quarta-feira, dezembro 19, 2018

Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo

Quer dizer então que você está numa situação na qual precisa demonstrar inteligência e "espírito independente", mas não sabe muito bem como fazer isso? Precisa fazer uma média com aquele seu professor marxista de História ou de sociologia? Quer causar uma boa impressão naquela rodinha de colegas "intelectuais" que se reúnem no bar da faculdade e com quem você está tentando se enturmar? Quer "lacrar" numa discussão na internet? Nada mais fácil: ataque a Igreja Católica. Nem precisa entrar em controvérsias teológicas (aliás, isso nem é aconselhável, pois o seu "público-alvo", incluído aí o professor marxista, não entenderia nada): basta falar de como ela incitou o ataque (gratuito e sem provocação, é claro) aos coitadinhos dos muçulmanos nas Cruzadas, matou milhões de pessoas inocentes (todas inocentes, naturalmente) na Inquisição, tramou esquemas manipulando reis e Estados, só para ficar mais rica e poderosa, empatou o progresso da ciência durante séculos, legitimou a escravidão declarando que os negros "não tinham alma"… Isso são apenas alguns exemplos. A lista de distorções, meias-verdades, exageros e simples mentiras deslavadas é longa e você pode escolher à vontade sem perigo de errar. Basta enfileirar duas ou três observações (pouco importa o quão tolas e sem fundamento: sendo contra a Igreja, qualquer coisa serve, e não é preciso provas) sobre qualquer um desses pontos, e pronto: você deu a impressão de que é inteligente e estão garantidos os aplausos.

Muito bem, mas e a verdade? A Igreja Católica, praticamente sozinha, foi a responsável por manter a civilização ocidental viva quando o Império Romano desmoronou e povos bárbaros tomaram conta da Europa; mais tarde, também foi ela, e ainda praticamente sozinha, quem conseguiu domar esses mesmos povos bárbaros e criar condições para que a civilização voltasse a florescer – e não torçam o nariz quando falo em civilização: barbárie só é bacana em história do Conan. Dentro dos muros de mosteiros e abadias (católicos, não é demais lembrar), bibliotecas bem organizadas preservaram o conhecimento do mundo greco-romano, em livros que os bárbaros teriam queimado sem pensar duas vezes… Que digo eu? Sem pensar sequer uma vez. Foi dentro desses mesmos muros que a ciência moderna deu seus primeiros passos, sim senhor. Foi em torno da fé católica que tribos e grupos étnicos que não tinham mais nada em comum se uniram para formar os primeiros Estados nacionais da forma como os entendemos. Hospitais e universidades? Devemos à Igreja Católica. Devo continuar? Poderia ir longe, mas creio que basta por enquanto.

Este livro, escrito por um sujeito chamado John Zmirak (uma das principais cabeças por trás do site e jornal The Stream), mostra mais uma vez que sempre há coisas a aprender, mesmo sobre assuntos que acreditamos já dominar. Não que eu alguma vez tenha alimentado a ilusão de saber tudo sobre a Igreja Católica, apesar de haver congregado nela durante toda a minha vida, o que, agora, já significa um tempinho bem considerável. Porém, a Igreja é uma realidade imensa e complexa, que não se pode ver ou abarcar com a inteligência de uma vez só, e há de fato um ou dois temas específicos ligados a ela que eu acreditava conhecer bem – até agora. A oportunidade de aprender mais sempre me deixa contente, e ainda mais se for num livro como este, escrito do jeito que me agrada: com uma levada dinâmica, um assunto conduzindo ao outro com fluência, mas sem nunca perder o foco, numa linguagem rica e elaborada, sem pedantismo desnecessário, e valorizada, nesta edição, por uma tradução de qualidade, coisa que, infelizmente, vem se tornando cada vez mais rara em edições brasileiras – parabéns e obrigado ao tradutor Raul Martins (OK, há alguns problemas de português aqui e ali, mas nada que comprometa). Por outro lado, recomendo que desconsiderem a capa de péssimo gosto, feita por um tal Fernando Mena. O que dá pena é saber que o livro será lido mais por católicos mesmo, e dificilmente chegará às mãos daqueles que mais precisariam lê-lo. Mas vamos ver o lado bom: há tantos assuntos importantes aqui, e esmiuçados de forma tão eficiente, que quase nenhum católico do planeta poderá percorrer estas 367 páginas e, ao final, dizer que não leu nada que já não soubesse.

Nota-se que Zmirak se esforçou, entre outras coisas, para dar ao leitor um panorama o mais atual possível da situação vivida pela Igreja (talvez um cacoete trazido do jornalismo), o que terá a desvantagem de deixar parte do livro datada depois de alguns anos. Por outro lado, a maior parte dele trata de temas que serão sempre atuais – e mesmo aquilo que ficar datado terá o valor de registro histórico deste turbulento início de milênio. Como boa parte dos católicos mundo afora, Zmirak não parece lá muito contente com certas atitudes do atual papa, Francisco. Partindo disso, o autor aborda seu primeiro ponto: a noção equivocada que muita gente (inclusive muitos católicos) tem, de que o fiel católico tem por obrigação aceitar tudo o que o papa disser sobre qualquer assunto – e, mais equivocado ainda, de endossar tudo o que ele fizer. Os pseudointeligentes aos quais eu me referia no início do texto ouvem falar no dogma da infalibilidade papal e, sem se darem ao trabalho de procurar saber o que isso realmente significa, abrem logo a boca: "Mas cooomo? Como assim, o papa é infalível? E todos os papas corruptos e assassinos que existiram? Eles também eram infalíveis?" Que fique claro: a infalibilidade é, de fato, um dogma da Igreja, mas só se aplica ao que o papa declarar ex cathedra, quer dizer, às suas declarações oficiais sobre a fé e a moral – e somente sobre esses assuntos. Ao fazer esse tipo de declaração, o papa está amparado pelo Espírito Santo, que, no interesse de toda a Igreja, o preserva do erro… Desnecessário dizer que isso é um artigo de fé, o que significa que é algo em que a pessoa simplesmente acredita ou não acredita – e, se você não é católico, é muito provável que não acredite. Em todo caso, as declarações papais a respeito de fé e moral têm-se mostrado de uma notável constância e consistência ao longo desses vinte séculos repletos de chuvas e trovoadas de todos os tipos.

Passando para outros temas, entretanto, a coisa toda é diferente. Se o papa quiser emitir opiniões sobre política ou ecologia, é claro que ele pode, mas essas serão meramente suas opiniões, com as quais nenhum de nós tem a obrigação de concordar, e, no que se refere a sua conduta pessoal, ele é tão falível e propenso ao erro quanto qualquer outro homem. Os papas indignos registrados pela História tomaram o cargo, ou foram colocados nele, por meio de manobras escusas, e unicamente por causa do poder político que ele trazia junto; não estavam minimamente interessados em espiritualidade e não me consta que tenham feito declarações oficiais sobre fé e moral – o que, com a licença dos incrédulos, nós acreditamos ser mais um indício da ação do Espírito Santo. Mais ainda: bulas, encíclicas e demais documentos redigidos pelo papa, ou por ele determinados, destinam-se a esclarecer pontos da fé e nortear a conduta da Igreja e dos fiéis diante de novas circunstâncias trazidas pelas constantes mudanças que o mundo atravessa. Consistem em orientação, não são declarações ex cathedra, e não são infalíveis. O fiel católico deve prestar-lhes atenção e levá-los em grande consideração, como o faria com o conselho de qualquer pessoa sábia e instruída, mas não é obrigado a aceitar tudo o que contenham. Por fim, há que se observar que declarações papais apoiadas no dogma da infalibilidade são muito raras: o dogma (que já existia de forma implícita desde os primeiros tempos da Igreja) foi oficialmente proclamado durante o concílio Vaticano I, que ocorreu em 1869-70, e, desde então, foi aplicado apenas duas vezes.

O livro prossegue tocando em pontos que, por vezes, se mostram espinhosos para os católicos de hoje; é claro que não tem como oferecer soluções para a maioria deles, mas consegue esclarecê-los bastante e, de modo geral, fornecer um lembrete de como deveríamos agir em relação a cada uma dessas questões, caso queiramos ser católicos de verdade, e não meros "católicos de IBGE". Não que isso seja fácil, é claro. A questão da contracepção, por exemplo: historicamente, a Igreja sempre a considerou reprovável, e até hoje não aprova o uso de coisas como pílula e camisinha – mas não venham querer culpar a Igreja por haver tanta gente por aí transando sem proteção: se o povo ligasse para o que a Igreja diz sobre vida sexual, manteria abstinência até o casamento e fidelidade a partir daí, de modo que o risco das doenças venéreas praticamente não existiria e a tal proteção seria desnecessária. Não vou ser hipócrita e dizer que sempre segui esses preceitos à risca (sou solteiro e já mantive relacionamentos íntimos, sim; como Zmirak, assumo minha condição de mau católico), mas o fato é que, embora ele possa parecer nada mais que um moralismo ultrapassado, na verdade é a única orientação que a Igreja pode efetivamente oferecer sobre esse assunto sem trair alguns de seus princípios mais fundamentais – o primeiro deles sendo o de que não estamos neste mundo a passeio: há um Deus que colocou uma ordem nas coisas e espera de nós que ajamos em conformidade com ela. O problema com os contraceptivos, na visão da Igreja, é que eles desvinculam o sexo da função que o Criador lhe atribuiu, que é a da reprodução. Conhecendo a natureza humana (e, creiam, a natureza humana é algo que a Igreja, ao longo desses dois mil anos, teve oportunidade de conhecer muito bem), fica evidente para qualquer um que, uma vez rompido esse vínculo, o sexo vira um reles parque de diversões – e alguém aí vai negar que é exatamente assim que a sociedade moderna e secularizada o compreende? A Igreja não pode compactuar com isso e continuar sendo a Igreja. Ponto. Ninguém jamais disse que ser católico era fácil.

Por outro lado, mesmo o sexo dentro do casamento tem as suas complexidades. A Igreja não pretende que todo ato sexual entre marido e mulher resulte num filho, mas ensina que, se e quando isso acontecer, a criança gerada deve ser recebida com amor e educada com responsabilidade. Isso vale hoje como valia há quinhentos, mil ou dois mil anos. O que mudou foram outras coisas. Em séculos anteriores, controlar a quantidade de nascimentos não era uma preocupação, nem para a sociedade, nem para as famílias. Um casal dificilmente poderia ter filhos demais: tê-los em grande número era uma necessidade. Era preciso ter uns dez para que houvesse ao menos uma boa chance de que dois ou três chegassem à idade adulta. Além disso, nas sociedades eminentemente rurais desses tempos, o custo de se criar um filho era baixo, já que só era necessária uma educação rudimentar, e ele podia, desde tenra idade, começar a ajudar os pais no trabalho. Ocorre que, de lá para cá, o progresso da medicina e a melhoria das condições de vida da população em geral fizeram as taxas de mortalidade infantil despencarem, ao mesmo tempo em que a urbanização da sociedade, com a consequente demanda por profissionais cada vez mais especializados, passava a exigir um outro tipo de educação – mais demorada e mais cara. Em resumo: se, como no exemplo acima, o casal tivesse dez filhos, agora era provável que todos os dez sobrevivessem, e todos precisavam ir para a escola. Nessa nova realidade, não seria razoável da parte da Igreja censurar os casais que quisessem limitar os nascimentos na família ao número de filhos que pudessem efetivamente alimentar e educar. Mas, nesse caso, como fica? Se você só pode criar três filhos e já tem os três, deve simplesmente parar de fazer sexo com sua esposa ou marido? A resposta, que poderá surpreender a muitos, é um redondo não, pois, ainda que a função natural do sexo seja a reprodução, ele não pode ser reduzido apenas a isso: é também parte importante da vida e da intimidade de um casal. Para resolver o problema, a Igreja recomenda o que chama de métodos naturais, que consistem basicamente em calcular os períodos férteis da mulher e evitar fazer sexo durante os mesmos; se isso funciona na prática, é controverso. Além disso, uma mudança de entendimento não parece impossível, ao menos não desde que o papa Bento XVI admitiu que o uso da camisinha é aceitável em certas situações, o que sinaliza que o problema não é a camisinha em si, mas o modo como ela vem sendo usada e propagandeada: como um instrumento para desvincular o sexo de qualquer tipo de compromisso ou responsabilidade.

Sobre não ser fácil ser católico, como dito acima, Zmirak escreve: "É claro, há muitos pontos nos quais a fé cristã tradicional, e sobretudo em sua forma católica, é frustrante e exigente. Não precisaríamos do sacramento da Confissão se viver uma vida cristã nos fosse algo natural, como respirar, comer ou fazer valer nossa vontade às custas dos outros." O livro está coalhado de espetadas certeiras e cruamente realistas como essa. Ao longo das últimas décadas, e particularmente no ocidente, a mídia e uma educação tendenciosamente torta têm tentado criar nas mentes a ideia de que a natureza é sempre o modelo de perfeição e de que o melhor que fazemos é obedecer sempre a ela, o que significa sempre seguir nossos instintos – mas uma análise um pouco mais profunda da questão leva-nos a perceber que isso equivaleria a assinar embaixo de atos como roubo, assassinato e estupro, que são, sim, tendências naturais em primatas como nós, como o estudo do comportamento dos nossos primos quase irmãos, os chimpanzés, não deixa dúvida. O que nos faz seres racionais, capazes de respeitar os direitos uns dos outros e de viver em sociedade, é a nossa capacidade de contrariar os nossos instintos, quando eles nos querem levar a ter comportamentos antissociais. Em outras palavras, nossa capacidade de decidir quando obedecer à natureza e quando lutar contra ela – o que sempre foi uma das bases do ensinamento da Igreja.

Afora as questões que dizem respeito a todo católico em qualquer lugar do mundo, Zmirak (talvez de forma não premeditada, o que torna tudo mais revelador) acaba por nos oferecer um vislumbre de como é ser católico nos Estados Unidos, país predominantemente protestante, onde, não raras vezes ao longo da História, professar a fé romana foi fator de discriminação: dependendo da época e da região do país, ser católico não era mais fácil, nem mais seguro, que ser negro ou judeu. Além disso, o autor expõe seu parecer, na qualidade de católico, sobre diversas questões da realidade do país, também aplicáveis, em maior ou menor grau, a outros países. A ideia do presidente Trump de construir um muro na fronteira dos EUA com o México, por exemplo, pode ser uma maluquice pra ninguém botar defeito – mas a imigração descontrolada é um problema real, não mera paranoia. E, no entanto, o papa Francisco costuma falar como se fosse um dever moral de toda nação próspera receber de braços abertos qualquer imigrante que a procure, isso apesar de o próprio Catecismo da Igreja Católica prever que esse acolhimento deve ocorrer "até onde for possível", e não parece descabido interpretar esse "até onde for possível" como significando que uma nação não deve descuidar de seus próprios cidadãos porque precisa se virar com um número absurdo de imigrantes. Zmirak se alonga, nessa parte, discorrendo sobre os efeitos da política de imigração sobre a sociedade dos EUA, o que pode parecer sem relação com a realidade dos não-estadunidenses, mas não é bem assim – primeiro, porque muito do que acontece lá também acontece em outros países, e segundo, porque, queiramos ou não, o que afeta os EUA também nos afeta indiretamente.

E, se a torrente de imigração preocupa os norte-americanos, o que dizer, então, da Europa? Os europeus estão tendo cada vez menos filhos, pelos motivos discutidos acima, e isso parece ser uma questão de mentalidade, fora do alcance da influência quer da Igreja, quer do Estado, pelo menos a curto prazo. Enquanto isso, levas intermináveis de imigrantes chegam todos os anos – a maioria deles oriundos de países muçulmanos. É claro que, em sua vasta maioria, são pessoas de bem, que querem apenas encontrar trabalho e construir prosperidade para si e suas famílias… Mas nem todos, como mostra o fato de muitos dos atentados "em nome do Islã" praticados nos últimos anos na Europa terem sido obra de pessoas que entraram nela legalmente; em alguns casos, até mesmo de filhos de imigrantes, que já nasceram no novo país, têm cidadania nele – e, mesmo assim, o atacaram. Mesmo que não houvesse o perigo do terrorismo para ser levado em conta, é inevitável nos perguntarmos que efeitos terá, a longo prazo, essa entrada maciça de muçulmanos na Europa, principalmente no aspecto cultural. Em palavras simples: o que isso fará com a identidade do ocidente? Na Idade Média, a Igreja convocou as Cruzadas, que, embora execradas pela corja politicamente correta, salvaram nossa civilização… Acontece que, como costumo dizer, os cruzados contavam, ao menos, com a vantagem de saber quem era o inimigo e onde ele estava. Hoje, o inimigo pode ser qualquer um, em qualquer lugar.

Não estou de acordo com todos os pontos de vista de Zmirak, é claro. A defesa veemente que ele faz do direito à posse e ao porte de armas, por exemplo, parece ter muito mais a ver com sua formação de americano-de-classe-média-que-sempre-vota-nos-republicanos que com a fé católica – e, antes que alguém me interprete mal, esclareço que não sou radicalmente contra esses direitos, nem irrestritamente a favor deles: como em tudo na vida, o meio-termo é a melhor coisa. O modelo norte-americano, que permite que praticamente qualquer um compre uma arma como quem compra um guarda-chuva, é insensato, mas tampouco parece certo negar às pessoas qualquer meio prático de defender sua integridade física e a de sua família, bem como seu patrimônio. Por isso, acho válido que se tenha armas, desde que o controle seja rígido, constante, e inclua todos os testes psicológicos possíveis, que deveriam ser repetidos com frequência. Se você quer ter uma arma, prove que é equilibrado e responsável o suficiente para fazer bom uso dela – que não é apenas mais um babaca que se acha um "cidadão correto" e sairá dando tiros na primeira discussão de trânsito em que se envolver. Por outro lado, um dos capítulos mais interessantes do livro é aquele no qual Zmirak se dedica a desfazer uma ideia muito comum – tão comum, de fato, que um número enorme de católicos acredita nela: o de que o católico, e o cristão em geral, deve ser um pacifista, incapaz de matar um mosquito, não importa a situação. O papa Paulo VI liquidou o assunto (ou assim deveria ter sido) ao declarar que o cristão ama a paz, mas não é pacifista. "Paz a qualquer preço" é uma ideia ingênua (na qual, confesso, eu mesmo já acreditei); a posição da Igreja, e, a meu ver, a de qualquer pessoa realista, é a de que, embora a guerra seja sempre um mal, há momentos na História em que ela é o mal menor. Junto com as questões das armas e da guerra, Zmirak debate também a da pena de morte – assunto esse no qual faço grandes ressalvas aos pontos de vista que ele expressa, embora precise admitir que o faz de forma coerente e bem argumentada.

O capítulo X trata da relação entre a fé católica e a ciência – e não deixa sobrar nada da noção, tão difundida, de que a Igreja fez e faz tudo ao seu alcance para impedir o progresso científico e manter a humanidade eternamente aprisionada numa bolha de obscurantismo. Esse é um dos porretes favoritos dos que querem bater na Igreja, e podemos retraçar sua origem até os filósofos iluministas da segunda metade do século XVIII – eles mesmos, os mentores intelectuais da Revolução Francesa, cujos virulentos ataques ao cristianismo e particularmente ao catolicismo tinham clara intenção política, pois o apoio da Igreja era um dos pilares do poder dos reis, o que levava tais filósofos a se sentirem na obrigação de tentar demoli-la. Destacam-se nomes como Diderot, Montesquieu e, principalmente, Voltaire (1694-1778), consumado hipócrita que escrevia manifestos contra a escravidão que levavam seus leitores às lágrimas e, enquanto isso, investia suas economias pessoais em ações de navios negreiros. Não por acaso, foi Voltaire quem inventou e alardeou o quanto pôde que a Igreja afirmava que os negros não tinham alma e que, por isso, não havia problema em escravizá-los – estupidez essa até hoje repetida à exaustão quando alguém que acha que sabe algo sobre alguma coisa quer parecer "crítico" e inteligente. Um pouco de pesquisa séria e imparcial (o que, claro, é pedir demais a esse tipo de gente) revela a realidade: a escravidão era simplesmente algo que sempre tinha existido e que a Igreja não tinha poder para mudar, ao menos não sozinha; sendo assim, fazia o que estava ao seu alcance, exortando a quem tivesse escravos para que os tratasse de forma justa, sob pena de pecar gravemente – o que pode parecer ridículo para a mentalidade atual, mas constituía preocupação séria para a maioria das pessoas naquela época. E tem mais: será que ninguém se pergunta por que é que a Igreja sempre insistiu para que todos os escravos fossem batizados? Se fizesse parte da crença católica que os negros não tinham alma, batizá-los seria como batizar bezerros – inútil além de sacrílego.

Mais uma vez, divaguei: a maior parte do que vai no parágrafo anterior não está no livro de Zmirak, que só toca muito de passagem nos filósofos iluministas; mesmo assim, trata-se de informação que considero relevante, de modo que fica como está. Voltemos agora ao capítulo X, do qual eu estava começando a falar.

O fato nu e cru, meus amigos, é que a Igreja não empatou o progresso científico – ela o promoveu, e Zmirak se sai muito bem em mostrar que, apesar das notáveis realizações intelectuais de todas as civilizações antigas, foi necessária a cosmovisão cristã da Europa medieval para que a ciência experimental pudesse nascer. Enquanto os antigos enxergavam o universo como uma realidade essencialmente caótica, na qual seria impossível ao intelecto humano se aprofundar muito, a filosofia de base cristã via esse mesmo universo como a criação de um Ser racional e que, portanto, possuía uma ordem que refletia a mente de Deus; como a nossa mente, por sua vez, foi feita à imagem e semelhança da do Criador, não nos seria impossível chegar a compreender (mesmo que de forma limitada) a natureza de Sua obra. Daí porque cientistas cristãos – muitos deles padres ou monges – construíram, no decurso de alguns séculos, mais conhecimento científico prático do que havia sido alcançado em milênios antes. Mesmo casos como o de Galileu Galilei (que, por falar nisso, foi sentenciado à prisão domicilar, e não queimado na fogueira, como já ouvi vários "gênios" afirmarem) muitas vezes não foram bem do jeito que nos contaram: Galileu, em que pese seu brilhantismo científico, tinha um temperamento difícil e sérios problemas de ego, o que o levou a comprar brigas com autoridades eclesiásticas por motivos que pouco tinham a ver com sua teoria heliocêntrica.

E, é claro, um capítulo sobre Igreja e ciência não estaria completo sem dedicar alguma atenção à questão "Deus x Darwin"… Para começar, colocar a coisa nesses termos, como se Darwin alguma vez tivesse tentado se igualar a Deus, ou como se crer num deles fosse necessariamente sinônimo de descrer do outro, é uma visão simplista e tola, propícia ao sensacionalismo de certos setores da mídia – ou ao fundamentalismo burro. Zmirak dá o recado, embora de forma muito resumida, dedicando à questão da evolução muito menos espaço do que já houvera dedicado a assuntos, a meu ver, bem menos relevantes; a impressão que tive foi de que ele próprio não simpatiza muito com Darwin, embora esteja de acordo com o fato de que não é preciso jogar fora A Origem das Espécies para ser fiel à Bíblia, ou vice-versa. O que precisamos notar é que, apesar de alguns cristãos fundamentalistas (em geral de igrejinhas protestantes picaretas, mas há um ou outro católico no meio) ainda hoje insistirem em ler o Gênesis ao pé da letra, a posição oficial da Igreja é a de que o livro é, em grande parte, alegórico. O autor bíblico (e, cremos nós, o próprio Deus ao inspirá-lo) não estava querendo nos ensinar ciência, mas apenas transmitir a verdade básica de que tudo o que existe tem em Deus sua origem primeira; como, exatamente, essa criação se deu, está aberto à investigação. E, como diz o ditado, quem procura acha: sinais da evolução estão por toda parte. Baleias possuem certos ossos sem função alguma, vestígios das patas traseiras que seus ancestrais, animais terrestres, um dia tiveram. Da mesma forma nós próprios, humanos, ainda temos algumas vértebras caudais. A ordem de mamíferos conhecida como os monotremos se distingue pelo fato de pôr ovos e amamentar os filhotes que saem deles – um claro indicativo de que os mamíferos evoluíram a partir dos répteis. Até mesmo nossos dentes não passam de escamas modificadas!… Quem rejeita a teoria de Darwin, geralmente não a entendeu, e os poucos que entenderam e ainda assim a rejeitam, o fazem por pura ideologia, não por uma convicção baseada em evidências. Há inúmeras pessoas religiosas instruídas que aceitam tranquilamente a ideia da evolução, e, do outro lado, há também muitos cientistas evolucionistas que acreditam em Deus – vide o "evolucionismo teísta" defendido por Alister McGrath. A meu ver, aceitar a teoria da evolução (que, como disse o papa São João Paulo II, na verdade "é mais que uma teoria") não conflita de forma alguma com a crença em Deus; pelo contrário, um sistema tão perfeito aponta para a existência de um Intelecto que deve tê-lo coordenado.

E creio que já escrevi o suficiente: isso tudo já dá um bom vislumbre dos assuntos tratados neste Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo, cuja leitura recomendo sem dúvida para católicos interessados em conhecer melhor sua Igreja e a fé que ela professa, e para não-católicos dotados desse dom, hoje em dia tão raro, que chamamos de honestidade intelectual, em grau suficiente para desejar conhecer a verdadeira história, missão e propostas dessa instituição tão falada e tão pouco compreendida, antes de começar a apedrejá-la. Há uma pá de outros assuntos abordados no livro e sobre os quais fiquei tentado a discorrer, mas isso deixaria o texto longo demais (desconfio que ele já esteja, de qualquer forma). Terei oportunidade de tocar nesses assuntos quando estiver comentando outros livros, tanto de ficção quanto de não-ficção, que já estão na minha lista. Então, vamos para a conclusão.

Uma análise histórica isenta, independente da crença, ou falta dela, de cada um, mostra que, desde os filósofos iluministas, como visto acima, um grande esforço vem sendo feito para difamar e desacreditar a Igreja, e que a quase totalidade dos órgãos da mídia em nossos dias está firmemente comprometida com esse objetivo, seja por estar nas mãos dos inimigos da Igreja ou porque os profissionais que dirigem esses órgãos, e produzem o conteúdo que veiculam, foram adequadamente doutrinados e agora acreditam sinceramente estar divulgando a "verdade". O que se quer, em resumo, é que aqueles ainda suficientemente teimosos para continuarem a ser católicos tenham vergonha de fazer parte da Igreja e cultivem uma atitude do tipo "desculpem-me por ser católico", quando, na verdade, deveriam ter orgulho disso. Coisas como as Cruzadas e mesmo a Inquisição (nomes que soam praticamente como palavrões aos ouvidos de muita gente) na realidade foram muito diferentes daquilo que a mídia quer que o público acredite que foram: houve abusos e arbitrariedades como sempre há em qualquer empreendimento humano (abusos e arbitrariedades quase sempre cometidos por indivíduos ou grupos, e que a Igreja teria impedido se pudesse), mas elas tiveram sua razão de existir e, cada uma a seu modo, evitaram grandes desastres em suas respectivas épocas.

Em nossos dias, a tirania do politicamente correto tornou-se o principal instrumento usado para tentar impedir a Igreja de levar a cabo sua missão, ou deveria dizer suas missões; a primeira é aquela que Cristo tinha em mente ao fundá-la, e que consiste em ajudar homens e mulheres a salvarem suas almas, mas há outra que ela tomou sobre si ao longo dos últimos dois milênios, que é a de manter a civilização ocidental de pé, por mais atacada que ela seja e por mais que também tente se autodestruir. O pior é ver que muitos católicos (até mesmo sacerdotes) se deixam levar por esse discurso castrador e hipócrita. Tornou-se "feio" dizer a verdade sem eufemismos e chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Em tal cenário, o aparecimento de livros como este é providencial – e para nós, católicos, literalmente, pois pode ser visto como um sinal da providência divina. Como disse antes, só tenho pena de que o livro de Zmirak dificilmente será lido por aqueles a quem mais poderia fazer bem. Ninguém é obrigado a partilhar da nossa fé, mas, para os que partilham, a promessa de Cristo ("Pois eu te digo, tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela." Mt 16:18) é uma injeção diária de coragem e uma garantia da vitória final, pouco importa o quão numerosos e poderosos sejam os inimigos, ou de quanta perfídia façam uso.

terça-feira, setembro 25, 2018

Os Olhos do Dragão

Cheguei a possuir o livro Os Olhos do Dragão na edição da Francisco Alves, lançada como parte da coleção Mestres do Horror e da Fantasia, mas o exemplar sumiu de casa antes que eu chegasse a lê-lo. Entretanto, naturalmente que dei uma folheada logo ao adquiri-lo, e lembro que incluía uma nota introdutória (ausente da edição que tenho hoje, da editora Objetiva) na qual Stephen King explicava a origem dessa obra um tanto diferente das coisas que ele em geral escreve. O livro foi publicado pela primeira vez em 1984, tendo sido escrito pouco antes, motivado pelo desejo de contar uma história que sua filha, Naomi, pudesse ler e apreciar: a garota era pré-adolescente na época e não gostava de terror (e que sina não gostar de terror e ser filha de Stephen King!). O resultado foi esta aventura de fantasia medieval, finamente sintonizada com o gosto dos leitores mais jovens… mas, como todo mundo já teve 13 anos, ninguém que goste desse tipo de literatura deixará de se empolgar. Mesmo tendo, por uma questão de aptidão natural, favorecido mais as narrativas horripilantes ao longo de sua carreira, King sempre teve um grande respeito pela literatura de fantasia (declarou em mais de uma ocasião que considera O Senhor dos Anéis um dos melhores livros já escritos), e mostra-se perfeitamente capaz de produzir coisas desse tipo quando quer. Apontar a influência de Tolkien é fácil demais, pois, por mais que a fantasia já tivesse uma antiga e rica tradição antes dele, o impacto de sua obra foi tamanho, que é muito difícil hoje (e nesse "hoje" incluo a década de 80) escrever qualquer narrativa épica envolvendo magia e/ou seres fabulosos sem ficar devendo algo ao Professor. Não é tão óbvio observar que Os Olhos do Dragão também tem um clima que remete a algumas histórias de Lord Dunsany, provavelmente o autor de fantasia mais injustamente desconhecido de todos os tempos.

A história é narrada no melhor estilo dos contos de fadas, com direito a "era uma vez" e a frequentes intervenções do narrador dirigindo-se diretamente ao leitor, como se fosse alguém contando histórias a uma pequena mas empolgada audiência de crianças junto à lareira. Conta-nos sobre um reino chamado Delain, sobre seu rei, Rolando, sua rainha, Sacha, e sobre os príncipes Pedro e Tomás. Rolando não é nenhum pilar de majestade; não é o rei mais valente nem o mais sábio que o reino já teve, e, embora tenha uma índole essencialmente boa, nunca conseguiu fazer grandes coisas em favor de seu povo, por não ser, tampouco, um governante de grandes capacidades – até casar-se, muito tarde na vida, com a jovem Sacha, que, além de bondosa, possui o espírito prático para realizar boas ações, em vez de ficar só nas intenções. Sacha é muito amada pelo marido, pelo povo e pelo pequeno Pedro, mas, infelizmente, perde a vida ao dar à luz o segundo filho, quando o mais velho está com apenas seis anos. Morte de parto é um risco que todas as mulheres correm, sejam camponesas ou rainhas, e, como estamos falando de um reino medieval, sem os recursos da medicina moderna, era uma fatalidade muito mais comum do que hoje em dia, razão pela qual, embora todos lamentem, ninguém acha o incidente realmente estranho… Mas a verdade é que a morte da rainha não foi nenhum acaso. Flagg, o feiticeiro da corte, lançou mão de suas artes misteriosas para livrar-se de Sacha, que estava minando o controle que o mago sempre havia exercido sobre Rolando e, antes dele, sobre a velha rainha-mãe durante o longo reinado dela.

Como dissemos antes, Rolando não é um rei que inspire admiração instintiva, seja por sua aparência (baixote, de pernas tortas) ou por suas qualidades (não é particularmente inteligente, nem um guerreiro notável, embora tenha certa vez praticado um feito heroico, ao abater um dragão com uma flechada certeira). Em resumo, o narrador pinta-o basicamente como um homem vulgar que, por acaso, herdou uma coroa. Como também foi dito, casou tarde, unindo-se a Sacha quando ele já tinha por volta de 50 anos e ela era uma adolescente, e, por essa razão, o rei chega à velhice enquanto seus filhos ainda são garotos. Pedro tem a beleza, a perspicácia e a bondade da mãe; é um jovem alto, esguio, de muitos talentos. Tomás, por outro lado, puxou ao pai, tanto na aparência comum quanto no intelecto medíocre – com o agravante de, por vezes, praticar atos de inegável maldade. Ainda assim, o narrador se esforça para que seus leitores não odeiem o príncipe mais jovem, garantindo reiteradamente que, no fundo, ele não é ruim. O fato é que Tomás se sente negligenciado, já que Pedro é o favorito de todo mundo, desde o rei até os serviçais do palácio, por ser o herdeiro do trono, além de ser bonito, corajoso e bom. Não dá para não sentir pena do irmão mais novo quando lemos sobre seus repetidos esforços para agradar e dar orgulho ao pai, que geralmente reage com um comentário distraído, do tipo "ah, muito bem, filho", para em seguida retornar a sua adoração incessante ao filho mais velho. Pedro nitidamente não queria que fosse assim, chegando a tentar ajudar o irmão – o que só faz com que Tomás o odeie mais, ao mesmo tempo que também o ama e admira. Muitos de nós já passamos por situações parecidas e sabemos que não é agradável estar nem de um lado, nem do outro. Para piorar, embora (até onde sabemos) ninguém jamais tenha sequer tocado no assunto em sua presença, Tomás acha que todos o odeiam por ter, involuntariamente, causado a morte da mãe, que, como ele bem sabe apesar de não tê-la conhecido, foi a rainha mais amada que Delain já teve. Enquanto os dois príncipes crescem, o rei envelhece e esse pequeno drama familiar se desenrola, Flagg observa tudo atentamente. Acaba chegando à conclusão de que precisa livrar-se de Pedro tal como se livrou da mãe dele, já que o rapaz dá todos os sinais de que, uma vez no trono, não sera um rei fácil de controlar como o pai. Seria bem melhor para o bruxo se a coroa passasse para Tomás, pois este ele tem certeza de que conseguirá manipular.

(Embora desta vez esteja escrevendo fantasia, King não renega totalmente seu pendor para o soturno: o laboratório de Flagg está repleto de objetos sinistros e sua mascote é um grotesco papagaio de duas cabeças. E, curiosamente, embora Delain seja um reino fictício, e pareça situado num mundo igualmente fictício, com geografia, cultura e mitologia próprias, a certa altura encontramos este trecho: "Sentou-se, emborcou uma ampulheta e se pôs a ler um enorme livro de encantamentos. Flagg vinha lendo esse livro – que era encadernado em pele humana – havia mil anos, e só percorrera uma quarta parte dele. Ler demais esse livro, escrito nas altas e longínquas planícies de Leng por um louco chamado Alhazred, seria arriscar-se a enlouquecer." Ou seja, Flagg possui um exemplar do Necronomicon!)

O motivo do título Os Olhos do Dragão é esclarecido quando Flagg, movido por seu "instinto para a maldade" (sobre o qual o narrador tece uma teoria) revela um segredo a Tomás. Na verdade, o bruxo procura, sempre que vê uma oportunidade, fazer coisas que levem o jovem príncipe a sentir-se em dívida com ele (e a temê-lo também), já que espera colocá-lo no trono e, quando isso acontecer, tornar-se, na qualidade de seu conselheiro, o verdadeiro detentor do poder em Delain. Acontece que uma das dependências particulares do rei Rolando no castelo consiste numa grande sala de estar em cujas paredes estão expostos os mais imponentes dentre os muitos troféus de caça que ele acumulou ao longo dos anos – pois em Delain, como em muitos reinos, a caça é tradicionalmente o lazer favorito de reis e nobres. E ali, entre tantas cabeças de ursos, alces, javalis e outros animais, figura em posição de destaque a cabeça da mais formidável presa que Rolando já abateu: a de Niner, o último dragão visto em Delain. O que ninguém parece saber a não ser Flagg (e, agora, Tomás) é que a cabeça do dragão foi montada na frente de uma câmara secreta embutida numa das grossas paredes do castelo; quem souber como entrar nessa câmara pode espiar através das lentes de vidro colorido que substituíram os olhos da fera, e assim ver e ouvir tudo o que acontece na sala de estar real. Flagg adverte a Tomás que ele não deve fazer uso desse segredo com muita frequência, para reduzir o risco de que seja apanhado – e que, caso isso aconteça, deve dizer que descobriu a câmara sozinho, por acaso, pois, do contrário, Flagg cuidará para que ele se arrependa.

O primeiro efeito dessa espionagem é um significativo abalo no respeito de Tomás pelo pai, já que agora pode observá-lo às escondidas e ver em primeira mão como ele se comporta quando pensa que ninguém está vendo… e, vamos ser francos, acho que pouca gente ficaria confortável com a ideia de ter sua intimidade devassada dessa forma. Quando estamos sozinhos, relaxamos – o que significa, entre outras coisas, parar de policiar nossos comportamentos mais esquisitos, ridículos ou repulsivos. E fica ainda mais desconcertante ver uma pessoa metendo o dedo no nariz, soltando puns, se embriagando ou falando sozinha (esta última coisa, Rolando faz tanto sóbrio quanto embriagado) quando tal pessoa é nosso pai e, ainda por cima, nosso rei, provavelmente o ser humano que mais respeitávamos até então. Com apenas dez anos de idade, Tomás ainda não tem maturidade para separar as coisas e entender que esses comportamentos repelentes são falhas humanas, e não necessariamente diminuem a dignidade de um soberano; seu apreço por Rolando sofre uma queda, o que, aparentemente, é excelente para os planos de Flagg.

Quando Pedro está próximo de completar 17 anos, Flagg decide que está na hora de tirá-lo do caminho, e encontra um meio de fazer isso ao mesmo tempo que se livra de Rolando – envenenando o velho rei com certa substância exótica adicionada ao seu copo de vinho da noite, e plantando provas contra Pedro, que é julgado e preso, considerado culpado do assassinato do próprio pai. O que o bruxo não sabe é que, no exato momento em que ele, pessoalmente, levou ao rei o vinho envenenado, Tomás estava novamente no seu posto de observação, atrás da carranca ameaçadora de Niner. O príncipe mais jovem não é nenhum gênio, mas tampouco é tolo, e compreende que dificilmente seria coincidência o fato de seu pai morrer poucos dias depois de Flagg ter-lhe levado um copo de vinho – coisa que Pedro, e não Flagg, costumava fazer toda noite. Porém, Tomás não tem coragem de abrir a boca, receoso do que o feiticeiro poderia fazer, e Pedro é encarcerado na alta torre conhecida como "o Obelisco", tradicional local de prisão para criminosos nobres ou membros da realeza. Tomás é coroado (muito a contragosto, pois nunca desejou nem se considerou capaz de ser rei) e assume seu papel como fantoche de Flagg.

Depois de muita reflexão em sua cela solitária e desconfortável no alto do Obelisco, Pedro conclui que tem o dever de provar sua inocência, um dever não só para consigo mesmo, mas principalmente para com o reino, que Flagg parece estar deliberadamente conduzindo em direção ao caos: mesmo ali, em seu cárcere nas nuvens, notícias chegam, e elas dão conta de que o reinado de Tomás está sendo desastroso. A questão é que Pedro não pode provar coisa alguma de dentro da cela, e ninguém jamais fugiu do Obelisco em toda a história de Delain. Ainda assim, o príncipe arquiteta um plano, para o qual precisará recorrer a certos ensinamentos que recebeu da mãe quando era bem pequeno, e que exigirá dele muita persistência e paciência. Existem pessoas que acreditam em sua inocência, e com cuja lealdade ele pode contar, mesmo que, no caso de algumas delas, nem saiba disso; é em grande parte na coragem e no espírito de sacrifício desses amigos e súditos fiéis que repousa a esperança de que Pedro consiga reconquistar seus direitos e reparar a injustiça praticada – e, como ele reflete com grande nobreza de alma, o fato de uma injustiça ter ocorrido é motivo suficiente para que todos os esforços sejam feitos para corrigi-la; que a vítima da injustiça tenha sido ele, é quase irrelevante. Esta parte me pareceu particularmente importante:

A princípio, por um ou dois dias, remoeu sentimentos inúteis. O seu lado infantil insistia em lamentar-se: Não é justo! Isto não é justo! E não era mesmo, mas pensamentos dessa espécie não o levavam a lugar algum. Jejuando, começou a recobrar o domínio de si mesmo. O ventre vazio fez com que ele se desembaraçasse daquele componente de criança. Passou a sentir-se mais limpo, livre, vazio… como um copo esperando para ser enchido. (...) Ele começou a ouvir mais claramente seus verdadeiros pensamentos.

Torço retroativamente para que a jovem Naomi tenha aproveitado a chance e assimilado a lição valiosa que o pai estava tentando lhe passar, evitando ter que aprendê-la mais tarde, provavelmente de alguma maneira pior. Sem contar que esse é um ensinamento que faria muito bem a essa juventude nutella dos nossos dias.

Sempre vamos pensar em Stephen King, antes de mais nada, como um autor de terror (e não tenho dúvida de que é assim que ele prefere ser lembrado), mas ninguém pode escrever um único tipo de coisa durante toda a vida, e King já mudou de ares diversas vezes ao longo de sua carreira que já dura quase cinco décadas. Já vi pessoas que torciam o nariz à simples menção de seu nome ficarem com os olhos marejados ao falarem de filmes como Conta Comigo (1986) e Um Sonho de Liberdade (1994), e terem reações que variavam da incredulidade à teimosia agressiva quando eu lhes disse que ambos os filmes são baseados em histórias de King! (risos) Ainda assim, Os Olhos do Dragão é especial, porque sua própria origem tem uma história comovente, e, como se fosse para não deixar dúvida sobre o que (e quem) o motivou a escrevê-lo, o autor fez questão de incluir uma personagem chamada Naomi!… Em outros de seus livros, como A Hora do Vampiro e O Cemitério (principalmente), King coloca em suas páginas um bocado de reflexões bastante tenebrosas sobre a vida, a morte e o mundo de maneira geral, quase sempre atribuídas direta ou indiretamente a algum personagem, e possivelmente influenciadas pelas dificuldades e sofrimentos que eles passam ao longo da história. Em Os Olhos do Dragão, talvez porque sabia que seria lido por sua filha (que, por sinal, seria sua primeira leitora), ele adota um ponto de vista mais construtivo e, de certa forma, até otimista: não há "felizes para sempre", mas uma pessoa pode levar uma vida boa e com significado, uma vida para a qual poderá olhar com orgulho no momento da morte, se, ao longo dela, tiver enfrentado seus problemas (que inevitavelmente surgirão) com calma e determinação, e feito sempre o melhor possível. A coragem e a retidão de caráter de Pedro são o que faz dele um rei, muito mais do que sua linhagem, e essas mesmas qualidades inspiram a amizade e a lealdade de seus companheiros. Se eu tivesse filhos adolescentes, seria esse o tipo de coisa que gostaria de escrever para eles. Senti falta apenas de um pouco mais de ação, embora seja verdade que há uma cena memorável de luta – uma luta só na base dos punhos. Mais uma ou duas cenas de confronto, talvez com o uso de espadas, teriam acrescentado uma dose extra de emoção.

Os Olhos do Dragão talvez não esteja entre os melhores livros de Stephen King, e pode até mesmo ser considerado uma coisa um pouco à margem de sua produção normal, mas vale muito a leitura para quem gosta de fantasia e quiser conhecer uma face um pouco diferente do mestre do terror.

quinta-feira, agosto 23, 2018

A Águia do Império

Desmontando do seu cavalo, Vespasiano desapertou a fivela no seu ombro e deixou que o seu manto de legado caísse ao chão. Um oficial de dia entregou-lhe um escudo e Vespasiano passou a mão esquerda pela correia, agarrou firmemente no suporte de ferro e desembainhou a espada curta de cabo de marfim. Endireitou-se numa postura rígida e forçou o seu caminho por entre os soldados até alcançar o centro da frente de combate. Se este era o dia destinado à sua morte, então morreria como lhe ditavam os seus antepassados e o respeito pela tradição romana: com a face virada para o inimigo e a espada na mão.

*          *          *

Trinta e três anos se passaram desde a batalha da Floresta de Teutoburgo, e vinte e poucos desde as subsequentes represálias romanas contra as tribos da Germânia. O ano é 42 d.C., o segundo do governo do imperador Cláudio, e o Reno continua a servir de fronteira entre a província romana da Germânia Menor (formada pelas atuais regiões alemãs da Baixa Saxônia, Renânia, Renânia do Norte e Hesse, mais a Holanda e as regiões francesas da Alsácia e Lorena) e a Germânia Maior, que permanecia sob o controle das tribos nativas e abrangia todo o restante do atual território alemão, além de partes da Áustria, Polônia, República Tcheca e outros países. Como fronteiras bárbaras nunca são regiões seguras, e os germanos são um povo particularmente violento, Roma mantém um olho vigilante e fortes defesas a postos contra possíveis ataques.

É nas margens do Reno que se localiza a fortaleza que serve de base à Legio II Augusta, ou Segunda Legião Augusta, uma das mais afamadas e temidas unidades do exército romano. Por esse tempo, seu comandante é o legado Tito Flávio Vespasiano, mais tarde general e depois imperador. Entre os oficiais sob seu comando está Lúcio Cornélio Macro, que foi recentemente promovido ao posto de centurião, e ainda está se adaptando ao seu novo status e responsabilidades quando se depara com uma situação inusitada. No meio de um contingente de novos recrutas vem um certo Quinto Licínio Cato, um adolescente acostumado aos livros e aparentemente sem nenhum pendor para a vida de soldado. Cato (outra forma de Catão, o que poderia sugerir que o rapaz talvez tenha algum parentesco com esse célebre clã de políticos e oradores) tem uma história curiosa. Seu pai era um escravo no palácio imperial, mas não um escravo qualquer; por alguma razão misteriosa, gozava de alta consideração por parte de mais de um imperador, tendo ganho a liberdade como presente de Tibério – mas, infelizmente para o jovem Cato, isso aconteceu pouco depois de seu nascimento: o filho de um liberto era cidadão romano de pleno direito, já o filho de um escravo era escravo também, e a subsequente libertação de seu pai não alterava esse fato. O rapaz cresceu como escravo no palácio, mas aparentemente Tibério pretendia utilizá-lo em alguma função especializada, pois providenciou para que ele recebesse uma educação primorosa. Só que Tibério morreu e, depois do curto porém terrível interlúdio que foi o principado de Calígula, Cláudio chegou ao trono. No dia em que se conhecem, Macro e Cato têm o diálogo do qual retirei este trecho:

– (Meu pai) era um escravo, senhor. – A vergonha por o dizer era evidente, mesmo perante um homem como Macro. – Antes de ser libertado por Tibério. Eu nasci pouco antes.

– Que azar. (...) Presumo que tenhas sido liberto pouco depois. O teu pai comprou-te?

– Não o deixaram, senhor. Não sei por quê, mas Tibério não o permitiu. O meu pai morreu alguns meses atrás. No seu testamento pedia que me libertassem na condição de que continuasse a servir o império. O imperador Cláudio aceitou, desde que me alistasse no exército, e por isso estou aqui.

A história de Cato é incomum do início ao fim, mas o detalhe mais surpreendente (na verdade, absurdo) vem agora: em seu alforje, o novato traz uma carta do próprio Cláudio, dirigida pessoalmente ao legado Vespasiano. A carta está lacrada e seu portador desconhece o conteúdo. Quando é entregue e aberta, descobre-se que Cláudio ordena a Vespasiano que Cato seja não só incorporado à Segunda Legião, mas investido no posto de centurião (!). Talvez a minha noção a respeito de Cláudio seja demasiado favorável por ser baseada principalmente no livro de Robert Graves, mas acho difícil crer que ele desse tal ordem; embora, por conta de seus vários problemas de saúde, ele nunca tivesse estado no exército, era um historiador, e, enquanto tal, precisava ter um razoável conhecimento (ainda que apenas teórico) sobre assuntos militares, certamente mais que o suficiente para saber que a patente de centurião é para soldados experientes, que já provaram repetidamente no campo de batalha tanto seu valor como combatentes quanto sua capacidade de liderança. Colocar o elmo com a crista transversa na cabeça de um recruta que ainda não sabe nem segurar uma espada seria condenar 80 homens à morte quase certa na primeira batalha. É impossível cumprir a ordem do imperador – mas, por ser uma ordem do imperador, também é impossível simplesmente ignorá-la, de modo que Vespasiano decide pelo meio-termo: como Macro, casualmente, acaba de perder o seu optio (pronuncia-se ópcio; assim se chamava o oficial que atuava como lugar-tenente de um centurião), o legado promove Cato a esse posto e ordena ao estupefato centurião que o treine para desempenhar as respectivas funções. O título original do livro era Under the Eagle, ou seja, 'Sob a Águia', referindo-se à águia dourada que era a mais importante insígnia de toda legião, um símbolo de sua honra, que todo legionário tinha o dever de guardar com a própria vida (mais detalhes sobre isso aqui). "Marchar sob a águia" era uma forma poética de dizer "juntar-se ou pertencer a uma legião", de modo que o título refere-se ao ingresso do jovem Cato na vida militar. As aventuras dele e de Macro, iniciadas com este volume, renderiam uma longa e bem-sucedida série.

Cato passa por maus pedaços durante seu período de adaptação à vida na legião. Acostumado a manejar penas e papiros, e a lidar com a obra dos grandes expoentes da literatura e da filosofia, ele está agora entre homens rudes, na maioria analfabetos ou quase isso, que não fazem ideia de quem foram Platão ou Virgílio e tendem a avaliar o valor de um homem pela força de seu braço e por sua capacidade de suportar esforços e sofrimentos sem se queixar… Bem, pelo menos sem se queixar muito. Nas legiões, como em qualquer exército, forjavam-se grandes amizades, pois talvez nenhuma outra experiência crie um elo tão forte entre um grupo de homens quanto a de enfrentar a morte juntos – mas, é claro, também havia valentões, e, para esses, o novato magrelo e tímido, optio ou não, é presa fácil. Cato, entretanto, acaba demonstrando ser feito de um material mais resistente do que parecia a princípio. Não fica a dever nada em força de vontade a nenhum de seus companheiros e mostra-se mais astuto que a maioria, ainda que por vezes seja traído por sua ingenuidade adolescente. Durante uma insurreição numa aldeia germânica perto da fortaleza da Augusta, salva a vida de Macro – e, como o centurião sai do episódio com um ferimento grave, que vai exigir tempo para sua recuperação, o fardo de comandar a centúria durante os meses seguintes cai sobre os ombros do jovem optio. Como se isso não fosse o suficiente para mantê-lo ocupado, Cato ainda assume a tarefa de ensinar a seu comandante os segredos das letras: Macro é quase analfabeto, um segredo que ele guarda a sete chaves, já que, caso se tornasse conhecido, ele seria rebaixado de posto – esperava-se que os centuriões soubessem ler e escrever, pois, além do comando em si, tinham responsabilidades administrativas. Com a ajuda de Cato, Macro espera conseguir alfabetizar-se o suficiente e a tempo, antes que algum de seus superiores descubra a verdade.

Como dissemos, o ano desses eventos é o segundo do principado de Cláudio, que ocupou o trono após o assassinato de seu sobrinho, Calígula, e logo nos primeiros tempos de seu governo precisou lidar com uma tentativa de golpe de estado orquestrada por Escriboniano, um legado da Dalmácia. O fato de Cláudio ter vencido a rebelião surpreendeu a muitos, já que ele sempre tivera fama de débil mental e tinha sido colocado no trono para ser um mero fantoche – mas acabou demonstrando inesperada capacidade. Ainda assim, sua posição ainda não era muito firme nos dias em que está ambientada esta história, e Cláudio precisava realizar feitos relevantes para ganhar o respeito da população em Roma e, tão ou mais importante que isso, do exército. Essa necessidade foi um dos principais fatores a determinar a invasão da Britânia, que aconteceu no ano 43, e a narrativa de Simon Scarrow segue a História à risca nesse ponto. Júlio César havia tentado por duas vezes, quase um século antes, sendo bem-sucedido na segunda, mas tal invasão tivera por objetivos principalmente punir os bretões por terem apoiado os gauleses contra Roma durante as Guerras Gálicas e aumentar o prestígio pessoal de César, e não resultou num domínio efetivo de Roma sobre as Ilhas Britânicas; durante esse intervalo de 90 e poucos anos, houve relações diplomáticas intermitentes entre os romanos e as tribos locais. Como sempre acontecia, algumas dessas tribos haviam-se aliado voluntariamente a Roma, atraídas pelas vantagens econômicas, sociais e políticas que isso oferecia, enquanto outras prezavam por sua independência e certamente oporiam uma obstinada resistência. A verdadeira conquista da Britânia, aquela que faria dela, em definitivo, uma província romana, aconteceu sob o governo de Cláudio… e, entre as legiões destacadas para compor a força de invasão, estava a Segunda Augusta. Assim, em A Águia do Império temos oportunidade de acompanhar Macro, Cato e seus companheiros na longa marcha desde as margens do Reno até as praias do norte da Gália, de onde partirá a frota invasora. Porém, a dura jornada e os tensos momentos de combate não são tudo na trama: há também fartas doses de intriga, na qual nossos heróis são enredados de forma alheia à sua vontade. Um dos tribunos da Augusta, na verdade o mais graduado deles, é um certo Vitélio, um aristocrata ambicioso que, nos anos seguintes, cultivaria estreitas relações com a casa imperial, ganhando as boas graças da imperatriz Agripina e, mais tarde, fazendo parte do círculo íntimo do filho dela – o ególatra e amalucado Nero, enteado de Cláudio, que ocuparia o trono depois dele. Com a morte de Nero, em 68, Roma mergulharia no período conturbado que ficaria conhecido como o "Ano dos Quatro Imperadores", durante o qual sucederam-se no trono Galba (que durou seis meses), Oto (três) e Vitélio (oito), cujo desastroso principado terminaria com uma revolta na qual ele seria apedrejado pelo povo e sucedido por Vespasiano, que restauraria a ordem e faria um governo próspero de dez anos; foi o primeiro imperador de uma nova dinastia, a dos Flávios. Entre outras coisas, Vespasiano iniciou a construção do grande Anfiteatro Flaviano, hoje mais conhecido como Coliseu, que seria concluída por seu filho e sucessor, Tito. Por falar nisso, Tito também aparece neste livro, ainda quase uma criança de colo, muito vivo e travesso.

Portanto, Vespasiano, no seu posto de legado da Segunda Augusta, tem Vitélio como seu subordinado imediato, e, sob a superfície de disciplina militar impecável e de relacionamento cortês em nível pessoal, os dois estão bem cientes, já nessa época, de que são rivais – mas, como reflete Vespasiano, ninguém sabe o dia de amanhã, e esse velho ditado é ainda mais verdadeiro quando se trata de política: mais tarde os dois poderão estar em lados opostos de uma disputa feroz, ou pode ser que acabem precisando se aliar. Ainda não há como saber, e, por isso, ele precisa ser muito cuidadoso em seu trato com o jovem oficial. Para deixar tudo ainda mais complicado, o imperador Cláudio envia seu braço-direito, um tal Narciso, para supervisionar a invasão, além de tratar de outros assuntos mais secretos. Narciso é um bocado arrogante, o que se torna ainda pior aos olhos de um homem como Vespasiano pelo fato de tratar-se de um liberto, isto é, um ex-escravo, que não tinha o direito de colocar-se no mesmo nível que um cidadão romano – mas Narciso sabe que sua condição de enviado imperial lhe confere certas prerrogativas, e por isso toma atitudes que, em mais de um momento, deixam o legado fulo… mas sem condições de fazer nada a respeito. O que eu não compreendi foi por que Cláudio não concedeu cidadania a Narciso, pois esse era um poder que o imperador tinha, e que ele exerceu para com o humilde jovem Cato, que, afinal, também é um liberto, e não poderia tornar-se um legionário sem antes ser cidadão. Ou talvez Cláudio tivesse, sim, concedido cidadania a Narciso, mas mesmo assim o estigma social permanecesse… mas, neste caso, seria uma boa ideia deixar isso explícito em algum momento.

O pano de fundo histórico é fascinante, mas o que realmente cativa o leitor é o primeiro encontro de Macro e Cato, destinados a ainda passarem por muita coisa juntos. Embora a sinopse da contracapa (nesta edição da Saída de Emergência) descreva Macro como "o mais experiente e destemido de todos os centuriões", dentro do livro o personagem não é assim: como eu disse acima, Macro tornou-se centurião há pouco tempo – possui experiência como soldado, mas é novo no "negócio" de ser um oficial. É um homem duro e corajoso, sem dúvida, mas não especialmente esperto (como ele mesmo reconhece numa passagem) e por vezes tem momentos de indecisão e insegurança. Cato, por outro lado, mesmo inexperiente e, no começo, totalmente cru quando o assunto é a vida militar, tem uma mente afiada e sua ajuda é valiosa. A complementaridade entre os dois se estabelece naturalmente, junto com uma amizade que combina a relação de mestre e discípulo (com os dois se alternando nesses papéis), admiração mútua e uma certa afeição de pai e filho "postiços". Perto do final do livro, quando a legião enfrenta os bretões, toda a coragem de Cato vem à tona, ao mesmo tempo que ele se sente, pela primeira vez, verdadeiramente parte da Augusta. Se o leitor ainda conservava alguma dúvida de que o rapaz tem dentro de si aquilo que faz de alguém um legionário, ela é dirimida nesse ponto.

A Águia do Império é uma leitura empolgante para fãs de ficção histórica como eu – e de modo especial para os fascinados pelas legiões. Está, facilmente, no mesmo nível que a Trilogia das Águias, de Ben Kane. Aliás, o autor, Simon Scarrow, parece ter muito em comum com Kane além do tema sobre o qual gosta de escrever: ambos nasceram na África (Kane no Quênia, Scarrow na Nigéria), mas possuem cidadania britânica e vivem hoje na Inglaterra. Como este é apenas o primeiro volume da série, a tendência é que os próximos sejam ainda mais interessantes. Pretendo conferir em breve, e sem dúvida trarei os volumes seguintes para o blog, logo que os tenha lido.

sexta-feira, julho 13, 2018

HEX

Depois de Deixa Ela Entrar, de autoria do sueco John Ajvide Lindqvist, aqui temos outro exemplo de ventos frescos na literatura de terror vindo de países inesperados: Thomas Olde Heuvelt é holandês, embora a história de HEX esteja ambientada nos Estados Unidos – por boas razões, como veremos depois. É um pensamento comum acreditar que, à medida que a ciência e a tecnologia progridem, a tendência é que a crença no sobrenatural, ou o papel que ele desempenha na vida das pessoas, diminua… E já faz tempo que desmontar essa ideia em suas histórias é um caminho que diversos escritores de terror adotam. É o que Heuvelt faz aqui, mas de uma maneira inovadora e surpreendente.

Black Spring (nome dúbio, que pode significar "fonte negra" ou "primavera negra") é uma cidadezinha aparentemente pacata e normal do estado de Nova York, a pouca distância da famosa academia militar de West Point. O que um eventual forasteiro não imagina ao andar por suas ruas sossegadas é que a cidade sofre com uma maldição que já dura três séculos e meio e pesa sobre todos os seus habitantes, tanto os nativos quanto os que, seduzidos por sua aparência de tranquilidade ordeira, fizeram a bobagem de mudar-se para lá. Os bosques que a rodeiam são assombrados pelo espírito de Katherine Van Wyler, uma mulher que foi condenada à forca por bruxaria em 1664, quando aquela região era habitada principalmente por imigrantes holandeses, em sua maioria calvinistas, e por índios algonquinos. Isso, por si só, já seria bem ruim, mas acontece, ainda, que Katherine nem sempre se contenta em vagar pelos bosques, e volta e meia invade a pequena cidade, podendo aparecer em qualquer lugar – ruas, praças, lojas, ou dentro da casa de alguém (credo-em-cruz!). Outra peculiaridade de Katherine é que, ao contrário de outros fantasmas, ela não parece ser incorpórea, tendo uma presença física capaz de interagir com objetos, pessoas e animais (os cães costumam latir e uivar em desespero quando ela está por perto). O efeito da maldição que é sentido com mais frequência é o fato de que os habitantes de Black Spring não podem sair de lá. Não que haja algum tipo de barreira física (há quem pense que seria melhor se houvesse), mas porque bastam alguns dias longe do local para que até mesmo a pessoa mais centrada, ajuizada e satisfeita com a vida comece a ter ideias de suicídio – e, a menos que volte logo para casa, acaba concretizando essas ideias, em cem por cento dos casos.

A história acompanha uma família típica: Steve Grant, médico e professor universitário, sua esposa Jocelyn, ambos nos seus 40 e poucos ou 50 anos, e seus filhos Tyler, de 18 anos, e Matt, de 13. Ah, e tem o border collie Fletcher. Pode parecer inacreditável que essa seja uma família funcional e feliz, pois nosso primeiro e muito compreensível impulso é não achar possível que tal coisa exista numa cidade amaldiçoada, mas a História com H maiúsculo já nos forneceu muitas provas de que a capacidade de adaptação do ser humano beira o infinito – em grande parte, foi por isso que sobrevivemos. Como acontece em cidades pequenas, em Black Spring todo mundo conhece todo mundo, e, sendo assim, Steve e Jocelyn conhecem também um sujeito de nome Robert Grim, que trabalha num órgão chamado HEX. Para um desavisado, isso pode parecer uma sigla, mas na verdade é o som da palavra equivalente a bruxa em várias línguas de raiz germânica: a grafia varia um pouco, mas a pronúncia é quase a mesma, seja em alemão (Hexe), sueco (häxa), holandês, norueguês e dinamarquês (heks nas três). Em inglês também existe um cognato de todas essas palavras, hag, que, na origem, também significava bruxa, embora hoje em dia quase sempre se use witch para designar uma bruxa propriamente dita, enquanto hag comumente se refere de forma pejorativa a mulheres idosas, em especial quando feias e/ou de comportamento desagradável ("bruxa" também é por vezes usado dessa forma em português). A HEX foi criada por iniciativa dos militares de West Point, para lidar da forma mais discreta possível com a maldição de Black Spring. Sua função é monitorar as andanças de Katherine, resolver qualquer problema que surja, e evitar que a história vaze para o mundo exterior. Para facilitar sua tarefa, o órgão desenvolveu o aplicativo de celular também chamado HEX, que os moradores da cidade podem usar para saber onde Katherine está no momento; quem a vir deve informar sua localização, também por meio do aplicativo. O mais sensato a se fazer é evitar ao máximo qualquer proximidade com a bruxa; se ela resolver aparecer na sua casa, o aconselhável é não entrar no cômodo onde ela estiver. Se isso for impossível, pode-se, por exemplo, jogar um lençol ou toalha de mesa sobre ela (sem tocá-la!) e tentar ignorá-la; ela geralmente fica imóvel feito um poste, e desaparece em um dia ou dois. Desaparece literalmente, indo aparecer em outro lugar, como se fosse algum tipo de teleporte sobrenatural. A situação já está assim há muito tempo e, salvo por algum incidente medonho eventual, a convivência entre a população e a bruxa é relativamente tranquila. Quando pega antipatia por alguém, porém, ou acha que foi tratada sem o devido respeito, Katherine sussurra algo, e as consequências para a pessoa visada nunca são agradáveis.

Entretanto, nem mesmo Black Spring pode esperar ficar imune às transformações trazidas pelo avanço da tecnologia – e não estou falando apenas do aplicativo HEX. Enquanto os moradores adultos da cidadezinha parecem conformados com a situação, os mais jovens, não raro, têm dificuldade em aceitar esse estado de coisas. Cidades pequenas são sabidamente um ambiente claustrofóbico para adolescentes, e não é diferente para os que tiveram a pouca sorte de nascer em Black Spring. Como todos os jovens, eles têm vontade de sair, ver o mundo, perseguir ambições, mas são ensinados desde cedo que jamais poderão fazê-lo. Tyler, o filho mais velho de Steve e Jocelyn, é um rapaz especialmente inconformista, que, como quase toda a sua geração, utiliza a tecnologia com desenvoltura, e, além do mais, tem vocação jornalística. Além de todos os motivos acima para estar descontente, ele tem outro: sua namorada, Laurie, que é de fora da comunidade, de modo que só resta a Tyler a escolha entre desistir dela ou condená-la a também viver naquela prisão de muros invisíveis. Na opinião do rapaz, a melhor coisa a fazer seria acabar com o segredo, deixar o mundo saber o que acontece em Black Spring, para que alguma solução – fosse tecnológica, religiosa, mágica ou de outro tipo – pudesse ser tentada. Ele e um grupo de outros garotos começam a procurar deliberadamente por Katherine, filmando e fazendo experiências… Algo muito perigoso em qualquer caso, mas, para piorar, um desses rapazes é Jaydon Holst, filho da proprietária do açougue e empório local. O pai de Jaydon abandonou a família e foi embora de Black Spring, e, sem que isso surpreendesse a ninguém, pouco tempo depois chegou a notícia de seu suicídio. Por menos motivos que parecesse ter para gostar do pai (que, antes de abandoná-lo, o maltratou um bocado), Jaydon odeia Katherine por causa do acontecido. Trata-se de um rapaz mal-humorado, agressivo e pouco esperto. Enquanto Tyler e os outros se utilizam de câmeras digitais e outros aparatos para reunir o máximo possível de dados sobre a bruxa, que depois serão colocados na internet, Jaydon só está interessado em praticar violências contra ela. (Katherine, sendo, como dissemos, uma entidade corpórea, pode ser ferida, mas, na vez seguinte em que se teleporta, ela aparece no local de destino intacta de novo. É como se o processo a "resetasse"… o que não significa que ela se esqueça da agressão sofrida.)

Para tornar a situação ainda mais bizarra, a mãe de Jaydon, Griselda Holst (para quem o sumiço do marido abusivo foi um alívio), desenvolveu uma forma própria e distorcida de religião, com Katherine fazendo as vezes de divindade. Há basicamente duas maneiras de cultuar um ser divino no qual se acredite: se você crer que esse ser é bom, irá querer louvar, agradecer, talvez fazer pedidos; se crer que ele é algo a ser temido, então é provável que os seus ritos tenham como principal objetivo aplacá-lo para que ele o poupe de sua ira. O "culto" inventado por Griselda, como seria de se imaginar, tende muito mais para a segunda possibilidade, embora, uma vez ou outra, ela arrisque pedir algo. Ela procura por Katherine nas florestas, leva oferendas e conversa com ela durante horas – ou melhor, monologa, já que a bruxa nunca diz nada (a não ser pelo sussurro mortífero quando decide eliminar alguém) e raramente se move. Não é preciso dizer que nem a abordagem de Jaydon nem a de Griselda irão resultar em nada de bom.

HEX tem uma ideia excelente e bastante original, explorando o confronto sobrenatural versus modernidade, que tem um potencial fora do comum para amedrontar, porque nos leva a questionar a noção de "progresso", que é um dos pilares da escassa sensação de segurança que o homem moderno consegue desfrutar. Ainda assim, a essência da história talvez não seja a fragilidade dessa noção em si, e sim uma decorrência dela: a facilidade com que pessoas que se consideram civilizadas e esclarecidas podem recair num obscurantismo semelhante ao de séculos passados quando confrontadas com terrores que, no "modo século XXI" de ver as coisas, não deveriam existir, e para os quais essa visão de mundo não oferece soluções. Os moradores de Black Spring são cidadãos americanos modernos, normais em quase tudo, que acessam a internet, consultam tabelas de calorias, assistem a séries na Netflix e distribuem-se entre os eleitorados republicano e democrata, mas há cenas (principalmente as de assembleias populares) em que é difícil não imaginá-los em trajes de colonos calvinistas do século XVII, agitando tochas e forcados. A conclusão é que, por mais sofisticados que pensemos que somos, o medo nos reverte ao primitivismo, muitas vezes com uma facilidade absurda. A História nos oferece (infelizmente) muitos exemplos de casos em que isso foi habilmente explorado com finalidades políticas, resultando em guerras, genocídios e outros desastres.

Heuvelt tem a habilidade para criar personagens convincentes e cativantes, mas, a meu ver, existem algumas incoerências, como quando é dito que Steve Grant "não acredita no pós-vida". Em qualquer outro lugar que não Black Spring, seria perfeitamente crível que um homem do tipo dele fosse basicamente materialista, não crendo no divino nem em qualquer outra manifestação do sobrenatural – mas, se o homem em questão tiver vivido quase metade de sua vida numa cidade por onde uma mulher morta há 350 anos desfila pelas ruas, sendo corriqueiramente vista por todo mundo, qual o sentido lógico de que até mesmo um homem assim continue "não acreditando no pós-vida"? Também acho necessário criticar o final, pois eu realmente esperava que uma história que inova em tantas coisas tivesse um final surpreendente, nunca imaginado… Quando, na verdade, o final de HEX é idêntico (vá lá, quase idêntico) ao do conto A Pata do Macaco, de W. W. Jacobs. Entendedores entenderão.

Uma consideração final… Na parte de trás da capa, junto com a breve sinopse, constam palavras elogiosas a HEX, atribuídas a George R. R. Martin e Stephen King. A opinião de King, principalmente, terá sempre muito peso quando estivermos falando de um novo autor de terror, e eu ouso dizer que a ideia central de HEX é "nível Stephen King" – mas ter uma boa ideia não é tudo. Thomas Olde Heuvelt ainda terá bastante trabalho pela frente se pretender um dia ter uma escrita tão ágil, fluida e viciante quanto a de King, e talvez nunca chegue a isso, o que não o impedirá de ser um excelente escritor mesmo assim; o fato é que HEX é um tanto irregular, com muitos trechos arrastados e pouco empolgantes, embora, no saldo final, recompense bem o leitor. E, já que mencionamos Martin, não custa observar, como nota de rodapé, que em HEX, assim como em Game of Thrones, qualquer personagem pode morrer. Por último, é preciso ressaltar a edição, como sempre muito bem feita, da DarkSide, selo que está fazendo um grande trabalho em prol da literatura fantástica, especialmente a de terror, no Brasil.

quarta-feira, junho 20, 2018

O Satanista

Mandar logo de cara uma longa digressão não é a maneira mais aconselhável de se começar um texto, e sei que já fiz isso diversas vezes aqui no blog; ultimamente tenho procurado evitar, mas desta vez vai ser impossível. Sendo assim, prometo tentar não alongá-la demais!

Bem… Como a maioria dos fãs de heavy metal e de rock em geral, tive, na juventude, a minha fase de querer saber o máximo que fosse possível sobre as bandas de que gostava; na época, antes da popularização da internet, fazíamos isso basicamente por meio de revistas. Fase essa que, no meu caso, passou – não a de gostar de metal, pois ainda gosto e não me parece que isso vá mudar, seja lá com que idade eu estiver; apenas não consigo mais me importar tanto com histórias, curiosidades e detalhes de todo tipo sobre as bandas. Hoje me contento em curtir a música e não ligo muito para o resto. Para dar uma ideia, há bandas que já conheço há anos e adoro, mas só sei o nome de um ou dois membros; nos velhos tempos isso seria impensável, eu teria o nome de cada integrante e seu respectivo instrumento na ponta da língua, feito escalação de time de futebol.

Como sabe quem entende um pouco do assunto, houve três bandas, todas elas surgidas no Reino Unido no final dos anos 60, que são consideradas o tripé sobre o qual toda a história do heavy metal foi construída: Led Zeppelin, Deep Purple e Black Sabbath. Tecnicamente falando, o Sabbath ficava bem atrás dos outros dois grupos (que contavam com músicos experientes, alguns deles com formação clássica); não obstante, há muita gente que o considera o mais influente dos três, além de ter sido a primeira banda de heavy metal propriamente dita da História – o Led e o Purple estavam mais próximos do que chamamos hoje de hard rock, com fortes traços do blues no caso do primeiro, e da música clássica no segundo.

(Quero esclarecer que, ao dizer que o Black Sabbath era, do ponto de vista técnico, a menos notável daquelas três grandes bandas, não estou de forma alguma tirando seus méritos: gosto pra caramba do Sabbath e inclusive considero Tony Iommi um dos guitarristas mais criativos da história do som pesado. Porém, basta ouvir e comparar os dois ou três primeiros discos de cada uma para perceber que, das três bandas, o Sabbath era a que fazia o som mais simples, já que seus músicos não tinham, pelo menos no início, tanto conhecimento técnico – leia-se anos de conservatório – quanto os do Led e do Purple. Foram-se aprimorando com o tempo, o que pode ser sentido nos álbuns seguintes.)


Já havia gente fazendo som pesado na época, mas o Sabbath, e especialmente seu vocalista, John "Ozzy" Osbourne, foi o grande responsável por definir a estética, os códigos, a vibe daquilo que seria mais tarde chamado de heavy metal. O fascínio do cantor por ocultismo logo se refletiu nas letras das músicas – o maior exemplo disso é sem dúvida a primeira faixa do primeiro álbum, de 1970; tanto a faixa quanto o álbum tinham o mesmo nome da banda. Como Ozzy contaria em entrevistas muitos anos depois, sua identificação com essa temática chegou a colocá-lo em situações estranhas, como quando era procurado por pessoas querendo convidá-lo a tomar parte em todo tipo de ritual macabro, sendo que, na verdade, ele próprio nunca teve qualquer envolvimento com o ocultismo: era só um curioso, um fã declarado de filmes de terror.

E, de acordo com uma matéria que li certa vez numa revista sobre rock, houve outro grande responsável, além da produtora cinematográfica Hammer, por formar o imaginário de Ozzy no tocante aos temas soturnos e sobrenaturais: o escritor inglês Dennis Yeats Wheatley (1897-1977), autor tão prolífico quanto popular, que, dos anos 30 aos 60, publicou dezenas de romances, embora relativamente poucos fossem de terror – a maior parte eram narrativas de aventura e suspense, muitas delas com ambientação histórica, destacando-se a série sobre Roger Brook, uma espécie de James Bond dos séculos XVIII e XIX (ou talvez fosse melhor dizer que Bond é um Roger Brook do século XX, já que seu criador, Ian Fleming, era fã de Wheatley e confessava-se influenciado por ele). Até onde pude apurar, de toda a extensa bibliografia de Wheatley, só dois livros ganharam edições brasileiras: A Máscara do Mal, que é uma das aventuras de Brook, e este O Satanista, publicado originalmente em 1960.

A narrativa orbita em torno do coronel William Verney, que tem o apelido de C. B., iniciais de "Conky Bill" ('Bill Narigudo') devido a seu traço fisionômico mais marcante. Eu não iria ao ponto de chamá-lo de protagonista, mas ele funciona como uma espécie de eixo, conectando as diferentes subtramas. Verney trabalha na Inteligência britânica, e, no início da história, acaba de receber a informação de que um de seus agentes, o jovem Ted Morden, foi encontrado morto. Morden estava investigando os sindicatos trabalhistas da região de Londres, a fim de tentar descobrir até que ponto eles estavam infiltrados, talvez até controlados, por agentes do comunismo internacional (lembrem-se, era a virada dos anos 50 para os 60, com a Guerra Fria entrando em seu período mais tenso), e seria lógico supor que foi assassinado por esses agentes após ter sido descoberto, mas as condições em que o corpo foi encontrado levam C. B., que já viu coisas parecidas antes, a crer que haja mais: as marcas no corpo do rapaz sugerem que ele tenha sido sacrificado em algum ritual diabólico. A linha de investigação de Morden é assumida por outro agente, Barney Sullivan, um irlandês de origens aristocráticas, a quem seu chefe praticamente implora que tome precauções redobradas. Ao mesmo tempo, Mary Morden, a viúva de Ted, decide tentar por conta própria descobrir o assassino ou assassinos de seu marido e levá-los à justiça. O coronel Verney, embora não possa aceitar a participação de Mary nas investigações, nem prestar-lhe qualquer ajuda oficial em nome de seu departamento, oferece-lhe alguns conselhos e dicas, em especial confidenciando-lhe suas suspeitas de que a morte de Ted pode ter sido ritualística. Mary, uma jovem estonteante de apenas 23 anos, mas já com um passado complicado, está disposta a valer-se de tudo ao seu alcance, inclusive de seus encantos físicos, para vingar o marido. Verney decide não contar a Sullivan sobre os esforços de Mary e vice-versa: deixa-os agir independentemente um do outro, para melhorar as chances de que, no caso de um dos dois ser apanhado, o outro escape. O coronel não sabe, nem pode saber, que os dois jovens se conhecem há anos, embora não se vejam há muito tempo.

Não sei qual a profundidade dos conhecimentos de Dennis Wheatley sobre o satanismo – tanto seus credos e fórmulas quanto seu modus operandi –, nem de que forma ele teria obtido tais conhecimentos, mas a descrição que ele nos oferece de como funciona o recrutamento é bastante plausível: membros de irmandades satânicas frequentam encontros genéricos onde se reúne gente de todos os tipos, tendo em comum apenas algum grau de interesse por temas místicos e esotéricos. A grande maioria, claro, é de meros curiosos, que sentem falta de alguma coisa que vá além da vulgar realidade material, mas não possuem a necessária firmeza de propósitos para adotar uma religião; querem um sabor de "transcendência" em suas vidas, contanto que isso não exija mudança de hábitos ou atitudes. Enfim, basicamente indivíduos comuns e inócuos, do tipo que se acha altamente místico porque leu dois livros comprados na lojinha esotérica do shopping e acendeu uns incensos – mas, em meio ao grupo, pode sempre haver um ou outro com ambições mais sérias e, possivelmente, sinistras. Nesses encontros, o satanista infiltrado vai conhecendo e sondando os outros frequentadores para ter uma ideia de quais deles estariam abertos a um convite para ingressar em seus círculos – e, mais importante que isso, quais deles seriam aquisições interessantes para esses círculos. É num desses encontros esotéricos light, promovido por uma senhora de Londres, que Barney e Mary se reencontram. Ela o reconhece imediatamente, mas ele não a reconhece porque, a conselho do coronel Verney, ela usa um disfarce: sendo naturalmente loira, adotou um visual moreno, além de alterar mais alguns detalhes de sua aparência e usar um nome falso. Ambos estão ali por causa de suas investigações, e não de algum interesse no oculto, mas, é claro, nenhum deles revela ao outro suas motivações. Mary, por causa de sua bela aparência, torna-se logo alvo das atenções do Sr. Ratnadatta, um indiano filiado a um culto satânico (é uma noção amplamente aceita que grupos satanistas sempre procuram recrutar mulheres atraentes, já que o sexo desempenha papel importante em seus ritos), que a leva a reuniões secretas nas quais a jovem descobre que aquilo tudo não é puro delírio nem fantasia: o sobrenatural é real, e os poderes do mal também.

O Satanista apresenta-se como "uma história de magia negra" (isso está escrito na capa, pelo menos nesta edição da Record), mas também é outras coisas, e, na verdade, o ocultismo e temas relacionados a ele não ocupam tanto espaço assim. Há um forte componente de espionagem, e essa parte gira em torno de dois personagens, os gêmeos Otto e Lothar Khune, nascidos nos Estados Unidos, mas filhos de pais alemães. Quando o Partido Nacional-Socialista chegou ao poder na Alemanha na década de 1930, Lothar emigrou para o país de seus pais e pôs-se a serviço do Terceiro Reich; mais tarde, com a derrota dos nazistas na guerra, bandeou-se para o lado dos comunistas soviéticos. Otto, enquanto isso, foi viver na Inglaterra, tornando-se um leal súdito britânico naturalizado. Ambos são cientistas, ligados a pesquisas no campo dos foguetes e mísseis, e, como gêmeos, possuem uma espécie de vínculo mental e emocional – só que, neles, isso é muito mais forte que o usual entre outros gêmeos, chegando ao ponto de um conseguir, às vezes, influenciar os pensamentos do outro ou ver por meio de seus olhos; se um sofre um ferimento, o outro também sente a dor. Enfim, é o mesmo tipo de ligação que existia entre os gêmeos Lucien e Louis de Franchi no livro Os Irmãos Corsos, de Alexandre Dumas, o que faz todo o sentido, já que Wheatley começa o livro com uma efusiva homenagem ao escritor francês, dando a entender ser ele um de seus autores favoritos e uma de suas principais influências. Não é preciso dizer que, como ambos lidam com informações altamente secretas e trabalham para lados opostos, isso gera situações complicadas. Otto, Lothar e todos os eventos que os envolvem parecem, de início, não ter relação alguma com o núcleo satânico londrino ou com o que se passa com Mary e Barney, mas o vínculo aparece quando o coronel Verney descobre que Lothar está na Inglaterra e que sua base de operações é a mesmíssima casa onde se realizam os encontros semanais dos satanistas.

O enredo geral de O Satanista é inegavelmente interessante, mas é difícil não fazer um leve "tsc, tsc" ao constatarmos que o autor não se furtou a um certo contorcionismo para enfiar em seu livro os temas que estavam mais em evidência na época – todo mundo andava preocupado com mísseis, com espionagem internacional e com a possibilidade de um confronto nuclear de proporções globais, de modo que Wheatley aparentemente achou uma boa ideia misturar esses assuntos com a magia negra que deveria ser o carro-chefe da história. A meu ver, essa alquimia ficou bastante forçada. Os personagens são bem estereotipados, provavelmente um reflexo do fato de que o autor estava acostumado a escrever segundo um método, de forma quase industrial, para conseguir produzir um ou dois bestsellers por ano, e, na minha opinião, o excesso de detalhamento sobre como funcionam por dentro a polícia, o serviço secreto e a diplomacia na Grã-Bretanha só contribui para deixar a narrativa mais árida e cansativa. Perto do final, Verney, Sullivan e seus companheiros descobrem que um figurão satanista megalômano roubou um artefato nuclear e o levou para um esconderijo nos Alpes suíços, de onde pretende lançá-lo a fim de precipitar a Terceira Guerra Mundial; essa parte do livro foi claramente planejada para ser uma tensa corrida contra o tempo a fim de impedir a catástrofe, mas só consegue ser burocrática e tediosa ao narrar os encontros de C. B. e Barney com diversos homens importantes de cuja ajuda eles necessitam para deter o doido, seus deslocamentos de um lugar para outro… De quebra, as descrições de diversas belas paisagens suíças deixam em evidência que Wheatley conhecia e adorava o país (e quem não adoraria?), mas as dissertações turísticas, ainda que interessantes, soam deslocadas ao virem misturadas com essa situação que era para ser desesperadora. O autor também não negligenciou uma outra arma para atrair público que já funcionava no começo dos anos 60 tal como hoje, o sexo, mas valeu-se desse recurso da maneira que os usos da época permitiam (a "revolução sexual" só viria alguns anos depois): o ato é bastante mencionado, mas nunca descrito em qualquer detalhe.

Quanto à qualidade editorial, essa me surpreendeu negativamente por oferecer um português sofrível, o que eu não esperava em se tratando de uma edição da Record, editora que sempre tive em bom conceito. Os problemas no uso do idioma são diversos, mas o mais recorrente é a crase, que é muito mais usada do que deveria, e poucas vezes da maneira correta. Estou acostumado a reclamar do fato de haver gente por aí trabalhando com tradução e/ou revisão de livros que, pelo nível de conhecimento que demonstra, não deveria nem passar perto de uma editora, e, pelo visto, esse problema não é de hoje (não há informação da data da edição, mas, em todo caso, é antiga).

Vocês já devem ter percebido, considerando o jeito como este post começou, mas lá vai: cheguei a este livro e a este autor devido a suas conexões com o Black Sabbath, que me deixaram curioso, e confesso que minhas expectativas eram bem exageradas. O Satanista nem chega perto de entregar tudo o que eu esperava em termos de suspense ou terror. Até achei que podia ser culpa da minha cabeça de leitor cujos gostos se formaram entre o final do século XX e o início do XXI, acostumado, por exemplo, com um Stephen King, que costuma pegar muito mais pesado nos componentes tenebrosos e/ou sobrenaturais, mas aí lembrei de sujeitos como H. P. Lovecraft, contemporâneo de Wheatley, e Arthur Machen, que é um pouco anterior, e concluí que não é questão de época; eu apenas não me identifiquei com o estilo de Wheatley, nem com seu jeito de desenvolver os temas – pelo menos neste livro. A leitura aconteceu por curiosidade, e é como uma curiosidade que ficará registrada; nada aqui me empolgou pra valer.