quarta-feira, agosto 11, 2010

Vlad: a Última Confissão

"(...) - Quanto ao contexto dos meus pecados, é simples. (...) Eu preciso governar.
- Você governa.
- Não. Eu me sento no trono. Ele está colocado no centro da terra mais sem lei do mundo. E fui colocado nele para mudar isso. Este é o meu kismet.
- Não conheço essa palavra.
- É uma palavra dos turcos. Uma tradução aproximada seria um 'destino inalterável'. Dado por Deus no nascimento. (...)
- Você está dizendo que não pode evitar o que faz?
- Sim.
- Este não é o ensinamento de nossa Igreja, de sua fé. Cada homem tem uma escolha, fazer o bem ou o mal.
- Então talvez eu tenha me desviado da Ortodoxa nesse ponto. Porque sei o que estou destinado a fazer e como fazê-lo. Não posso fazer outra coisa."

* * *

Vlad III Basarab (1431?-1476), príncipe da Valáquia, não é uma figura histórica como outras. É difícil obter alguma informação sobre ele além do que todo mundo sabe: que serviu de inspiração para que o escritor irlandês Bram Stoker criasse o mais famoso vampiro da literatura, Drácula. Experimentem uma busca rápida no Google com o nome dele, ou com qualquer de seus apelidos mais famosos, Vlad Tepes ou Vlad Drácula: praticamente só vão encontrar uma lista infindável de textos em sites sobre vampirismo, enfatizando o vasto derramamento de sangue que ele promoveu em sua terra (na época um principado subordinado ao reino da Hungria, hoje uma das províncias que formam a Romênia), e talvez mencionando o desconcertante fato de que, quando seu túmulo foi aberto, em 1933, só ossos de cavalo foram encontrados - o que, em se tratando de um homem sobre cujas supostas afinidades sobrenaturais já se cochichava desde quando ele era vivo, levantou as inevitáveis dúvidas sobre se ele teria realmente morrido, se, morrendo, teria permanecido morto, ou... Bem, vocês entenderam.

O que C. C. Humphreys faz neste livro é tentar encontrar o homem por trás do mito, reconstituindo a vida de Vlad desde sua juventude (boa parte da qual passada como refém dos turcos) para tentar entender os porquês de seus atos. Não há propriamente um juízo de valores nestas páginas, mas o autor consegue, sem formular a questão em termos explícitos, fazer com que o leitor se pergunte qual a explicação para que o mesmo homem considerado um herói em seu país (pois Vlad o é) seja visto no resto do mundo como um mero assassino psicótico que, para o azar da humanidade, herdou uma coroa e um trono, numa época em que os atos dos poderosos não eram contestados.

O romance começa em 1481, cinco anos após a morte de Vlad, quando o cavaleiro húngaro Janos Horvathy, ele próprio um membro da Ordem do Dragão (à qual também pertencia Vlad) chega à Valáquia com a missão de investigar e descobrir a verdade sobre o príncipe; se possível, tentar reabilitar seu nome, já que o excesso de sangue que manchou sua história acabou prejudicando a reputação dessa irmandade outrora venerável. Para tanto, ele reúne as últimas três pessoas vivas que privaram da intimidade de Vlad: Ion Tremblac, cavaleiro valáquio, que foi seu braço direito e melhor amigo; Ilona, amante do príncipe; e o ex-monge Vasilie, seu confessor. É através dos depoimentos deles que a extraordinária história de Vlad Drácula será recuperada.

A vida de Vlad desenrolou-se em situações limítrofes, tanto no tempo quanto no espaço. Em sua época, a Europa atravessava o traumático período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna - é possível que ele tenha sido testemunha ocular da queda de Constantinopla nas mãos dos turcos (1453), evento que, por convenção, costuma ser tomado como linha divisória entre as duas eras. Ao mesmo tempo, seu pequeno país estava cravado exatamente onde o Ocidente cristão encontrava o Oriente Médio muçulmano: onde dois mundos colidiam. E, a exemplo do que seus irmãos maometanos do norte da África - mouros, berberes - haviam feito na Península Ibérica séculos antes, os turcos do Império Otomano pretendiam agora expandir a influência do Islã pelo leste europeu. E a Valáquia estava em seu caminho.

O pai de Vlad, príncipe Vlad II, era conhecido tanto pela coragem em batalha quanto pela forma impiedosa como costumava tratar inimigos vencidos. E inimigos não faltavam, tanto externos - os turcos, cujo furor expansionista estava no auge nessa época - quanto internos: boa parte dos boiardos, isto é, dos nobres, não tinham nada contra cooperar com os invasores, desde que a margem de lucro fosse suficientemente alta, além de cobiçarem o trono e não recusarem qualquer ajuda para chegar a ele, viesse de onde viesse. Por sua participação na resistência contra o invasor muçulmano, Vlad II recebera do patriarca da Igreja Ortodoxa a alta honraria de ser nomeado membro da Draculea, a Ordem do Dragão, e por isso ficou conhecido como Dracul (dragão, em romeno), passando seus filhos homens a terem o direito de usar o epíteto de Dracula: os "filhos do dragão".

Vlad II acabou derrotado pelo sultão turco Murad na batalha de Galípoli, e, entre as concessões que teve de fazer, entregou os dois filhos mais jovens, Vlad e Radu, como reféns ao inimigo vitorioso, enquanto apenas o mais velho, Mircea, permanecia em sua companhia. O tratamento dispensado aos reféns segundo o romance faz lembrar o que os romanos davam aos filhos de chefes bárbaros sob sua tutela: confortos condizentes com sua posição social e, mais importante, a melhor educação possível - dentro da cultura do povo vitorioso, é claro. Vlad aprende várias línguas, poesia, literatura, matemática, além de ser iniciado naquela que se tornaria sua grande paixão, a falcoaria. Também estuda a fundo o Corão, o que não o leva a abraçar a fé islâmica, mas é de suma importância para que compreenda melhor os turcos, contra os quais não duvida em nenhum momento de que um dia terá de lutar. Até que um passo em falso dado por seu pai tem consequências terríveis: Vlad é transferido para a fortaleza de Tokat, onde amarga longas semanas num calabouço e depois é integrado à força a uma turma de estudantes que se dedicam a matérias bem menos edificantes que as que estudara até aí: métodos de tortura, alguns dos quais o jovem sente na própria pele. E é em Tokat que Vlad pela primeira vez vê um homem ser empalado, técnica que os turcos aprenderam com os saxões da Transilvânia e aperfeiçoaram.

Paradoxalmente, Vlad acaba contando com o favor de Murad para não só recuperar sua liberdade, como para conquistar seu direito: durante seu período como refém, seu pai e seu irmão mais velho haviam sido assassinados por uma liga de boiardos traidores, e aos 18 anos, à frente de um pequeno exército de valáquios fiéis e de tropas cedidas pelo sultão (que provavelmente imaginou que um príncipe coroado graças a sua benevolência se tornaria um fantoche útil), Vlad recupera o trono da Valáquia e senta-se nele pela primeira vez - ao longo de sua turbulenta carreira esse trono seria perdido e recuperado nada menos que três vezes. É só mais tarde, durante seu segundo e mais longo período de governo (1456-1462), que ele ganha a fama que o acompanharia até o túmulo e muito além: começa empalando os nobres que conspiraram contra seu pai e depois instaura a mesma pena para todos os crimes, de qualquer tipo, que venham a ser cometidos. Com isso, consegue transformar a Valáquia de uma terra sem lei, onde o enorme número de bandidos nas estradas havia inviabilizado o comércio, num país seguro e próspero, o que faz com que a população comum o veja com bons olhos. Isso, mais as diversas vitórias que obteve contra os turcos, mesmo em grande inferioridade numérica, valeu-lhe o status de herói nacional de que ainda hoje goza na Romênia. E no entanto...

É difícil separar fato de ficção em relação a qualquer vulto histórico, e talvez nenhum outro seja tão difícil nesse ponto quanto Vlad. Pode-se (e isso já foi feito) retratá-lo simplesmente como um patriota obstinado que desejava o melhor para seu país e para isso estava disposto a tudo - inclusive a atos brutais e chocantes - ou como um perfeito monstro, que se deliciava com o derramamento de sangue e aproveitava qualquer pretexto que se apresentasse para ordenar verdadeiros holocaustos. Os romenos gostam de acreditar que seu antigo príncipe sabia usar o terror como uma arma para alcançar objetivos válidos: punir com brutalidade exemplar qualquer criminoso apanhado era uma maneira de fazer outras pessoas pensarem mil vezes antes de cometer crimes, enquanto, para os soldados turcos, marchar por uma estrada ladeada pelos cadáveres empalados de centenas de seus camaradas era sem dúvida um golpe severo no moral, o que só podia beneficiar os valáquios. E, para quem quiser entrar nesse mérito, o que não farei aqui, é interessante lembrar que, além de todos os outros motivos de notoriedade, Vlad provavelmente foi o primeiro governante da História a ter o poder da imprensa mobilizado contra si: a então recente invenção de Gutenberg permitiu que panfletos narrando seus crimes fossem copiados aos milhares e amplamente distribuídos em vários países. Tenha isso sido um golpe de difamação orquestrado por seus inimigos, ou mero resultado do faro comercial de alguns indivíduos que perceberam que podiam lucrar com a curiosidade do público por histórias assustadoras (ei, isso não é uma maravilha? A imprensa marrom nasceu praticamente junto com a própria imprensa!), o fato é que fica praticamente impossível saber quanto do que dizem esses folhetos é verdade e quanto é fantasia.

Humphreys parece ser o tipo de escritor que gosta de personagens complexos e contraditórios, e soube fazer de "seu" Vlad um exemplo perfeito e completo disso: ora ele ganha nossa admiração, ora nos causa horror. As qualidades que o autor atribui ao príncipe são aquelas que já eram imaginadas por quem conhecia um pouco mais sobre ele do que apenas seus atos sanguinolentos: qualquer um que tenha tido a trajetória de vida que Vlad teve só podia tratar-se de um homem com uma vontade de ferro e uma coragem inabalável. Além disso, ele tem facetas diferentes: pode ser incrivelmente cruel, mas também gentil - enfim, é humano. E o melhor é que há no livro vários outros personagens fascinantes, além de uma narrativa vigorosa, envolvente, como há tempos eu não via. Pena que o autor ponha tudo isso a perder com um final que tenta ser surpreendente, mas só consegue parecer absurdo: no lugar de Humphreys, eu teria terminado o livro no capítulo 50, pois os dois últimos e o epílogo são um delírio só. Não que eu seja um daqueles chatos que ficam cobrando "verossimilhança" em obras de ficção (e Vlad: a Última Confissão é ficção, mesmo que baseada em fatos históricos), mas há ficções que convencem e outras que soam artificiais. Até o capítulo 50, o livro de Humphreys se enquadra no primeiro tipo; daí para diante, cai no segundo.

quarta-feira, julho 14, 2010

Conhecimento Prático - Literatura

Como este é o meu "blog de literatura", e trata-se de um fato deveras relevante para as minhas aspirações literárias, peço licença aos meus leitores para registrar que, pela primeira e espero que não última vez, tive um texto de minha autoria publicado numa revista de circulação nacional. Refiro-me à revista Literatura, do grupo Conhecimento Prático, da editora Escala Educacional, que também inclui Língua Portuguesa, Filosofia e Geografia. Meu modesto trabalho intitula-se Eneida: a evolução do herói, e é um breve ensaio sobre a visão do heroísmo retratada na obra-prima do poeta romano Virgílio, que veio a ser também o grande poema nacional de Roma, tal como a Ilíada e a Odisseia foram para a Grécia. O assunto despertou minha curiosidade quando estava redigindo meu trabalho de conclusão da faculdade e, ao fazer um estudo comparativo entre a obra de Virgílio e as de Homero, dei-me conta de que, apesar de toda a influência que este último exerceu sobre o outro, a ideia do que fosse um herói não era a mesma para ambos. É um assunto sobre o qual pode-se escrever todo um livro - projeto que continuo acalentando -, mas considero-me, por ora, satisfeito com o resultado que pode ser visto nas páginas da revista, e ficaria deveras lisonjeado se algumas das pessoas que acompanham meu blog porventura a lessem e me enviassem suas impressões, não importa que não especializadas. Como dizem os aficionados por futebol ao verem seu time fazer o primeiro gol numa partida que até aí ameaçava terminar no zero a zero, "por onde passa um boi, passa uma boiada", então já tenho cá os meus planos para mais alguns artigos.

segunda-feira, junho 28, 2010

A Maldição do Titã

OK, OK, pode parecer meio suspeito que uma série para adolescentes ocupe tanto espaço num blog cujo autor já vai adiantado na casa dos 30 e, para completar, é formado em Letras e um leitor com muitas "horas de voo" e um conhecimento não desprezível dos clássicos da literatura universal, mas não dá para resistir à empolgação de ver que, contra todas as expectativas, surgiu um autor capaz de dar à mitologia grega clássica uma roupagem que a torna assimilável pela garotada de hoje, sem desvirtuá-la! Não é difícil imaginar um dos jovens leitores de Rick Riordan, após terminar este livro, indo para a internet procurar mais informações sobre mitologia ou, ainda melhor, abrindo um daqueles velhos volumes encadernados que juntam poeira na sala de visitas da casa dos avós para saber em mais detalhes quem eram os Titãs, Héracles, Ártemis, Apolo... O que, como já disse e repito, é um dos maiores serviços que um escritor pode prestar à humanidade nos dias de hoje.

A Maldição do Titã é o terceiro volume da série Percy Jackson e os Olimpianos, e, se eu fosse pôr os títulos na ordem em que mais me agradaram, colocaria este em segundo lugar, por não ser tão bom quanto O Ladrão de Raios, mas melhor que O Mar de Monstros. Percy está agora com 14 anos e recebe a missão de ir, com as também meios-sangues Annabeth e Thalia, atender a um chamado de seu velho amigo Grover, o sátiro, que, como já tantas vezes antes, está infiltrado numa escola, como olheiro, para investigar a possível presença de outros filhos de deuses. E ele localizou dois, cuja filiação divina ainda é desconhecida, mas que são obviamente poderosos: Bianca di Angelo, de 12 anos, e seu irmão Nico, de dez. Como não é difícil prever, Percy e seus amigos logo se veem envolvidos numa luta com monstros a fim de tirar os irmãos Di Angelo da escola e levá-los em segurança até o Acampamento Meio-Sangue - mas surgem dois fatos não tão previsíveis: o primeiro é que, prestes a ser derrotado, o quarteto é salvo pela deusa Ártemis e suas Caçadoras virgens, que parecem surgir do nada justamente no momento certo; o segundo é que um monstro, em sua fuga, acaba levando Annabeth consigo.

Essa, aliás, é uma das grandes sacadas do livro: Annabeth não aparece durante a maior parte da história, mas, de certa forma, está presente o tempo todo, já que o fato de saber que ela está em algum lugar, sendo mantida prisioneira pelo inimigo, leva Percy a, pela primeira vez, refletir de verdade sobre a natureza de seus sentimentos por ela. E ele não se sente melhor ao descobrir que Annabeth pensava em juntar-se às Caçadoras de Ártemis - donzelas adolescentes que acompanham a deusa em suas aventuras, ganhando a imortalidade em troca do juramento de renunciarem para sempre ao amor. Esse pensamento nunca é formulado de forma explícita, já que Percy é o narrador da história e Riordan, habilmente, faz com que haja coisas que o jovem herói não admitiria nem perante si próprio, mas é fácil compreender que a questão que mais o tortura é: "Ela faria mesmo isso? Mas... e eu?" Não há como não se solidarizar com sua angústia.

Porém, o sofrimento de Percy parece insignificante diante dos acontecimentos que se desenrolam: fica-se sabendo que o exército de Cronos - o Senhor dos Titãs, que tem a ambição de retomar o poder que os Olimpianos lhe tiraram há milhares de anos - tem um novo comandante, um misterioso "General", sob cujas ordens estão agindo Luke, o filho rebelde de Hermes, um ex-campista do Acampamento Meio-Sangue, e seu bando de monstros e semideuses renegados. Toda essa buona gente está atrás de um monstro em especial, um tão terrível que, dizem as profecias, seria capaz de destruir o Olimpo. Ártemis decide partir sozinha para tentar localizar e liquidar esse monstro antes que os lacaios de Cronos o encontrem - e, como Annabeth, cai nas garras do inimigo. Organiza-se então um grupo de busca misto, formado por campistas e Caçadoras, para partir numa missão de triplo objetivo: resgatar Ártemis, descobrir o monstro da profecia e, se possível, tentar libertar Annabeth.

A presença de Thalia contribui para tornar o convívio do grupo de aventureiros mais complicado, já que, como filha de Zeus, ela tem um gênio um tanto tempestuoso, mas isso é apenas a ponta de um iceberg: em O Mar de Monstros Percy tomou conhecimento de uma profecia que dizia que, quando um meio-sangue, filho de um dos Três Grandes (Zeus, Poseidon ou Hades) completasse 16 anos, ele ou ela teria de tomar uma decisão que poderia salvar o Olimpo ou destruí-lo - e, se o Olimpo for destruído, toda a civilização ocidental vai para o beleléu. O detalhe interessante é que Thalia estava morta na ocasião, de modo que Percy, como o único filho vivo conhecido de um dos Três Grandes, parecia, sem sombra de dúvida, ser a pessoa da profecia. Porém, a partir do momento em que Thalia foi trazida de volta à vida pela magia do Velocino de Ouro, já não há certeza: pode ser ela ou Percy.

A aventura segue a receita já conhecida dos fãs de Rick Riordan: doses de tensão, ação e humor alternadas de forma habilidosa, personagens cativantes, um uso inteligente do potencial infinito de gerar coisas "pitorescas" que existe em misturar a mitologia com o mundo moderno (o deus Apolo retratado como um playboy que guia um Maseratti em vez da tradicional carruagem do Sol é simplesmente impagável!), muitos mistérios a desvendar, e um final surpreendente. O único defeito da saga de Percy Jackson e os Olimpianos é que, mais cedo ou mais tarde, ela terá que acabar...

sábado, maio 29, 2010

Fúria de Titãs


Acabo de voltar do cinema, onde assisti ao remake do clássico Fúria de Titãs (1981), um dos filmes que marcaram minha infância. E para falar a verdade, tendo em vista toda a expectativa que eu naturalmente havia criado, preciso confessar que esperava bem mais... O novo filme não faz justiça a seu antecessor, e muito menos à mitologia grega que inspirou a ambos.

Primeiramente, eu não assisti ao Fúria de Titãs original quando foi lançado no cinema - em 1981 eu tinha seis para sete anos de idade, devia ter ido ao cinema duas ou três vezes na vida, e um filme como esse seria provavelmente considerado "forte", como se dizia na época e região, para uma criança da minha idade (pode parecer piada se pensarmos nas coisas a que as crianças de hoje assistem livremente e todo mundo acha normal, mas eram os tempos). Vi o filme quando passou na TV, dois ou três anos depois. Mais tarde o revi em VHS e, faz agora uns três anos, encontrei em DVD e comprei: ele hoje integra uma pequena coleção de filmes que dizem muito sobre minha pessoa, pois, juntamente com um monte de livros, foram realmente uma influência, de uma forma ou de outra.

Não foi esse filme que me despertou o interesse por histórias de deuses, heróis e monstros: tanto quanto posso lembrar, eu já nasci fascinado por mitologia. Já conhecia a lenda de Perseu antes de ver Fúria de Titãs, e, por alguma razão, ele sempre foi o meu preferido entre os heróis gregos - eu gostava das narrativas dos trabalhos de Hércules, mas me parecia que, tendo a força que ele tinha, ser um grande herói não era mais que sua obrigação. Também gostava de Teseu, Jasão e seus Argonautas, e dos outros, e, não obstante, Perseu era meu preferido. Talvez fosse pelas circunstâncias de seu nascimento, aquilo de ser lançado às águas e salvo delas (crianças lançadas às águas são um tema recorrente em muitas lendas e histórias: foi igual com Moisés, Rômulo e Remo, Amadis de Gaula...), pelo fato de ter cavalgado o magnífico Pégaso (um cavalo alado foi por muito tempo uma das coisas que eu mais desejei) ou pela natureza impossível de sua principal façanha: combater e matar uma criatura sem poder olhar para ela. Não importa: fosse por que motivo fosse, o fato é que Perseu era meu herói preferido, e por isso, a princípio, não gostei muito das liberdades que o primeiro Fúria tomou em relação à lenda original, mas, depois de me acostumar à ideia, adorei o filme, ainda que só mais tarde fosse aprender que não adiantava esperar que nenhuma história que eu já tivesse lido fosse continuar igual ao ser transformada em filme. Agora, ao ver o remake, minha contrariedade por ver as liberdades tomadas para com a lenda se soma à de ver outras liberdades tomadas para com o primeiro filme... Meio difícil explicar.

Fúria de Titãs, dirigido por Desmond Davis, com Harry Hamlin como Perseu, foi o último e, para muitos, melhor trabalho de Ray Harryhausen, o mago da animação stop motion, que utilizava modelos fotografados quadro a quadro para dar vida a criaturas fantásticas em filmes. Outro trabalho dele do qual me lembro (e que adoraria ter em minha DVDteca - será que não está em catálogo? Há tantos filmes antigos sendo relançados... Preciso verificar) é Simbad e o Olho do Tigre, uma de várias produções sobre o heroico marinheiro árabe.

A Lenda de Perseu

A lenda original de Perseu é relativamente simples. Acrísio, rei de Argos, tem uma filha, Dânae, de beleza incomparável. O pai, como era costume na época, consulta um oráculo sobre o futuro da menina, e o vaticínio que ouve não poderia ser pior: ela terá um filho, que irá um dia causar a morte dele. Numa tentativa de evitar o destino (o que, como todo grego sabia, era inútil, mas personagens de lendas tinham que fazê-lo para servirem de exemplo), Acrísio decide nunca permitir que Dânae conheça homem algum, para que a criança profetizada nunca nasça. Então, tranca a filha numa torre, onde Zeus, o deus supremo, entra sob a forma de uma chuva de ouro. Uma vez lá, seduz a jovem e a engravida. Quando a criança nasce, Acrísio, tendo certeza de que nenhum homem poderia ter visitado Dânae sem que ele soubesse, é obrigado a acreditar no que ela conta sobre a paternidade do menino, mas, ainda aterrorizado pela profecia, tenta mais uma vez fugir ao destino: manda encerrar Dânae e Perseu numa arca e lançá-los ao mar para morrerem - mas é claro que não morrem. A arca é encontrada, próximo à ilha de Sérifos, por um pescador, que confia os dois náufragos a seu amo, Polidectes, rei da ilha. Ele os acolhe, mas, tempos depois, começa a assediar Dânae. Quando Perseu chega à idade adulta, o rei, pensando em tirá-lo do caminho, dá-lhe a missão de ir matar a górgona de nome Medusa, um monstro em forma de mulher, com serpentes em vez de cabelos, cujo simples olhar transforma qualquer ser vivo em pedra. Perseu recebe ajuda dos deuses, que lhe dão armas divinas e um par de sandálias aladas para vencer as vastas distâncias (não, não foi o Pégaso, ainda). No caminho de volta, Perseu passa pela Etiópia, que, para os gregos antigos, não era o humilde país africano que conhecemos, e sim uma terra fabulosa, mais ou menos como o reino Tão-Tão Distante do Shrek, e vê uma linda jovem acorrentada a um rochedo na praia, enquanto um apavorante monstro marinho dirige-se para ela. A certa distância estão os chorosos pais, que, naturalmente, são os reis do lugar, Cefeu e Cassiopeia. Perseu conversa rapidamente com eles e fica sabendo que Tétis, uma deusa do mar (sim, ela mesma: a futura mãe de Aquiles), exigiu o sacrifício da princesa Andrômeda ao apetite do monstro Cetus, como expiação por ter Cassiopéia tido a insensatez de comparar a beleza da filha à da própria Tétis. Em algumas versões, Perseu vence Cetus num combate leal, com sua espada e sua coragem; em outras, simplesmente usa a cabeça (no caso, a de Medusa, não a sua própria) e transforma o monstro num monumento. Depois disso, prometendo retornar, parte de volta a Sérifos e apresenta orgulhosamente o troféu que fora mandado buscar, a cabeça da górgona - petrificando instantaneamente Polidectes e sua corte e livrando sua mãe do assédio indesejado. Depois de casar com Andrômeda, Perseu parte com ela numa peregrinação a sua terra natal, Argos, onde, participando de uma competição atlética, arremessa o disco com tamanha força, que o objeto bate no chão e, quicando, vai atingir violentamente no peito um velho que passa pelo local - e que, é claro, é seu avô, Acrísio, e sofre morte instantânea, de modo que mais uma vez fica provada a inutilidade de lutar contra o destino: o fatalismo era uma das características básicas do pensamento grego clássico. Resta a dizer apenas que Perseu aparentemente não herdou dos sogros o reino da Etiópia (talvez Andrômeda tivesse irmãos mais velhos; a lenda nada diz a respeito), já que, segundo a tradição, teria fundado Micenas - que, no devido tempo, iria tornar-se a mais poderosa das cidades gregas - e sido seu primeiro rei.

Curiosidades Mitológicas

De acordo com a lenda, Perseu não montou Pégaso ao ir em busca da Medusa, já que o fabuloso garanhão alado só nasceria depois da decapitação da górgona. A lenda colateral que narra a origem da Medusa conta que ela teria sido sacerdotisa de Atena, e uma mulher de grande beleza. Tão bela, de fato, que tentou Poseidon, o deus do mar, que a procurou sob forma humana, como um belo guerreiro portando uma espada de ouro, e os dois fizeram amor dentro do templo onde ela servia - o que deve ter sido visto por Atena, uma deusa casta, como uma injúria grave. Na segunda vez, sabendo que Atena já estaria desconfiada, Poseidon adotou um estratagema: apareceu sob a forma de um garanhão (o cavalo era seu animal favorito) e transformou Medusa numa égua, após o que os dois galoparam até um local distante para novamente consumar seu amor. Mas Atena não se deixou enganar: furiosa, e não podendo fazer nada contra Poseidon, que afinal era seu tio e um deus mais poderoso que ela, descontou sua fúria na sacerdotisa, privando-a para sempre de sua beleza e de qualquer convívio humano ao transformá-la no monstro horripilante que sabemos. Muitos anos mais tarde, quando Perseu decapitou Medusa, do sangue que escorreu do cadáver nasceram os dois filhos que Poseidon lhe havia feito: o primeiro foi o filho que Poseidon gerou sob forma humana, e por isso nasceu também humano. Apossando-se da espada de ouro que seu pai deixara no templo (donde lhe veio o nome, Crisaor, "o da espada de ouro"), veio a praticar certas façanhas notáveis que, infelizmente, eu não conheço; o segundo foi justamente Pégaso, que Poseidon gerara sob a forma de cavalo. De que maneira Perseu encontrou Pégaso, eu não sei, mas consta que ele realmente o montou. Mais tarde, o cavalo alado serviria ainda a outro herói de menor projeção, Belerofonte, o matador da Quimera.

Em ambos os Fúria de Titãs, o monstro marinho que aparece é chamado de Kraken, nome que na verdade pertence à mitologia germânica/nórdica, onde designava uma lula gigante, capaz de afundar navios. No primeiro filme, ao ordenar a Poseidon que liberte o tal Kraken, Zeus refere-se a ele como "o último dos titãs" - coisa que não faz nenhum sentido. Os titãs não eram monstros, eram deuses, na verdade a geração anterior aos Olimpianos: um deles, Cronos (o Tempo) foi o pai dos seis deuses maiores do Olimpo - Zeus, Poseidon, Hades, Hera, Deméter e Héstia, que, direta ou indiretamente, deram origem a todos os outros. Além disso, mesmo que Kraken fosse um titã, seria tolice dizer que era "o último": Zeus e os irmãos travaram uma guerra contra os titãs, mas não puderam matar nenhum deles, já que eram imortais também. Em vez disso, tiveram que aprisioná-los no Tártaro, a região mais profunda do submundo que Hades passou a governar.

Como já mencionei acima, o verdadeiro nome do monstro que Perseu derrotou para salvar Andrômeda era Cetus, nome que, graças à lenda, passou a significar "monstro marinho" de um modo geral - tanto, que foi adotado pela moderna zoologia para designar as baleias e seus parentes: os "cetáceos". Em Moby Dick, Herman Melville dedica todo um divertidíssimo capítulo à tentativa de demonstrar as origens antigas e nobres da balearia - entre outras coisas, tenta provar por A mais B que o tal Cetus da lenda era mesmo uma baleia, o que faria de Perseu, provavelmente, o primeiro baleeiro de que se tem notícia! :)


O Novo Filme

O novo
Fúria de Titãs, estrelado por Sam "Avatar" Worthington (não que Avatar possa me servir de referência, já que até agora não o vi) parte de uma premissa bastante absurda, mesmo para um filme de fantasia: os homens teriam declarado guerra (guerra mesmo, literalmente!) contra os deuses, levando a cabo ataques que vão desde demolir seus templos e estátuas até pôr cerco ao monte Olimpo (!!). Não que não seja plausível a ideia de que muitas pessoas se revoltassem contra os desmandos dos muitas vezes fúteis e cruéis deuses gregos, capazes de desgraçar vidas e destruir nações só para satisfazer paixões condenáveis como luxúria ou vingança ou para acariciar a própria vaidade; o que eu não consigo "engolir" é que alguém, e ainda mais um grande número de pessoas, pudesse ter apostado na viabilidade prática de lutar contra um inimigo de poder ilimitado e que simplesmente não podia ser morto. O cerco ao Olimpo, aliás, teria sido movido pelo rei Acrísio, que, aqui, não é avô, e sim padrasto do herói Perseu: no novo filme, foi a esposa, e não a filha do rei quem foi seduzida por Zeus. Presumivelmente como castigo pelo cerco, e pelo que fez a Perseu e sua mãe, Acrísio é amaldiçoado com deformidade física (e, por alguma razão misteriosa, ao mesmo tempo abençoado com força sobre-humana e poderes especiais) e passa a ser conhecido como Calibos - personagem não mitológico, importado do primeiro filme, se bem que apenas o nome foi mantido: sua origem, histórico, motivações e aparência mudaram completamente.

Embora Perseu, criado por um pescador, tenha visto toda a sua adorada família adotiva perecer como vítimas inocentes numa batalha sem sentido entre homens e deuses (sem sentido, tanto na visão do personagem quanto pelos motivos que expus no parágrafo anterior) e, por consequência, esteja tão revoltado contra os Olimpianos quanto muitos outros homens, seu pai Zeus (interpretado por Liam Neeson) ainda assim aposta que ele poderá ser uma peça chave para restabelecer a paz entre mortais e imortais. Desta vez, o que causa a libertação do Kraken e a exigência do sacrifício de Andrômeda são as blasfêmias da rainha Cassiopeia, não motivadas por uma justa revolta, e sim por mera soberba. De passagem, registro que Andrômeda, no novo filme, parece uma versão Grécia Antiga da rainha-santa D. Isabel de Portugal, e é interpretada pela francesa Alexa Davalos - nem de longe tão bonita quanto Judi Bowker (*suspiro*), que no esplendor dos 27 anos fez a personagem no filme de 1981.

Pelo visto, o Perseu versão 2010 também não achou Davalos tão fascinante assim, pois os dois não terminam juntos - o que não surpreende, já que, nos poucos minutos de filme em que contracenam, não chega a rolar a menor sugestão de algum clima. Para que o herói não termine chupando o dedo, o que seria inadmissível em Hollywood, o roteirista enxertou uma personagem chamada Io (Gemma Arterton), oriunda de outra lenda que nada tem a ver com a de Perseu.

Mais uma vez, tocou ao pobre Hades (interpretado pelo excelente Ralph Fiennes) o papel de deus-vilão: Hollywood não perde a mania de tentar imputar aos antigos a mesma atitude hipócrita que a sociedade moderna tem em relação à morte. Se Hades governa o reino dos mortos, ele tem que ser "mau"... Uma noção absolutamente estúpida e que não encontra apoio nenhum na mitologia ou no modo de pensar de gregos e romanos (ambos povos que sempre tiveram uma atitude natural e serena em relação à morte), mas que a indústria cultural atual continua explorando.

Nem é preciso dizer que o filme é uma verdadeira vitrine de efeitos especiais mirabolantes, usados principalmente nas criaturas míticas - Medusa, o Kraken, Pégaso, os escorpiões gigantes, os
djinns (mais um enxerto: não sei bem o que os djinns são, mas sei que pertencem ao folclore árabe), mas, embora eu admita que são todos visualmente perfeitos, sou um tanto chato quanto a isso: como sei que já escrevi em outro post, a meu ver, excesso de realismo é antes prejudicial que meritório quando se quer mostrar seres fabulosos num filme - uma aparência um pouco mais irreal os tornaria mais fascinantes. Conclusão: eu gostava mais dos monstros de Harryhausen... Por isso, e também por não ter gostado do roteiro, dou no máximo uma nota cinco a esse novo Fúria de Titãs, que, quando sair em DVD, certamente não figurará na minha estante ao lado da versão antiga, que continuo preferindo sem a menor dúvida.

quarta-feira, abril 14, 2010

Cerimônias Satânicas


O título deste livro é um exemplo típico de adaptação com objetivos marketeiros, um daqueles casos em que não é ao tradutor que deve ser atribuída a culpa: o pessoal da editora que publicou a obra no Brasil deve ter achado que a tradução direta do título original, que era simplesmente The Ceremonies, não soaria forte o bastante em português (e talvez estivessem certos nesse ponto...) e lascou o "satânicas" para atiçar a curiosidade dos fãs de literatura de terror. Na verdade, não há nada de especificamente satanista no enredo deste excelente romance. Na capa, lê-se uma opinião altamente elogiosa atribuída a ninguém menos que Stephen King! Talvez não haja como checar a autenticidade de tais palavras, mas, ao chegar ao fim do livro, não é difícil acreditar que essa é uma história da qual o "home" teria gostado.

Como em muitos romances do gênero, temos aqui um prólogo enigmático, seguido de um "início da história propriamente dita" aparentemente corriqueiro e inocente. No prólogo, uma "coisa" não nomeada assume o controle da vontade de um menino que a encontra por acaso (será?) ao afastar-se da fazenda onde mora e embrenhar-se na mata, nos Estados Unidos do século XIX, e começa a "instruí-lo"... A natureza dessa "coisa" permanece misteriosa: talvez tenha origem extraterrestre, talvez seja sobrevivente de um passado pré-humano ao estilo Lovecraft, mas nada se sabe com certeza. Em qualquer caso, nada tem a ver com o Satã da tradição judaico-cristã.

No início da história propriamente dita, já "nos dias de hoje" – o que, quando o livro foi escrito, significava algum momento da década de 1980 –, conhecemos Jeremy Freirs, estudante e professor em Nova York, que, às vésperas de completar 30 anos, ganha a vida ministrando cursos livres sobre literatura e cinema, enquanto prepara uma dissertação sobre o romance gótico – é claro que Klein gosta de literatura gótica, e, a bordo dos estudos de Jeremy, demonstra possuir invejáveis conhecimentos nesse campo: reencontrei nas páginas de Cerimônias Satânicas muitos dos autores e livros mencionados por H.P. Lovecraft em seu ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura (para mais detalhes, consultem meu texto sobre Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino), a maioria dos quais, infelizmente, continua inacessível ao público brasileiro. Klein chega a mencionar esse próprio ensaio! Mas desviei-me do assunto.

Jeremy encontra por acaso (?), no mural da biblioteca onde faz suas pesquisas, um anúncio de aluguel de verão colocado por um casal de Gilead, localidade rural não distante de Nova York, e decide passar lá suas férias, aproveitando a tranquilidade do campo para dedicar-se a sua dissertação. O casal, Sarr (que raio de nome é esse?) e Deborah Poroth, como quase todos os moradores do lugarejo, pertence à Confraria do Redentor, uma fictícia seita cristã fundamentalista cujos membros vivem isolados do mundo moderno e ainda guardam muitos preceitos do Velho Testamento há muito considerados ultrapassados pelas denominações cristãs principais (embora Sarr fale desdenhosamente da seita Amish, está na cara que esta foi o modelo direto para Klein criar a Confraria). A mãe de Sarr é uma espécie de Sibila local, cujos poderes proféticos despertam nos membros da comunidade uma mistura de respeito e temor. E ela descende justamente dos Troet, que vêm a ser a família do menino Absolom – aquele possuído pela "coisa" mais de um século antes.

Urdindo tudo, manipulando as pessoas sem que elas percebam, arquitetando cuidadosamente as interações entre elas, está um misterioso "Velho", que, de humano, conserva a aparência e pouco mais – é um servo da "coisa", totalmente dedicado aos misteriosos desígnios dela. Não estou dando spoiler ao revelar que o Velho é o próprio Absolom, já com uns 110 anos de idade ou mais: Klein não diz isso explicitamente até bem avançado o livro, mas qualquer leitor deduziria facilmente o fato. Ele encontra um meio de aproximar Jeremy de Carol, uma jovem que trabalha na biblioteca, e os dois iniciam um romance, mas o Velho tem o maior cuidado no sentido de sabotar qualquer oportunidade que pudessem ter de chegar às "vias de fato" – pois Carol é virgem, e é da máxima importância para os planos do Velho que permaneça assim. Para poder vigiá-la de perto e conseguir que confie nele, apresenta-se no papel de um velhinho bondoso, meio caduco, mas muito culto e viajado, que a contrata como auxiliar de pesquisa para um livro que alega estar escrevendo sobre a origem obscura de certas rimas e brincadeiras infantis, muitas das quais, segundo ele, remontam a rituais pagãos pré-históricos. Aproveitando-se dessa proximidade, o Velho desenvolve com Carol uma espécie de relação de avô e neta, e vai conduzindo os atos da moça na direção que interessa a ele e à força misteriosa à qual ele serve.

Eu chegaria a dizer que o elemento sobrenatural  que, embora magistralmente tratado, ocupa uma parte surpreendentemente pequena do livro – não é o principal em The Ceremonies. A história chama bem mais atenção por suas fugidias mas fascinantes referências a tradições antigas que continuam bem mais presentes no nosso dia-a-dia do que normalmente imaginamos (e bem mais do que muitos de nós gostam de acreditar) e pelo confronto entre visões de mundo diferentes – muitas vezes, dentro de uma mesma cabeça. Sarr Poroth, o jovem fazendeiro, membro fervoroso da Confraria do Redentor, pasmem, já foi estudante universitário fora da comunidade; trata-se de um homem de certa instrução, que voluntariamente renunciou ao mundo da cultura e do conhecimento para dedicar-se ao trabalho da terra (que ele considera "a única ocupação digna" que conhece) e voltar a viver no mundo simples, sem meios-tons, oferecido pela visão fundamentalista de sua seita: Deus está no céu e a Seus servos compete cultivar os Seus campos e louvá-Lo – qualquer coisa que vá além disso é pecado e mal. Uma ojeriza toda especial é reservada pelos Irmãos ao trabalho intelectual, que, na verdade, eles nem mesmo consideram trabalho: ficar sentado lendo e escrevendo, para eles, não passa de um disfarce para o pecado do ócio. Trabalho só é trabalho se deixar um homem suado e extenuado ao final do dia e lhe der calos nas mãos. De modo que Jeremy, trancado em seu anexo na fazenda dos Poroth, lidando o tempo todo com livros e papéis, torna-se alvo de desconfiança e desprezo generalizados na comunidade.

Mesmo assim, Sarr não consegue apagar a marca que o fato de ter tido estudo deixou nele. Uma das passagens mais interessantes do livro é uma na qual todos os seus vizinhos próximos, com as respectivas famílias, comparecem para ajudá-lo no plantio do milho – que é realizado à noite, com muitos toques ritualísticos que os Irmãos não percebem: simplesmente receberam a fórmula por tradição e não lhes parece existir outra maneira de fazer a coisa. A horas tantas (isso também faz parte da tradição), todos interrompem o trabalho e reúnem-se em torno de uma mesa ao ar livre para devorar um gigantesco pão de milho em forma de estrela de cinco pontas, maior que um homem. Enquanto os outros participam alegremente do trabalho e da refeição, sem se questionarem sobre coisa alguma, Sarr, se lembra do que leu na biblioteca da universidade sobre a origem desse costume: a estrela de cinco pontas é uma representação estilizada de um corpo humano, o da vítima sacrificial que outrora era oferecida aos deuses para propiciar uma boa colheita. Inquieta-o um pouco pensar que todos aqueles bons cristãos ali estão, sem saber, participando do que já foi em tempos um sangrento ritual pagão. Ter mais cultura significa ter consciência de muitas coisas que escapam às pessoas sem instrução – e isso nem sempre é agradável: pode, por vezes, ser bem perturbador. Sarr preferiria poder apagar da própria mente muitas coisas que aprendeu e voltar a partilhar a paz da ignorância com seus irmãos de seita, mas isso não está em seu poder. Por causa dessa mesma dualidade, ele é provavelmente o personagem mais complexo do livro, às vezes mostrando-se surpreendentemente inteligente e tolerante em questões religiosas ("A trovoada era uma colisão de moléculas, e também a voz de Deus; ambas deviam ser verdade. [...] Deus atende por muitos nomes diferentes e é adorado de muitas maneiras. Mas Ele é sempre o mesmo Deus. [...] A princípio [...] perturbavam-me as muitas e diferentes formas que Deus podia tomar. Mas, no final, descobri que podia voltar a acreditar com ainda mais fé do que tinha antes, porque consegui compreender que, mesmo quando Ele tinha nomes diferentes, era sempre o mesmo Deus que eu conhecia"), e outras, absurdamente ignorante em relação a essas mesmas questões ("Olhou para sua tia inconsciente [...]. 'Ela vai morrer, se não a levaram para um hospital...' Mas essa providência fora sugestão do demônio [...], remanescente dos anos que ele passara no perverso mundo exterior. Sabia agora que a oração funcionava tão bem quanto os instrumentos de um cirurgião"). Esse é o exemplo mais flagrante, mas de modo algum o único, da característica fascinante que tem The Ceremonies de conseguir oferecer uma multiplicidade de pontos de vista. Os personagens principais parecem ser Jeremy e Carol, mas a cada passagem temos uma visão diferente dos mesmos fatos, através dos olhos de um personagem diferente: além dos dois, também Sarr, Deborah, o Velho (cujos pensamentos são assustadoramente objetivos e desprovidos de emoção) e até figuras de pouca importância como Rochelle, a colega de quarto de Carol, e um ou outro dos Irmãos da Confraria, todos dão a sua versão das coisas.

Klein conseguiu a proeza de escrever um livro que, mesmo tão longo (mais de 600 páginas), não deixa o leitor impaciente em momento algum – não é como em outros livros extensos em que a gente enfrenta algumas partes chatas porque outras são interessantes: aqui, até mesmo o que não é (ou não parece) essencial para a trama tem o seu sabor próprio, e o estilo é sempre agradabilíssimo. Os personagens são convincentes e bem construídos, enfim, são pessoas de verdade, às quais o leitor consegue se afeiçoar, e, embora haja longos trechos com pouquíssimo ou nenhum teor sobrenatural, quando ele aparece, é de uma forma que o leitor dificilmente esquecerá. O destino do mundo está em jogo, e, de certa forma, o próprio fato de isso não ser aparente, nem do conhecimento da maioria dos personagens, aumenta o seu potencial ameaçador, ainda mais porque a tênue esperança que existe está nas mãos de pessoas comuns, que nem mesmo sabem com o que estão lidando.

Não será fácil achá-lo, já que trata-se de uma edição já antiga e, pelo menos até onde sei, não tem sido reimpresso, mas a quem tiver a sorte de encontrar The Ceremonies em seu sebo preferido, aconselho não pensar duas vezes: o pequeno investimento irá render muitas horas de leitura absorvente.

quarta-feira, março 31, 2010

Drácula

Recentemente, no Covil do Orc - um dos blogs que leio com mais frequência, e cujo autor também costuma honrar-me com suas visitas e comentários - li um post a respeito de Drácula, que, como Dom Quixote e um pequeno número de outros, é um daqueles livros sobre os quais todo mundo sabe alguma coisa, até mesmo quem nunca os abriu - e, não raro, até mesmo quem não tem o costume de abrir qualquer livro que seja pode saber algo sobre eles. Se não me falha a memória, isso era parte de uma das definições de "clássico" propostas por Ítalo Calvino. But that's not my point here.

O Orc atribui uma nota vermelha (ops!) a Drácula na avaliação geral, considerando a história como um todo entediante, com os momentos interessantes ou importantes separados uns dos outros por mares de páginas em que meramente são debatidas as questões pessoais dos personagens - e preciso concordar que, de fato, o livro melhoraria com uma boa enxugada. Também é verdade que não é oferecida explicação alguma para a razão pela qual o Conde resolve mudar-se de seu sossegado castelo nos Cárpatos para a agitação e a poluição da Londres vitoriana. Um dos visitantes que deixaram comentários ao texto do amigo Orc diz que teria sido por ter visto uma fotografia de Mina Murray, a noiva do herói (mais ou menos) Jonathan Harker, e nela reconhecido a reencarnação de sua própria noiva, morta há séculos... Na verdade, como bem observado pelo Orc ao responder, isso só aparece no filme (referindo-se, creio, à produção de 1992 dirigida por Francis Ford Coppola), e eu acrescentaria que, mesmo no filme, o fato não constitui explicação para a mudança do Conde: Jonathan, com a foto no bolso, só vai até o castelo de Drácula porque este o chama, interessado que está em comprar uma propriedade em Londres, negócio a ser mediado pela firma onde Harker trabalha. Ou seja, o vampiro já planejava mudar-se antes de saber da existência de Mina.

Sobre o filme, aliás, devo dizer que ele tem muitas qualidades: é visualmente magnífico, tem um roteiro que prende e um punhado de atuações notáveis, destacando-se Gary Oldman como Drácula e Anthony Hopkins, excelente como sempre, no papel de Van Helsing. Já Keanu Reeves, como Jonathan Harker, mostra-se tão expressivo quanto um peixe defumado, mas nada no mundo é perfeito mesmo... Winona Ryder, que interpreta Mina, não atua mal na minha opinião, mas eu, no lugar do diretor, escolheria uma atriz com mais "presença" (leia-se sex appeal) para o papel. Certo, ela passa a maior parte do filme como uma recatada professorinha, mas lá pelas tantas, sob a influência de Drácula, deveria parecer uma vampira sedutora e terrível - e não convence muito como tal. O fato é um pouco compensado pelas aparições breves mas memoráveis de Monica Belucci, ainda não tão famosa na época, mas deslumbrante como sempre, como uma das três servas-vampiras do Conde. E já que estamos falando das figuras femininas, faço um parêntese para assinalar que aquela doida ninfomaníaca que atende pelo nome de Lucy Westenra no filme não tem nada a ver com a delicada e virtuosa personagem homônima do livro!...

Vampiras à parte, talvez a coisa mais legal do filme seja a breve introdução ambientada no século XV, que explica a transformação do príncipe Vlad, de um devotado defensor de seu país e da Igreja Ortodoxa contra os invasores muçulmanos, para um conde vampiro mancomunado com o demo... No livro, Stoker não cita o nome de Vlad, embora ele tenha sido, sem dúvida, sua principal fonte de inspiração: em vez disso, permite ao próprio vampiro dar algumas pistas sobre sua identidade. No castelo, quando Jonathan ainda não sabe que ele é um vampiro, o Conde enaltece os feitos de um suposto "ancestral" que na verdade era ele próprio; mais tarde, já sem nada a esconder, ele gaba-se de ter governado nações e combatido por elas, séculos antes do nascimento dos que agora o veem.



Curiosidade 1: Só notei isso ao rever o filme para escrever este texto, mas o bispo que diz a Vlad que a alma de Elizabeta não poderá ser salva porque ela se suicidou é o próprio Anthony Hopkins, quase irreconhecível com cabelo longo e vastas barbas!


Curiosidade 2: Todos que já ouviram falar no príncipe Vlad Basarab sabem que ele era mais conhecido por seu apelido, Vlad Tepes, que significa Vlad, o Empalador. Era assim chamado por ter uma preferência especial por executar prisioneiros de guerra e desafetos em geral espetando-os em longas estacas. Na introdução do filme, um soldado turco aparece morrendo numa comprida lança que o atravessa do peito às costas - uma versão mais "apresentável", digamos, do que seria o verdadeiro empalamento, de cujos detalhes prefiro poupar meus leitores; basta dizer que era uma forma bem mais demorada, dolorosa, humilhante e chocante de morrer do que essa, tanto que jamais poderia ser mostrada nem mesmo num filme de terror... Pelo menos, não num com um mínimo de bom gosto.


Ao lado de todas essas qualidades, o filme de Coppola tem um grande defeito: é romântico demais. Mina e Drácula vivem uma relação intensa e apaixonada, com o coitado do Jonathan tendo que resignar-se à sina de corno de um morto-vivo... Há uma sequência na qual Mina pede a Drácula que a torne igual a ele, e a dramática resposta é que ele a ama demais para condená-la a uma existência tão miserável: só depois de muita insistência por parte dela é que o vampiro cede. Na parte equivalente do livro, ele simplesmente faz um corte no próprio peito com suas garras e obriga a moça a provar de seu sangue, a fim de consolidar seu domínio sobre ela. Para o Drácula do livro, Mina nada mais é do que uma ferramenta útil. Essa romantização exagerada, a meu ver, não se justifica num filme cuja intenção declarada era a de ser o mais fiel possível à obra original, objetivo esse denunciado já no próprio título, que não é simplesmente Dracula, e sim Bram Stoker's Dracula - Drácula de Bram Stoker! Mas temos que entender o lado de Coppola: Hollywood tem suas regras. Nenhum filme com ambições de alcançar grandes bilheterias pode deixar de ter um romance no meio.


Comentei acima sobre o visual impecável do filme, e o cuidado nesse sentido começou pelo próprio personagem principal: estamos acostumados à imagem de um Drácula de casaca, capa com colarinho alto e cabelo gomalinado - uma figura digna de teatro vaudeville. Isso é culpa de Tod Browning e Bela Lugosi, respectivamente diretor e ator principal de uma versão de Drácula filmada em 1931 e ainda considerada por muitos como a mais clássica, apesar de adulterar a história muito mais que o filme de Coppola (e de eu, pessoalmente, achar Lugosi mais cômico que assustador). Nada poderia estar mais distante da "verdadeira" aparência do Conde, que é descrito por Stoker como tendo cabelos longos e farto bigode - um visual muito mais selvagem e sinistro que o do vampiro-almofadinha encarnado por Lugosi e copiado em dezenas de filmes posteriores. Já Coppola e Gary Oldman optaram por compor a imagem de Drácula seguindo à risca a descrição de seu criador. Ponto para eles. Por outro lado, o diretor e/ou o roteirista parecem ter alguma admiração, apesar de tudo, pelo filme de Browning, pois pelo menos dois detalhes que não estão no livro foram copiados diretamente de um filme para o outro: a foto de Mina e a frase morbidamente zombeteira que o Conde diz ao servir o jantar a Jonathan. Desculpando-se por não acompanhá-lo, ele explica que já jantou e que além disso nunca bebe... vinho, insinuando que o líquido vermelho que lhe agrada ao paladar é outro.


Deixando o filme um pouco de lado e voltando a falar do livro, acho necessário dizer algumas palavras sobre seu autor. Abraham Stoker ("Bram" era um apelido de infância) nasceu em Clontarf, Irlanda, em 1847. Foi um menino débil e adoentado, que passou a maior parte da infância recolhido a um quarto, onde sua mãe, uma apaixonada por narrativas fantásticas, entretinha-o contando as histórias tradicionais do folclore irlandês, desde as mais engraçadas até as mais tenebrosas, o que deixou uma marca indelével na imaginação de Bram. Apesar de seu histórico de doença na infância, ele veio a tornar-se um homem de grande energia, resistência e determinação, trabalhador incansável. Formou-se em Matemática, mas trabalhou durante a maior parte da vida como jornalista e produtor teatral. Casou-se em 1878 com Florence Balcombe, tida e havida como uma das maiores beldades da Grã-Bretanha na época - consta que Stoker teve que disputar a mão dela com o também irlandês e escritor Oscar Wilde, que, como sabemos, não era exatamente "do ramo" (leia-se: preferia a companhia de rapazes), de modo que provavelmente não foi um rival que haja se empenhado muito. Ocorre que Florence não tinha só beleza: era também muito dominadora e uma espécie de pré-feminista, de modo que Stoker não desfrutou de uma vida doméstica das mais tranquilas. Suas heroínas dóceis, quase submissas, e totalmente devotadas aos maridos, poderiam ser uma forma de crítica que o escritor fazia ao gênio difícil de sua própria esposa - o que explicaria a presença, em Drácula, de frases que soam um tanto inverossímeis saídas da boca ou da pena de personagens femininas, como este trecho de uma carta de Lucy para Mina: "Minha cara Mina, por que os homens são tão nobres e nós mulheres nos mostramos tão indignas dessa nobreza?" (!) Acreditar em vampiros é fichinha comparado a acreditar que uma mulher, mesmo no século XIX, pudesse escrever isso!

Stoker escreveu ao todo 17 romances, alguns dos quais tiveram um sucesso discreto, mas Drácula, o oitavo pela ordem, não foi um deles: passou quase despercebido na época. O autor morreu em Londres, em 1912. Ah: caso estejam achando sem graça a capa do livro no início deste post, saibam que ela é histórica: trata-se da capa da primeira edição de Drácula, de 1897, da qual resta hoje apenas um punhado de exemplares. O que foi fotografado para esta imagem está no Museu dos Escritores, em Dublin.

Um comentário do Orc que achei brilhante foi que o método de narração escolhido por Stoker - o de não ter um narrador fixo, mas contar a história por meio de trechos de cartas e diários escritos por diferentes personagens - poderia ter rendido magnificamente, se explorado com mais habilidade. De fato, concordo: Stoker não consegue "vestir a pele" dos personagens, nota-se que o tom e o ponto de vista são sempre os mesmos, quer o texto seja atribuído a um funcionário de escritório de advocacia, a um médico ou a uma adolescente. Por outro lado, não dá para negar que ele fez um trabalho admirável ao compilar e organizar num todo coerente a vasta e caótica quantidade de informações que colheu sobre o mito do vampiro, partindo do folclore rural de seu próprio país, para ir descobrindo lendas sobre seres semelhantes entre quase todos os povos do globo - sendo que os habitantes da Romênia, sem a menor dúvida, falavam de vampiros com maior riqueza de detalhes, convicção e pavor que qualquer outro povo. Embora hoje desgastada pelo uso excessivo, a fórmula criada por Stoker foi durante muito tempo um dos mais interessantes materiais de que escritores de horror e fantasia dispunham para trabalhar. E Stoker fez ainda mais: mesmo sem nunca ter visitado pessoalmente a Romênia, encheu seu livro com ricas e pormenorizadas descrições de suas paisagens, geografia e de suas diferentes etnias, descrições essas que todos os estudiosos são unânimes em considerar cem por cento corretas - tudo fruto de milhares de horas de minuciosa pesquisa na biblioteca do Museu Britânico.

Curiosidade 3: Ao ler o livro pela primeira vez, alguns anos atrás, tive uma surpresa ao ver que o Conde realmente se transforma em morcego, o que eu julgava ser mais uma invenção dos filmes. Explico: a conexão entre vampiros e morcegos é relativamente recente - para ser mais exato, é posterior à colonização das Américas, pois só nas Américas Central e do Sul é que foram descobertos os famosos morcegos hematófagos (sugadores de sangue). Os morcegos da Europa não passam de inofensivos comedores de insetos, de modo que ninguém pensou em relacioná-los ao folclore vampírico. Nas lendas mais antigas, dizia-se que os vampiros costumavam assumir a forma de lobos (o que Drácula também faz), gatos ou pássaros, mas parece que Stoker gostou da novidade e adotou o morcego.

Um ponto interessante do livro (e que o filme, por dispor do recurso da imagem, potencializa) são os sinais de modernidade espalhados por toda parte e que, se o leitor tentar pensar com a cabeça da época, constituem, misturados ao mero fato da existência dos vampiros, um contraste bizarro. Jonathan viaja para a Transilvânia a bordo de sofisticados trens a vapor, Mina escreve seu diário usando uma máquina datilográfica, enquanto o Dr. Seward registra o seu por meio de um gravador de bobina e pede a ajuda de Van Helsing via telégrafo... Que diabos, estes são tempos modernos, científicos, pleno final do século XIX! Num mundo onde existe tudo isso, como ainda pode haver lugar para "superstições" como o vampirismo? A ideia de horrores antigos e mistérios sobrenaturais se perpetuando no tempo, sem se importar com todo o progresso que a humanidade acredita ter alcançado, contribui com sua dose de implicações sinistras.

Tenho que admitir, há duas coisas em Drácula que são realmente duras de aguentar: o discurso "edificante" e repetitivo de alguns personagens sobre sua "missão sagrada de livrar o mundo de semelhante monstro" (Van Helsing é o pior nesse quesito) e, o que chega a ser ainda mais chato, a interminável "rasgação de seda" entre os protagonistas, que não perdem uma só oportunidade de dizer uns aos outros o quanto são pessoas extraordinárias e cheias de qualidades admiráveis - e nunca o fazem da forma mais sucinta possível: não raro, essa mútua puxação de saco ocupa uma página inteira, quebrando o ritmo e o clima, o que é ainda mais prejudicial numa história de terror do que numa de qualquer outro tipo. Mas há compensações: os primeiros capítulos, com Jonathan aprisionado no castelo de Drácula e aos poucos descobrindo a inacreditável verdade sobre seu anfitrião; a descrição, pelo olho clínico do Dr. Seward, dos sintomas da loucura de seu paciente Sr. Renfield e as ligações sutis entre os atos deste último e os do Conde; a narrativa arrepiante da libertação final da alma de Lucy mediante a destruição de sua forma vampírica por seu noivo Arthur e Van Helsing; a terrível cena em que Drácula transforma Mina em sua escrava ao forçá-la a beber seu sangue após ter sugado o dela; e, é claro, a tensa e implacável perseguição do Conde pelo grupo de heróis através dos ermos da Romênia, são, todas elas, cenas que dificilmente perderão o lugar de destaque que ocupam há mais de cem anos nos anais da ficção de horror.

Minha conclusão: Drácula certamente não é candidato a um lugar na lista das dez maiores obras da literatura universal, mas, com os defeitos que possa ter (e tem), segue sendo a melhor história de vampiros a que já fui apresentado. E nestes tempos de Crepúsculo, redescobrir a obra de Bram Stoker pode ter o mérito adicional de nos dar um vislumbre do que era a figura do vampiro antes de sua atual "pasteurização" - quando rostos pálidos e presas longas verdadeiramente metiam medo, e figuravam nos pesadelos de gerações inteiras.