Gilles de Rais (1404-1440), barão de Laval, é um dos personagens mais curiosos – e mais assustadores – da história da França. Seus feitos medonhos, ecoando pelo universo da cultura popular através de histórias contadas em tabernas e ao pé do fogo, deram origem à lenda que o grande escritor Charles Perrault (1628-1703) poria por escrito em seu clássico livro Histórias ou Contos de Outrora, com o título A História de Barba-Azul – uma nota tenebrosa em meio a histórias encantadoras ou engraçadas, como A Bela Adormecida do Bosque ou O Gato de Botas. Se bem que tanto Perrault quanto os irmãos Grimm, e outros autores que recolheram e redigiram tais contos populares, suavizaram grandemente essas histórias, muitas das quais, tal como eram na origem, seriam consideradas hoje pouco apropriadas para se contar a crianças... Mas isso é assunto para outro artigo.
Em O Marechal das Trevas, o jornalista e escritor espanhol Juan Antonio Cébrian, usando de uma prosa ágil em tom de reportagem – que ele prova ser compatível com uma análise histórica apurada, ainda que não tão aprofundada – reconstrói a trajetória do "verdadeiro" Barba-Azul, tendo o cuidado de situar o leitor por meio de uma breve história da Guerra dos Cem Anos, conflito no qual De Rais se destacou como soldado antes de ganhar reputação bem mais sombria graças a seus crimes.
O autor nos informa, por exemplo, dos feitos do rei inglês Henrique V, que, aparentado com os reis franceses (depois de séculos de casamentos políticos, quase todas as famílias reais da Europa eram aparentadas entre si), decidiu fazer valer seu suposto direito ao trono da França e, em 1415, invadiu o país, derrotando o exército francês na histórica batalha de Azincourt. Henrique obrigou o então rei da França, Carlos VI, a reconhecer seus direitos de herdeiro e a dar-lhe sua filha em casamento, de modo que, se Carlos morresse, Henrique seria o próximo a ocupar o trono francês, acumulando-o com o da Inglaterra (o que praticamente faria dele um imperador) e preterindo o direito do filho do rei, o delfim, também chamado Carlos. A propósito desse episódio da Guerra dos Cem Anos, vejam o magnífico filme Henrique V (1989), baseado na peça homônima de Shakespeare, e dirigido e estrelado por Kenneth Branagh.
Inesperadamente, porém, Carlos VI sobreviveu a Henrique V, ainda que por um espaço de poucos meses: o rei inglês faleceu em agosto de 1422, e o francês, em outubro do mesmo ano. Isso criou um impasse: os ingleses, e parte da França que estava do seu lado, coroaram como novo rei (da Inglaterra e da França) o filho de Henrique, então ainda uma criança de colo, com o nome de Henrique VI; já os franceses nacionalistas queriam declarar rei o delfim, como Carlos VII. Havia um empecilho: por uma tradição de séculos, todo rei francês deveria ser coroado na catedral da cidade de Reims, sob pena de não ter sua legitimidade reconhecida pelo povo e pelos nobres – e Reims, como várias outras partes da França, estava nas mãos dos ingleses. O delfim, então, aquartelou-se em seu castelo na cidade de Chinon, juntamente com todo o exército que pôde reunir e os nobres ainda dispostos a lutar por ele – e entre estes, estava Gilles de Rais.
De Rais, durante alguns anos, foi um dos cavaleiros mais admirados da França, e parecia um homem destinado à grandeza. Bonito, culto, guerreiro formidável (com apenas 25 anos de idade, alcançou o altíssimo posto de Marechal da França) e dono de uma das maiores fortunas pessoais da Europa, celebrizou-se pela bravura demonstrada no campo de batalha e ganhou um lugar de honra na corte do delfim. E foi na corte, em Chinon, num dia qualquer de 1429, que Gilles e os outros nobres viram aparecer uma camponesa analfabeta de 17 anos chamada Joana d'Arc, declarando-se enviada pelo próprio Deus para garantir que o delfim fosse coroado rei como era seu direito. Por mais absurdo que isso parecesse, Joana já havia feito profecias que deram certo, o que impediu que suas pretensões fossem sumariamente rejeitadas.
Entre os que desde o início acreditaram nela esteve Gilles de Rais, que mais tarde, em seu julgamento, contaria que só enquanto esteve junto de Joana conheceu a paz de espírito e sentiu a presença de Deus; a pureza e a fé inquebrantável da donzela trouxeram alívio à alma do marechal, já então ensombrecida pelo mal. Gilles lutou ao lado de Joana na batalha de Orléans, pouco depois, e foram as mãos dele que, diante dos olhos dela, puseram a coroa da França na cabeça do delfim, um mês mais tarde, em Reims, recuperada dos ingleses graças ao inexplicável ardor que a liderança daquela garota inspirava aos soldados.
De Rais foi seguidor e protetor de Joana por mais algum tempo, até que o recém-coroado Carlos VII os separasse, designando a cada um diferentes missões. A verdade é que, depois de ter retomado Orléans, tornado possível a coroação do rei, e causado uma reviravolta na guerra a favor da França, Joana tornou-se um incômodo para Carlos e sua corte, de modo que, quando ela foi capturada pelos borgonheses (da região francesa de Borgonha, aliada à Inglaterra), em maio de 1430, o rei não esboçou nenhum esforço para salvá-la, nem mesmo diante da enérgica intercessão do marechal Gilles de Rais. Embora tenha-se tentado dar ao julgamento e à execução de Joana d'Arc a aparência de um processo por crimes religiosos, a verdade é que a Donzela de Domrémy morreu por razões políticas. Depois de um ano de julgamento sob acusação de heresia, a pressão da coroa inglesa fez com que Joana fosse condenada à morte na fogueira, sentença que foi executada na cidade de Rouen, em 30 de maio de 1431. Tinha 19 anos de idade.
Isso foi, de certa forma, o fim para Gilles de Rais; qualquer chance que ele tivesse de dar à sua vida um rumo positivo morreu com Joana. De acordo com o levantamento biográfico feito por Cébrian, Gilles era filho de um casamento político: seus pais nunca coabitaram de fato e deram pouquíssima atenção a ele e a seu irmão, René. Ambos foram criados pelo avô materno, o conde Jean de Craon, que lhes incutiu a noção de que a crueldade era parte integrante da força e da masculinidade. Isso, somado à falta de uma verdadeira família, pode em parte explicar, embora nunca justificar, sua conduta posterior.
Desgostoso após o destino que tivera Joana d'Arc, Gilles abandonou as armas e passou a dividir seu tempo entre os vários castelos que possuía, espalhados pelo interior da França, levando uma vida de luxo excessivo e promovendo quase diariamente festas suntuosas para centenas de convidados. Nem mesmo sua enorme fortuna poderia arcar indefinidamente com tais exageros, e o barão passou a enfrentar problemas financeiros. Sabe-se que procurou renovar sua riqueza tentando obter ouro por meio da alquimia, que ele próprio estudou e praticou, além de empregar especialistas, notadamente o italiano Francesco Prelati, que também se dedicava à feitiçaria. Infelizmente para De Rais, a transformação de metais comuns em ouro era algo que vinha sendo tentado desde a Antiguidade sem sucesso – e não foi com ele que essa história mudou. Chegou-se a aventar a hipótese de que as práticas alquímicas e mágicas teriam levado ao início da carreira de assassino do barão, já que o sangue de crianças era um ingrediente mencionado em inúmeras fórmulas da época, mas sua própria confissão descarta essa ideia: ele já matava por prazer bem antes de dedicar-se a tais práticas.
A última parte de O Marechal das Trevas é uma leitura penosa, pois conta sobre a prisão e o julgamento de De Rais, reproduzindo os depoimentos dele e dos criados que o assistiam em seus crimes, com fartura de detalhes capazes de causar horror até a Jack, o Estripador, que, comparado ao barão de Laval, não passava de um aprendiz. Desconhece-se o número exato de vítimas – na maioria crianças de 8 a 12 anos, de ambos os sexos – que foram raptadas, violentadas e mortas entre os anos de 1431 e 1440; sabe-se que não foram menos de 140, provavelmente cerca de 200, e há cronistas que elevam a conta até perto dos mil. O marechal confessou sem a necessidade de tortura (que na época era considerada um método legítimo de interrogatório em qualquer julgamento, e não apenas nos de bruxaria, como muita gente pensa), demonstrando arrependimento que foi considerado sincero por seus juízes, e pediu um padre para ouvi-lo em confissão, no que foi atendido. Foi levado à forca em 26 de outubro de 1440, e, antes de morrer, dirigiu suas últimas palavras à multidão que comparecera para ver sua execução, e que incluía os pais de muitas crianças que ele assassinara. Suplicou-lhes perdão e pediu que rezassem por sua alma, o que todos fizeram.
O livro tem ainda um apêndice que reproduz A História de Barba-Azul de Perrault e fornece breves resumos a respeito de alguns serial killers modernos que Cébrian considera "herdeiros" de De Rais. A meu ver, O Marechal das Trevas vale a leitura principalmente pela informação histórica que oferece (e ultimamente, não sei por que, ando com uma curiosidade louca a respeito da Guerra dos Cem Anos, de modo que veio a calhar), mas, claro, também é recomendável para os que se interessam pelo estudo dos distúrbios mentais e suas manifestações, inclusive as mais violentas e assustadoras. Mas mesmo esses precisarão ser fortes para encarar a última parte do livro.
3 comentários:
hei!...estava pesquisando o sr. gilles e achei "aqui"...
lambi o monitor!
Eu sei que já faz tempo essa postagem, mas mesmo assim quis deixar o comentário:
ótimo texto e foi de muita utilidade. Minha professora de literatura da faculdade passou esse livro e pediu que pesquisássemos sobre o Gilles de Rais. Muito bom.
Sem falar que, pessoalmente, já gosto desses assuntos de distúrbios mentais mesmo.
Tenho esse livro. Muito bom, todo o contexto histórico do livro é muito rico.
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