quinta-feira, outubro 25, 2018

O Voo da Águia

O segundo volume da saga Águias do Império de Simon Scarrow começa praticamente onde o primeiro termina. O exército romano acaba de estabelecer sua primeira base de operações relativamente firme em solo britânico, tendo enfrentado para isso uma árdua batalha, e prepara-se para prosseguir com seu avanço de conquista. O general Aulo Pláucio e seus oficiais (entre eles Vespasiano, legado da Segunda Legião Augusta, e seu tribuno superior, Vitélio) sabem que precisam tomar a cidade de Camulodunum (trata-se da atual Colchester, e nesta tradução adota-se a versão aportuguesada "Camulodônia") antes que o mau tempo do outono e inverno tornem inviável a continuidade da campanha pelo restante do ano: a cidade é sede da aliança de tribos forjada por Carátaco, chefe dos catuvelaunos, para tentar resistir à invasão romana. Esse movimento tem dupla importância: tomando Camulodunum, os romanos quebrarão a espinha da aliança dos bretões e, além disso, darão uma de-monstração de força que poderá convencer várias tribos britânicas ainda neutras a apoiá-los. Se falharem e tiverem que esperar até a primavera seguinte, poderá ser tarde demais, pois Carátaco terá tempo de consolidar sua aliança e desferir um ataque fatal, tirando vantagem de sua superioridade numérica e melhor conhecimento do terreno. Só que tomar Camulodunum não será fácil: só para chegar até a cidade, as legiões precisarão atravessar dois rios, o Durobrivae (que, por alguma razão, Scarrow preferiu chamar pelo nome moderno, Meadway) e o Tamesis (Tâmisa), obstáculos naturais que Carátaco, sem dúvida, saberá usar a seu favor.

Nos bastidores da Segunda Augusta, a rivalidade velada entre Vespasiano e Vitélio está equilibrada, graças ao princípio da "destruição mútua assegurada": cada um conhece certos segredos que, se revelados, custariam a carreira e, provavelmente, também a vida do outro. Isso mantém os dois disputando um tenso jogo de xadrez no qual um só passo em falso pode ser fatal. Ambos estão destinados a serem imperadores – um deles por curto tempo e deixando uma memória ingrata, enquanto o outro se tornaria um dos mais notáveis a vestir a púrpura durante os 500 anos do período imperial romano. Porém, nessa época ainda não há como alguém saber disso.

Já entre os "meros mortais" que integram a legião, o jovem Quinto Licínio Cato, já com quase um ano de caserna, está, por fim, sentindo-se um legionário digno desse nome e, como optio, sua ajuda é valiosa para seu centurião, Lúcio Cornélio Macro, homem bravo e justo, mas um tanto bronco. Junto com a Nona, Décima Quarta e Vigésima legiões, a Segunda Augusta atravessa o Durobrivae em meio à feroz oposição dos bretões, resultando numa batalha sangrenta, na qual a Segunda, por estar com seu contingente reduzido, é utilizada como reserva… mas, para a aflição de Macro, Cato e seus companheiros, no momento em que eles são mais necessários e estão prontos para entrar em ação, a ordem de avançar não vem – e, desnecessário dizer, sem essa ordem eles não podem intervir, de modo que são obrigados a ficar olhando enquanto a Nona enfrenta a fúria dos bretões e sofre baixas pesadas. Chega a parecer que alguém no comando está sabotando a batalha, mas a Nona confirma a fama de unidade valente e durona que já então tinha, e ganha o dia, mesmo com tudo indo contra. A ordem para a Segunda avançar, quando finalmente vem, parece ter sido dada no último momento possível. Ainda assim, há luta suficiente para que Cato abata mais alguns inimigos e sofra um ferimento de certa gravidade.

As provações ainda estão longe de acabar. Na região pantanosa entre o Durobrivae e o Tamesis, a Segunda Legião, impossibilitada de se reagrupar, fica dividida em pequenas subunidades que se veem envolvidas numa série de escaramuças, nas quais os bretões, familiarizados com o terreno, levam vantagem. Num momento desesperado, em que a Sexta Centúria, já reduzida em número, parece na iminência de ser aniquilada, Macro ordena a Cato que tente salvar o restante da centúria enquanto ele próprio fica para trás, com um punhado de homens, para tentar atrasar o inimigo, num ato heroico e praticamente suicida. O jovem optio cumpre a missão, mas fica totalmente sem chão com a perda de seu centurião, que ele julga morto… Claro que não é spoiler dizer que Cato está enganado – todo mundo sabe que a série continua ainda por vários volumes e que, neles, Macro continua aparecendo, mas, durante alguns dias, não se tem notícias dele, o que automaticamente coloca Cato no comando interino, função na qual ele não se sente nada à vontade – e quem poderia culpá-lo, sendo ainda tão pouco experiente? De qualquer forma, Cato e os soldados, de comum acordo, determinados a vingar seu centurião, apresentam-se como voluntários para fazer parte da primeira leva de tropas que atravessará o Tamesis; essa primeira leva terá que segurar as coisas por ali até que a segunda chegue para ajudá-la, e mesmo os meros minutos que os transportes levarão para cruzar o rio de volta, embarcar a segunda leva e retornar podem ser tempo suficiente para que eles sejam massacrados. Essa parte é muito propícia a que Simon Scarrow dê mais uma demonstração de suas habilidades como narrador de batalhas. É interessante notar que esse tipo de batalha – um exército tentando atravessar um rio, fosse vadeando-o ou por meio de embarcações, enquanto o outro tentava impedi-lo – seria muito típico das guerras medievais, séculos mais tarde. As legiões romanas eram insuperáveis como infantaria pesada, mas, justamente por causa do peso de seu equipamento, sua mobilidade no campo de batalha era limitada; era mais vantajoso para elas esperar que o inimigo tomasse a iniciativa de atacar, mas, devido à própria natureza das batalhas travadas no Durobrivae e no Tamesis, desta vez viram-se forçadas a assumir postura ofensiva, o que teve seus custos em termos estratégicos e acarretou sérias baixas. A conquista da Britânia não sairia barata ao Império.


Uma vez assegurado o controle da travessia dos rios, o exército comandado por Pláucio está finalmente em condições de avançar para Camulodunum, mas não pode fazer isso de uma vez: o imperador Cláudio, determinado a tirar daquela campanha todo o proveito político que puder, faz questão de estar presente para posar de herói conquistador, embora, é claro, não vá tomar parte em batalha alguma – ele nunca teve saúde para ser soldado, e, além disso, nessa época já não é jovem, sem contar que não teria muito cabimento um imperador arriscar a vida dessa forma, considerando que sua morte repentina poderia facilmente lançar o Império no caos. Vespasiano reflete que, enquanto o exército romano permanece parado, esperando pela chegada do imperador, Carátaco está tendo tempo para se preparar, e diz consigo mesmo que "a vaidade de Cláudio podia matá-los a todos", mas, para crédito de Cláudio, a verdade é que não se trata de mera vaidade, e sim de uma maneira de consolidar-se no trono.

Por esse tempo, há em Roma um movimento semissecreto conhecido como "os Liberais", que tem por objetivo a restauração da República, e pretende alcançar isso sabotando tudo o que o imperador tente fazer, como a campanha da Britânia, por exemplo. Nesse caso, eles podem estar agindo de uma forma bastante direta: Macro, Cato e outros soldados na linha de frente começam a notar que muitos chumbos lançados pelos fundibulários britânicos e muitas espadas empunhadas por seus guerreiros são de fabricação romana. Se fosse numa escala menor, nada disso seria de se estranhar – os fundibulários poderiam estar simplesmente reaproveitando os chumbos lançados pelos romanos contra eles, e as espadas poderiam ser despojos de batalhas anteriores, mas a presença de tais itens na quantidade em que estão sendo encontrados só pode significar uma coisa: há romanos fornecendo armas aos bretões. A primeira e natural suspeita de Vespasiano é que algum comerciante romano, mais sensível à sede de lucro que ao patriotismo, esteja negociando com os bárbaros por baixo dos panos, mesmo correndo o risco de ser apanhado, caso no qual seria executado publicamente da forma mais dolorosa e vergonhosa possível – era assim que Roma lidava com traidores. Porém, a realidade parece ser ainda mais sinistra: há nisso o dedo dos Liberais, e, o pior de tudo, Vespasiano suspeita que sua própria esposa, Flávia, uma nobre dama romana com trânsito livre na corte imperial, esteja envolvida.

Quando Cláudio finalmente chega, traz consigo reforços substanciais sob a forma de tropas e máquinas de cerco, tudo isso muito bem-vindo pela força expedicionária romana, já combalida pelas batalhas. Traz também, curiosamente, alguns elefantes (!), muito mais para fazer vista que qualquer outra coisa: embora isso tenha sido tentado por mais de uma vez, não parece que tenha havido algum sucesso consistente em utilizar elefantes em combate de forma eficaz no exército romano, nem mesmo com a colaboração de mahouts (condutores) nativos da África, provavelmente cartagineses ou númidas – esses povos, antes de serem subjugados, haviam lutado contra os romanos, muitas vezes utilizando elefantes com resultados terríveis. Por outro lado, a simples visão dos paquidermes costumava valer por um golpe severo no moral do inimigo, que geralmente nunca tinha visto nem imaginado semelhantes "monstros". Para eles, os animais pareciam algo saído de um pesadelo.

(A título de curiosidade, os elefantes de Cláudio, embora parecendo enormes aos olhos dos bretões e mesmo da maioria dos romanos, provavelmente não eram tão grandes quanto nós, modernos, os imaginaríamos, pois quase certamente pertenciam a uma subespécie hoje extinta, a Loxodonta africana pharaoensis, que habitava o vale do Nilo e outras partes do norte da África e era menor que as outras duas subespécies de elefantes africanos, que ainda existem e que, por habitarem a África subsaariana, eram exóticas para os povos da bacia do Mediterrâneo na Antiguidade. Essa subespécie menor era a mesma dos elefantes de guerra empregados por Cartago nas Guerras Púnicas.)

Bem… Quando escrevi meus comentários sobre A Águia do Império, primeiro volume desta série, deixei registrado meu estranhamento quanto ao detalhe de que Cláudio tivesse ordenado a Vespasiano que investisse o adolescente Cato no posto de centurião – ordem essa totalmente disparatada e que, se cumprida, seria certeza de desastre para a centúria em questão e, numa batalha, poderia até afetar toda a coorte, num efeito dominó. Acontece que o Cláudio aqui retratado (pois, neste volume, ele aparece) seria perfeitamente capaz de ordenar isso. Scarrow pinta-o como um tolo completo, talvez até levemente retardado – um papel que Cláudio representava quando julgava necessário, mas que não correspondia a sua personalidade real. É ponto pacífico entre os historiadores que ele foi um governante competente, que tomou decisões sábias na administração e na justiça do Império e era estimado pelo povo, além de ter sido um intelectual de capacidades não desprezíveis, autor de vários livros de História considerados notáveis pelos acadêmicos das gerações seguintes, mas que, infelizmente, não foram preservados até nossos dias. Aqui, porém, Cláudio é retratado como um pateta vaidoso, completamente manipulado por seu homem de confiança, o liberto Narciso, e, enquanto permanece na frente de combate, por vezes dá pitacos absurdos, obrigando o general Pláucio a verdadeiros contorcionismos de retórica para salvar seu exército sem afrontar o imperador. Fiquei até as últimas páginas na expectativa de ver Cláudio, talvez em particular com Pláucio ou com Vespasiano, tirar a máscara de abobado e começar a falar com autoridade e firmeza (mesmo que continuasse a gaguejar!), mostrando-se como realmente era, mas isso não aconteceu.

Outro ponto discutível que encontrei foi numa passagem em que Cato (no exercício de suas funções administrativas na centúria) e Macro estão conversando sobre um soldado que precisou ter uma perna amputada devido a um ferimento gravíssimo em combate e que, por conta disso, seria mandado para casa tão logo recebesse alta do hospital de campanha. Não estou encontrando o trecho agora para me certificar dos detalhes (livro físico também tem suas desvantagens), mas, pelo que minha memória reteve, Macro relembra os veteranos aleijados que ele via nas ruas de Roma quando jovem, levando vidas miseráveis e dependendo da caridade alheia para sobreviver; então, para poupar seu legionário ferido desse destino, promove uma coleta entre os companheiros para que ele tenha o capital inicial para abrir um negócio, talvez fabricando calçados ou alguma outra atividade que possa exercer sentado. A questão é: todas as fontes históricas que já consultei a respeito das legiões romanas (e acreditem, foram muitas, ao longo de mais de 30 anos) são unânimes em afirmar que um legionário inválido não ficava entregue à própria sorte. Havia o aerarium militare, talvez o primeiro sistema de previdência institucionalizado e regulamentado da História, que era custeado em parte por um desconto compulsório sobre os soldos dos legionários na ativa, em parte por outras verbas provenientes de impostos e destinadas pelo governo imperial. Esse sistema garantia uma renda aos soldados inválidos ou às famílias dos que morressem. Dependendo de seu nível de educação e da qualificação profissional que possuísse, um legionário que ficasse incapacitado para lutar podia, também, ser remanejado para funções administrativas ou de apoio dentro do próprio exército ou em diferentes órgãos públicos.

Como parece ser característico da série Águias do Império, em O Voo da Águia encontramos a alternância entre partes que tratam do cotidiano dos legionários (incluindo as batalhas, é claro) e outras que envolvem política, intriga e suspense. Neste volume, há uma conspiração em andamento para assassinar Cláudio, e, como no livro anterior, Macro e Cato vão ver-se envolvidos na trama, resultando numa situação em que nenhum dos dois gostaria de estar metido, mas na qual terão que mobilizar toda a sua coragem para tentar salvar a vida do imperador. Suponho que procurar equilibrar os dois aspectos dentro da narrativa seja a aposta de Simon Scarrow para evitar que qualquer um deles se torne cansativo, e devo dizer que, na minha opinião, funciona. Suas histórias são interessantes, intensas e satisfazem plenamente o leitor interessado na Antiguidade romana. Seguirei lendo e recomendando.