Parece que os editores brasileiros (e os leitores, pois, se algo está sendo publicado, é porque existe demanda) estão sentindo uma necessidade urgente de compensar o longo tempo durante o qual a literatura de fantasia esteve, a bem dizer, ausente de nossas livrarias e bibliotecas. Desde a virada do século que não param de pipocar as edições nacionais de livros do gênero. Por motivos tanto culturais quanto mercadológicos, a maioria desses títulos vem dos países de língua inglesa, mas há algumas notáveis exceções, e uma delas é o polonês Andrzej Sapkowski.
Sem qualquer intenção de menosprezar ninguém, preciso dizer que é "refrescante", vez por outra, ler histórias de fantasia medieval com pretensões mais modestas que as da maior parte das obras do gênero. Nas aventuras de Geralt de Rívia, das quais O Último Desejo é o primeiro volume, o destino do mundo não está em jogo (bem, é verdade que este é só o primeiro volume...). Geralt perambula por diferentes reinos, visitando desde os castelos dos reis até as vilas dos camponeses, oferecendo seus serviços em troca de ouro e prata em quantidade suficiente para suprir suas necessidades materiais durante algum tempo - pelo menos, tempo suficiente para que ele encontre seu próximo trabalho. Parece comum demais para render histórias heroicas? Eu me sentiria inclinado a concordar, se não fosse o tipo de trabalho que o cara faz.
Geralt de Rívia é um bruxo - e aqui cabe uma breve explanação. No mundo criado por Sapkowski, bruxos parece ser o nome que se dá aos usuários de magia que a dominam de uma forma mais instintiva e a utilizam para fins mais práticos; em contraposição a isso, há os feiticeiros, que parecem ser uma classe de magistas mais eruditos, que frequentaram uma academia e possuem formação teórica. Enquanto muitos feiticeiros possuem colocações prestigiosas, servindo a um rei ou a um nobre poderoso, a ocupação tradicional dos bruxos é a de vagar pelo mundo caçando criaturas sobrenaturais perigosas - e recebendo pagamento por isso, seja do senhor da terra ou de um bando de aldeões assustados que reúnem suas parcas economias para pagar o homem que, esperam, poderá livrá-los da ameaça.
Demorei um pouco para entender a organização do livro. Os contos propriamente ditos estão entremeados com breves interlúdios, todos intitulados A Voz da Razão - I, II, III e assim por diante -, nos quais Geralt aparece hospedado num santuário da deusa Melitele, cuja superiora, Nenneke, parece ser uma amiga de longa data. O bruxo está se recuperando de alguns ferimentos sofridos no exercício da profissão, e, aparentemente, fazendo um balanço de sua vida - ajudado pelas observações de Nenneke, sempre sábias, mas, por vezes, dizendo coisas que ele não gosta de ouvir. Sendo assim, os contos são introduzidos como se Geralt, imbuído desse espírito reflexivo, estivesse recordando algumas de suas aventuras recentes.
E são aventuras para nenhum amante de fantasia medieval botar defeito. Ao longo de suas viagens, Geralt já se viu às voltas com todos os tipos de magia e maldições, com guerreiros brutais, com nobres inescrupulosos e, principalmente, com uma galeria bizarra de seres míticos - míticos para nós, pois, em seu mundo, são todos muito reais. São mencionadas desde criaturas conhecidas (pelo menos, conhecidas por quem gosta de mitologia e de fantasia), como quimeras, mantícoras, anfisbenas, dragões ou basiliscos, até outras de que eu nunca tinha ouvido falar e tenho pouca ou nenhuma ideia de como podem ser: quiquimoras, bosqueolos, tragarças, zygopteras, bobolacos, leshys, wippers e por aí vai. Para enfrentá-las, Geralt vale-se ora de suas perícias em magia, ora de uma boa e velha espada - pois, diferentemente do que acontece com magos e bruxos em outras sagas, os bruxos de Sapkowski também possuem habilidade com armas. E ele carrega duas espadas, uma de prata e outra de aço. A crença popular é a de que a primeira é para monstros, e a outra para seres humanos, mas Geralt jura que ambas são para os monstros, pois, embora a maioria deles seja vulnerável à prata, há os que precisam ser mortos com aço. Ele também se utiliza de poções que ampliam suas capacidades, mas não deixam de cobrar seu preço: aqui e ali ao longo do livro, há insinuações de que o uso frequente desses preparados pode ir, aos poucos, transmutando o bruxo para um ser diferente - humano na aparência, mas não totalmente em sua essência.
As histórias de Geralt de Rívia fazem lembrar muito os contos de fantasia publicados em revistas norte-americanas de fantasia e ficção científica durante as décadas de 30 e 40, escritos por gente como Fritz Leiber, Manly Wade Wellman, Jack Vance e outros - não que eu os tenha lido na época (risos), mas li alguns em coletâneas, e não ficaria surpreso de ficar sabendo que Andrzej Sapkowski é um fã e discípulo atento desse autores. Mas relaxem, pois o polonês não copia ninguém: embora alguns elementos de suas histórias remetam aos velhos mestres, ele tem um estilo muito pessoal e marcante, que o leitor rapidamente aprende a reconhecer. Há passagens engraçadas, dramáticas e, é claro, épicas, tudo isso combinado em doses adequadas para tornar a leitura a mais agradável possível, e, aqui e ali, inesperadamente, topamos com menções a contos de fadas que todos conhecemos, embora de uma maneira que provavelmente nunca imaginamos!... Só para aguçar a curiosidade, adianto que Um Grão de Veracidade, talvez o melhor conto do livro, é, todo ele, uma reinterpretação do clássico A Bela e a Fera (esqueçam a versão da Disney, peguem um bom livro de contos de fadas para relembrar o enredo), só que de uma maneira mais "realista", tentando mostrar como a história ter-se-ia desenrolado se a maldição que transformou um jovem nobre num monstro acontecesse num mundo habitado por seres humanos de carne e osso, com as conhecidas mazelas humanas - e não por personagens de conto de fadas com seu comportamento exemplar. E, por falar em personagens, na obra de Sapkowski, até mesmo os de uma história só, que aparecem e somem, são primorosos. Quanto aos que parecem estar ligados de forma mais duradoura ao destino de Geralt, como Jaskier, o bardo falastrão, ou a sedutora feiticeira Yennefer, esses são inesquecíveis.
Quem leu os grandes nomes da literatura de fantasia encontrará nas histórias de Geralt de Rívia a maioria dos elementos a que está acostumado: há seres humanos, há anões, há elfos - não há hobbits, mas, para compensar, existem gnomos e outras raças menores (menores tanto em número e influência quanto em tamanho). Porém, ninguém deve esperar encontrar elfos etéreos e perfeitos como os de Tolkien: aqui, elfos são seres bem terrenos, embora mais conectados à natureza que os humanos ou os anões. Podem ser violentos ou irracionais como qualquer um de nós, e ser movidos pelas mesmas paixões: luxúria, ganância ou vingança. Independentemente da raça, a maioria dos personagens parece perfeitamente apta a manter conversações espirituosas, pois os diálogos são um deleite à parte, cheios de frases perfeitas, observações sagazes e ditos que caem como uma luva. Dane-se se conversações reais não são assim: isto aqui é fantasia, e para que ela serviria se precisasse ser tão banal e tediosa quanto a realidade? Não digo que a literatura de fantasia não possa servir para nos levar a refletir sobre as coisas do mundo real (que o diga A História Sem Fim), mas sua função número um é mesmo a de nos permitir escapar momentaneamente desse mundo e entrar em outro mais empolgante: é a eficácia em atingir esse objetivo que diz se uma história de fantasia é boa ou não; a reflexão, se surgir, é lucro. E, para construir um mundo mais empolgante, vale tudo: pode-se lançar mão de magia, raças não-humanas, seres míticos, contos de fadas, e, sim, até mesmo de diálogos inteligentes! Andrzej Sapkowski dá uma aula de como usar todos esses elementos com absoluta maestria. Não vejo a hora de ler os próximos volumes.
A edição nacional está bem cuidada, como é tradicional nas publicações da Martins Fontes, que já nos trouxe tantas boas obras de fantasia, tanto as clássicas quanto boas novidades. A tradução foi feita direto do polonês por Tomasz Barcinski, e, talvez por uma falta de familiaridade do tradutor com as estruturas frasais mais usadas em português, nota-se uma tendência a quase sempre colocar o adjetivo antes do substantivo: "O escurecido céu por trás da janela foi cortado pela cegante luz de um relâmpago, logo seguido pelo potente estrondo de trovão. O temporal adquiria cada vez mais força e espessas nuvens deslizavam sobre Rinde". Com a repetição ao longo de todo o livro, isso começa a soar forçado e incômodo. No lugar do editor, eu teria uma conversa com o tradutor e com os revisores a respeito. Em todo caso, não é nada que impeça o leitor de apreciar as muitas e grandes qualidades da obra.
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