda seu primeiro ponto: a noção equivocada que muita gente (inclusive muitos católicos) tem, de que o fiel católico tem por obrigação aceitar tudo o que o papa disser sobre qualquer assunto – e, mais equivocado ainda, de endossar tudo o que ele fizer. Os pseudointeligentes aos quais eu me referia no início do texto ouvem falar no dogma da infalibilidade papal e, sem se darem ao trabalho de procurar saber o que isso realmente significa, abrem logo a boca: "Mas cooomo? Como assim, o papa é infalível? E todos os papas corruptos e assassinos que existiram? Eles também eram infalíveis?" Que fique claro: a infalibilidade é, de fato, um dogma da Igreja, mas só se aplica ao que o papa declarar ex cathedra, quer dizer, às suas declarações oficiais sobre a fé e a moral – e somente sobre esses assuntos. Ao fazer esse tipo de declaração, o papa está amparado pelo Espírito Santo, que, no interesse de toda a Igreja, o preserva do erro… Desnecessário dizer que isso é um artigo de fé, o que significa que é algo em que a pessoa simplesmente acredita ou não acredita – e, se você não é católico, é muito provável que não acredite. Em todo caso, as declarações papais a respeito de fé e moral têm-se mostrado de uma notável constância e consistência ao longo desses vinte séculos repletos de chuvas e trovoadas de todos os tipos.

Passando para outros temas, entretanto, a coisa toda é diferente. Se o papa quiser emitir opiniões sobre política ou ecologia, é claro que ele pode, mas essas serão meramente suas opiniões, com as quais nenhum de nós tem a obrigação de concordar, e, no que se refere a sua conduta pessoal, ele é tão falível e propenso ao erro quanto qualquer outro homem. Os papas indignos registrados pela História tomaram o cargo, ou foram colocados nele, por meio de manobras escusas, e unicamente por causa do poder político que ele trazia junto; não estavam minimamente interessados em espiritualidade e não me consta que tenham feito declarações oficiais sobre fé e moral – o que, com a licença dos incrédulos, nós acreditamos ser mais um indício da ação do Espírito Santo. Mais ainda: bulas, encíclicas e demais documentos redigidos pelo papa, ou por ele determinados, destinam-se a esclarecer pontos da fé e nortear a conduta da Igreja e dos fiéis diante de novas circunstâncias trazidas pelas constantes mudanças que o mundo atravessa. Consistem em orientação, não são declarações ex cathedra, e não são infalíveis. O fiel católico deve prestar-lhes atenção e levá-los em grande consideração, como o faria com o conselho de qualquer pessoa sábia e instruída, mas não é obrigado a aceitar tudo o que contenham. Por fim, há que se observar que declarações papais apoiadas no dogma da infalibilidade são muito raras: o dogma (que já existia de forma implícita desde os primeiros tempos da Igreja) foi oficialmente proclamado durante o concílio Vaticano I, que ocorreu em 1869-70, e, desde então, foi aplicado apenas duas vezes.

O livro prossegue tocando em pontos que, por vezes, se mostram espinhosos para os católicos de hoje; é claro que não tem como oferecer soluções para a maioria deles, mas consegue esclarecê-los bastante e, de modo geral, fornecer um lembrete de como deveríamos agir em relação a cada uma dessas questões, caso queiramos ser católicos de verdade, e não meros "católicos de IBGE". Não que isso seja fácil, é claro. A questão da contracepção, por exemplo: historicamente, a Igreja sempre a considerou reprovável, e até hoje não aprova o uso de coisas como pílula e camisinha – mas não venham querer culpar a Igreja por haver tanta gente por aí transando sem proteção: se o povo ligasse para o que a Igreja diz sobre vida sexual, manteria abstinência até o casamento e fidelidade a partir daí, de modo que o risco das doenças venéreas praticamente não existiria e a tal proteção seria desnecessária. Não vou ser hipócrita e dizer que sempre segui esses preceitos à risca (sou solteiro e já mantive relacionamentos íntimos, sim; como Zmirak, assumo minha condição de mau católico), mas o fato é que, embora ele possa parecer nada mais que um moralismo ultrapassado, na verdade é a única orientação que a Igreja pode efetivamente oferecer sobre esse assunto sem trair alguns de seus princípios mais fundamentais – o primeiro deles sendo o de que não estamos neste mundo a passeio: há um Deus que colocou uma ordem nas coisas e espera de nós que ajamos em conformidade com ela. O problema com os contraceptivos, na visão da Igreja, é que eles desvinculam o sexo da função que o Criador lhe atribuiu, que é a da reprodução. Conhecendo a natureza humana (e, creiam, a natureza humana é algo que a Igreja, ao longo desses dois mil anos, teve oportunidade de conhecer muito bem), fica evidente para qualquer um que, uma vez rompido esse vínculo, o sexo vira um reles parque de diversões – e alguém aí vai negar que é exatamente assim que a sociedade moderna e secularizada o compreende? A Igreja não pode compactuar com isso e continuar sendo a Igreja. Ponto. Ninguém jamais disse que ser católico era fácil.

Por outro lado, mesmo o sexo dentro do casamento tem as suas complexidades. A Igreja não pretende que todo ato sexual entre marido e mulher resulte num filho, mas ensina que, se e quando isso acontecer, a criança gerada deve ser recebida com amor e educada com responsabilidade. Isso vale hoje como valia há quinhentos, mil ou dois mil anos. O que mudou foram outras coisas. Em séculos anteriores, controlar a quantidade de nascimentos não era uma preocupação, nem para a sociedade, nem para as famílias. Um casal dificilmente poderia ter filhos demais: tê-los em grande número era uma necessidade. Era preciso ter uns dez para que houvesse ao menos uma boa chance de que dois ou três chegassem à idade adulta. Além disso, nas sociedades eminentemente rurais desses tempos, o custo de se criar um filho era baixo, já que só era necessária uma educação rudimentar, e ele podia, desde tenra idade, começar a ajudar os pais no trabalho. Ocorre que, de lá para cá, o progresso da medicina e a melhoria das condições de vida da população em geral fizeram as taxas de mortalidade infantil despencarem, ao mesmo tempo em que a urbanização da sociedade, com a consequente demanda por profissionais cada vez mais especializados, passava a exigir um outro tipo de educação – mais demorada e mais cara. Em resumo: se, como no exemplo acima, o casal tivesse dez filhos, agora era provável que todos os dez sobrevivessem, e todos precisavam ir para a escola. Nessa nova realidade, não seria razoável da parte da Igreja censurar os casais que quisessem limitar os nascimentos na família ao número de filhos que pudessem efetivamente alimentar e educar. Mas, nesse caso, como fica? Se você só pode criar três filhos e já tem os três, deve simplesmente parar de fazer sexo com sua esposa ou marido? A resposta, que poderá surpreender a muitos, é um redondo não, pois, ainda que a função natural do sexo seja a reprodução, ele não pode ser reduzido apenas a isso: é também parte importante da vida e da intimidade de um casal. Para resolver o problema, a Igreja recomenda o que chama de métodos naturais, que consistem basicamente em calcular os períodos férteis da mulher e evitar fazer sexo durante os mesmos; se isso funciona na prática, é controverso. Além disso, uma mudança de entendimento não parece impossível, ao menos não desde que o papa Bento XVI admitiu que o uso da camisinha é aceitável em certas situações, o que sinaliza que o problema não é a camisinha em si, mas o modo como ela vem sendo usada e propagandeada: como um instrumento para desvincular o sexo de qualquer tipo de compromisso ou responsabilidade.

Sobre não ser fácil ser católico, como dito acima, Zmirak escreve: "É claro, há muitos pontos nos quais a fé cristã tradicional, e sobretudo em sua forma católica, é frustrante e exigente. Não precisaríamos do sacramento da Confissão se viver uma vida cristã nos fosse algo natural, como respirar, comer ou fazer valer nossa vontade às custas dos outros." O livro está coalhado de espetadas certeiras e cruamente realistas como essa. Ao longo das últimas décadas, e particularmente no ocidente, a mídia e uma educação tendenciosamente torta têm tentado criar nas mentes a ideia de que a natureza é sempre o modelo de perfeição e de que o melhor que fazemos é obedecer sempre a ela, o que significa sempre seguir nossos instintos – mas uma análise um pouco mais profunda da questão leva-nos a perceber que isso equivaleria a assinar embaixo de atos como roubo, assassinato e estupro, que são, sim, tendências naturais em primatas como nós, como o estudo do comportamento dos nossos primos quase irmãos, os chimpanzés, não deixa dúvida. O que nos faz seres racionais, capazes de respeitar os direitos uns dos outros e de viver em sociedade, é a nossa capacidade de contrariar os nossos instintos, quando eles nos querem levar a ter comportamentos antissociais. Em outras palavras, nossa capacidade de decidir quando obedecer à natureza e quando lutar contra ela – o que sempre foi uma das bases do ensinamento da Igreja.

Afora as questões que dizem respeito a todo católico em qualquer lugar do mundo, Zmirak (talvez de forma não premeditada, o que torna tudo mais revelador) acaba por nos oferecer um vislumbre de como é ser católico nos Estados Unidos, país predominantemente protestante, onde, não raras vezes ao longo da História, professar a fé romana foi fator de discriminação: dependendo da época e da região do país, ser católico não era mais fácil, nem mais seguro, que ser negro ou judeu. Além disso, o autor expõe seu parecer, na qualidade de católico, sobre diversas questões da realidade do país, também aplicáveis, em maior ou menor grau, a outros países. A ideia do presidente Trump de construir um muro na fronteira dos EUA com o México, por exemplo, pode ser uma maluquice pra ninguém botar defeito – mas a imigração descontrolada é um problema real, não mera paranoia. E, no entanto, o papa Francisco costuma falar como se fosse um dever moral de toda nação próspera receber de braços abertos qualquer imigrante que a procure, isso apesar de o próprio Catecismo da Igreja Católica prever que esse acolhimento deve ocorrer "até onde for possível", e não parece descabido interpretar esse "até onde for possível" como significando que uma nação não deve descuidar de seus próprios cidadãos porque precisa se virar com um número absurdo de imigrantes. Zmirak se alonga, nessa parte, discorrendo sobre os efeitos da política de imigração sobre a sociedade dos EUA, o que pode parecer sem relação com a realidade dos não-estadunidenses, mas não é bem assim – primeiro, porque muito do que acontece lá também acontece em outros países, e segundo, porque, queiramos ou não, o que afeta os EUA também nos afeta indiretamente.

E, se a torrente de imigração preocupa os norte-americanos, o que dizer, então, da Europa? Os europeus estão tendo cada vez menos filhos, pelos motivos discutidos acima, e isso parece ser uma questão de mentalidade, fora do alcance da influência quer da Igreja, quer do Estado, pelo menos a curto prazo. Enquanto isso, levas intermináveis de imigrantes chegam todos os anos – a maioria deles oriundos de países muçulmanos. É claro que, em sua vasta maioria, são pessoas de bem, que querem apenas encontrar trabalho e construir prosperidade para si e suas famílias… Mas nem todos, como mostra o fato de muitos dos atentados "em nome do Islã" praticados nos últimos anos na Europa terem sido obra de pessoas que entraram nela legalmente; em alguns casos, até mesmo de filhos de imigrantes, que já nasceram no novo país, têm cidadania nele – e, mesmo assim, o atacaram. Mesmo que não houvesse o perigo do terrorismo para ser levado em conta, é inevitável nos perguntarmos que efeitos terá, a longo prazo, essa entrada maciça de muçulmanos na Europa, principalmente no aspecto cultural. Em palavras simples: o que isso fará com a identidade do ocidente? Na Idade Média, a Igreja convocou as Cruzadas, que, embora execradas pela corja politicamente correta, salvaram nossa civilização… Acontece que, como costumo dizer, os cruzados contavam, ao menos, com a vantagem de saber quem era o inimigo e onde ele estava. Hoje, o inimigo pode ser qualquer um, em qualquer lugar.

Não estou de acordo com todos os pontos de vista de Zmirak, é claro. A defesa veemente que ele faz do direito à posse e ao porte de armas, por exemplo, parece ter muito mais a ver com sua formação de americano-de-classe-média-que-sempre-vota-nos-republicanos que com a fé católica – e, antes que alguém me interprete mal, esclareço que não sou radicalmente contra esses direitos, nem irrestritamente a favor deles: como em tudo na vida, o meio-termo é a melhor coisa. O modelo norte-americano, que permite que praticamente qualquer um compre uma arma como quem compra um guarda-chuva, é insensato, mas tampouco parece certo negar às pessoas qualquer meio prático de defender sua integridade física e a de sua família, bem como seu patrimônio. Por isso, acho válido que se tenha armas, desde que o controle seja rígido, constante, e inclua todos os testes psicológicos possíveis, que deveriam ser repetidos com frequência. Se você quer ter uma arma, prove que é equilibrado e responsável o suficiente para fazer bom uso dela – que não é apenas mais um babaca que se acha um "cidadão correto" e sairá dando tiros na primeira discussão de trânsito em que se envolver. Por outro lado, um dos capítulos mais interessantes do livro é aquele no qual Zmirak se dedica a desfazer uma ideia muito comum – tão comum, de fato, que um número enorme de católicos acredita nela: o de que o católico, e o cristão em geral, deve ser um pacifista, incapaz de matar um mosquito, não importa a situação. O papa Paulo VI liquidou o assunto (ou assim deveria ter sido) ao declarar que o cristão ama a paz, mas não é pacifista. "Paz a qualquer preço" é uma ideia ingênua (na qual, confesso, eu mesmo já acreditei); a posição da Igreja, e, a meu ver, a de qualquer pessoa realista, é a de que, embora a guerra seja sempre um mal, há momentos na História em que ela é o mal menor. Junto com as questões das armas e da guerra, Zmirak debate também a da pena de morte – assunto esse no qual faço grandes ressalvas aos pontos de vista que ele expressa, embora precise admitir que o faz de forma coerente e bem argumentada.

O capítulo X trata da relação entre a fé católica e a ciência – e não deixa sobrar nada da noção, tão difundida, de que a Igreja fez e faz tudo ao seu alcance para impedir o progresso científico e manter a humanidade eternamente aprisionada numa bolha de obscurantismo. Esse é um dos porretes favoritos dos que querem bater na Igreja, e podemos retraçar sua origem até os filósofos iluministas da segunda metade do século XVIII – eles mesmos, os mentores intelectuais da Revolução Francesa, cujos virulentos ataques ao cristianismo e particularmente ao catolicismo tinham clara intenção política, pois o apoio da Igreja era um dos pilares do poder dos reis, o que levava tais filósofos a se sentirem na obrigação de tentar demoli-la. Destacam-se nomes como Diderot, Montesquieu e, principalmente, Voltaire (1694-1778), consumado hipócrita que escrevia manifestos contra a escravidão que levavam seus leitores às lágrimas e, enquanto isso, investia suas economias pessoais em ações de navios negreiros. Não por acaso, foi Voltaire quem inventou e alardeou o quanto pôde que a Igreja afirmava que os negros não tinham alma e que, por isso, não havia problema em escravizá-los – estupidez essa até hoje repetida à exaustão quando alguém que acha que sabe algo sobre alguma coisa quer parecer "crítico" e inteligente. Um pouco de pesquisa séria e imparcial (o que, claro, é pedir demais a esse tipo de gente) revela a realidade: a escravidão era simplesmente algo que sempre tinha existido e que a Igreja não tinha poder para mudar, ao menos não sozinha; sendo assim, fazia o que estava ao seu alcance, exortando a quem tivesse escravos para que os tratasse de forma justa, sob pena de pecar gravemente – o que pode parecer ridículo para a mentalidade atual, mas constituía preocupação séria para a maioria das pessoas naquela época. E tem mais: será que ninguém se pergunta por que é que a Igreja sempre insistiu para que todos os escravos fossem batizados? Se fizesse parte da crença católica que os negros não tinham alma, batizá-los seria como batizar bezerros – inútil além de sacrílego.

Mais uma vez, divaguei: a maior parte do que vai no parágrafo anterior não está no livro de Zmirak, que só toca muito de passagem nos filósofos iluministas; mesmo assim, trata-se de informação que considero relevante, de modo que fica como está. Voltemos agora ao capítulo X, do qual eu estava começando a falar.

O fato nu e cru, meus amigos, é que a Igreja não empatou o progresso científico – ela o promoveu, e Zmirak se sai muito bem em mostrar que, apesar das notáveis realizações intelectuais de todas as civilizações antigas, foi necessária a cosmovisão cristã da Europa medieval para que a ciência experimental pudesse nascer. Enquanto os antigos enxergavam o universo como uma realidade essencialmente caótica, na qual seria impossível ao intelecto humano se aprofundar muito, a filosofia de base cristã via esse mesmo universo como a criação de um Ser racional e que, portanto, possuía uma ordem que refletia a mente de Deus; como a nossa mente, por sua vez, foi feita à imagem e semelhança da do Criador, não nos seria impossível chegar a compreender (mesmo que de forma limitada) a natureza de Sua obra. Daí porque cientistas cristãos – muitos deles padres ou monges – construíram, no decurso de alguns séculos, mais conhecimento científico prático do que havia sido alcançado em milênios antes. Mesmo casos como o de Galileu Galilei (que, por falar nisso, foi sentenciado à prisão domicilar, e não queimado na fogueira, como já ouvi vários "gênios" afirmarem) muitas vezes não foram bem do jeito que nos contaram: Galileu, em que pese seu brilhantismo científico, tinha um temperamento difícil e sérios problemas de ego, o que o levou a comprar brigas com autoridades eclesiásticas por motivos que pouco tinham a ver com sua teoria heliocêntrica.

E, é claro, um capítulo sobre Igreja e ciência não estaria completo sem dedicar alguma atenção à questão "Deus x Darwin"… Para começar, colocar a coisa nesses termos, como se Darwin alguma vez tivesse tentado se igualar a Deus, ou como se crer num deles fosse necessariamente sinônimo de descrer do outro, é uma visão simplista e tola, propícia ao sensacionalismo de certos setores da mídia – ou ao fundamentalismo burro. Zmirak dá o recado, embora de forma muito resumida, dedicando à questão da evolução muito menos espaço do que já houvera dedicado a assuntos, a meu ver, bem menos relevantes; a impressão que tive foi de que ele próprio não simpatiza muito com Darwin, embora esteja de acordo com o fato de que não é preciso jogar fora A Origem das Espécies para ser fiel à Bíblia, ou vice-versa. O que precisamos notar é que, apesar de alguns cristãos fundamentalistas (em geral de igrejinhas protestantes picaretas, mas há um ou outro católico no meio) ainda hoje insistirem em ler o Gênesis ao pé da letra, a posição oficial da Igreja é a de que o livro é, em grande parte, alegórico. O autor bíblico (e, cremos nós, o próprio Deus ao inspirá-lo) não estava querendo nos ensinar ciência, mas apenas transmitir a verdade básica de que tudo o que existe tem em Deus sua origem primeira; como, exatamente, essa criação se deu, está aberto à investigação. E, como diz o ditado, quem procura acha: sinais da evolução estão por toda parte. Baleias possuem certos ossos sem função alguma, vestígios das patas traseiras que seus ancestrais, animais terrestres, um dia tiveram. Da mesma forma nós próprios, humanos, ainda temos algumas vértebras caudais. A ordem de mamíferos conhecida como os monotremos se distingue pelo fato de pôr ovos e amamentar os filhotes que saem deles – um claro indicativo de que os mamíferos evoluíram a partir dos répteis. Até mesmo nossos dentes não passam de escamas modificadas!… Quem rejeita a teoria de Darwin, geralmente não a entendeu, e os poucos que entenderam e ainda assim a rejeitam, o fazem por pura ideologia, não por uma convicção baseada em evidências. Há inúmeras pessoas religiosas instruídas que aceitam tranquilamente a ideia da evolução, e, do outro lado, há também muitos cientistas evolucionistas que acreditam em Deus – vide o "evolucionismo teísta" defendido por Alister McGrath. A meu ver, aceitar a teoria da evolução (que, como disse o papa São João Paulo II, na verdade "é mais que uma teoria") não conflita de forma alguma com a crença em Deus; pelo contrário, um sistema tão perfeito aponta para a existência de um Intelecto que deve tê-lo coordenado.

E creio que já escrevi o suficiente: isso tudo já dá um bom vislumbre dos assuntos tratados neste Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo, cuja leitura recomendo sem dúvida para católicos interessados em conhecer melhor sua Igreja e a fé que ela professa, e para não-católicos dotados desse dom, hoje em dia tão raro, que chamamos de honestidade intelectual, em grau suficiente para desejar conhecer a verdadeira história, missão e propostas dessa instituição tão falada e tão pouco compreendida, antes de começar a apedrejá-la. Há uma pá de outros assuntos abordados no livro e sobre os quais fiquei tentado a discorrer, mas isso deixaria o texto longo demais (desconfio que ele já esteja, de qualquer forma). Terei oportunidade de tocar nesses assuntos quando estiver comentando outros livros, tanto de ficção quanto de não-ficção, que já estão na minha lista. Então, vamos para a conclusão.

Uma análise histórica isenta, independente da crença, ou falta dela, de cada um, mostra que, desde os filósofos iluministas, como visto acima, um grande esforço vem sendo feito para difamar e desacreditar a Igreja, e que a quase totalidade dos órgãos da mídia em nossos dias está firmemente comprometida com esse objetivo, seja por estar nas mãos dos inimigos da Igreja ou porque os profissionais que dirigem esses órgãos, e produzem o conteúdo que veiculam, foram adequadamente doutrinados e agora acreditam sinceramente estar divulgando a "verdade". O que se quer, em resumo, é que aqueles ainda suficientemente teimosos para continuarem a ser católicos tenham vergonha de fazer parte da Igreja e cultivem uma atitude do tipo "desculpem-me por ser católico", quando, na verdade, deveriam ter orgulho disso. Coisas como as Cruzadas e mesmo a Inquisição (nomes que soam praticamente como palavrões aos ouvidos de muita gente) na realidade foram muito diferentes daquilo que a mídia quer que o público acredite que foram: houve abusos e arbitrariedades como sempre há em qualquer empreendimento humano (abusos e arbitrariedades quase sempre cometidos por indivíduos ou grupos, e que a Igreja teria impedido se pudesse), mas elas tiveram sua razão de existir e, cada uma a seu modo, evitaram grandes desastres em suas respectivas épocas.

Em nossos dias, a tirania do politicamente correto tornou-se o principal instrumento usado para tentar impedir a Igreja de levar a cabo sua missão, ou deveria dizer suas missões; a primeira é aquela que Cristo tinha em mente ao fundá-la, e que consiste em ajudar homens e mulheres a salvarem suas almas, mas há outra que ela tomou sobre si ao longo dos últimos dois milênios, que é a de manter a civilização ocidental de pé, por mais atacada que ela seja e por mais que também tente se autodestruir. O pior é ver que muitos católicos (até mesmo sacerdotes) se deixam levar por esse discurso castrador e hipócrita. Tornou-se "feio" dizer a verdade sem eufemismos e chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Em tal cenário, o aparecimento de livros como este é providencial – e para nós, católicos, literalmente, pois pode ser visto como um sinal da providência divina. Como disse antes, só tenho pena de que o livro de Zmirak dificilmente será lido por aqueles a quem mais poderia fazer bem. Ninguém é obrigado a partilhar da nossa fé, mas, para os que partilham, a promessa de Cristo ("Pois eu te digo, tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela." Mt 16:18) é uma injeção diária de coragem e uma garantia da vitória final, pouco importa o quão numerosos e poderosos sejam os inimigos, ou de quanta perfídia façam uso.

sexta-feira, julho 13, 2018

HEX

Depois de Deixa Ela Entrar, de autoria do sueco John Ajvide Lindqvist, aqui temos outro exemplo de ventos frescos na literatura de terror vindo de países inesperados: Thomas Olde Heuvelt é holandês, embora a história de HEX esteja ambientada nos Estados Unidos – por boas razões, como veremos depois. É um pensamento comum acreditar que, à medida que a ciência e a tecnologia progridem, a tendência é que a crença no sobrenatural, ou o papel que ele desempenha na vida das pessoas, diminua… E já faz tempo que desmontar essa ideia em suas histórias é um caminho que diversos escritores de terror adotam. É o que Heuvelt faz aqui, mas de uma maneira inovadora e surpreendente.

Black Spring (nome dúbio, que pode significar "fonte negra" ou "primavera negra") é uma cidadezinha aparentemente pacata e normal do estado de Nova York, a pouca distância da famosa academia militar de West Point. O que um eventual forasteiro não imagina ao andar por suas ruas sossegadas é que a cidade sofre com uma maldição que já dura três séculos e meio e pesa sobre todos os seus habitantes, tanto os nativos quanto os que, seduzidos por sua aparência de tranquilidade ordeira, fizeram a bobagem de mudar-se para lá. Os bosques que a rodeiam são assombrados pelo espírito de Katherine Van Wyler, uma mulher que foi condenada à forca por bruxaria em 1664, quando aquela região era habitada principalmente por imigrantes holandeses, em sua maioria calvinistas, e por índios algonquinos. Isso, por si só, já seria bem ruim, mas acontece, ainda, que Katherine nem sempre se contenta em vagar pelos bosques, e volta e meia invade a pequena cidade, podendo aparecer em qualquer lugar – ruas, praças, lojas, ou dentro da casa de alguém (credo-em-cruz!). Outra peculiaridade de Katherine é que, ao contrário de outros fantasmas, ela não parece ser incorpórea, tendo uma presença física capaz de interagir com objetos, pessoas e animais (os cães costumam latir e uivar em desespero quando ela está por perto). O efeito da maldição que é sentido com mais frequência é o fato de que os habitantes de Black Spring não podem sair de lá. Não que haja algum tipo de barreira física (há quem pense que seria melhor se houvesse), mas porque bastam alguns dias longe do local para que até mesmo a pessoa mais centrada, ajuizada e satisfeita com a vida comece a ter ideias de suicídio – e, a menos que volte logo para casa, acaba concretizando essas ideias, em cem por cento dos casos.

A história acompanha uma família típica: Steve Grant, médico e professor universitário, sua esposa Jocelyn, ambos nos seus 40 e poucos ou 50 anos, e seus filhos Tyler, de 18 anos, e Matt, de 13. Ah, e tem o border collie Fletcher. Pode parecer inacreditável que essa seja uma família funcional e feliz, pois nosso primeiro e muito compreensível impulso é não achar possível que tal coisa exista numa cidade amaldiçoada, mas a História com H maiúsculo já nos forneceu muitas provas de que a capacidade de adaptação do ser humano beira o infinito – em grande parte, foi por isso que sobrevivemos. Como acontece em cidades pequenas, em Black Spring todo mundo conhece todo mundo, e, sendo assim, Steve e Jocelyn conhecem também um sujeito de nome Robert Grim, que trabalha num órgão chamado HEX. Para um desavisado, isso pode parecer uma sigla, mas na verdade é o som da palavra equivalente a bruxa em várias línguas de raiz germânica: a grafia varia um pouco, mas a pronúncia é quase a mesma, seja em alemão (Hexe), sueco (häxa), holandês, norueguês e dinamarquês (heks nas três). Em inglês também existe um cognato de todas essas palavras, hag, que, na origem, também significava bruxa, embora hoje em dia quase sempre se use witch para designar uma bruxa propriamente dita, enquanto hag comumente se refere de forma pejorativa a mulheres idosas, em especial quando feias e/ou de comportamento desagradável ("bruxa" também é por vezes usado dessa forma em português). A HEX foi criada por iniciativa dos militares de West Point, para lidar da forma mais discreta possível com a maldição de Black Spring. Sua função é monitorar as andanças de Katherine, resolver qualquer problema que surja, e evitar que a história vaze para o mundo exterior. Para facilitar sua tarefa, o órgão desenvolveu o aplicativo de celular também chamado HEX, que os moradores da cidade podem usar para saber onde Katherine está no momento; quem a vir deve informar sua localização, também por meio do aplicativo. O mais sensato a se fazer é evitar ao máximo qualquer proximidade com a bruxa; se ela resolver aparecer na sua casa, o aconselhável é não entrar no cômodo onde ela estiver. Se isso for impossível, pode-se, por exemplo, jogar um lençol ou toalha de mesa sobre ela (sem tocá-la!) e tentar ignorá-la; ela geralmente fica imóvel feito um poste, e desaparece em um dia ou dois. Desaparece literalmente, indo aparecer em outro lugar, como se fosse algum tipo de teleporte sobrenatural. A situação já está assim há muito tempo e, salvo por algum incidente medonho eventual, a convivência entre a população e a bruxa é relativamente tranquila. Quando pega antipatia por alguém, porém, ou acha que foi tratada sem o devido respeito, Katherine sussurra algo, e as consequências para a pessoa visada nunca são agradáveis.

Entretanto, nem mesmo Black Spring pode esperar ficar imune às transformações trazidas pelo avanço da tecnologia – e não estou falando apenas do aplicativo HEX. Enquanto os moradores adultos da cidadezinha parecem conformados com a situação, os mais jovens, não raro, têm dificuldade em aceitar esse estado de coisas. Cidades pequenas são sabidamente um ambiente claustrofóbico para adolescentes, e não é diferente para os que tiveram a pouca sorte de nascer em Black Spring. Como todos os jovens, eles têm vontade de sair, ver o mundo, perseguir ambições, mas são ensinados desde cedo que jamais poderão fazê-lo. Tyler, o filho mais velho de Steve e Jocelyn, é um rapaz especialmente inconformista, que, como quase toda a sua geração, utiliza a tecnologia com desenvoltura, e, além do mais, tem vocação jornalística. Além de todos os motivos acima para estar descontente, ele tem outro: sua namorada, Laurie, que é de fora da comunidade, de modo que só resta a Tyler a escolha entre desistir dela ou condená-la a também viver naquela prisão de muros invisíveis. Na opinião do rapaz, a melhor coisa a fazer seria acabar com o segredo, deixar o mundo saber o que acontece em Black Spring, para que alguma solução – fosse tecnológica, religiosa, mágica ou de outro tipo – pudesse ser tentada. Ele e um grupo de outros garotos começam a procurar deliberadamente por Katherine, filmando e fazendo experiências… Algo muito perigoso em qualquer caso, mas, para piorar, um desses rapazes é Jaydon Holst, filho da proprietária do açougue e empório local. O pai de Jaydon abandonou a família e foi embora de Black Spring, e, sem que isso surpreendesse a ninguém, pouco tempo depois chegou a notícia de seu suicídio. Por menos motivos que parecesse ter para gostar do pai (que, antes de abandoná-lo, o maltratou um bocado), Jaydon odeia Katherine por causa do acontecido. Trata-se de um rapaz mal-humorado, agressivo e pouco esperto. Enquanto Tyler e os outros se utilizam de câmeras digitais e outros aparatos para reunir o máximo possível de dados sobre a bruxa, que depois serão colocados na internet, Jaydon só está interessado em praticar violências contra ela. (Katherine, sendo, como dissemos, uma entidade corpórea, pode ser ferida, mas, na vez seguinte em que se teleporta, ela aparece no local de destino intacta de novo. É como se o processo a "resetasse"… o que não significa que ela se esqueça da agressão sofrida.)

Para tornar a situação ainda mais bizarra, a mãe de Jaydon, Griselda Holst (para quem o sumiço do marido abusivo foi um alívio), desenvolveu uma forma própria e distorcida de religião, com Katherine fazendo as vezes de divindade. Há basicamente duas maneiras de cultuar um ser divino no qual se acredite: se você crer que esse ser é bom, irá querer louvar, agradecer, talvez fazer pedidos; se crer que ele é algo a ser temido, então é provável que os seus ritos tenham como principal objetivo aplacá-lo para que ele o poupe de sua ira. O "culto" inventado por Griselda, como seria de se imaginar, tende muito mais para a segunda possibilidade, embora, uma vez ou outra, ela arrisque pedir algo. Ela procura por Katherine nas florestas, leva oferendas e conversa com ela durante horas – ou melhor, monologa, já que a bruxa nunca diz nada (a não ser pelo sussurro mortífero quando decide eliminar alguém) e raramente se move. Não é preciso dizer que nem a abordagem de Jaydon nem a de Griselda irão resultar em nada de bom.

HEX tem uma ideia excelente e bastante original, explorando o confronto sobrenatural versus modernidade, que tem um potencial fora do comum para amedrontar, porque nos leva a questionar a noção de "progresso", que é um dos pilares da escassa sensação de segurança que o homem moderno consegue desfrutar. Ainda assim, a essência da história talvez não seja a fragilidade dessa noção em si, e sim uma decorrência dela: a facilidade com que pessoas que se consideram civilizadas e esclarecidas podem recair num obscurantismo semelhante ao de séculos passados quando confrontadas com terrores que, no "modo século XXI" de ver as coisas, não deveriam existir, e para os quais essa visão de mundo não oferece soluções. Os moradores de Black Spring são cidadãos americanos modernos, normais em quase tudo, que acessam a internet, consultam tabelas de calorias, assistem a séries na Netflix e distribuem-se entre os eleitorados republicano e democrata, mas há cenas (principalmente as de assembleias populares) em que é difícil não imaginá-los em trajes de colonos calvinistas do século XVII, agitando tochas e forcados. A conclusão é que, por mais sofisticados que pensemos que somos, o medo nos reverte ao primitivismo, muitas vezes com uma facilidade absurda. A História nos oferece (infelizmente) muitos exemplos de casos em que isso foi habilmente explorado com finalidades políticas, resultando em guerras, genocídios e outros desastres.

Heuvelt tem a habilidade para criar personagens convincentes e cativantes, mas, a meu ver, existem algumas incoerências, como quando é dito que Steve Grant "não acredita no pós-vida". Em qualquer outro lugar que não Black Spring, seria perfeitamente crível que um homem do tipo dele fosse basicamente materialista, não crendo no divino nem em qualquer outra manifestação do sobrenatural – mas, se o homem em questão tiver vivido quase metade de sua vida numa cidade por onde uma mulher morta há 350 anos desfila pelas ruas, sendo corriqueiramente vista por todo mundo, qual o sentido lógico de que até mesmo um homem assim continue "não acreditando no pós-vida"? Também acho necessário criticar o final, pois eu realmente esperava que uma história que inova em tantas coisas tivesse um final surpreendente, nunca imaginado… Quando, na verdade, o final de HEX é idêntico (vá lá, quase idêntico) ao do conto A Pata do Macaco, de W. W. Jacobs. Entendedores entenderão.

Uma consideração final… Na parte de trás da capa, junto com a breve sinopse, constam palavras elogiosas a HEX, atribuídas a George R. R. Martin e Stephen King. A opinião de King, principalmente, terá sempre muito peso quando estivermos falando de um novo autor de terror, e eu ouso dizer que a ideia central de HEX é "nível Stephen King" – mas ter uma boa ideia não é tudo. Thomas Olde Heuvelt ainda terá bastante trabalho pela frente se pretender um dia ter uma escrita tão ágil, fluida e viciante quanto a de King, e talvez nunca chegue a isso, o que não o impedirá de ser um excelente escritor mesmo assim; o fato é que HEX é um tanto irregular, com muitos trechos arrastados e pouco empolgantes, embora, no saldo final, recompense bem o leitor. E, já que mencionamos Martin, não custa observar, como nota de rodapé, que em HEX, assim como em Game of Thrones, qualquer personagem pode morrer. Por último, é preciso ressaltar a edição, como sempre muito bem feita, da DarkSide, selo que está fazendo um grande trabalho em prol da literatura fantástica, especialmente a de terror, no Brasil.

quarta-feira, junho 20, 2018

O Satanista

Mandar logo de cara uma longa digressão não é a maneira mais aconselhável de se começar um texto, e sei que já fiz isso diversas vezes aqui no blog; ultimamente tenho procurado evitar, mas desta vez vai ser impossível. Sendo assim, prometo tentar não alongá-la demais!

Bem… Como a maioria dos fãs de heavy metal e de rock em geral, tive, na juventude, a minha fase de querer saber o máximo que fosse possível sobre as bandas de que gostava; na época, antes da popularização da internet, fazíamos isso basicamente por meio de revistas. Fase essa que, no meu caso, passou – não a de gostar de metal, pois ainda gosto e não me parece que isso vá mudar, seja lá com que idade eu estiver; apenas não consigo mais me importar tanto com histórias, curiosidades e detalhes de todo tipo sobre as bandas. Hoje me contento em curtir a música e não ligo muito para o resto. Para dar uma ideia, há bandas que já conheço há anos e adoro, mas só sei o nome de um ou dois membros; nos velhos tempos isso seria impensável, eu teria o nome de cada integrante e seu respectivo instrumento na ponta da língua, feito escalação de time de futebol.

Como sabe quem entende um pouco do assunto, houve três bandas, todas elas surgidas no Reino Unido no final dos anos 60, que são consideradas o tripé sobre o qual toda a história do heavy metal foi construída: Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Tecnicamente falando, o Sabbath ficava bem atrás dos outros dois grupos (que contavam com músicos experientes, alguns deles com formação clássica); não obstante, há muita gente que o considera o mais influente dos três, além de ter sido a primeira banda de heavy metal propriamente dita da História – o Led e o Purple estavam mais próximos do que chamamos hoje de hard rock, com fortes traços do blues no caso do primeiro, e da música clássica no segundo.

(Quero esclarecer que, ao dizer que o Black Sabbath era, do ponto de vista técnico, a menos notável daquelas três grandes bandas, não estou de forma alguma tirando seus méritos: gosto pra caramba do Sabbath e inclusive considero Tony Iommi um dos guitarristas mais criativos da história do som pesado. Porém, basta ouvir e comparar os dois ou três primeiros discos de cada uma para perceber que, das três bandas, o Sabbath era a que fazia o som mais simples, já que seus músicos não tinham, pelo menos no início, tanto conhecimento técnico – leia-se anos de conservatório – quanto os do Led e do Purple. Foram-se aprimorando com o tempo, o que pode ser sentido nos álbuns seguintes.)


Já havia gente fazendo som pesado na época, mas o Sabbath, e especialmente seu vocalista, John "Ozzy" Osbourne, foi o grande responsável por definir a estética, os códigos, a vibe daquilo que seria mais tarde chamado de heavy metal. O fascínio do cantor por ocultismo logo se refletiu nas letras das músicas – o maior exemplo disso é sem dúvida a primeira faixa do primeiro álbum, de 1970; tanto a faixa quanto o álbum tinham o mesmo nome da banda. Como Ozzy contaria em entrevistas muitos anos depois, sua identificação com essa temática chegou a colocá-lo em situações estranhas, como quando era procurado por pessoas querendo convidá-lo a tomar parte em todo tipo de ritual macabro, sendo que, na verdade, ele próprio nunca teve qualquer envolvimento com o ocultismo: era só um curioso, um fã declarado de filmes de terror.

E, de acordo com uma matéria que li certa vez numa revista sobre rock, houve outro grande responsável, além da produtora cinematográfica Hammer, por formar o imaginário de Ozzy no tocante aos temas soturnos e sobrenaturais: o escritor inglês Dennis Yeats Wheatley (1897-1977), autor tão prolífico quanto popular, que, dos anos 30 aos 60, publicou dezenas de romances, embora relativamente poucos fossem de terror – a maior parte eram narrativas de aventura e suspense, muitas delas com ambientação histórica, destacando-se a série sobre Roger Brook, uma espécie de James Bond dos séculos XVIII e XIX (ou talvez fosse melhor dizer que Bond é um Roger Brook do século XX, já que seu criador, Ian Fleming, era fã de Wheatley e confessava-se influenciado por ele). Até onde pude apurar, de toda a extensa bibliografia de Wheatley, só dois livros ganharam edições brasileiras: A Máscara do Mal, que é uma das aventuras de Brook, e este O Satanista, publicado originalmente em 1960.

A narrativa orbita em torno do coronel William Verney, que tem o apelido de C. B., iniciais de "Conky Bill" ('Bill Narigudo') devido a seu traço fisionômico mais marcante. Eu não iria ao ponto de chamá-lo de protagonista, mas ele funciona como uma espécie de eixo, conectando as diferentes subtramas. Verney trabalha na Inteligência britânica, e, no início da história, acaba de receber a informação de que um de seus agentes, o jovem Ted Morden, foi encontrado morto. Morden estava investigando os sindicatos trabalhistas da região de Londres, a fim de tentar descobrir até que ponto eles estavam infiltrados, talvez até controlados, por agentes do comunismo internacional (lembrem-se, era a virada dos anos 50 para os 60, com a Guerra Fria entrando em seu período mais tenso), e seria lógico supor que foi assassinado por esses agentes após ter sido descoberto, mas as condições em que o corpo foi encontrado levam C. B., que já viu coisas parecidas antes, a crer que haja mais: as marcas no corpo do rapaz sugerem que ele tenha sido sacrificado em algum ritual diabólico. A linha de investigação de Morden é assumida por outro agente, Barney Sullivan, um irlandês de origens aristocráticas, a quem seu chefe praticamente implora que tome precauções redobradas. Ao mesmo tempo, Mary Morden, a viúva de Ted, decide tentar por conta própria descobrir o assassino ou assassinos de seu marido e levá-los à justiça. O coronel Verney, embora não possa aceitar a participação de Mary nas investigações, nem prestar-lhe qualquer ajuda oficial em nome de seu departamento, oferece-lhe alguns conselhos e dicas, em especial confidenciando-lhe suas suspeitas de que a morte de Ted pode ter sido ritualística. Mary, uma jovem estonteante de apenas 23 anos, mas já com um passado complicado, está disposta a valer-se de tudo ao seu alcance, inclusive de seus encantos físicos, para vingar o marido. Verney decide não contar a Sullivan sobre os esforços de Mary e vice-versa: deixa-os agir independentemente um do outro, para melhorar as chances de que, no caso de um dos dois ser apanhado, o outro escape. O coronel não sabe, nem pode saber, que os dois jovens se conhecem há anos, embora não se vejam há muito tempo.

Não sei qual a profundidade dos conhecimentos de Dennis Wheatley sobre o satanismo – tanto seus credos e fórmulas quanto seu modus operandi –, nem de que forma ele teria obtido tais conhecimentos, mas a descrição que ele nos oferece de como funciona o recrutamento é bastante plausível: membros de irmandades satânicas frequentam encontros genéricos onde se reúne gente de todos os tipos, tendo em comum apenas algum grau de interesse por temas místicos e esotéricos. A grande maioria, claro, é de meros curiosos, que sentem falta de alguma coisa que vá além da vulgar realidade material, mas não possuem a necessária firmeza de propósitos para adotar uma religião; querem um sabor de "transcendência" em suas vidas, contanto que isso não exija mudança de hábitos ou atitudes. Enfim, basicamente indivíduos comuns e inócuos, do tipo que se acha altamente místico porque leu dois livros comprados na lojinha esotérica do shopping e acendeu uns incensos – mas, em meio ao grupo, pode sempre haver um ou outro com ambições mais sérias e, possivelmente, sinistras. Nesses encontros, o satanista infiltrado vai conhecendo e sondando os outros frequentadores para ter uma ideia de quais deles estariam abertos a um convite para ingressar em seus círculos – e, mais importante que isso, quais deles seriam aquisições interessantes para esses círculos. É num desses encontros esotéricos light, promovido por uma senhora de Londres, que Barney e Mary se reencontram. Ela o reconhece imediatamente, mas ele não a reconhece porque, a conselho do coronel Verney, ela usa um disfarce: sendo naturalmente loira, adotou um visual moreno, além de alterar mais alguns detalhes de sua aparência e usar um nome falso. Ambos estão ali por causa de suas investigações, e não de algum interesse no oculto, mas, é claro, nenhum deles revela ao outro suas motivações. Mary, por causa de sua bela aparência, torna-se logo alvo das atenções do Sr. Ratnadatta, um indiano filiado a um culto satânico (é uma noção amplamente aceita que grupos satanistas sempre procuram recrutar mulheres atraentes, já que o sexo desempenha papel importante em seus ritos), que a leva a reuniões secretas nas quais a jovem descobre que aquilo tudo não é puro delírio nem fantasia: o sobrenatural é real, e os poderes do mal também.

O Satanista apresenta-se como "uma história de magia negra" (isso está escrito na capa, pelo menos nesta edição da Record), mas também é outras coisas, e, na verdade, o ocultismo e temas relacionados a ele não ocupam tanto espaço assim. Há um forte componente de espionagem, e essa parte gira em torno de dois personagens, os gêmeos Otto e Lothar Khune, nascidos nos Estados Unidos, mas filhos de pais alemães. Quando o Partido Nacional-Socialista chegou ao poder na Alemanha na década de 1930, Lothar emigrou para o país de seus pais e pôs-se a serviço do Terceiro Reich; mais tarde, com a derrota dos nazistas na guerra, bandeou-se para o lado dos comunistas soviéticos. Otto, enquanto isso, foi viver na Inglaterra, tornando-se um leal súdito britânico naturalizado. Ambos são cientistas, ligados a pesquisas no campo dos foguetes e mísseis, e, como gêmeos, possuem uma espécie de vínculo mental e emocional – só que, neles, isso é muito mais forte que o usual entre outros gêmeos, chegando ao ponto de um conseguir, às vezes, influenciar os pensamentos do outro ou ver por meio de seus olhos; se um sofre um ferimento, o outro também sente a dor. Enfim, é o mesmo tipo de ligação que existia entre os gêmeos Lucien e Louis de Franchi no livro Os Irmãos Corsos, de Alexandre Dumas, o que faz todo o sentido, já que Wheatley começa o livro com uma efusiva homenagem ao escritor francês, dando a entender ser ele um de seus autores favoritos e uma de suas principais influências. Não é preciso dizer que, como ambos lidam com informações altamente secretas e trabalham para lados opostos, isso gera situações complicadas. Otto, Lothar e todos os eventos que os envolvem parecem, de início, não ter relação alguma com o núcleo satânico londrino ou com o que se passa com Mary e Barney, mas o vínculo aparece quando o coronel Verney descobre que Lothar está na Inglaterra e que sua base de operações é a mesmíssima casa onde se realizam os encontros semanais dos satanistas.

O enredo geral de O Satanista é inegavelmente interessante, mas é difícil não fazer um leve "tsc, tsc" ao constatarmos que o autor não se furtou a um certo contorcionismo para enfiar em seu livro os temas que estavam mais em evidência na época – todo mundo andava preocupado com mísseis, com espionagem internacional e com a possibilidade de um confronto nuclear de proporções globais, de modo que Wheatley aparentemente achou uma boa ideia misturar esses assuntos com a magia negra que deveria ser o carro-chefe da história. A meu ver, essa alquimia ficou bastante forçada. Os personagens são bem estereotipados, provavelmente um reflexo do fato de que o autor estava acostumado a escrever segundo um método, de forma quase industrial, para conseguir produzir um ou dois bestsellers por ano, e, na minha opinião, o excesso de detalhamento sobre como funcionam por dentro a polícia, o serviço secreto e a diplomacia na Grã-Bretanha só contribui para deixar a narrativa mais árida e cansativa. Perto do final, Verney, Sullivan e seus companheiros descobrem que um figurão satanista megalômano roubou um artefato nuclear e o levou para um esconderijo nos Alpes suíços, de onde pretende lançá-lo a fim de precipitar a Terceira Guerra Mundial; essa parte do livro foi claramente planejada para ser uma tensa corrida contra o tempo a fim de impedir a catástrofe, mas só consegue ser burocrática e tediosa ao narrar os encontros de C. B. e Barney com diversos homens importantes de cuja ajuda eles necessitam para deter o doido, seus deslocamentos de um lugar para outro… De quebra, as descrições de diversas belas paisagens suíças deixam em evidência que Wheatley conhecia e adorava o país (e quem não adoraria?), mas as dissertações turísticas, ainda que interessantes, soam deslocadas ao virem misturadas com essa situação que era para ser desesperadora. O autor também não negligenciou uma outra arma para atrair público que já funcionava no começo dos anos 60 tal como hoje, o sexo, mas valeu-se desse recurso da maneira que os usos da época permitiam (a "revolução sexual" só viria alguns anos depois): o ato é bastante mencionado, mas nunca descrito em qualquer detalhe.

Quanto à qualidade editorial, essa me surpreendeu negativamente por oferecer um português sofrível, o que eu não esperava em se tratando de uma edição da Record, editora que sempre tive em bom conceito. Os problemas no uso do idioma são diversos, mas o mais recorrente é a crase, que é muito mais usada do que deveria, e poucas vezes da maneira correta. Estou acostumado a reclamar do fato de haver gente por aí trabalhando com tradução e/ou revisão de livros que, pelo nível de conhecimento que demonstra, não deveria nem passar perto de uma editora, e, pelo visto, esse problema não é de hoje (não há informação da data da edição, mas, em todo caso, é antiga).

Vocês já devem ter percebido, considerando o jeito como este post começou, mas lá vai: cheguei a este livro e a este autor devido a suas conexões com o Black Sabbath, que me deixaram curioso, e confesso que minhas expectativas eram bem exageradas. O Satanista nem chega perto de entregar tudo o que eu esperava em termos de suspense ou terror. Até achei que podia ser culpa da minha cabeça de leitor cujos gostos se formaram entre o final do século XX e o início do XXI, acostumado, por exemplo, com um Stephen King, que costuma pegar muito mais pesado nos componentes tenebrosos e/ou sobrenaturais, mas aí lembrei de sujeitos como H. P. Lovecraft, contemporâneo de Wheatley, e Arthur Machen, que é um pouco anterior, e concluí que não é questão de época; eu apenas não me identifiquei com o estilo de Wheatley, nem com seu jeito de desenvolver os temas – pelo menos neste livro. A leitura aconteceu por curiosidade, e é como uma curiosidade que ficará registrada; nada aqui me empolgou pra valer.

quinta-feira, maio 24, 2018

Contos da Cripta

A revista em quadrinhos Tales from the Crypt foi publicada (com esse título) de 1950 a 1955 nos Estados Unidos, pela legendária editora EC Comics. O motivo da observação entre parênteses é que Tales… teve uma gênese tão estranha quanto muitas das histórias que publicou. Ocorre que a EC tinha uma revista intitulada Crime Patrol, que, como o nome sugere, era dedicada principalmente a histórias de ação policial, até que seu editor, Bill M. Gaines, pelo feedback que recebia dos leitores por meio de cartas, constatou que as histórias que mais agradavam ao público eram as de terror, publicadas até então de forma esporádica. Como Gaines também gostava de histórias do gênero, e conhecia um punhado de artistas dispostos a produzi-las, Crime Patrol mudou de foco, passando a ter o terror como carro-chefe. Já que era assim, a revista acabou tendo o título trocado para The Crypt of Terror a partir de sua edição de número 17, de junho/julho de 1950 (a periodicidade era bimestral), e novamente para Tales from the Crypt, a partir da edição 20, de dezembro/janeiro. Para todos os efeitos, a revista era sempre a mesma, apesar das mudanças de título, tanto que a numeração não se alterou – parece que, fazendo dessa forma, a EC economizou nas despesas de copyright e com outras providências burocráticas que seriam necessárias para finalizar uma revista e criar outra nova.

Tales… marcou a infância de gente como Stephen King e Clive Barker, para não falar de milhares de outros que não se tornaram escritores de terror famosos. Como King nasceu em 1947, e Barker em 1952, devem ter lido edições antigas, encontradas em sebos ou emprestadas por parentes mais velhos, depois que a revista já havia sido cancelada. Por sinal, o cancelamento não se deu pela causa mortis mais comum entre revistas, a baixa vendagem: em 1955, Tales… estava vendendo muito bem, obrigado. O golpe fatal foi a publicação do famigerado livro Seduction of the Innocent ('A Sedução dos Inocentes'), em 1954, pelo não menos famigerado Fredric Wertham, e toda a repercussão que ele teve. Se você é fã de quadrinhos e conhece um pouco da história dessa forma de entretenimento, é provável que já tenha ouvido falar desse livro e de seu autor – e aposto que não foi de forma afetuosa. Wertham, um psiquiatra, acreditava firmemente que a leitura de histórias em quadrinhos era uma das principais causas de delinquência entre os jovens; chegou a discursar diante do senado americano, conseguindo que uma série de "medidas regulatórias" fossem tomadas em relação ao conteúdo publicado nos comic books da época. Essa censura com outro nome não perdoava nem os quadrinhos de super-heróis (cuja tônica, ao menos até então, era sempre a luta do bem contra o mal, com o inevitável triunfo do primeiro, algo que a maioria das pessoas acharia educativo), que dirá os de terror. O próprio título de Tales from the Crypt já a tornava um alvo preferencial, e, se fosse para adequar-se às novas diretrizes, a revista perderia totalmente as características que faziam dela o que era, de modo que Gaines e sua equipe optaram por finalizá-la em sua edição número 46, em fevereiro/março de 1955. Outros dois títulos da editora, The Vault of Terror e The Haunt of Fear (revistas-irmãs de Tales…, por assim dizer) tampouco sobreviveram. A EC ainda tentou trabalhar em outras direções; não havia uma temática que a "patrulha de Wertham" realmente aprovasse, pois, para o ilustre doutor e seus seguidores, quadrinhos eram inerentemente nocivos, pouco importando sobre o que versassem, mas, em todo caso, um ou outro tema ainda era tolerado, e, visando essa brecha, a editora passou a publicar histórias de guerra enaltecendo o patriotismo e a abnegação do soldado americano, ou aventuras urbanas protagonizadas por heroicos policiais e bombeiros – esse tipo de coisa. Fosse por que motivo fosse, todas essas revistas tiveram vida curta. Já outro título da EC, a humorística Mad, alcançou popularidade, assegurando a continuidade da editora até a década de 60, quando foi vendida e absorvida pela DC Comics, a grande rival da Marvel no filão dos super-heróis e dona de personagens como Batman e Super-Homem, entre muitos outros.

Passada a onda de histeria, as edições de Tales from the Crypt foram reimpressas várias vezes nos Estados Unidos, pois havia demanda por elas; hoje está disponível uma versão que traz todas as revistas reunidas sob a forma de cinco volumes de capa dura. Coisa fina! Quanto aos exemplares das tiragens originais, esses são relíquias que podem alcançar altos preços. Já nos anos 2000, foi tentada uma "ressurreição" da revista, com histórias inéditas, sobre a qual não sei muito; entretanto, meu tema de hoje é outro: Tales from the Crypt na TV.

Na verdade, a primeira adaptação de Tales… para mídias audiovisuais foi um longa-metragem feito em 1972, dirigido por Freddie Francis e contando no elenco com ninguém menos que o astro do terror Peter Cushing; o filme traz cinco narrativas independentes, todas elas dramatizações de histórias publicadas em Tales from the Crypt, The Vault of Terror ou The Haunt of Fear, e é muito querido pelos fãs da franquia. Porém, foi a série de TV produzida pelo HBO que realmente trouxe Tales… de volta a seu devido lugar em milhares de mentes doentias (hehehe!) mundo afora. A série teve sete temporadas, indo de 1989 a 1996, e totalizando 93 episódios, a grande maioria adaptações das velhas histórias em quadrinhos publicadas nas três revistas (e também em outro título da EC, Shock SuspenStories), mas com alguns roteiros originais também. Entre os produtores executivos estão Richard Donner, diretor tanto do clássico de terror A Profecia (1976) quanto do primeiro Super-Homem com Christopher Reeve (1978) e Robert Zemeckis, da trilogia De Volta Para o Futuro (1985, 1989 e 1990). O elenco inclui uma verdadeira constelação de nomes famosos de Hollywood: Tom Hanks, Kirk Douglas, Amanda Plummer, Dan Aykroyd, Timothy Dalton, Demi Moore, Brooke Shields, Joe Pesci, Lea Thompson, Malcolm McDowell e até mesmo a brazuca Sônia Braga, e isso é só pra dar alguns exemplos. No time dos diretores figuram Tobe Hooper (O Massacre da Serra Elétrica), William Friedkin (O Exorcista), Russell Mulcahy (Highlander) e os próprios Donner, Zemeckis e Freddie Francis, entre outros. Curiosamente, até alguns atores experimentaram a cadeira do diretor. O fortão Arnold Schwarzenegger dirigiu o episódio A Troca, da segunda temporada, além de fazer uma rápida aparição na introdução do mesmo, contracenando com o Guardião da Cripta (ver adiante). Já Michael J. Fox, o astro de De Volta Para o Futuro, dirigiu A Armadilha, da terceira temporada, no qual também fez um pequeno papel como um promotor público. Os episódios são curtos, com em média 25 minutos, alguns um pouco mais ou um pouco menos. No Brasil, a série foi veiculada nos anos 90 pela rede Bandeirantes, e agora está disponível em DVD pela Screen Vision.


Mesmo com todos esses nomes estrelados participando dos episódios, o verdadeiro astro da série é o Guardião da Cripta (The Crypt Keeper no original), um simpático morto-vivo que lembra uma múmia despida de suas bandagens (a semelhança é de família, como descobrimos no episódio Lower Berth, que, na tradução, ganhou o pífio título Apaixonados) e atua como mestre de cerimônias, aparecendo sempre no início de cada episódio para dar algumas dicas sobre a história, e novamente ao final, para comentá-la com um infalível humor negro – por sinal, uma das coisas mais legais a respeito de Contos da Cripta é o fato de ela em momento algum levar-se a sério. As falas do Guardião são repletas de trocadilhos engraçadíssimos, que, naturalmente, perdem-se na tradução ("boils and ghouls" em vez de "boys and girls" *gargalhadas*), o que é o principal motivo para que eu recomende que vocês tentem assistir sem as legendas… Principal, mas não único: mesmo sem levar em conta a perda dos trocadilhos, as legendas das duas primeiras temporadas, nesta edição, são um horror, e não no bom sentido. Na maioria, parecem ter saído do Google Translator, não o de hoje, que até oferece traduções razoáveis às vezes, mas a versão de fins dos anos 90 ou por aí, aquela que traduzia World Cup por 'Xícara Mundial’, entre outras coisas quase inacreditáveis. No episódio Three's a Crowd ('Três São Demais'), da primeira temporada, um marido desconsolado diz à esposa: I haven't been able to give you any kids ('Eu nem consegui lhe dar filhos'), mas o que a legenda diz é "eu nem sequer pude te beijar". Obviamente, o tradutor confundiu kids ('crianças') com kiss ('beijo'), e não teve a brilhante ideia de perguntar-se se isso fazia algum sentido no contexto da história. Pérolas desse nível são comuns nas legendas dessas duas temporadas. Na terceira, as coisas melhoram um pouco… Mas não muito.

Fiel a suas origens (afinal, nasceu de uma revista chamada Crime Patrol), Contos da Cripta traz em seus episódios um bocado de crimes, geralmente assassinatos. O lado positivo, se dá para dizer assim, é que o criminoso quase sempre acaba pagando, seja com a ajuda do sobrenatural (que está presente em muitos episódios, mas de forma alguma em todos) ou de alguma arte do destino. Por falar em destino, a futilidade de lutar contra ele também é um tema recorrente, como no episódio Dead Right ('Morte Certa'), estrelado por uma Demi Moore no auge, se é que me entendem. Nele, Cathy, uma secretária ambiciosa, ouve de uma vidente a seguinte profecia: ela se casará com um homem que herdará uma fortuna e morrerá logo depois. Acreditando ser essa sua chance de ficar rica, a atraente garota aceita o pedido de casamento de Charlie Marno, sujeito gordo, feioso e de mau hálito, por quem a única coisa que ela sente é repulsa, e que nem sequer é rico, ainda. A previsão da vidente se realiza ponto por ponto, mas, apesar disso, as coisas nem de longe funcionam como Cathy esperava… É o velho tema do fado inalterável, que já rendia assunto na mitologia grega, reciclado de forma criativa e com uma farta dose do já mencionado humor negro.


É claro que, ao mesmo tempo em que mantém um direcionamento geral para a série em termos de estilo, Contos da Cripta também deixa um certo espaço para que cada diretor imprima sua marca pessoal. Como resultado, há episódios que tendem para o suspense, outros para o terror sobrenatural… E há os que apelam despudoradamente para o gore. Exemplo desse último caso é Dead Wait ('Espera Mortal'), da terceira temporada, ambientado em alguma ilha do Caribe, provavelmente perto do Haiti, a julgar pelas referências ao vodu. No que seria o clímax (?) da história, o inescrupuloso aventureiro Red Buckley saca seu canivete e abre a buchada de um cadáver à procura de uma inestimável pérola negra que o sujeito, um milionário de origem francesa, havia engolido pouco antes de morrer, ao preparar-se para fugir da ilha assolada por uma revolução. Como se isso não fosse nojento o suficiente, o ricaço sofria de uma verminose grave, e o diretor achou por bem não nos poupar da visão dos parasitas se mexendo quando o trato intestinal do cara é aberto. OK, os efeitos práticos usados estão longe de realistas, mas o que vocês esperavam?! Tudo se explica quando ficamos sabendo que o diretor desse episódio é o Sr. Tobe Hooper, famoso principalmente por ter dirigido também o "clássico" (aumentem essas aspas aí) O Massacre da Serra Elétrica. O episódio tem um roteiro interessante e poderia passar muito bem sem essa cena. Quase como uma nota de rodapé, é bom registrar que a atriz Whoopi Goldberg, na época vivendo o auge da fama, participa dele, e, depois que termina, é brevemente entrevistada pelo Guardião da Cripta num impagável arremedo de talk show, recheado de trocadilhos com os títulos de alguns filmes de sucesso em que Whoopi atuou.

Mesmo tendo assistido, até agora, apenas às três primeiras temporadas (ainda não encontrei as outras para comprar – espero que a Screen Vision não tenha desistido antes do meio do caminho!), eu poderia ficar aqui enumerando uma longa lista de episódios legais, mas isso seria maçante, então contento-me em registrar que meu favorito até o momento foi o primeiríssimo episódio – o primeiro da primeira temporada –, intitulado The Man Who Was Death ('O Homem que Era a Morte'), a história de Niles Talbot, um homem feliz e realizado com seu trabalho, que consiste em fazer a manutenção da cadeira elétrica numa penitenciária estadual, bem como acionar a alavanca nas execuções. Sua rotina tranquila é sacudida quando a pena de morte é abolida em seu estado (nos Estados Unidos, cada estado tem autonomia para legislar a respeito da pena capital) e ele perde o emprego. Convencido de que sua função é nobre e necessária, Niles decide continuar a exercê-la por conta própria. O episódio é diversão do começo ao fim, com um roteiro que combina com perfeição o macabro e o engraçado (na verdade, o muito macabro com o muito engraçado), um soberbo desempenho do ator Bill Sadler no papel de Niles, e, de longe, a melhor trilha sonora que um episódio de Tales from the Crypt já teve (nem preciso ver a série toda pra saber!), composta por Ry Cooder e executada (ops…) no que parece ser um daqueles teclados eletromecânicos muito utilizados por bandas de rock das décadas de 60 e 70. Show!

Na verdade, não é fácil apontar um único episódio como o preferido, mesmo nesse universo relativamente restrito de apenas três temporadas. Parece que os responsáveis pela série quiseram marcar o final da terceira temporada com algo especial, e dessa ideia surgiu Yellow ('Covarde'), sem a menor dúvida a produção mais ambiciosa e mais cara exibida por Contos da Cripta, pelo menos até então. O episódio tem 36 minutos de duração sem contar as partes do Guardião, ou quase 40 se as incluirmos – muito mais que o normal da série – e traz no elenco não um ou dois, mas um punhado de atores famosos, além de ter envolvido logística e preparação que devem ter-se aproximado das de um filme de cinema. A história se passa na França durante os últimos dias da Primeira Guerra Mundial, e trata de um drama envolvendo o general Kalthrob (Kirk Douglas) e seu filho, o tenente Martin Kalthrob (Eric Douglas, filho de Kirk na vida real). Os dois pertencem a uma família de orgulhosas tradições militares, mas, para a decepção do general, Martin mostra-se um covarde no campo de batalha. Há tempos que sua conduta vem gerando descontentamento e desprezo em meio às tropas, mas, quando ele deserta durante um combate, abandonando os companheiros e causando a morte de vários deles, o pai (que, antes de ser pai, é comandante) não tem alternativa a não ser convocar uma corte marcial para julgar o próprio filho… E não posso ir mais adiante sem dar spoiler. Quando assistirem, notem que a ambição do episódio não se limita aos aspectos da produção e do elenco: o conflito proposto no roteiro é bem mais profundo e complexo que o usual da série, e a densidade dramática é algo nunca visto em nenhum episódio anterior. Em Yellow, Contos da Cripta se permite desencanar um pouco da obrigação de pertencer a um determinado gênero, pois não se trata de uma história de terror e nem mesmo de suspense: é um drama de guerra, um excelente drama de guerra, e ponto. Além dos Douglas pai e filho, marcam presença Lance Henriksen (de Alien: o Oitavo Passageiro, e que já havia aparecido no episódio Cutting Cards, da segunda temporada) e Dan Aykroyd (de Caça-Fantasmas). Robert Zemeckis assina a direção.

Muita gente tem um pé atrás com a ideia de unir terror e humor, e confesso que já fui do mesmo ponto de vista, mas hoje penso diferente: como em quase tudo na vida, também nesse caso poderíamos dizer que o "advérbio" é mais importante que o "verbo". Para quem matou as aulas de gramática, traduzo: não importa tanto o que está sendo feito, e sim como isso está sendo feito. Tales from the Crypt é uma série que esbanja criatividade, talento, e que, mesmo com tudo isso, conseguiu manter-se livre do veneno da pretensão, que já arruinou tantas séries e filmes que poderiam ter sido legais. Não tenta "revolucionar" nada, mas contenta-se em contar boas histórias e, volta e meia, tira um sarro de si própria. Impossível não gostar!

sexta-feira, abril 27, 2018

Os Melhores Contos de H. P. Lovecraft

Este livraço (741 páginas) publicado pela editora Hedra e (pelo menos de acordo com o selo em sua capa) vendido com exclusividade pela Livraria Cultura, é uma boa opção para quem já sabe um pouco sobre H. P. Lovecraft, mas ainda não pegou muita familiaridade com a obra do autor, já que reúne uma quantidade bem generosa de material que, além disso, é bastante variado, permitindo-nos o contato com diferentes facetas do recluso escritor de Providence. Eu já conhecia algumas das histórias: O Chamado de Cthulhu e A Cor que Caiu do Espaço estavam num pequeno livro da Campanário que comentei há alguns anos (na verdade, as duas histórias eram o livro todo), e Nas Montanhas da Loucura era a história-título de um volume da Iluminuras que também li, mas que não chegou a ser tema de um post no blog. Além disso, também inclui Ar Frio, que li em algum canto da internet. Creio que isso é tudo. Ou seja, a maior parte do livro (e é uma "maior parte" realmente grande) consistia de material por mim desconhecido. Oba!

E, como um viajante explorando território incógnito (imagem que tem tudo a ver com pelo menos uma história), tive várias surpresas, uma delas o fato de que, lá pelas tantas, percebi, consultando o sumário, que já tinha lido mais de metade das histórias – mas, ao ver por onde andava o meu marcador de página, constatei que ainda não tinha percorrido sequer uma terça parte do livro. Isso significa que as histórias mais curtas estão no início, e, à medida que vamos progredindo, encontramos outras que seriam praticamente romances, se o número de palavras fosse um critério absoluto para distinguir conto de romance ou novela (não é, mas não vou entrar na seara da teoria literária agora). A seleção dos textos foi extraordinariamente feliz em deixar evidente para o leitor que as histórias de Lovecraft são soltas, pero no mucho: há lugares, personagens e criaturas que são recorrentes, e tudo está interligado, ora de maneira mais nítida, ora mais tênue. O primeiro conto, Dagon, já é inequivocamente uma história de terror, tendo como elemento central uma monstruosidade que emerge das profundezas do oceano, e por isso o nome, que faz referência ao deus-peixe dos filisteus e cananeus. Essa história demonstra uma capacidade misteriosa que Lovecraft tinha e que lhe foi muito útil, considerando do que trata boa parte de sua obra: a descrição da aparência da criatura é mínima, permitindo-nos imaginá-la da maneira que quisermos, desde que seja com as características de um ser aquático – e, mesmo assim, o impacto é poderoso.

Um detalhe importante: a ordem em que as histórias aparecem nesta coletânea não é aleatória, e sim cronológica. Dagon é de 1917 e, como vimos, já inaugura o livro metendo os dois pés na porta no quesito terror, o que torna ainda mais surpreendente a experiência do leitor ao passar para a história seguinte, O Navio Branco, de 1919, uma narrativa de puro sonho encantado na qual o protagonista faz uma viagem maravilhosa por um mundo onírico (palavra essa muito importante dentro da obra de Lovecraft) cheio de paisagens deslumbrantes – mas também é nesse conto que lemos pela primeira vez vários nomes que voltarão a aparecer em histórias posteriores, estas dotadas de uma vibe bem diferente. O mundo de sonhos por onde perambulam os personagens de Lovecraft guarda infinitas maravilhas e infinitos horrores, e o detalhe mais inusitado e interessante é que ele não é caótico nem (aparentemente) sem sentido como os sonhos comuns de sonhadores comuns: é um mundo com sua própria História, geografia, nações e lendas. Somos conduzidos a maiores explorações desse mundo em contos como Os Gatos de Ulthar, Celephaïs (ambas de 1920), Os Outros Deuses (1921), e a coisa chega ao auge com a longa e épica A Busca Onírica por Kadath (1927), cujo herói é Randolph Carter, o mesmo de O Depoimento de Randolph Carter, história de 1919 que não está neste livro e que ainda não conheço (a curiosidade está grande!), empenhado numa odisseia pelo mundo dos sonhos em busca da legendária Kadath, a cidade dos deuses, onde espera obter um conhecimento que é inacessível aos mortais comuns. Carter é um sonhador experiente, capaz de deliberadamente reter a memória de seus sonhos e (pelo menos eu entendi assim) de retornar a lugares já visitados desse universo paralelo, o que permite que dê continuidade a suas explorações sem precisar recomeçar do zero a cada vez, embora, em pelo menos um momento, ele relute em acordar por medo de esquecer o que já havia aprendido e alcançado. É difícil acreditar que essa longa narrativa corresponda a um único sonho ininterrupto, mas é verdade que o tempo do universo onírico pode ser diferente do tempo do mundo desperto. O conceito e o enredo são fascinantes, mas, não vou mentir, por vezes a narrativa se torna maçante devido à repetitividade e ao excesso de detalhes. Fiquei com a sensação de que sua extensão (mais de cem páginas nesta edição) é excessiva, e de que seria possível narrar bem a história em pouco mais da metade disso.

A Busca Onírica por Kadath, como vim a saber mediante uma rápida pesquisa, integra um ciclo à parte dentro da obra de Lovecraft, o Ciclo dos Sonhos, que também inclui as outras histórias que citei acima (exceto Dagon) e tende mais para a fantasia que para o terror propriamente dito como o dos Mitos de Cthulhu – mas, quando digo que é "um ciclo à parte", isso não significa que os dois ciclos não se interpenetrem, nem tampouco que A Busca Onírica… não tenha lá os seus momentos de causar calafrios: é nela que encontramos a descrição de alguns seres medonhos, talvez menos terríveis que os dos Mitos, mas que, mesmo assim, o leitor não esquecerá facilmente. São dignos de nota os gigantes conhecidos como gugs, que, pela participação que têm na história, me fizeram pensar nos ciclopes da mitologia grega – o que faz sentido, já que a aventura de Randolph Carter lembra tanto a Odisseia. Porém, como seria de se esperar em se tratando de Lovecraft, os gugs são bem mais assustadores que os ciclopes: têm sete metros de altura, dois antebraços em cada braço, o que lhes dá um total de quatro mãos, e uma horrenda bocarra vertical que se abre ao longo de toda a altura da cabeça. Há também os ghasts, venenosos, dotados de cascos, e cujas caras são uma paródia grotesca da figura humana, e, com destaque, os ghouls – que, diferentemente das duas espécies anteriores, não são invenção de Lovecraft, e sim criaturas conhecidas no folclore anglo-saxão, um tipo de morto-vivo, por vezes com uma aparência vagamente canina, que frequenta cemitérios para se alimentar dos corpos. Enfim, mesmo com seus defeitos, A Busca Onírica… é uma história notável, e, ao menos na minha avaliação, a "joia da coroa" do Ciclo dos Sonhos, assim como O Chamado de Cthulhu é a dos Mitos.

Falar nos ghouls me leva de volta a um conto anterior, O Modelo de Pickman (1926), que é praticamente perfeito como história de terror! O personagem-narrador, um certo Thurber, está contando a um amigo de nome Eliot o pouco que sabe a respeito do misterioso desaparecimento do pintor Richard Upton Pickman, e a conversa vai enveredando para as excentricidades do sujeito. Thurber mostra-se um admirador extremado do gênio de Pickman, um artista de enorme talento cujo interesse voltava-se quase exclusivamente para o campo do oculto e do macabro. O pintor mantinha um estúdio secreto num imóvel que alugava sob nome falso num dos bairros mais sórdidos de Boston, e o narrador, certa vez, teve acesso a esse lugar, onde viu obras tão pavorosas que teriam feito os trabalhos que Pickman chegou a expor (e que já chocavam a muitos) parecerem desenhos de uma criança talentosa. O quadro mais famoso do artista chama-se justamente Ghoul se Alimentando, e mais de um pintor do mundo real, fã de Lovecraft, já tentou materializá-lo com base nas vagas informações fornecidas no conto – escolhi uma das versões para ilustrar este post, mas existem várias (façam uma busca por imagens no Google usando as palavras-chave Lovecraft ghoul feeding, ou Pickman ghoul feeding, e respirem fundo antes de olhar os resultados). Duas questões servem de motor à história, a primeira delas óbvia: que fim levou Pickman? E a segunda é ainda mais inquietante: por mais genial, ou perturbado, ou as duas coisas, que aquele homem fosse, seria possível que a inspiração para pintar tantos e tamanhos horrores viesse unicamente de sua própria imaginação? O final é magistral, mas respostas completas para essas perguntas, o leitor só encontrará em A Busca Onírica por Kadath.

E o que dizer do pavor sufocante e envolvente que preenche praticamente cada linha de O Horror de Dunwich? Muitos dos contos de Lovecraft têm partes que exigem paciência, geralmente por causa de seu costume de inserir verdadeiras palestras nas histórias; pelo pouco que já li de outros escritores do mesmo gênero e da mesma época, isso parecia ser de praxe entre esses autores, e, no caso de Lovecraft, a paciência investida é quase sempre muito bem recompensada com trechos arrepiantes… Só que, em O Horror de Dunwich, esse investimento é desnecessário, pois a história nos captura desde as primeiras linhas, e não porque não haja "palestra": há um longo trecho introdutório que descreve a região rural da Nova Inglaterra onde o caso a ser narrado teria acontecido, mas é tudo tão "orgânico" que já vamos entrando no clima desde o início. O vilarejo conhecido como Dunwich e seus arredores já tinham uma fama tenebrosa antes desse caso ocorrer; isso vinha desde o tempo dos primeiros colonizadores, talvez desde o tempo dos índios, e os terríveis eventos que Lovecraft vai contar demonstram que essa fama tinha lá suas razões. Uma das pequenas propriedades ao redor de Dunwich pertence a um sujeito idoso conhecido apenas como o "Velho Whateley", que, na juventude, pelo que se comentava na região, andou metido com feitiçaria; como a gente do interior tem uma memória sabidamente longa para esse tipo de coisa, o velho homem ainda tem uma reputação sinistra, tanto mais que agora parece estar meio louco, provavelmente menos em razão da senilidade que das coisas que viu e fez ao longo da vida. Como muitas pessoas do meio rural, Whateley teve pouca instrução, mas o suficiente para que seja capaz de ler, e sua casa está cheia de estranhos livros, que sua única filha, Lavinia, parece ter estudado também. Como se não bastasse ser filha do Velho Whateley, ela tem a pouca sorte de ser albina e possuir certas deformidades não especificadas; tudo isso junto faz com que a maior parte da população ao redor a veja com desconfiança e até com certa repulsa. Inesperadamente, já aos 35 anos de idade, Lavinia, que nunca se casou ou teve qualquer companheiro conhecido, tem um filho, que recebe o nome de Wilbur, e sobre cuja paternidade nada se sabe. O garoto se desenvolve com uma rapidez espantosa, ao ponto de, aos dez anos, já parecer um homem feito, invulgarmente grande e robusto, apresentando, inclusive, barba. Bem diferente da mãe albina, tem a pele trigueira, cabelo negro e uma fisionomia que "lembra a de um bode". Sua inteligência progride com a mesma rapidez que seu crescimento físico, e, instruído pelo avô usando sua estranha coleção de livros, ele se inicia nos estudos ocultos, chegando a uma desconcertante combinação de semianalfabetismo e erudição. Wilbur faz contatos com bibliotecas e colecionadores particulares de diferentes lugares em busca de outros livros; pouco antes de morrer, o Velho Whateley orienta o neto a obter uma cópia completa do funesto Necronomicon (ei-lo de novo), do qual ele só possui fragmentos… Direi, por último, que, durante os últimos anos de vida do velho, ele e Wilbur trabalharam ativamente reformando uma parte da enorme e velha casa de fazenda onde moravam, transformando-a, ao que parece, numa espécie de viveiro, e que continuamente compravam cabeças de gado, sem que seu pequeno rebanho jamais parecesse aumentar em número… Isso já faz o leitor começar a ligar os pontos, e a sequência da história revela o horrendo significado de todas essas coisas, além da verdadeira natureza e filiação do jovem Wilbur. Aqui Lovecraft empregou no mais alto grau sua estupenda capacidade de criar uma atmosfera de medo – medo do desconhecido, que, como ele mesmo dizia com tanta frequência e tanto acerto, é o tipo mais forte e mais antigo de medo. E, diferente do que acontece em Dagon e outras histórias, aqui os horrores são descritos em pormenores, contribuindo bastante para a capacidade do texto de amedrontar, ainda que a história não dependa disso para conseguir esse efeito. A meu ver, o único senão de O Horror de Dunwich é a conclusão um tanto rápida e "fácil", que fica aquém das expectativas que o restante do conto nos leva a ter.

Outro clássico lovecraftiano a marcar presença nesta coletânea é O Caso de Charles Dexter Ward. A história começa no meio, quando o rapaz cujo nome é citado no título foge (na verdade, desaparece) de um sanatório de maneira inexplicável; depois de nos contar isso, o narrador fornece informações sobre o paciente e seus antecedentes. Ward, um jovem de boa família da cidade de Providence, no estado de Rhode Island (não por acaso, a cidade onde Lovecraft nasceu e viveu a maior parte da vida) era, desde a infância, fascinado por coisas antigas tais como objetos de arte e arquitetura, e, como seria de se esperar de alguém com tais gostos, também tinha um forte interesse por estudos relacionados ao passado, como História e genealogia. Não parece haver nada de anormal, até que, numa de suas pesquisas, ele descobre ser tetraneto de um misterioso personagem do século XVIII, um tal Joseph Curwen, um rico comerciante – mas cujos verdadeiros interesses na vida eram a alquimia e o ocultismo. Consta que Curwen teria se estabelecido em Providence ainda em fins do século XVII, tendo saído de Salem, Massachusetts, onde pouco antes tivera lugar o famoso episódio dos julgamentos de bruxaria (estaria ele fugindo disso?), e já então era um homem maduro, mas consta também que continuava vivo, atuante e aparentando uma saudável meia-idade em plena década de 1760, quando já deveria ter mais de cem anos. Suas atividades misteriosas e sinistras foram alimentando um sentimento cada vez maior de medo e repulsa entre a população de Providence, até a coisa chegar ao ponto de um grupo de cidadãos decidirem se armar e, por conta própria, invadir a propriedade do "feiticeiro", onde descobriram tais horrores, que nenhum deles jamais pôde ser persuadido a falar a respeito, nem mesmo anos mais tarde. O nome de Curwen passou a inspirar tal ojeriza, que tentou-se por todas as formas apagá-lo da existência, destruindo todos os registros a respeito dele – o que cria enormes dificuldades para o jovem Ward, que fica obcecado por esse ancestral maldito e passa a dedicar todos os seus esforços a descobrir tudo o que puder sobre ele. É claro que, como sempre acontece em casos semelhantes, alguns registros escaparam da destruição, e Charles, um fuçador incansável, acaba encontrando o que procura. Quando isso acontece, ele retoma os estudos ocultistas do antepassado, e, a partir daí (num desenrolar tipicamente lovecraftiano), entra numa espiral descendente de loucura e terror, que acaba por levá-lo ao manicômio de onde mais tarde desapareceria. Creio que isso já é suficiente para atiçar a curiosidade de um possível leitor sem dar grandes spoilers.

Há um detalhe que eu já havia estranhado em outros contos de Lovecraft e que aqui aparece de forma mais evidente: a tentativa de atribuir uma aura de exagerada antiguidade a determinadas coisas. Há um longo trecho contando sobre o hábito que tinha Charles Ward, ainda garoto, de fazer longas caminhadas pela cidade de Providence para admirar a arquitetura das casas antigas, e, nele, o narrador fala de uma mansarda "pré-histórica" e de ruelas "de antiguidade inconcebível", entre outros exemplos. Acho tudo isso estranho, já que, como sabemos (e como Lovecraft certamente estava cansado de saber), com exceção das poucas e raras construções indígenas capazes de durar tanto tempo, nenhuma edificação nos Estados Unidos na época do autor podia reivindicar antiguidade maior que uns quatro séculos, sendo que Providence, especificamente, foi fundada em 1636 e portanto tinha então menos de 300 anos – a meu ver, um intervalo de tempo ridiculamente curto para a mente que concebeu os Grandes Antigos. Mas pode ser que o narrador, nesse trecho, esteja apenas tentando passar ao leitor as impressões do jovem protagonista, que, nesses dias, ainda estava naquela idade em que dez anos parecem uma vida, de modo que talvez superestimasse a antiguidade do que via.

Um Sussurro nas Trevas (1931) lida com a ideia sempre inquietante de uma raça oculta de seres desconhecidos vivendo muito próximos dos humanos, mas passando geralmente despercebidos, exceto por rumores, histórias contadas aqui e ali, um ou outro avistamento considerado como mero engano ou alucinação… Lovecraft recorreu a esse conceito outras vezes, e, muito provavelmente por influência dele, Robert E. Howard também o fez, embora a exata natureza e a aparência das raças ocultas de cada um fosse completamente diferente. Howard, 16 anos mais jovem, era leitor de Lovecraft desde a adolescência, muito antes de os dois se tornarem amigos, e nunca escondeu sua admiração por ele. Neste conto, a raça desconhecida em questão é de origem extraterrestre, mas parece ter estabelecido uma base de operações nas cavernas do estado de Vermont. Tem uma aparência vagamente crustácea, mas com uma cabeça cheia de tentáculos que mudam de cor, e asas membranosas que lembram um morcego. Não é spoiler: essa descrição está logo no início do conto, que prossegue tratando do mistério em torno de sua existência, e, de qualquer forma, eu precisava dela para abordar um ponto que me ocorreu agora. Lovecraft, um autor de terror por excelência, parece ter compreendido uma coisa a respeito de "alienígenas" que muitos escritores de ficção científica não compreenderam: que uma forma de vida que evoluiu em outro mundo, de modo totalmente independente de tudo o que a nossa biologia conhece, deveria, por qualquer expectativa razoável, ser absoluta e radicalmente diferente de tudo o que já vimos ou imaginamos. OK, as criaturas de Um Sussurro nas Trevas até tiveram alguma inspiração em crustáceos no que se refere a sua aparência, mas nem sequer são animais no verdadeiro sentido do termo (em outras obras são referidos como "Fungos de Yuggoth" – é isso aí: fungos). Outras raças criadas por Lovecraft, como os Antigos (não Grandes Antigos, só Antigos, de Nas Montanhas da Loucura) representam uma ruptura tão ou mais radical que essa com qualquer noção que pudéssemos ter a respeito do que seria uma raça inteligente e civilizada, ao ponto de atordoarem quem se considera um expert em ficção científica só porque já assistiu muito Star Wars e Star Trek. Não estou criticando essas franquias, pois gosto muito da primeira e amo a segunda, mas é fato que, nelas, as espécies alienígenas que aparecem (pelo menos as inteligentes), por mais estranhas fisionomias que possuam, quase sempre apresentam uma configuração física basicamente antropomórfica, com cabeça, tronco e membros dispostos da mesma forma que os nossos. Já os alienígenas de Lovecraft são coisas coriáceas ou gelatinosas, bulbosas, disformes, por vezes nem mesmo se encaixando ao certo em qualquer definição que tenhamos (os Antigos não são exatamente nem animais, nem vegetais), ou subvertendo noções que nunca pensamos em questionar (fungos inteligentes??). E olhem que só abordei os aspectos biológicos da coisa: que criatura humana seria capaz de imaginar a mentalidade de um ser cujos próprios sentidos não têm nada a ver com os nossos? Em tempo: o sussurro que dá título à história de que eu estava falando são sons que as criaturas produzem, aparentemente, só para poderem se comunicar com os humanos quando precisam, pois sua própria forma de "falar" não é sonora – elas conversam entre si por meio de sinais, consistindo em movimentos e mudanças de cores em seus tentáculos!…

(Como estava falando de Robert E. Howard em conexão com Lovecraft, ocorreu-me comentar uma curiosidade. Lovecraft imaginou diferentes tipos de seres como sendo dotados de tamanho poder, que seriam capazes de viajar entre as estrelas voando com as próprias asas, sem precisar de nada tão desajeitado e pouco prático quanto uma espaçonave – os Grandes Antigos fizeram isso, e os Fungos de Yuggoth também. A mesma ideia aparece no conto de Howard, A Torre do Elefante [1933], no qual Conan conversa com uma criatura extraterrestre inconcebivelmente antiga, embora mais benévola que os alienígenas de Lovecraft.)

A Sombra de Innsmouth (1931), também encontrado com o título A Sombra Sobre Innsmouth em outras traduções, descreve um vilarejo pesqueiro no litoral de Massachusetts, que já viveu dias prósperos, mas encontra-se agora decadente e parcialmente abandonado. O jovem protagonista, à semelhança de Charles Dexter Ward, é um curioso sobre História, arquitetura e genealogia, e são esses interesses que o levam a decidir visitar Innsmouth durante uma viagem que está fazendo pela Nova Inglaterra – e apesar da reputação tenebrosa que o lugar tem entre as populações das cidades próximas. Lovecraft demonstra toda a sua capacidade de criar ambientação ao descrever o vilarejo, com seus casarões dilapidados lembrando tristemente a opulência passada, sua atmosfera úmida, um odor nauseabundo de peixe que parece impregnar tudo, e seus habitantes de aparência estranha e desagradável, que o viajante não consegue determinar se teria origem em alguma degeneração hereditária ou na miscigenação (para Lovecraft, indivíduo profundamente racista, as duas coisas eram mais ou menos equivalentes: como muitos intelectuais de sua época, influenciados pela teoria racial do século XIX, ele acreditava que a mistura de diferentes raças tendesse a produzir "aberrações"). Em adição a isso, em Innsmouth as tradicionais igrejas protestantes tão prezadas pela população da Nova Inglaterra foram substituídas por uma tal Ordem Esotérica de Dagon (does it ring a bell?), sobre cujos cultos correm boatos macabros. Tendo explorado tantas fontes possíveis de medo em suas outras obras, aqui o autor volta-se para o oceano, que ao mesmo tempo nos fascina e intimida por sua imensidão e mistério, pois ainda não estamos nem perto de conhecer tudo o que existe nele – nem mesmo hoje, que dirá na época de Lovecraft. A título de curiosidade, A Sombra de Innsmouth foi a única história do autor publicada em forma de livro enquanto ele era vivo – numa edição desastrosa, repleta de erros tipográficos, o que o deixou fulo da vida. Tirando isso, ele só conseguiu publicar seus trabalhos (quando o conseguia) em revistas, tais como a famosa Weird Tales, que também projetou o já citado Robert E. Howard, entre muitos outros.

Eu tinha lido Nas Montanhas da Loucura anos atrás, ela era a história-título de uma daquelas coletâneas de Lovecraft publicadas pela editora Iluminuras no final dos anos 90 e início dos 2000; reli neste volume numa tradução diferente, e, não sei se porque de lá para cá adquiri mais familiaridade com a escrita do autor, mas desta vez a experiência foi mais fluida, agradável e sinistra. Na primeira leitura, pela lembrança que eu tinha, achei que a história era prejudicada por uma abordagem excessivamente científica: informações técnicas ocupavam uma parte demasiado grande dela, e mesmo a parte "boa" valia mais pela curiosidade que pelo terror mesmo, já que nela éramos apresentados aos seres que, naquela tradução, eram chamados simplesmente de "os Antigos", e recebíamos uma aula fascinante sobre a complexa sociedade que eles criaram na Terra em eras inimaginavelmente antigas. A propósito, os Antigos não devem ser confundidos com os Grandes Antigos (ou, nesta edição, Grandes Anciões), a raça de deuses-monstros governada pelo Grande Cthulhu. Nesta edição, os seres descritos em Nas Montanhas da Loucura são chamados de "Coisas Ancestrais", a tradução direta de seu nome no original, "the Elder Things". O personagem-narrador, o Prof. Dyer, do departamento de geologia da Universidade Miskatonic, em Arkham (universidade e cidade fictícias, ambas recorrentes nas histórias de Lovecraft), lidera uma expedição de pesquisa à Antártica, que descobre muito mais do que esperava: os cientistas encontram o que parecem ser pegadas de algum organismo grande e complexo em rochas com quase um bilhão de anos de idade – época em que, por tudo o que se sabe, a vida apenas começava a aparecer na Terra e ainda não ia além do estágio unicelular. Mais tarde, acabam encontrando o que acreditam serem os corpos dos seres que deixaram tais pegadas, miraculosamente preservados. São criaturas que lembram certo tipo de invertebrados, os radiários, mas com quase três metros de altura e características animais e vegetais ao mesmo tempo, e cuja existência na época em que foram deixadas as pegadas sugere que a Terra tenha conhecido outros ciclos de evolução da vida, muito anteriores ao que resultou na nossa existência (descobre-se depois que não é bem assim, já que as Coisas Ancestrais têm origem extraterrestre). Mais ainda: tais seres eram altamente inteligentes, civilizados, e tinham uma vasta cidade, boa parte da qual ainda está de pé; nas ruínas, Dyer e um companheiro descobrem muitas coisas sobre a vida, costumes e história dessa raça. A descrição de tudo isso é de longe a melhor parte do conto, um dos trechos mais curiosos de toda a obra de Lovecraft, mas, desta vez, eu achei a coisa toda bem mais tenebrosa além de curiosa, já que a sociedade das Coisas Ancestrais possui conexões com os Mitos de Cthulhu, de modo que a sombra do retorno dos Grandes Antigos está sempre presente. Nas Montanhas… também traz outro exemplo de como as histórias de Lovecraft são quase todas encadeadas entre si: Dyer, embora tenha a geologia como área de especialização, parece ser um curioso sobre mitologia e ocultismo, pois, além de já ter examinado o exemplar do Necronomicon guardado na seção reservada da biblioteca da universidade, teve longas conversas com um colega do departamento de língua inglesa que se dedica a esse tipo de estudo – ninguém menos que Wilmarth, o protagonista de Um Sussurro nas Trevas. Por fim, não dá para concluir este parágrafo sem apontar para o fato de que a história deixa evidentes os consideráveis conhecimentos de Lovecraft sobre geologia e biologia.

As duas últimas histórias são O Assombro das Trevas (1935), que eu achei apenas mediana, apesar de alguns momentos brilhantes, e optei por não aprofundar aqui, e A Sombra Vinda do Tempo (1935), que inevitavelmente nos traz à cabeça a expressão "fechar com chave de ouro", ainda que isso possa ser fruto do acaso, já que, como vimos, as histórias são apresentadas em ordem cronológica. Assim como Nas Montanhas da Loucura, trata-se de um mergulho num passado pré-humano fictício, e sob certos aspectos, inclusive, lembra bastante aquela história, só que envolvendo uma forma de deslocamento entre diferentes eras – de uma maneira radicalmente diferente da noção tradicional da viagem no tempo que, mesmo naquela época, já estava tão batida. O narrador, Nathaniel Peaslee, é um pacato pai de família, professor de economia na Universidade Miskatonic, que, inexplicavelmente, tem um blackout que dura quase cinco anos – e, ao "voltar", descobre que sua vida virou de ponta-cabeça; aparentemente, alguma outra consciência ocupou seu corpo durante esse período. Peaslee declara nunca ter tido qualquer interesse em ocultismo ou parapsicologia, mas a entidade que havia assumido seu lugar, como ele vem a saber, dedicou-se a extensas pesquisas em alguns dos volumes mais raros e mais mal-afamados mantidos na biblioteca da universidade, livros esses aos quais somente sua condição de professor (bem, a condição de professor de Peaslee) lhe franqueou o acesso – e nem é preciso dizer que entre esses livros está o velho Necronomicon. Movido pelo desejo de entender o que lhe aconteceu, Peaslee começa, por sua vez, a pesquisar, e descobre que existem registros de casos semelhantes ao seu ao longo de toda a História. Ao mesmo tempo, ele tem lampejos de lembrança (que vão gradualmente se tornando mais duradouros, claros e precisos) de ter vivido num mundo bizarro, mas que tudo indica ter sido a própria Terra numa era desconhecida. Aos poucos, a combinação dessas recordações com o que vai descobrindo em suas pesquisas revela-lhe a inacreditável verdade: existiu outrora uma civilização que chamava a si própria de "a Grande Raça de Yith", não tão antiga quanto as Coisas Ancestrais de Nas Montanhas da Loucura, mas, ainda assim, anterior em eras a qualquer coisa que a humanidade conheça, e que dominou a capacidade de projetar a mente rumo ao passado ou ao futuro, ocupando o corpo de qualquer forma de vida inteligente que exista na época que o viajante deseja explorar. Enquanto isso, a mente original do corpo "emprestado" ocupa o corpo do Yith em questão. Combinando essa habilidade com sua fome insaciável por conhecimento, não é difícil imaginar que os Yith acumularam o maior tesouro de ciência, arte e informações de todo tipo já visto em qualquer era deste mundo – e tudo isso estava ao alcance da mente inquisitiva de Peaslee durante os anos que a troca durou, embora agora ele só recorde pequenos fragmentos. O conceito que baseia a história chega a dar vertigens pela amplitude das esferas de tempo que envolve, fazendo a humanidade e todas as suas realizações parecerem ainda menores do que já pareciam enquanto líamos as histórias anteriores, isso para não falar na ideia indescritivelmente fascinante de não apenas ter acesso ao vasto conhecimento dos Yith, como ainda poder trocar ideias com homens (e outras criaturas) cujas mentes foram "sequestradas" da mesma forma, e vindas de todas as épocas, incluindo representantes de espécies já extintas há milhões ou bilhões de anos, e de outras que só irão evoluir em formas inteligentes daqui a outro tanto. É muita coisa!…

Uma observação: mencionei há pouco as Coisas Ancestrais de Nas Montanhas da Loucura, que são citadas em A Sombra Vinda do Tempo sem o uso de nenhum nome, sendo chamadas apenas de "a raça semivegetal dotada de asas e cabeça em forma de estrela-do-mar oriunda da Antártida paleogênea", e, mais adiante no conto, o nome "Coisas Ancestrais" é usado para se referir a outra raça que, pela descrição, não tem nada a ver com essa. Não sei ao certo ao que atribuir isso; confesso que meu primeiro impulso foi culpar o tradutor, mas provavelmente estaria sendo injusto: talvez Lovecraft tenha feito de caso pensado. Considerando suas histórias em conjunto, percebemos que ele estava construindo uma mitologia, sabia disso – e o que é uma mitologia sem redundâncias, versões discrepantes, nomes diferentes atribuídos à mesma coisa ou um mesmo nome designando coisas diferentes etc.? Quem já se dedicou a estudar os mitos gregos, nórdicos, egípcios ou outros, sabe bem do que estou falando.

(Quando Peaslee enumera alguns dos livros que o "outro" que ocupava seu corpo andou pesquisando – e que ele próprio acaba depois lendo em busca de respostas –, dois títulos sobressaem na lista: um é o Unaussprechlichen Kulten [algo como 'Cultos Inomináveis' ou 'Cultos Indescritíveis' em alemão], atribuído a um certo Von Junzt, e o outro, o De Vermis Mysteriis ['Mistérios do Verme' em latim], cujo autor seria Ludwig Prinn. Ambos são livros fictícios, assim como o Necronomicon de Lovecraft; o primeiro foi inventado por Robert E. Howard e citado pela primeira vez no conto Os Filhos da Noite, que eu já tive a oportunidade de comentar; o outro é criação de Robert Bloch, hoje uma lenda da literatura fantástica, na época pouco mais que um garoto dando seus primeiros passos como escritor [já mostrando promessa], e que deve ter chorado de emoção quando Lovecraft, seu ídolo, não apenas dedicou nominalmente O Assombro das Trevas a ele, como ainda citou o De Vermis Mysteriis tanto nessa história quanto em A Sombra Vinda do Tempo. Stephen King também o cita no conto Jerusalem's Lot. E, ainda no assunto das conexões entre a obra de Lovecraft e as de seus amigos escritores, A Sombra Vinda do Tempo traz breves mas instigantes menções não só ao antigo império da Valúsia, como até mesmo à raça dos homens-serpente que o controlava antes da ascensão dos humanos – elementos esses que os leitores das aventuras do rei Kull escritas por Howard na certa reconhecerão. Eu nunca tinha visto a Valúsia ser citada em nenhum outro lugar sem ser a obra de Howard, então, quando li essa referência a ela na história de Lovecraft, fui pesquisar na internet para ver se o nome tinha origem em algum mito do mundo real, como no caso da Atlântida… Na verdade, essa era uma pesquisa que eu já deveria ter feito há muitos anos, não sei por que isso nunca me ocorreu antes. Se algo assim existisse, poderíamos pensar que ambos os autores tivessem simplesmente bebido nas mesmas fontes – mas não encontrei nada do tipo; portanto, salvo alguma evidência em contrário que ainda apareça, tudo indica que a Valúsia saiu mesmo da imaginação de Howard, e que Lovecraft, ao utilizá-la, estava deliberadamente criando mais um link entre sua obra e a de seu amigo.)

A leitura deste livro vale por um mergulho e tanto no universo bizarro e tenebroso de Lovecraft, e pode ser indicada sem erro a leitores que se encontrem na mesma situação em que eu estava antes de lê-lo – a de já ter tido contato com o autor e gostado, mas ainda estar num nível bem básico de conhecimento sobre sua obra. Aqui há muito material, grande parte dele representando o melhor da produção de Lovecraft, e com um tratamento editorial do qual, na minha opinião, há bem pouco do que reclamar (o tradutor parece ter um fetiche com a palavra "coruchéu", e a repetição frequente de termo tão exótico acaba por ter um efeito engraçado, mas isso não passa de uma curiosidade). Até pensei em fazer a ressalva de que o livro é extremamente grande e desajeitado, pouco prático para uma pessoa levar consigo para ler em lugares como cafés, trens e salas de espera, e que talvez fosse uma boa ideia dividi-lo em dois volumes, mas não vou fazer isso, porque, na verdade, dá no mesmo: eu definitivamente não recomendo esse tipo de leitura errática em se tratando de Lovecraft. Seus temas são complexos, sua escrita é recheada de frases longas e de construção rebuscada, que exigem bastante atenção e concentração, e cuja compreensão correta é essencial para que o leitor consiga entrar no espírito da história. Aconselho reservar algumas horas para lê-lo em casa ou em algum lugar sossegado, livre de distrações e interrupções, o que garantirá que estas histórias sejam lidas como devem ser, e apreciadas de verdade.