Não sei se Peter Pan ainda é muito popular entre as crianças da geração atual, mas a minha infância ele sem dúvida marcou, e bastante. Conheci o personagem (por que não confessar?) por meio do desenho animado da Disney… Acho que foi assim para a maioria das pessoas desde 1953, ano em que o desenho estreou. Só agora, já com 40 anos nas costas, é que fui ler o livro de James M. Barrie. Quando garoto, li a versão de Monteiro Lobato, publicada em 1930 ― bem antes de qualquer tradução do livro original para o português. Lobato era fluente em inglês, tendo, inclusive, traduzido desse idioma várias obras importantes, especialmente infanto-juvenis, como O Livro da Selva, de Rudyard Kipling. O engraçado é que, já sendo um tradutor renomado, ele não tenha sugerido aos editores com quem costumava trabalhar sobre a possibilidade de publicar no Brasil o livro de Barrie, ou talvez a sugestão não tenha sido aceita, não se sabe. Em todo caso, o que o criador do Sítio do Pica-pau Amarelo acabou fazendo foi escrever seu próprio Peter Pan, no qual, em vez de meramente traduzir a história, tratou de recontá-la à sua maneira. Isso resultou num divertido caso de "adoção", com o herói da Terra do Nunca contracenando com os personagens do Sítio em pelo menos duas ocasiões nos livros seguintes de Lobato (aliás, embora eu não tenha conhecimento de nenhuma prova disso, desconfio seriamente que Barrie e Lobato tenham trocado algumas cartas). Outro dado interessante (e este sim, concreto) é que Barrie doou os direitos autorais de Peter Pan ao hospital infantil de Great Ormond Street, em Londres, porque, como explicou a amigos e familiares na época, queria que sua obra beneficiasse os jovens de todas as maneiras possíveis. Bacana, não é? Embora a legislação que regulamenta a propriedade intelectual no Reino Unido preveja que uma obra caia em domínio público após 70 anos da morte do autor, aparentemente existem providências legais que podem ser tomadas para evitar isso, pois o hospital continua, ainda hoje, obtendo uma parcela significativa de sua receita graças à generosidade de Barrie, que faleceu em 1937.
Peter Pan, o personagem, é mencionado pela primeira vez no romance The Little White Bird ('O Passarinho Branco'), de 1902. Esse era um livro para o público adulto, e a menção a Peter Pan o faz parecer quase uma figura folclórica: um personagem conta a outro sobre o misterioso menino que não crescia e que, de vez em quando, podia ser encontrado brincando no parque de Kensington Gardens (onde hoje há uma estátua representando Peter). A aventura que todos conhecemos e amamos, entretanto, surgiu em 1904, como uma peça de teatro, depois adaptada na forma de livro, cuja publicação original foi em 1911.
Fazer um pequeno resumo do enredo é inevitável quando se está comentando um livro, por mais que seja desnecessário se esse livro for Peter Pan. Todos conhecemos o começo da história: Wendy, João, Miguel e seus pais, Sr. e Sra. Darling, formam uma típica família inglesa do início do século XX. Nada de diferente ou emocionante jamais aconteceu com qualquer um deles, até o dia em que a mãe percebe que há folhas de árvore no chão, junto à janela do quarto das crianças, como se alguém houvesse entrado por ali, o que não é possível, pois o quarto fica no terceiro andar. Wendy, interpelada a respeito, não se mostra surpresa, pois, embora até aquele momento ainda não tenha propriamente conversado com Peter Pan, ela sabe quem ele é, e também sabe que costuma ficar escondido atrás da janela para ouvir as histórias que a Sra. Darling conta aos filhos.
Surge aí uma questão que é mais importante do que parece: como é que Wendy já conhecia Peter Pan? A resposta está numa explicação que o autor havia oferecido pouco antes, sobre as muitas e diferentes "Terras do Nunca": existe uma dentro da cabeça de cada criança. Peter faz parte da Terra do Nunca de Wendy, e por isso ela já sabe tudo sobre ele, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. Não é de surpreender que Peter faça parte também das Terras do Nunca de João e Miguel, acostumados como eles estão a pensar como a irmã mais velha.
Quando Pan aparece em carne e osso, trazendo consigo a possibilidade de Wendy e os irmãos conhecerem de facto a Terra do Nunca, temos um momento-chave: o momento em que a linha que separa fantasia e realidade temporariamente se apaga, permitindo a alguns habitantes do nosso mundo (somente alguns: os que sabem de certos segredos ou conhecem as pessoas certas) passar, concretamente, para os domínios da imaginação. Para o leitor de hoje, pode parecer que essa ideia, embora nunca deixe de ser sedutora, já é conhecida de sobra, por haver tantas histórias baseadas nela, incluindo clássicos como A História Sem Fim e As Crônicas de Nárnia, mas convém não esquecer a época em que Barrie viveu e escreveu: Peter Pan foi provavelmente uma das primeiras obras modernas de fantasia a lançarem mão desse recurso.
A Terra do Nunca é algo como o parque de diversões perfeito para crianças que não ligam de arriscar a vida ― pois, por estranho que pareça para quem está acostumado com a versão adoçada da Disney, sangue e morte fazem parte do dia a dia de Peter e seus amigos. O narrador menciona, com a indiferença de quem faz uma observação sobre o tempo, que "o número de meninos na ilha, evidentemente, varia de acordo com quem é morto, e coisas assim". Além dos meninos, os outros habitantes da ilha são animais selvagens de tipo não especificado, as esquivas e relativamente inofensivas sereias, uma tribo de índios ferozes com os quais Pan e sua gangue mantêm uma relação de respeitosa inimizade, e, é claro, os piratas, comandados pelo legendário capitão James Gancho.
Ao falar sobre os piratas, o autor não faz cerimônia para usar referências históricas reais: vários nomes são citados, a maioria de piratas que existiram mesmo, e também o do rei Carlos II, tomado como referência cronológica ― um caso raro em que a história do mundo fictício e a do real se misturam, sugerindo que a Terra do Nunca deve ficar em algum lugar "físico", afinal de contas (como devem se lembrar, pouco antes havia sido dito que ela ficava nas cabeças das crianças; a dubiedade provavelmente é intencional). Chega-se a dizer que, antes de se tornar capitão, Gancho serviu como imediato sob o comando do bem real Barbanegra ― Edward Teach (?-1718), talvez o mais famoso pirata de todos os tempos.
Sobre Gancho, eu realmente não esperava ter de escrever isso, mas preciso dizer a verdade: trata-se do personagem mais carismático do livro, na verdade o único personagem interessante. Peter Pan, o "herói", não passa de um moleque irritante, bobo, superficial, convencido e egoísta ― e não me venham dizer que todo garoto dessa idade é assim: eu próprio tenho dois sobrinhos, agora já crescidos, que, quando tinham a provável idade de Pan, eram muito mais dignos de admiração que ele (talvez eu não devesse encher tanto a bola daqueles garotos, que de vez em quando leem o meu blog, mas enfim… Não estou dizendo mentira nenhuma!). Além do mais, isso de "idade" é relativo quando estamos falando de alguém que não envelhece ― afinal, imagino que, mesmo sem nunca ficar mais alto ou trocar a dentição, um cara que já viveu talvez séculos tenha o dever de ter acumulado alguma sabedoria. Pan não acumulou nenhuma. Para não dizermos que não há traço algum de complexidade em sua personalidade, ele sofre de um conflito íntimo: embora goste de ser visto como o bambambã, o que nunca precisa de ninguém, e despreze os adultos em geral e as mães em particular, Peter tem momentos de fragilidade, nos quais precisa daquele carinho incondicional que só uma mãe (biológica ou não) pode oferecer. Nesses momentos, é Wendy quem o conforta, pois, embora isso vá surpreender e talvez até chocar muita gente, é isso o que ela é para ele: uma mãe. Jamais uma namorada, noção que a mente infantil e simplória de Peter nem sequer concebe.
Quanto aos outros personagens, há pouco a dizer. Wendy deixaria as feministas irritadas, pois, com todas as possibilidades de aventura oferecidas pela Terra do Nunca, só se interessa em brincar de casinha, ainda que com meninos reais fazendo as vezes das bonecas. Os Meninos Perdidos parecem todos levemente retardados, mas talvez não seja culpa deles, pois, como é dito em vários momentos ao longo do livro, são proibidos de saber qualquer coisa que seu chefe não saiba ou de serem melhores que ele seja no que for ― e, com um parâmetro desses, não dá para exigir muito dos coitados. João e Miguel, por fim, são duas perfeitas nulidades, que só ganharam um lugar na história por serem irmãos de Wendy. O capitão Gancho é diferente: trata-se de um homem de boas maneiras e de certa cultura, educado num colégio inglês tradicional, cruel mas também valente, dotado de senso de honra (tudo bem, um senso de honra um tanto "flexível", como o de todo pirata) e dado a ter momentos contemplativos, coisa que seu arqui-inimigo vestido de verde nem saberia o que significa.
Barrie dá a seu bando oportunidade para inúmeras aventuras, das quais apenas algumas chegam a ser narradas, e não preciso falar sobre elas, pois qualquer criança mais ou menos esperta (e também os que já foram crianças) se lembrará de no mínimo uma boa parte, seja graças ao desenho ou a alguma das muitas versões infantis impressas que o livro já ganhou, isso para não falar no surpreendentemente empolgante filme Hook (1991), com Dustin Hoffman como o capitão Gancho e Robin Williams na pele de um Peter Pan finalmente adulto (!). A parte mais significativa, porém, é, de longe, o capítulo Você Acredita em Fadas?, em que a fada Sininho salva a vida de Peter ao beber o veneno que Gancho havia destinado a ele, e então, às portas da morte, só tem uma esperança de salvar-se: a condição é que um número suficiente de crianças mundo afora ainda acredite em fadas. A imaginação ainda se afirma como uma das forças mais poderosas que existem, mesmo nesse mundo moderno, que lhe é tão pouco propício, e esse trecho de Peter Pan é, sem dúvida, uma das passagens mais famosas a celebrarem esse fato, em toda a história da literatura de fantasia. Curiosamente, esse momento-chave do livro foi abolido na versão da Disney, pois nela Gancho tenta matar Peter usando uma bomba em vez de veneno, e Sininho o salva apenas alertando sobre o perigo.
O final de Peter Pan é ao mesmo tempo esperançoso e melancólico. É esperançoso porque nos deixa com a firme convicção de que a imaginação sempre existirá no mundo, e melancólico porque afirma que a participação de cada um de nós nesse milagre cessa, de forma inexorável, assim que deixamos a infância ― um ponto de vista com o qual eu nunca vou concordar. Para mim, um ser humano (de qualquer idade) só perde o acesso aos reinos da fantasia quando permite, voluntariamente, que suas capacidades imaginativas definhem e morram. Mesmo assim, o final do livro tem sua beleza e lirismo, e deixa o leitor com vontade de refletir.
Como já deve ter notado quem me leu até aqui, não achei Peter Pan a oitava maravilha do mundo; não vou me derramar em elogios só porque se trata de um clássico. Com base nas versões que conhecia, e no que sabia sobre o livro, eu esperava bem mais dele. Entretanto, ele não chegou a ser um clássico à toa ― tem suas qualidades, que não são desprezíveis. Além disso, não se deve cometer o erro de esquecer o fator linha do tempo. Quando este livro foi escrito, a literatura de fantasia como a compreendemos hoje mal dava seus primeiros passos; praticamente não havia onde se apoiar, e a inspiração só podia vir direto da mitologia e do folclore, raízes originais da literatura de imaginação. É fato que qualquer leitor que goste de fantasia e tenha uma experiência razoável com o gênero, sem dúvida poderá citar ao menos um punhado de obras que superam Peter Pan em anos-luz, mas que foram escritas muito depois, e, portanto, têm sua dívida para com a obra de James Barrie, seja porque ela foi uma influência, ou apenas porque abriu um caminho.
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