segunda-feira, junho 15, 2015

A Companhia Negra

Durante séculos, a tropa mercenária conhecida como a Companhia Negra construiu para si uma sólida reputação que se estendeu por vários reinos. Sua eficiência no campo de batalha e seu empenho em honrar os contratos firmados fizeram-na respeitada e temida. Porém, os melhores tempos da Companhia parecem ter passado. Reduzidos em número e em prestígio, seus remanescentes, atualmente, trabalham para o Síndico (governante) da cidade portuária de Berílio, pouco tendo a fazer além de ajudar a manter a ordem, o que, como na maioria das cidades portuárias, às vezes se torna um problema.

Notícias de guerra chegam de longe. A Dama, uma feiticeira de enorme poder, derrotada em eras passadas, está de volta, ressuscitada graças às artes de alguns de seus seguidores, conhecedores de magia necromântica. Nos tempos antigos, a Dama e seu amante, outro poderoso feiticeiro conhecido como o Dominador, haviam derrotado dez de seus mais fortes inimigos e aprisionado suas almas, obrigando-os a se tornarem seus servos; esses são conhecidos como os Tomados, e a mesma magia que trouxe a Dama de volta à vida os trouxe também – se é que dá para chamar seu estado de "vida". A Dama retoma seu reinado de tirania e sua busca por mais poder; além disso, ela quer impedir que o Dominador desperte também. Opondo-se a ela, há uma força rebelde, encabeçada por um grupo de magos chamado o Círculo, e a guerra está se espalhando como fogo pelo continente.

Inesperadamente, um gigantesco navio de aparência sinistra surge em Berílio, e quem está no comando é ninguém menos que um dos Tomados, que atende pelo nome de Apanhador de Almas. Esse servo da Dama faz uma proposta ao comandante da Companhia Negra (que todos os seus soldados conhecem simplesmente como o "Capitão"; usar o próprio nome parece ser um costume raro na Companhia): quer que se juntem a ele a serviço de sua senhora, indo ajudar a enfrentar os rebeldes. A proposta não pode ser aceita, já que o contrato feito com o Síndico de Berílio ainda está em vigor, mas o empecilho desaparece poucos dias depois, quando o Síndico é morto durante uma revolta – com o detalhe de que não são os revoltosos os responsáveis por sua morte, e sim uma criatura denominada forvalaka, uma espécie de vampiro com características felinas e poderes transmórficos (no folclore do leste europeu, onde a lenda dos vampiros teve origem no nosso mundo, eles eram chamados de vorkolakas; pode não ser coincidência). O forvalaka fora aprisionado, com outros de sua espécie, numa tumba na necrópole de Berílio, séculos atrás, e foi libertado apenas dias antes, quando um raio caído de um céu claro destruiu a placa de pedra onde estava gravado o feitiço de confinamento que o mantinha preso. O comportamento de ir atrás de uma vítima específica – e até mesmo invadir uma fortaleza bem guardada para apanhá-la – em vez de simplesmente procurar por sangue onde fosse mais fácil, também não é exatamente típico. Ou seja, parece ter havido uma conspiração (seja das circunstâncias ou de alguém mais concreto) para permitir, na verdade quase obrigar a Companhia Negra a entrar para o serviço da Dama.

O narrador da história, Chagas, é também um dos personagens mais interessantes. Ele responde, ao mesmo tempo, pelas funções de médico e de cronista da Companhia, responsável pelos registros históricos – tudo isso além de ser um soldado combatente. Mais instruído que a maioria dos outros, Chagas percebe as manipulações que existem por trás de cada lance da guerra, e, embora às vezes seja impossível não se perguntar se está lutando do lado certo, há um ponto sobre o qual ele não tem ilusões: aquilo não é uma luta entre o "bem" e o "mal". A Dama é tirânica, mas os rebeldes tampouco são anjos. Os dois lados cometem crimes. É em meio a tudo isso que ele e seus companheiros terão de tentar sobreviver, fazer jus a seu pagamento, e manter intacta a honra da Companhia Negra.


Talvez o diferencial de Glen Cook em relação a outros autores de fantasia seja o fato de que, embora suas histórias se passem num mundo imaginário, esse mundo não é idealizado ― seus personagens enfrentam uma realidade bem dura. No mundo deles, tal como no nosso, miséria e criminalidade estão quase por toda parte, é arriscado confiar na honra do inimigo (e, não raro, até na dos próprios aliados), e a guerra tem muito pouco de heroísmo, emoção ou glória, sendo composta de uma porcentagem muito maior de medo, brutalidade e sujeira. O autor (nascido em 1944) já foi fuzileiro naval, o que explica sua familiaridade com ambientes militares e, provavelmente, sua popularidade entre o pessoal das forças armadas, tanto nos Estados Unidos quanto nos outros países onde sua obra foi publicada. Ao ser interpelado sobre esse assunto certa vez numa entrevista, Cook disse que seus personagens e algumas situações eram inspirados em pessoas que conheceu e em eventos que testemunhou durante seu serviço militar, o que fazia com que suas narrativas tivessem um tipo de realismo que não é possível em histórias de autores que só possuem conhecimento livresco sobre a vida na caserna. Desconfio, também, que a experiência militar tenha levado Cook a desenvolver um gosto exacerbado por prontidão e praticidade, e que por isso ele não goste de gastar tempo pensando em nomes próprios de sonoridade exótica, o que explicaria o motivo pelo qual, em A Companhia Negra, tanto os personagens quanto os lugares são nomeados com palavras comuns: os personagens são Elmo, Corvo, Caolho, Capitão, Tenente, Lindinha, Manco, Sussurro; as cidades, Berílio, Ferrugem, Geada, Rosas, Celeiros, Lordes, Talismã e por aí vai.

A Companhia Negra, primeiro volume da série de mesmo nome, foi publicado originalmente em 1984, e, portanto, pode ter influenciado os criadores do jogo de computador Myth: the Fallen Lords, lançado treze anos depois – eu senti um clima muito parecido em ambos, talvez por terem em comum o fato de representarem guerras nas quais as tropas tradicionais ainda são essenciais, mas o uso de magias potentes pode fazer a balança pender para um ou outro lado. Tanto o livro quanto o jogo tentam levar para a guerra medieval algo do terror das guerras modernas, introduzindo armas capazes de matar muita gente de uma vez só, sem que faça qualquer diferença a força, a coragem ou a perícia individuais, não mais que o fato de alguém usar as melhores armas e armaduras. Não há lança-chamas ou grandes bombas, mas há magias que causam efeitos semelhantes aos dessas armas, e até piores.

Pessoalmente, não gostei tanto assim de A Companhia Negra: ele vale o tempo que toma, mas não chega a empolgar. O que o autor se propõe a fazer é contar a história de uma guerra, mas, apesar do indiscutível realismo, poucas vezes ao longo do livro temos um vislumbre do que a guerra de fato significa para os seres humanos de carne e osso (e notem que eu não disse que isso não aparece: apenas que aparece pouco). Volta e meia, a narrativa escorrega para uma simples enumeração de batalhas travadas ali e acolá, de cidades conquistadas ou perdidas por cada um dos lados – tudo inventariado de forma banal, sem que o leitor fique sabendo como foram essas batalhas, com exceção da grande batalha final em que o exército rebelde em massa ataca a fortaleza da Dama, essa sim descrita em pormenores. Não por acaso, o que mais cativa em todo o livro é o pequeno punhado de personagens cujas individualidades são um pouco mais exploradas. Homens como Corvo, um indivíduo enigmático, capaz de ser sanguinário ou gentil – ele chega a adotar Lindinha, uma pequena órfã da guerra; Elmo, um sargento veterano, homem ao mesmo tempo corajoso e ponderado; Caolho e Duende, magos de combate da Companhia, que brigam como cão e gato (com direito a confrontos de truques mágicos que resultam em verdadeiros shows para os companheiros), mas, no fundo, são grandes amigos; Calado, também mago de combate, de cujos lábios ninguém jamais ouviu uma palavra; e o próprio Chagas, homem de certa cultura e a memória da Companhia. São eles os responsáveis pela maior parte dos bons momentos.

Enfim, eu tive a sensação de estar diante de um mundo fictício e de um enredo geral que poderiam render histórias grandiosas, mas, pelo menos neste primeiro livro, na minha opinião, isso não chegou a acontecer. Pode ser que os volumes seguintes sejam mais empolgantes; se tiver oportunidade de ler, direi o que achei.

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