quarta-feira, setembro 28, 2011

Conan, o Bárbaro

E eis que a aventura A Hora do Dragão, único romance escrito por Robert E. Howard sobre seu mais famoso personagem, o bárbaro Conan, chega finalmente ao Brasil numa edição caprichada, embora intitulada simplesmente Conan, o Bárbaro e com a imagem do cartaz do filme servindo de capa... É incômodo dependermos das marés da indústria do cinema para ter acesso a obras que deveriam estar sempre em catálogo, mas vá lá: pior seria não termos acesso a essas obras de maneira nenhuma, como aconteceu durante muito tempo.

Howard (1906-1936) foi um jovem gênio de destino trágico. Filho de um médico da pequena cidade texana de Cross Plains, cresceu num "mundo real" bastante limitado, típico de cidades interioranas em quase qualquer lugar, mas compensou esses limites com uma poderosa imaginação, exercitada desde a primeira infância, e com uma insaciável curiosidade sobre o mundo. O Dr. Isaac Howard depressa perdeu as esperanças de que seu único filho seguisse seus passos na medicina, mas também via com grande desconfiança as ambições do rapaz de ser escritor – o que era naquela época, como ainda hoje, um ganha-pão muito incerto, mesmo para os dotados de talento. O jovem Bob passou por diversos empregos, desde balconista até carteiro, mas não criou raízes em nenhum. Seu primeiro passo para a profissionalização como escritor aconteceu quando sua história Spear and Fang ('Lança e Presa', um conto de homens das cavernas, escrito quando ele tinha 15 anos) foi publicada, na edição de julho de 1925 da revista Weird Tales. Durante os anos seguintes, Howard escreveu e vendeu literalmente dezenas de histórias, em vários gêneros: esporte, faroeste, ficção histórica, terror e fantasia. Dentro desta última, foi notável sua contribuição para o subgênero hoje conhecido como sword and sorcery ('espada e feitiçaria'), ao ponto de muitas pessoas acreditarem, equivocadamente, que tenha sido o seu criador – na realidade, o britânico Lord Dunsany publicou histórias nesse estilo ainda durante a primeira década do século XX. O primeiro expoente howardiano de sword and sorcery foi uma história escrita em 1929 e ambientada numa era perdida da pré-história da Terra, cerca de 20 mil anos atrás, um mundo dominado por impérios poderosos e onde a magia era comum. Para compor a geografia e as características humanas dessa era fictícia, o escritor costurou uma verdadeira colcha de retalhos, usando referências históricas e míticas oriundas das fontes mais diversas – e sem fazer a menor cerimônia para misturar elementos que, na origem, não tinham qualquer ligação de contemporaneidade entre si. Nesse mundo próprio repleto de esplendores e perigos desenrolou-se a saga de um personagem que, embora subestimado até mesmo por muitos fãs de Howard, em minha opinião possui potencial heroico próximo ao de Conan, e um potencial dramático bem superior: Kull da Atlântida, que vai me render outro post.

Por ora, digamos apenas que a primeira aventura de Kull foi rejeitada pela Weird Tales e ficou na gaveta da escrivaninha de Howard durante os três anos seguintes, enquanto o autor dedicava-se a outros projetos. Em 1932, ele a retomou e reescreveu, mantendo a linha geral do roteiro, mas mudando o nome e algumas características do herói e ambientando-a numa outra era fantástica, que teria existido oito mil anos depois dos tempos de Kull e 12 mil anos antes dos dias atuais. Desta vez aceito pela WT e publicado na edição de dezembro daquele ano, esse conto, The Phoenix on the Sword ('A Fênix Sobre a Espada'), marcou a primeira aparição de Conan, já como rei da Aquilônia – o reino mais poderoso da época –, enfrentando uma conspiração para destroná-lo e matá-lo, envolvendo inimigos tanto naturais quanto sobrenaturais.

Se a Era Pré-cataclísmica de Kull era uma fabulosa miscelânea de elementos tirados de todos os lugares possíveis e imagináveis, a Era Hiboriana de Conan é tudo isso elevado ao quadrado. "Hiborianos", por falar nisso, é uma designação genérica usada para se referir aos reinos correspondentes à atual Europa, que teriam sido os mais influentes e poderosos de tal época. Examinando o mapa do mundo onde viveu Conan, a impressão que se tem é a de que Howard quis certificar-se de que nele estivessem presentes os ambientes e ingredientes necessários para praticamente qualquer tipo de aventura que se pudesse imaginar: existem bárbaros orgulhosos e violentos em reinos gelados no norte, existem mares infestados de piratas, existem desertos povoados de belicosos beduínos e de mistérios ao estilo de As 1001 Noites, existem savanas e selvas tropicais com suas tribos selvagens e feras exóticas (os reinos negros ao sul da Stygia), existem reinos regidos por estruturas feudais de poder, como a própria Aquilônia, nitidamente inspirada na França medieval, existem países orientais esplendorosos e quase desconhecidos pelos hiborianos – e, claro, há vastas extensões ainda inexploradas, onde aventureiros audazes podem encontrar todo tipo de maravilhas e horrores.

O próprio Howard apenas começou a narrar as aventuras de seu herói nesse mundo extraordinário: não viveu o suficiente para levar as histórias muito adiante. Nele conviviam uma imensa criatividade e uma carga nada desprezível de conhecimentos gerais, particularmente sobre História (conhecimentos esses adquiridos de maneira autodidata, pois ele nunca concluiu uma faculdade), mas também uma personalidade atormentada e emocionalmente imatura. Quando ficou sabendo que sua mãe estava em coma e sem chance de se recuperar, ele tirou a própria vida: não era capaz de se imaginar vivendo sem ela. Tinha pouco mais de 30 anos. A Sra. Howard faleceu horas depois do suicídio do filho, e os dois foram enterrados juntos. Imaginem o que foi isso para o pobre Dr. Howard: perder esposa e filho de uma vez só...


Como uma última informação importante sobre o autor, deve-se lembrar que Robert E. Howard manteve durante anos uma extensa correspondência com vários outros escritores notáveis do gênero de fantasia, como H. P. Lovecraft, Clark Ashton Smith, August Derleth e outros, e que a leitura atenta das obras de todos esses autores mostrará a influência exercida reciprocamente entre eles.

A obra de Howard sofreu um período de ostracismo após a morte do autor. Nos anos 50 apareceu nos Estados Unidos um livro reunindo alguns contos sobre Conan; na década seguinte, os escritores L. Sprague de Camp e Lin Carter conseguiram ter acesso aos papéis pessoais deixados por Howard, entre os quais encontraram desde esboços rudimentares de enredo para contos que não chegaram a ser escritos até histórias inacabadas em variados estágios de progresso. Assumindo o encargo de novos cronistas da Era Hiboriana, De Camp e Carter completaram muitas dessas histórias, que vieram a ser publicadas. Também criaram histórias novas baseadas em simples anotações feitas por Howard, como a saga Conan, o Libertador, que contava sobre a revolução que o cimério teria liderado para derrubar o tirânico rei Numedides, vindo então a ocupar o trono da Aquilônia.

Em 1970, a Marvel adquiriu os direitos de adaptação para os quadrinhos de Conan e outros personagens de Howard, dando início àquela que seria a fase mais produtiva (em número de publicações) do bárbaro. Roy Thomas, já então um renomado argumentista de quadrinhos do selo, tornar-se-ia célebre pelo trabalho realizado com Conan. Não tenho certeza se as primeiras histórias em quadrinhos do herói a aparecerem no Brasil chegaram antes ou depois da estréia do primeiro filme sobre ele, mas a editora Bloch lançou algumas publicações antes de a Abril, então parceira da Marvel no país, começar a publicar A Espada Selvagem de Conan, versão nacional de The Savage Sword of Conan, revista em formato grande, preto e branco, que, no Brasil, durou de 1984 a 2001. Também saíram algumas aventuras de Conan nas revistas Heróis da TV e Superaventuras Marvel, que eram coloridas e em formato pequeno. Mais recentemente, a Dark Horse Comics publicou uma revista intitulada simplesmente Conan, também em quadrinhos. No tocante à publicação de contos em sua forma original, um único conto de Conan aparece no livro Magos, segundo volume da série de coletâneas Os Mundos Mágicos da Fantasia, coordenada por Isaac Asimov, Martin H. Greenberg e Charles G. Waugh e publicada no Brasil pela Melhoramentos no início da década de 90. Em 1995, a editora Unicórnio Azul lançou cinco edições de Conan – Espada & Magia, contendo contos originais de Howard e também trabalhos de De Camp & Carter. A editora Conrad publicou dois volumes, atualmente fora de catálogo, com contos do bárbaro. Por fim, agora, aproveitando o embalo do novo filme, a Generale nos traz esta edição, que inclui o romance A Hora do Dragão e mais três contos. Edição essa da qual vejo que terei que falar em outra oportunidade, pois já escrevi muito e não posso concluir sem dizer uma palavra sobre os filmes. Vamos a isso...

Conan nas telas – then & now...

Os fãs de Robert E. Howard e de filmes de aventuras em geral sempre se perguntaram o porquê de Conan e seu universo terem sido tão pouco explorados pelo cinema, fato esse que se torna ainda mais inexplicável se pensarmos no Tarzan de Edgar Rice Burroughs e nas dezenas de filmes já rodados sobre ele, com vários atores diferentes. Ora, o bárbaro de Howard teve a mesma origem do homem-macaco de Burroughs – as pulp magazines das décadas de 20 e 30 –, é um herói de nível, no mínimo, comparável, e com possibilidades infinitamente maiores, considerando o mundo onde viveu e a longa e variada carreira que teve. Apesar disso, e por alguma razão, até este ano só existiam dois filmes sobre as aventuras do cimério: Conan, o Bárbaro (1982) e Conan, o Destruidor (1984), ambos estrelados por Sua Excelência (respeito, afinal o homem já foi governador), o austríaco naturalizado ianque Arnold Schwarzenegger. E, verdade seja dita, se Schwarzenegger jamais chegou a ser um ator digno desse nome, nesses filmes, ainda em início de carreira, ele praticamente deu um novo sentido à palavra "canastrão". O máximo que se pode dizer a seu favor é que sempre esteve perfeitamente consciente de suas limitações e nunca tentou posar de prodígio dramático: alguns anos depois, comentou, bem-humorado, que até o cavalo que montara em Conan, o Bárbaro era mais expressivo que ele. Apesar disso, esse filme, dirigido por John Milius, marcou época, e há excelentes razões para que seja visto... Só que, por ser uma adaptação extremamente livre, não é aconselhável como primeiro contato com o personagem, embora um enorme número de pessoas (incluo-me) tenha conhecido Conan justamente por meio dele.

O roteiro foi criado de forma livre por John Milius e Oliver Stone, tendo os escritos de Howard apenas como fonte de inspiração. Por exemplo, a infância e adolescência atribuídas a Conan no filme não têm qualquer compromisso com a (incompleta e fragmentada) biografia do personagem deixada por Howard: embora o escritor tenha registrado, em cartas e anotações, que a tribo de Conan vivia perpetuamente envolvida em conflitos – fosse com aesires, vanires, hiperbóreos, ou com outros clãs cimérios –, não escreveu em parte alguma que ela teria sido massacrada, ou que o próprio Conan tivesse crescido como escravo. Na verdade, Howard chegou a mencionar que a primeira batalha de que Conan participou foi numa ocasião em que vários clãs da Ciméria uniram forças, pondo temporariamente de lado suas rixas, para atacar e arrasar a fortaleza de Venarium, construída pelos aquilonianos em solo cimério como primeiro passo de uma tentativa de conquista – e o escritor diz explicitamente que Conan teria então uns 15 anos, idade na qual, a dar-se crédito ao filme, ainda deveria estar movimentando uma pedra de moinho. Portanto, vejam o filme, mas não acreditem cegamente nele.

O vilão principal, o feiticeiro Thulsa Doom (interpretado por James Earl Jones, de longe a melhor atuação do filme), nunca enfrentou Conan nos livros ou nos quadrinhos: em vez disso, era o arquiinimigo do rei Kull, que teria vivido oito mil anos antes. O arqueiro e ladrão Subotai (Gerry Lopez), até onde sei, foi criado para o filme, enquanto Valéria (Sandahl Bergman), mostrada como sendo uma ladra e o amor da vida de Conan, na verdade era uma pirata, e apenas uma entre as muitas mulheres de sua carreira. É verdade que há citações a várias histórias de Howard: a sequência em que Conan encontra uma espada num velho túmulo foi tirada do conto A Coisa na Cripta, enquanto a invasão da fortaleza de Thulsa Doom tem vários detalhes que lembram A Torre do Elefante, sem mencionar que a promessa de Valéria a Conan ("Se eu estivesse morta e você lutasse por sua vida, eu voltaria do inferno para ajudá-lo!") é feita, na verdade, pela rainha pirata Bêlit – ela, sim, o grande amor do cimério, ou ao menos de sua juventude –, no conto A Rainha da Costa Negra (1934). E há mais detalhes assim. Ao mesmo tempo, o filme tenta ter o seu quantum satis de atualidade ao mexer com o tema da sedução de jovens por seitas estranhas, problema que havia alcançado dimensões preocupantes em diversos países na época. Por fim, é impossível negar que o clima épico e grandioso está lá, que há inúmeras cenas visualmente soberbas, que o ritmo e a narrativa prendem, que a magnífica trilha sonora de Basil Poledouris faz a sua parte (Anvil of Crom está entre as músicas com maior poder de causar arrepios de empolgação que já ouvi) e que o final é bem sacado por abrir possibilidades ilimitadas para os próximos filmes que viessem a ser rodados, ainda que isso tenha sido muito pouco explorado mais tarde. Resumindo tudo, Conan, o Bárbaro atualmente figura na minha coleção de DVDs, como acredito que deva figurar na de todo apreciador de fantasia e de aventuras épicas.

Pena que seja, até o momento, o único filme sobre Conan merecedor de tal distinção!...


Conan, o Destruidor, não chega a ser um desastre total, mas decepcionou, e muito, a quem esperava ver uma continuação digna do primeiro filme. É apenas uma aventurazinha feijão-com-arroz, do tipo que esperaríamos encontrar em alguma edição meia-boca d'A Espada Selvagem de Conan lá por meados dos anos 90, quando tanto as histórias originais de Conan escritas por Howard quanto as melhores criações de Roy Thomas e da dupla L. Sprague de Camp & Lin Carter já haviam sido todas publicadas e a revista tentava sobreviver com o material (muitas vezes pífio) disponível.

(Obs.: Para tornar a coisa toda ainda mais difícil de entender, o roteiro desse filmeco leva a assinatura de Roy Thomas em pessoa... Inexplicável.)

No filme, a rainha-bruxa Taramis (nome emprestado de uma personagem de uma história de Howard, embora a personagem em si não seja a mesma) contrata Conan para escoltar sua sobrinha Jenna (idem) na busca pelo Chifre de Dagon, um artefato de magia divina extremamente poderoso, e que somente Jenna, uma predestinada, pode tocar. O bárbaro é acompanhado por um amigo ladrão metido a engraçado (Tracey Walter) e pelo gigantesco guarda-costas de Jenna, Bombaata (Wilt Chamberlain); no caminho juntam-se ao grupo o mesmo mago do filme anterior (Mako) e uma guerreira negra, Zula (Grace Jones). O Chifre está guardado na fortaleza do mago Thoth Amon, e o grupo de heróis precisará invadir o local para obtê-lo. Há lutas, monstros, armadilhas, muitas cabeças decepadas e sangue à vontade, mas falta um algo mais que pudesse ter feito o filme sobressair acima do comum. Conan, o Destruidor vale para um passatempo inconsequente, mas não ficará marcado na memória como seu antecessor.

(Thoth Amon, a propósito, é um personagem que Howard parece ter criado meio às pressas, batizando-o com os nomes de dois deuses egípcios escolhidos ao acaso, apenas para que Conan tivesse um grande mago do mal como inimigo, assim como Kull tinha Thulsa Doom; de qualquer forma, embora nas histórias originais tenha dado muita dor de cabeça ao herói durante muito tempo, aqui ele aparece reduzido a um vilão de ocasião.)

E o que dizer do Conan versão 2011? Que é um festival de clichês? Bem, isso poderia ser dito dos dois filmes anteriores, e, vamos concordar, clichê não é sempre e necessariamente uma coisa ruim. Porém, dependendo de como são usados, os clichês podem dar forma a alguma coisa que empolgue  ou não.

O novo filme começa como nenhum filme de Conan pode deixar de começar: com uma voz que poderia pertencer a algum velho erudito recitando "
Entre os anos em que os oceanos tragaram a Atlântida e a ascensão dos filhos de Aryas..." Aqui, porém, essa introdução é emendada com uma história que repercutirá diretamente na aventura a ser narrada: no antigo e sombrio reino de Acheron, que teria existido antes do mundo hiboriano tomar forma, foi fabricado um artefato maligno, uma máscara capaz de dar poderes inimagináveis àquele que a usar  só que, para isso, precisa ser "abastecida" com o sangue de moças virgens. Quando o reino de Acheron caiu, as tribos bárbaras vitoriosas dividiram a máscara em três partes, "para que ninguém mais viesse a usar seus poderes malignos" (Obs.: Embora o filme nada diga a respeito, suponho que essa máscara tivesse algum tipo de magia que a tornava indestrutível, mais ou menos como o Um Anel de Sauron; é a única explicação para que os bárbaros não a tenham destruído de uma vez e encerrado o assunto. Aliás, por que será que de repente me lembrei de Hellboy II?). E, como seria inevitável que acontecesse, séculos depois surge um sinistro vilão disposto a tudo para encontrar as três partes e ganhar os poderes ilimitados que a máscara promete. Para falar a verdade, o vilão em questão poderia ser mais sinistro: Khalar Zym (Stephen Lang) lembra demais o zelador Argo Filch, dos filmes de Harry Potter, para ser capaz de meter medo em alguém.

Entrementes, o pequeno Conan nasce no seio da tribo ciméria que guarda um dos pedaços da máscara – e nasce, literalmente, num campo de batalha (Robert E. Howard escreveu de passagem algo a respeito). Em poucos anos mostra a que veio, vencendo rapazes bem mais velhos nas rudes competições atléticas que acontecem na tribo e, de quebra, matando alguns pictos, inimigos hereditários de seu povo, antes mesmo de ter idade para fazer a barba. Porém, antes que ele tenha tempo de se tornar um guerreiro de fato, Khalar Zym descobre o paradeiro do pedaço da máscara e vem buscá-lo, de modo que a tribo é dizimada (de novo), com o acréscimo de um requinte de crueldade: Khalar obriga Conan a assistir à morte de seu pai e mestre, o ferreiro e guerreiro Corin (Ron Perlman – puxa, Hellboy está me perseguindo hoje), ironicamente vitimado pelo mesmo elemento com o qual ganhava a vida: ferro derretido.

Não é difícil imaginar a vida de privações e perigos que o jovem cimério enfrenta a partir daí, mas isso fica implícito: o ator adolescente sai de cena e é substituído por Jason Momoa, o Conan "definitivo" – e preciso dizer: Momoa visivelmente se esforça, mas, embora eu bem que tenha tentado, não consigo achar que ele tenha a cara do personagem: talvez seja por ser havaiano, mas sempre vai me lembrar mais um surfista bombado que um guerreiro bárbaro. Como seria mais do que previsível, o cimério vai atrás de Khalar Zym para vingar a morte do pai, só que, a essa altura, o vilão está muito próximo de conseguir o que quer: já juntou todos os pedaços da máscara e só precisa encontrar uma mulher de "sangue puro" (seja lá o que isso queira dizer) para sacrificar a fim de ativar o poder da coisa. Essa é Tamara (Rachel Nichols), que está sendo educada para sacerdotisa até o templo onde vive ser atacado pela horda de Khalar Zym e todas as suas colegas e mestres serem chacinados. Ela própria escapa graças a Conan, e, se até aí não tinha havido surpresas, daí em diante muito menos: a bela mocinha passa quase todo o resto do filme a tiracolo do herói musculoso enquanto ele despacha filas e filas de vilões e monstros, e, a certa altura, é salva por ele de um destino trágico, por um triz, é claro. Gritando muito o tempo todo.

Visualmente, o novo Conan é cansativo em várias partes: a tentativa de evocar um clima "sombrio" faz com que haja muitas cenas escuras, em que os olhos do espectador se fatigam tentando acompanhar a ação no que parece ser apenas uma confusão de formas indistintas em movimento – em 3D fica ainda pior –, e, quando essas cenas terminam, tem-se sempre a sensação de haver perdido alguma coisa. O diretor alemão Marcus Nispel poderia ter aprendido com 300, no qual o uso inteligente da fotografia em sépia dá o tom soturno sem prejudicar a visibilidade.

Muito do que eu disse sobre Conan, o Destruidor também se aplica a Conan, o Bárbaro 2011: não é propriamente uma catástrofe, e não se pode negar que tem tudo o que uma aventura do gênero sword and sorcery que se preza (e até as que não se prezam) precisa ter: sequências vertiginosas de ação, lutas bem coreografadas, intervenções sobrenaturais, monstros, cenários exóticos... O problema é que, depois de assisti-lo, fica-se com a sensação de que, com tudo isso, teria sido possível fazer um filme muito melhor. Sabe como é quando você prova um prato que, embora tenha levado todos os ingredientes que devia, mesmo assim ficou insosso, porque faltou ao cozinheiro aquele "pulo do gato"? Resumindo: o filme até consegue seu objetivo de divertir – mas está muito, muito longe de fazer com que tenham valido a pena os 27 anos de espera para ver Conan nas telas novamente. Um filme sword and sorcery pode, sim, ir além de ser uma aventurazinha vulgar: pode empolgar, encher os olhos e a imaginação, inspirar e emocionar. Só que ainda continuamos esperando por uma produção sobre Conan que se mostre capaz de provar tudo isso: o filme de Nispel, definitivamente, não prova.

segunda-feira, agosto 08, 2011

Uma Princesa de Marte

Ando me surpreendendo ao perambular pelas livrarias e ver que vários livros antigos, de diferentes gêneros, que o público brasileiro nunca havia tido a chance de ter em mãos, e que eu próprio só conhecia, na maioria dos casos, por menções indiretas e comentários de outros autores, estão sendo lançados agora, pela primeira vez, no país  bons exemplos são A Águia da Nona e este Uma Princesa de Marte, publicado originalmente em 1917 e que só agora ganha versão nacional. Claro, costuma haver boas razões comerciais para esses lançamentos inauditos, geralmente razões ligadas ao cinema. Com efeito, quando estava exposto na livraria onde o comprei, o meu exemplar de Uma Princesa de Marte exibia atravessada na capa uma banda de papel em que se lia: "O clássico que inspirou James Cameron na criação de Avatar". Pessoalmente, considero um exemplo do tipo mais óbvio de oportunismo usar o sucesso de uma obra recente para tentar vender uma antiga, e a questão torna-se ainda mais espinhosa no caso de haver uma disparidade gritante entre o valor artístico de uma e de outra – o que não afirmo que seja o caso aqui: Uma Princesa de Marte não é um grande livro, e, quanto a Avatar, não vi o filme, e, portanto não me atrevo a julgá-lo. Mas suponho que já deva dar-me por feliz de, até este momento, nunca ter visto uma nova edição da Ilíada sendo apregoada como o "livro que inspirou o filme Troia, com Brad Pitt". Ainda bem, pois no dia em que isso acontecer, vai haver mortes.

Obs.: A espinafração destina-se a quem teve a ideia de colocar a tal banda de papel na capa do livro, não a quem tomou a louvável decisão de mandar traduzi-lo e publicá-lo. Desde que, é claro, ambos não sejam a mesma pessoa.

Todo mundo sabe quem foi Edgar Rice Burroughs (1875-1950), o criador do megafamoso homem-macaco Tarzan. O que nem todo mundo sabe é que ele também escrevia ficção científica, se é que é adequado chamar assim histórias como as de sua série Barsoom, também conhecida como John Carter of Mars – o primeiro nome, segundo o autor, é como o planeta Marte é chamado por seus habitantes, e o segundo é o de seu principal herói. Trata-se muito mais de narrativas de fantasia, nas quais o ambiente interplanetário é usado apenas como recurso para situar o mundo imaginário que serve de palco às aventuras; pouca diferença faria se, em vez de ficar em Marte, o mundo de Barsoom tivesse existido num período esquecido da história da própria Terra, como a Terra-média de J. R. R. Tolkien ou a Era Hiboriana de Robert E. Howard – salientando que o fato de eu citar esses exemplos não deve levar ninguém a entender que eu esteja colocando Barsoom no mesmo nível das criações desses mestres.

O protagonista da saga marciana da qual este livro é o primeiro episódio é o capitão John Carter, soldado do exército confederado durante a Guerra Civil Americana. Ao ver-se ocioso e sem recursos depois da derrota de seu lado na guerra, Carter decide unir forças com James Powell, um ex-companheiro de armas, para tomarem parte na Corrida do Ouro, que na época levava milhares de aventureiros a deixarem os estados do leste, já razoavelmente civilizados e seguros, em direção ao oeste, ainda em sua maior parte uma terra selvagem e pouco explorada, sonhando encontrar um veio do precioso metal. Sonho esse que Carter e seu amigo realizam – mas não têm a chance de desfrutar sua nova riqueza, pois logo depois Powell é morto numa emboscada por índios apaches (em 1917, ainda era liberado usar personagens índios em papéis de "bandido"). Depois de uma inútil tentativa de salvar a vida do companheiro, Carter, perseguido pelos selvagens, acaba refugiando-se numa caverna onde coisas estranhas acontecem. Tão estranhas que, sem saber como, o herói se vê transportado ao planeta Marte.

E Marte, como descrito por Burroughs, é um mundo selvagem e inóspito, assolado pela escassez de água (ainda exibe os leitos secos de mares desaparecidos), onde as formas de vida precisam conviver com a rápida alternância de dias tórridos e noites geladas. Os marcianos, com os quais Carter logo trava contato, são seres imensos, com mais de quatro metros de altura, pele esverdeada e seis membros, que preferem ocupar seu tempo caçando e guerreando uns contra os outros ao invés de dedicar-se às ciências ou a trabalhos mais técnicos, razão pela qual, em matéria de tecnologia, sua civilização parece ter estacionado há milênios: o máximo que os marcianos têm nesse campo são armas de fogo, que usam em conjunto com lanças, espadas e outras armas brancas.

O terráqueo logo descobre que, devido à diferença de gravidade entre os dois planetas, ele agora possui uma força e agilidade capazes de impressionar os marcianos e impor-lhes respeito, apesar de seu pequeno tamanho se comparado a eles. Descobre, além disso, que, como na Terra, também naquele mundo as pessoas variam em caráter: conhece tipos que vão desde o valente e justo líder guerreiro Tars Tarkas e a bondosa Sola, até o tirânico Tal Hajus, chefe da tribo. Existem outras tribos de marcianos verdes, e a convivência de uma tribo com as outras quase nunca é pacífica. Mais ainda: o planeta também é o lar de outra raça inteligente, esta formada por seres humanos fisicamente idênticos aos terráqueos, com a diferença de que sua pele tem um tom de cobre avermelhado. É a essa raça que pertence a princesa do título, a bela Dejah Thoris, que cai prisioneira dos marcianos verdes e por quem Carter, mui previsivelmente, acaba apaixonado.

Francamente, eu estaria sendo generoso demais se dissesse que Uma Princesa de Marte é um ótimo livro: como já sabe quem leu algum livro de Tarzan (eu li dois, em edições antigas que encontrei na biblioteca pública quando era garoto), os personagens de Burroughs carecem de profundidade e complexidade, são em sua maioria estereotipados – embora nesse ponto seja preciso admitir que a princesa Dejah Thoris mostra-se corajosa e com uma certa sabedoria, bem diferente das heroínas que infestavam muitas histórias de ficção científica da época e cuja função de existir ia pouco além de serem carregadas aos gritos por algum monstro gelatinoso de olhos saltados... – e a narrativa, durante a maior parte do tempo, é tosca, chegando a tornar entediantes até mesmo passagens repletas de ação vertiginosa. Mesmo assim, há uma certa sedução na exótica paisagem marciana e no jeitão de paladino medieval do herói John Carter. Se quiserem encarar, leiam como curiosidade, mas não esperem encontrar uma história que vá mudar seu modo de ver a literatura.

segunda-feira, julho 18, 2011

O Último Reino

Gênero popular no exterior há muito tempo, a ficção histórica só começou a receber investimento digno de nota das editoras nacionais há alguns anos. Por menos que o hábito de ler seja difundido no Brasil, ao olho do "consumidor" tudo indica que o setor editorial viveu uma evolução: os editores parecem ter parado de publicar só o que eles "achavam" que venderia, e procurado saber o que o público queria ler. O preconceito (que eu já ouvi ser expresso até mesmo por pessoas de quem, considerando a cultura que obviamente possuíam, eu não esperaria isso) de que o brasileiro só quereria narrativas que tivessem a ver com seu próprio cotidiano, e não teria o menor interesse por histórias sobre a Antiguidade ou a Idade Média – períodos históricos que nosso país não viveu – parece estar, felizmente, acabando.

E nessa "fase de transição", nada melhor que apostar no mais seguro: publicar primeiro as obras dos monstros sagrados do gênero, os que já tiveram seu desempenho testado e aprovado nas livrarias gringas. Um destes é o britânico Bernard Cornwell, autor de uma celebrada trilogia sobre o rei Artur e também desta "pentalogia" (essa palavra existe?) intitulada As Crônicas Saxônicas, da qual O Último Reino é o primeiro volume, sobre mais uma invasão nas Ilhas Britânicas: desta vez, a dos vikings.

Talvez meus leitores já saibam isso, mas a história dessas ilhas foi feita de invasões. Não há registro de quando seus primeiros habitantes chegaram lá (na verdade, nem sequer é conhecida a identidade exata desses primeiros habitantes), mas depois, onda sobre onda, vieram pictos, celtas, romanos, saxões, vikings e normandos. Cada povo subjugou (ou tentou subjugar) seus antecessores e controlou as ilhas à sua própria maneira enquanto pôde. Em seu tempo, o rei Artur, ou quem quer que tenha sido a figura histórica que deu origem à sua lenda, tentou defender a Bretanha de modo a preservar o modo de vida que então existia nela, oriundo da miscigenação das culturas celta e romana. Os invasores que ele teve que enfrentar eram diversas tribos germânicas que costumavam ser designadas, de forma genérica, pelo nome da mais poderosa e numerosa delas: os saxões, originários da região nordeste da atual Alemanha.

Esses bárbaros já cobiçavam as terras da Bretanha há muito tempo, mas, enquanto ela foi uma província do Império Romano, de um modo geral o poderio militar deste último a manteve a salvo. Quando, em 410, Roma oficialmente retirou-se da Bretanha, a oportunidade há tanto aguardada pelos saxões parecia finalmente ter chegado. O interessante é que, apesar disso, uma invasão em grande escala só foi acontecer cerca de um século depois!... O porquê desse fato não é claro, já que uma das consequências da saída dos romanos foi a interrupção de qualquer registro histórico confiável, mas é inevitável concluir que, para terem conseguido defender-se sozinhos por todo esse tempo, os bretões devem ter tido uma liderança forte, capaz de pacificar os conflitos internos e unir o país contra o inimigo comum. É aí que entra Artur, tenha ele sido um homem ou vários, que a lenda aglutinou numa única figura.

Seja como for, quem quer que Artur tenha sido, o que quer que ele tenha feito, o dia dos saxões tardou, mas chegou. Entre os séculos VI e VII, eles ocuparam toda a atual Inglaterra; como os romanos antes deles, os saxões pouparam a maior parte da Escócia e da Irlanda, por serem de acesso difícil e aparentemente não oferecerem recursos naturais ou terras férteis em quantidade suficiente para recompensar o esforço da conquista – motivo pelo qual, ainda hoje, grande parte das populações desses países continua a falar línguas de origem celta e a cultivar tradições culturais desse povo.

Ao chegarem à Bretanha, os saxões já encontraram grande parte da ilha cristianizada devido à influência romana – um fato que rapidamente trataram de "corrigir" a fio de espada. Em poucas décadas, o paganismo germânico predominava de modo absoluto na ilha, ainda que por pouco tempo: o esforço conjunto de monges irlandeses e de novos missionários enviados de Roma foi gradualmente fazendo com que os saxões fossem abraçando o cristianismo. De modo que é num país basicamente cristão, na segunda metade do século IX, que vive o herói de O Último Reino: Uhtred, filho de Uhtred, um ealdorman (chefe) saxão.


E é esse país que hordas de vikings invasores, a maioria oriundos da Dinamarca, estão atacando. Por muito tempo a costa inglesa, assim como a de boa parte da Europa, já havia sofrido com as incursões piratas desse povo do norte, que combinava um gosto selvagem pela luta e pela carnificina com uma paixão pelo desbravamento – e, durante os últimos tempos, uma necessidade premente de expansão, já que a pouca terra fértil disponível em seus países gelados e montanhosos já não era capaz de sustentar sua população em crescimento. A diferença é que desta vez os homens do norte não iriam contentar-se em encher seus navios com o produto da pilhagem e ir embora: vinham para ficar, para tomar a terra e transformá-la em colônia sua. Era o ciclo se repetindo mais uma vez: os saxões, outrora invasores temidos, eram agora os habitantes estabelecidos na Inglaterra (nome esse, aliás, que o país havia ganho recentemente: vem dos anglos, outra tribo germânica que a invadira ao lado dos saxões) e precisavam defender-se contra novos invasores, tão brutais e sanguinários quanto eles próprios já tinham tido a fama de serem. E, embora os saxões, ao tempo em que invadiram a Bretanha romana, tivessem também outra fama, a de hábeis marinheiros (tradição que se perdeu com o tempo), os vikings os superavam de longe nessa parte: o mar era praticamente a vida deles. Seu tipo característico de navio, o drakkar ('dragão') era uma pequena maravilha de engenharia náutica: menor que os navios de outros povos da época, extremamente ágil e manobrável, capaz de navegar para a frente ou para trás, tinha no fundo achatado seu principal segredo, pois graças a ele gozava de extrema estabilidade (leia-se: era quase impossível virar um drakkar) e podia navegar até mesmo em águas muito rasas, o que permitia aos vikings subir rios com facilidade e desembarcar direto do navio para terra firme, sem necessidade de botes.

Quando a cidade inglesa de Eoferwic (que os romanos haviam antes chamado de Eboracum, e hoje tem o nome de York) é sitiada e invadida pelos dinamarqueses, Uhtred, o pai, tomba durante a batalha, e Uhtred, o filho, então com cerca de dez anos de idade, cai prisioneiro dos invasores. Um dos chefes vikings, Ragnar, simpatiza com ele e toma-o sob seus cuidados. Uhtred, que nunca recebeu muita atenção de seu pai verdadeiro, e não é, por natureza, muito propenso a qualquer tipo de lealdade, rapidamente toma gosto pelo modo de vida viking, afeiçoa-se ao pai adotivo e aos novos amigos que faz. E, acompanhando os nórdicos, é testemunha ocular da queda de três dos quatro reinos ingleses diante deles: Nortúmbria, Mércia e Ânglia do Leste, todas se rendem, entregando seus campos para serem tomados, as cidades para serem pilhadas, e o povo para ser trucidado ou escravizado. Até que só resta um reino que ainda resiste à sanha dinamarquesa: Wessex, governado primeiro pelo rei Æthelred e depois por seu irmão mais novo, Ælfred – que passaria à História como Alfredo, o Grande.

A região de Wessex, embora não mais seja um reino, ainda hoje conserva o mesmo nome, uma contração de West Saxons – os Saxões do Oeste. Parecia muito improvável que Alfredo algum dia chegasse ao trono, já que era o mais novo de seis irmãos, mas isso acaba acontecendo, e não pouca gente considera o fato um desígnio de Deus – o Deus cristão, que Alfredo cultua e que os dinamarqueses desprezam porque Seus mandamentos estimulam a piedade e a compaixão, que, para eles, são sinônimo de fraqueza. O primeiro contato que Uhtred tem com Alfredo não o impressiona muito: o então jovem príncipe parece ser um pateta que vive cedendo às tentações da carne para logo em seguida choramingar arrependido do pecado. Entretanto, o desígnio de Deus, se foi um desígnio, mostra-se acertado, pois, ao longo dos anos seguintes à sua coroação, Alfredo prova ser um líder sagaz, provavelmente o único dentre os reis possíveis que realmente tinha condições de frustrar o plano dos vikings de transformar a Inglaterra numa grande Dinamarca. Por esse tempo, Uhtred, já um jovem guerreiro, perdeu o pai adotivo dinamarquês, assassinado por um rival também dinamarquês, e acalenta o plano de vingá-lo e de recuperar o antigo domínio de seu pai verdadeiro, na Nortúmbria, agora nas mãos de um tio usurpador. Como um passo nessa direção, acaba pondo-se a serviço de Alfredo na luta contra os dinamarqueses (realmente, lealdade não é o forte desse sujeito), o que, embora ele não saiba, é apenas o começo de uma longa saga na qual não faltarão intriga, aventura e batalhas sangrentas.

Bernard Cornwell escreve magnificamente! Não deve nada a um Conn Iggulden, a um Steven Pressfield ou mesmo a uma Mary Renault, figuras coroadas da ficção histórica de língua inglesa. As Crônicas Saxônicas caíram do céu para quem tem curiosidade sobre a formação da Inglaterra moderna, mas ficava intimidado com o volume da informação, com a dificuldade de separar o essencial do secundário nos textos de História tradicionais, e com o conhecimento prévio que eles muitas vezes pressupõem – para não falar na necessidade de saber inglês. Apresentar fatos históricos usando-os como pano de fundo para a trajetória de um ou mais personagens fictícios é uma fórmula antiga, mas sempre foi e continua sendo eficiente, desde que o autor tenha duas habilidades em grau alto: a de um bom forjador de narrativas e a de um pesquisador, além do condão de fundir as duas coisas de forma convincente. E Cornwell passa no teste em todos os quesitos. Não acho que eu vá escrever um post sobre cada volume das Crônicas como fiz com O Imperador de Iggulden, mas que elas mereceriam isso, não há dúvida. Também há pouca dúvida de que terei coisas a dizer sobre outras obras do autor num futuro não muito distante. Por ora, adianto que As Crônicas Saxônicas pode ser amplamente recomendado a todos os leitores que se interessam pela cultura viking, pela história da Inglaterra e pelo mundo medieval de forma geral.

quarta-feira, junho 29, 2011

Uma Paixão por Cultura

Como é a trajetória de uma pessoa que "acorda" para o mundo da cultura? Que um belo dia (ou gradualmente, ao longo do tempo) percebe que há mais na vida que cerveja, futebol e música pop de FM? Essa é uma metamorfose, infelizmente, rara, mas, sim, é possível: já testemunhei um caso ou dois. E é um testemunho desse tipo que Carlos Eduardo Paletta Guedes nos oferece neste livro extremamente interessante e (não muito) disfarçadamente autobiográfico.

O protagonista Fábio é um jovem comum no sentido mais comum do termo, do tipo que cada um de vocês deve conhecer pelo menos uma dúzia: com cerca de 30 anos, carreira profissional começando a decolar, vai levando sua vida do modo óbvio. Torce por seu time, trabalha, namora, sai, e ignora a existência de coisas como poesia, filosofia, artes plásticas, teatro ou música clássica. Livros, só os de Direito, sua área profissional, e nada mais. E, como a dúzia de caras parecidos que todos nós conhecemos, sente-se cômodo e satisfeito dessa forma. Embora seu melhor amigo, Felipe Marco, o "Turco", seja um professor universitário e muito culto, a amizade dos dois parece ser do tipo "cada um no seu quadrado": nada que agite a superfície do lago plácido (um lago que só tem mesmo superfície...) que é a vida de Fábio.

Nosso herói começa a sentir que algo está faltando quando sua namorada de três anos, Maria Lúcia, larga-o, sob a alegação de que ele não preenche os anseios intelectuais dela - aliás, tive que rir ao ler o trecho onde Fábio diz que M.L., como ele a chama, decidiu começar a tratá-lo como intelectualmente inferior depois de ler um livro de filosofia para adolescentes: não consegui deixar de ter a forte impressão de que ele só não citou o título (O Mundo de Sofia, é claro) para não ferir suscetibilidades. É então que, vendo como o amigo anda "pra baixo" desde o fim da relação, Turco, na intenção de distraí-lo um pouco, convida-o para uma festa que dará em sua casa, apenas para alguns alunos que são membros de um grupo de estudos que ele dirige. Fábio não se anima muito, imaginando, com alguma razão, que sua pouca bagagem e quase nenhum interesse cultural fará dele um peixe fora d'água nessa reunião, mas, mesmo assim, acaba indo. E é lá que, numa dessas surpresas que o destino nos arma, ele conhece a mulher de sua vida: uma estudante de Jornalismo, a linda e inteligentíssima Thaís.

Apaixonado e determinado a ganhar a gata de qualquer maneira, Fábio começa imediatamente a representar para ela o papel de um homem culto, sensível, conhecedor e admirador da arte em todas as suas manifestações - algo muito distante de seu verdadeiro perfil. E, como Thaís é uma dessas mulheres uma-em-um-milhão que não vão adiante com um homem se ele não demonstrar inteligência (pois, verdade seja dita, a imensa maioria não liga a mínima para isso - como a maioria dos homens também não, sejamos justos), Fábio tem pela frente um verdadeiro trabalho de Hércules... Ou melhor, os doze de uma vez. Sob a orientação do amigo Turco, começa a toque de caixa a tentar assimilar conhecimentos sobre música (não o pop-rock a que estava acostumado, e sim figuras como Bach, Mozart e companhia), cinema (nada de Duro de Matar e congêneres: aqui o papo é filme de arte europeu) e outras formas de expressão que não tinha o costume de prestigiar nem sequer em suas manifestações mais triviais, como literatura e pintura. E, para sua própria surpresa, começa a perceber-se envolvido e fascinado pelo universo da arte e da beleza, a sentir um interesse genuíno por tudo de grandioso que o gênio humano já produziu. De tal forma que, mesmo quando suas chances de ficar ao lado de Thaís parecem ter-se reduzido a zero, ele não abandona seus esforços para adquirir cultura: sem perceber, Fábio aprendeu a lição mais importante de todas, a de que cultivar o próprio intelecto e sensibilidade é algo que deve fazer por si mesmo, e não para agradar seja a quem for. Aos poucos, ele se dá conta de que não está mais fingindo.

A história de amor de Fábio e Thaís é um fio condutor criativo para introduzir o leitor ao universo da alta cultura: entremeadas na história há ótimas listas de sugestões para quem deseja se iniciar na música clássica, no cinema "cabeça" e na literatura (se bem que nesse último campo eu apontaria uma lacuna: a lista dos livros essenciais não inclui nenhum clássico da Antiguidade), e também instigantes discussões sobre o papel da cultura na sociedade e na vida do indivíduo. Há pontos onde concordo e outros onde não concordo - o que é ótimo: que valor teria um debate onde todo mundo pensasse igual? Por exemplo, não concordo com o personagem (um professor palestrante) que, embora fazendo apologia à cultura e ao conhecimento, reconhece que "ler não faz de ninguém um ser humano melhor. O filósofo Francis Bacon, por exemplo, casou por interesse e morreu com 65 anos, devendo mais de 20 mil libras esterlinas (...). Tenho certeza que (sic) ele leu tudo o que havia de mais profundo e sábio". Eu digo que sim, ler faz de nós pessoas melhores; talvez não no aspecto moral ou ético, mas nos enriquece, abre nossa mente, faz-nos capazes de ter visões diferentes, livres dos antolhos que limitam o olhar das pessoas comuns, torna-nos mais sábios, mais capazes de conviver com as diferenças e com situações de incerteza. Leonardo da Vinci falava do sfumato (literalmente, "enfumaçado"), nome de uma técnica usada em pintura para dar aos objetos contornos imprecisos, como se vistos através de uma névoa; Leonardo e seus seguidores (incluo-me, ainda que correndo o risco de parecer pretensioso) também usavam, usam isso como uma metáfora para a capacidade de lidar com ideias e situações onde não são possíveis regras rígidas, onde nada é muito claro, onde a incerteza faz parte da própria essência das coisas. E, a menos que me engane, pessoas que leem mais e, por consequência, sabem mais, estão bem mais preparadas para isso. Pessoas incultas tendem a ver o mundo em apenas duas cores.

O cientista espanhol Santiago Ramon y Cajal dizia que cada pessoa pode ser escultora do próprio cérebro, caso realmente se proponha a isso, e essa frase seria um excelente resumo para a temática de Uma Paixão por Cultura, mas, como Turco não deixa de alertar Fábio, quem opta por se tornar culto está, ao mesmo tempo, abraçando uma existência essencialmente solitária. Por mais democrático que seja (e por mais conflitos que evite) dizer que "gosto não se discute", fica bem mais difícil continuar concordando com essa velha máxima quando se está andando pela rua e passa ao nosso lado um carro repleto de alto-falantes berrando o último sucesso do funk carioca a 240 decibéis... O fato é que a vasta maioria das pessoas nunca vai compreender o que existe de fascinante numa boa peça de teatro, nem experimentar aquela sensação de ter um balão inflando no peito ao ouvir um concerto de Bach, nem se maravilhar diante de uma pintura ou de um desenho de Da Vinci... Aliás, a maioria nem mesmo compreende qual o sentido de abrir um livro se o conhecimento que ele oferece não puder ser usado em seu trabalho. Sempre viveremos no meio dessa maioria rasa e enfadonha, que, por sua vez, sempre irá encarar os poucos que dão valor à cultura como chatos, esnobes ou simplesmente esquisitos. Optar pela cultura é uma decisão pessoal, que garante a quem a toma uma vida inimaginavelmente mais cheia, rica, bela, interessante, instigante que a dos que se contentam em habitar o espaço do óbvio - mas, ao mesmo tempo, uma vida bem menos confortável, repleta de inquietações e dúvidas que os "outros" não conhecem. E isso não é coisa para gente fraca. Para levar uma vida assim, a pessoa precisa ter fé verdadeira de que as recompensas oferecidas fazem tudo valer a pena: a escassez de interlocutores, a necessidade de procurar por seus prazeres, por vezes com esforço, enquanto os outros encontram os deles a toda hora e em toda parte, e a ocasional marginalização que irá sofrer. E, na minha opinião pessoal, ter acesso a cinco mil anos de história, conhecimento e arte vale muito mais do que ficar à vontade no meio da "galera" que só conhece futebol, cerveja e música pop de FM.

quarta-feira, junho 01, 2011

Thor


Para quem já foi durante muito tempo (ou o que para um adolescente pareceu ser muito tempo) um entusiasta de quadrinhos, mas já não os lê, a não ser ocasionalmente, há uns bons anos, não será tarefa das mais fáceis comentar este novo filme, mas já observei que os textos mais difíceis de começar costumam ser os que, depois que deslancham, acabam tendo os resultados mais interessantes. Então peço paciência a meus leitores se este post demorar um pouco a "decolar". ☺

Quando Stan Lee, fundador e, na época, principal argumentista da Marvel Comics Group, escreveu a primeira história tendo como protagonista o deus nórdico Thor (publicada na revista Journey Into Mystery n.º 83, de agosto de 1962), estava fazendo algo de inaudito para a época: buscar inspiração no passado da humanidade, em suas religiões antigas e lendas ancestrais, para contar histórias com uma roupagem moderna, que atraísse os jovens. Para aproximar mais o personagem de seus leitores e também poder fazê-lo interagir com os demais astros dos quadrinhos de seu selo, como o Hulk, Homem de Ferro, Capitão América e outros, Lee teria que trazer Thor para o século XX. Conseguiu isso criando para ele um alter ego, o Dr. Donald Blake, um cirurgião (americano, é óbvio) manco, que, durante uma viagem à Noruega, encontraria numa caverna um velho bastão de madeira e, ao batê-lo acidentalmente nas pedras, ver-se-ia transformado no poderoso Deus do Trovão, tendo o bastão virado o mítico martelo Mjolnir (o j pronuncia-se como i semivogal). Daí em diante, Blake levaria a vida dupla típica de quase todos os super-heróis, exercendo a medicina como rotina e ocasionalmente encarnando o deus para salvar o mundo daquelas boas e velhas ameaças cósmicas que todo argumentista do gênero é craque em tirar da manga.

As histórias de Thor seguiram nesse esquema durante anos, com os altos e baixos normais. Como não sou um especialista e, além disso, essas histórias foram publicadas muito antes do meu tempo, não sei dizer ao certo se foi ainda o próprio Lee ou um dos vários argumentistas por cujas mãos o herói passou quem teve a ideia de dar uma reviravolta em sua origem. Até então, Donald Blake acreditava ser apenas um mortal a quem os desígnios de alguma sabedoria superior teriam achado por bem conceder os poderes de um deus para que os usasse em defesa de causas justas. Aos poucos, eventos misteriosos que iam ocorrendo em sua vida, e imagens que surgiam inexplicavelmente em sua memória, acabaram por levá-lo a compreender a verdade: ele era o próprio deus Thor.

A explicação encontrada para isso foi bastante engenhosa e com um sabor realm
ente mitológico: calçado em sua condição de primogênito do deus supremo, Odin, e em sua reputação de grande guerreiro entre os habitantes de Asgard (o reino dos deuses), Thor ter-se-ia tornado um deus egoísta e arrogante. Para ensinar-lhe uma lição, Odin teria retirado seus poderes, apagado sua memória, e o colocado para viver na Terra sob uma identidade forjada, a do então estudante de medicina Blake. Como um jovem sem muitos recursos, e que sofria com as sequelas de uma paralisia, Thor aprenderia o valor da humildade e do trabalho duro, até estar pronto para receber de volta sua herança divina.

Foi já nos anos 80 que um sujeito chamado Walter Simonson assumiu a revista mensal de Thor nos Estados Unidos. Escritor e também desenhista, realizou uma reformulação geral no personagem e em seu ambiente, buscando reduzir ao mínimo possível as ligações com o universo super-heroístico da Marvel para investir pesado numa maior aproximação com a mitologia nórdica, que, afinal de contas, foi de onde o personagem veio. E é nítido que foi principalmente dessa fase que veio a inspiração para o primeiro filme da nova safra cinematográfica da Marvel a tratar do Deus do Trovão.

E vamos concordar, não se trata de um filme qualquer ― nenhum filme dirigido por Kenneth Branagh, responsável por nada menos que Henrique V, é um filme qualquer. Menos ainda se tiver Anthony Hopkins no papel de Odin e Natalie Portman ― rara combinação de beleza estonteante e talento admirável, capaz de se sair bem seja num filme ET (extra trash) como Marte Ataca (1996) ou num tenso thriller psicológico como o recente Cisne Negro ― como a "mocinha", no caso a cientista Jane Foster, com quem Thor, exilado na Terra, irá se envolver. O filme tem ainda Stellan Skarsgård (Rei Arthur, O Exorcista: o Início) como Dr. Erik Selvig, mentor de Jane; Tom Hiddleston como Loki; Jaimie Alexander como a deusa Sif (na mitologia, esposa de Thor, no filme aparentemente apenas uma "amiga", que nem chega a interferir na relação dele com Jane) e, curiosamente, Ray Stevenson (também de Rei Arthur e da série Roma), praticamente irreconhecível sob uma montanha de barba e cabelo, como o gordo e bonachão Volstagg, personagem criado para os quadrinhos.




O filme começa com uma cena em que Jane, Selvig e sua bolsista estão tentando observar e registrar um estranho fenômeno nos céus do deserto do Novo México, quando seu veículo de pesquisa atropela um homem que parece ter surgido do nada em meio à tempestade. Depois de o espectador ter apenas tido tempo de ver que o homem é Chris Hemsworth, que interpreta Thor, a narrativa recua para a Idade Média, nas terras do norte, e passa a ocupar-se de uma guerra entre os deuses de Asgard e os Jotun, ou gigantes de gelo ― é interessante notar que na mitologia nórdica, como na grega, os gigantes personificam forças da natureza, e que os deuses nórdicos, também como seus equivalentes gregos, têm com esses gigantes uma relação ambivalente: ao mesmo tempo em que são ligadas por estreitos laços de parentesco, as duas raças são inimigas mortais. Com os deuses saindo vitoriosos, Odin toma dos gigantes uma caixa misteriosa que dá origem aos poderes deles, e estabelece uma trégua ― que Thor, muitos anos depois, irá quebrar em busca de glória pessoal, levando Asgard à beira de uma nova guerra. No filme, é esse ato que leva o rei dos deuses a banir o filho para a Terra, tendo anulado a maior parte de seu poder, mas Thor não perde a memória, nem chega propriamente a ter um alter ego humano ― apenas usa falsamente e por um curto período de tempo o nome de Donald Blake, que, segundo Jane, é um "ex" seu. Em Asgard, Odin adormece (de acordo com a mitologia, ele precisava de longos períodos de sono para manter seus poderes) e, sem que ninguém saiba quando despertará, seu ardiloso filho adotivo, Loki, aproveita-se da ausência de Thor para fazer-se rei, o que precipitará o conflito que serve de combustível ao roteiro.


O filme toma diversas liberdades em relação à mitologia ― basicamente, as mesmas que os quadrinhos já tomavam, e mais algumas. Nas lendas nórdicas, por exemplo, Loki não era filho de Odin, nem mesmo por adoção, e, embora por nascimento pertencesse à raça dos gigantes, era admitido ao convívio dos deuses e geralmente considerado um deles. Tinha uma personalidade complicada, algumas vezes comportando-se como um fiel amigo dos deuses, outras como um trapaceiro compulsivo. Nos quadrinhos, essa complexidade havia sido abolida ― Loki era retratado sempre como mau-caráter ―, enquanto, no filme, ele é um personagem mais dramático, que sofre ao descobrir sua verdadeira origem, o que pode, em parte, justificar seus atos e ganhar para ele um pouco da simpatia do espectador. Loki era o deus do fogo e gerou muitos filhos, tanto humanos quanto feras, entre eles Sleipnir, o garanhão de oito patas que servia de montaria a Odin, bem como o monstruoso lobo Fenris, ou Fenrir, e a Serpente de Midgard. Midgard, aliás, era como os nórdicos chamavam o mundo onde vivemos nós, humanos. Esse nome, que significa literalmente terra média (alguém se lembra onde já vimos isso?), deve-se ao fato de que esse mundo fica no meio, abaixo do céu, onde vivem os deuses, e acima do mundo subterrâneo, habitado por trolls e outras criaturas do escuro.

O próprio Thor era uma figura à parte. Diferente do que o filme sugere, a deusa Friga, embora fosse esposa de Odin, não era a mãe de Thor, que nasceu da relação dele com uma giganta de nome Jord (que significa Terra), provavelmente antes de seu casamento com Friga. Embora Odin fosse o deus supremo, Thor era, de longe, muito mais popular e cultuado, principalmente entre os homens: era um deus-herói, guerreiro, aventureiro, exatamente a divindade adequada aos seguidores da filosofia viking de vida, que tinham no sangue a febre do desbravamento e acreditavam que a única morte digna de um homem era no campo de batalha. Em homenagem a Thor, quase todos os vikings usavam no pescoço um pingente em forma de martelo.

Por falar em morte, alguns podem ter estranhado a cena em que, prestes a partir para Jotunheim, o reino dos gigantes de gelo, Thor diz a Heimdall, o guardião dos portões de Asgard, que não tem planos de morrer naquele dia, e Heimdall replica que ninguém tem. Pode-se pensar: "Fácil para eles dizerem isso: são deuses, imortais!" Beeeem... Mais ou menos. O fato é que os deuses nórdicos não eram imortais no sentido pleno do termo. Para evitar a velhice e as doenças, precisavam comer regularmente as maçãs mágicas cultivadas pela deusa Iduna, e podiam, sim, morrer em combate da mesma forma que os homens ― embora, claro, para isso fosse preciso um adversário realmente poderoso.

Falar em Heimdall me fez lembrar de um detalhe discutível (para dizer o mínimo) do filme: esse deus é interpretado pelo ator Idris Elba ― que é negro ―, enquanto Hogun, outro personagem oriundo dos quadrinhos, é representado pelo japonês Tadanobu Asano. Pergunto: qual a lógica de colocar negros e orientais no reino dos deuses nórdicos? Não seria isso um exemplo típico da obsessão do politicamente correto prevalecendo sobre o bom senso?

Em resumo: Thor vale a pena ser visto. Tem um enredo cativante, que consegue a difícil proeza de ser interessante tanto para o inveterado leitor de quadrinhos quanto para o espectador de ocasião que pouco ou nada sabe sobre o universo da Marvel, tem ótimas atuações (com o inevitável destaque para o "imortal" Anthony Hopkins e para a boa surpresa Tom Hiddleston), tem um visual de encher os olhos, e tem o grande mérito de contribuir para despertar nas novas gerações o interesse pelo mundo fascinante e cheio de significados da mitologia.

quinta-feira, maio 19, 2011

O Retrato de Dorian Gray

Traçar um paralelo entre um novo filme e uma história consagrada na literatura é sempre um exercício empolgante e, ao mesmo tempo, complicado. Por um lado, nunca tive paciência com gente que pensa que achar tudo ruim é ter "gosto refinado", e a última coisa que quero é me parecer com esse tipo. Por outro, quanto mais importante, por uma ou outra razão, for um livro, maior obrigação tem o seu leitor de ser crítico com qualquer recriação que apareça... Obrigação essa que fica ainda mais pesada se o leitor em questão for um estudioso de literatura por formação e gosto. Não obstante, tentarei assim mesmo.

Esta nova versão cinematográfica do clássico da literatura gótica de Oscar Wilde já não chega tão "nova" aos cinemas nacionais, já que a produção (inglesa) é de 2009. Ben Barnes, já celebrizado como o príncipe Caspian na série As Crônicas de Nárnia (baseada nos não menos clássicos livros de C. S. Lewis) foi escolhido para encarnar o jovem burguês londrino que vende a alma em troca da juventude perpétua – note-se, de passagem, que Barnes não se parece com a visão que Wilde tinha do personagem, que é descrito no livro como sendo loiro. Ben Chaplin faz o papel do pintor Basil Hallward, responsável pelo famigerado retrato, enquanto Colin Firth, atualmente sob os holofotes por causa do oscarizado (epa!) O Discurso do Rei, é o insuportável lorde Wotton. Na ala feminina do elenco, Rachel Hurd-Wood empresta sua beleza a Sibyl Vane, a atriz adolescente que Dorian seduz e depois abandona, enquanto Rebecca Hall interpreta a "avançada" Emily, personagem inexistente no livro. Oliver Parker assina a direção.

O Retrato de Dorian Gray, publicado em 1890, foi o único romance escrito por Oscar Wilde (1854-1900), que, durante sua carreira literária, devotou a maior parte de sua energia ao conto, à poesia e ao teatro. Se não fosse pelo poderoso molho de terror sobrenatural que tempera suas páginas, é possível que o livro fosse hoje tão pouco lembrado quanto toneladas de outros romances da mesma época e cuja massa tinha a mesma composição – a crítica de costumes. Não que a crítica de costumes, em si mesma, não possa gerar boa literatura (alguém disse Machado de Assis?): o problema é que, quando o modelo é muito sem-graça, o retrato (ops!) dificilmente sairá espetacular, de modo que era preciso ser muito escritor para conseguir produzir algo interessante tendo como assunto a fútil e afetada alta sociedade inglesa da época – uma sociedade que Wilde, embora irlandês de nascimento, sem dúvida conheceu a fundo.

Ainda que não haja no livro nada tão explícito quanto o beijo trocado entre Barnes e Chaplin numa cena do filme, a sabida homossexualidade do autor é perceptível, de forma sutil mas ao mesmo tempo inequívoca, na interação entre o trio central da trama: Dorian, Hallward e lorde Henry Wotton – Harry para os íntimos (entendam esse "íntimos" como quiserem). Por sinal, se já houve um personagem de ficção que eu desejei que tivesse uma cara de carne e osso para que eu pudesse parti-la, foi esse lorde Wotton. O que essa figura faz é cultivar o cinismo no grau mais extremo e em sua forma mais repulsiva, aparentemente devotando cada minuto de vigília a forjar frases "chocantes" reduzindo amor, família, religião, qualquer espécie de decência, honestidade, honra e todos os demais valores morais e humanos imagináveis a convenções ridículas e ultrapassadas, que deveriam ser postas de lado como uma gravata fora de moda.

Dorian, Hallward e Wotton, estava eu dizendo, formam o núcleo da história, e as atenções que ambos os mais velhos dirigem ao jovem protagonista não disfarçam uma admir
ação que nada tem de inocente – na verdade, há nos diálogos um tipo de jogo erótico que só mesmo um escritor do calibre de Wilde poderia ter forjado: é quase impossível dizer exatament
e onde está o erotismo, mas não há dúvida de que ele existe, embora em nenhum ponto do livro haja a sugestão de alguma aproximação física maior entre os personagens. Uma piada velha, mas que não perde o poder de causar alguns risinhos amarelos entre o pessoal da literatura, é referir-se ao livro como O Retrato de Dorian Gay. Já que falei no assunto, não se deve pensar que tenha sido devido a qualquer tipo de escrúpulo moral que Wilde optou por não ser mais explícito em seu romance (fato que a nova versão cinematográfica tenta "corrigir", aproveitando os tempos mais relax que vivemos hoje). Se ele não o fez, foi porque sabia que tal coisa poderia render-lhe sérios problemas. Na época, atos homossexuais eram previstos em lei como delito de "conduta imoral", e podiam ser punidos com prisão. Foi exatamente o que aconteceu ao próprio Wilde, que, tempos depois da publicação de O Retrato..., amargou uma temporada de dois anos atrás das grades, por conta de seu relacionamento com o jovem filho de um lorde influente. De volta ao livro, o Dorian Gray do título é um típico jovem da alta sociedade britânica da segunda metade do século XIX. Ou melhor, seria típico se não fosse por sua extraordinária beleza, que o faz sobressair onde quer que esteja e atrai a atenção de Basil Hallward, um pintor de inegável talento e um dos favoritos dos aristocratas e da burguesia de Londres – não que, para fazer renome entre essa gente, o talento fosse uma condição indispensável: muitos cavalheiros e damas gostavam de fingir que entendiam de arte. Sendo Hallward um pintor renomado, e Dorian o modelo dos sonhos, o início da amizade entre os dois leva ao desfecho óbvio: o rapaz posa para um retrato. Durante a última sessão de trabalho no atelier de Hallward, Dorian fica conhecendo lorde Wotton, amigo do pintor. De certa forma, Wotton tem de Dorian uma visão inversa à que tem Hallward. Enquanto o pintor vê no jovem uma forma sublime que ele se esforça por reproduzir em tela e tinta, o lorde o vê como uma argila virgem que, com a necessária habilidade, poderia ser moldada na forma de... algo. Primeiramente, é Wotton quem incute em Dorian o pavor de envelhecer:

Para o senhor, Gray, tudo deveria ser importante (...), porque possui uma maravilhosa juventude, e a juventude é a única coisa que vale a pena. (...) Quando for velho, enrugado, feio, quando a meditação lhe tiver murchado a fronte com suas rugas e a paixão marcado seus lábios com horríveis estigmas, sentirá isso terrivelmente. Agora, aonde quer que vá, cativa todo mundo. Mas será sempre assim? (...) Sim, Sr. Gray, os deuses foram generosos com o senhor. Mas o que os deuses dão, tomam logo em seguida. O senhor só tem alguns poucos anos para viver verdadeiramente, perfeitamente, plenamente. (...) O tempo tem ciúme do senhor e luta contra os seus lírios e as suas rosas. O senhor empalidecerá, suas faces ficarão vincadas e seus olhos se apagarão. Sofrerá terrivelmente... Ah! Aproveite a sua juventude enquanto a possui. (...) Juventude! Juventude! Não há absolutamente nada no mundo, senão a juventude!

E Dorian, juvenilmente impressionado por tal discurso, desabafa:

Como é triste! Eu me tornarei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho... Se acontecesse o contrário! Se eu ficasse sempre jovem, e se este retrato envelhecesse! Por isso... por isso eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse! Daria até a minha própria alma!


Aparentemente, Satã estava ouvindo com interesse esse diálogo, e, quando o jovem declara sua disposição para tal barganha, deve ter dito simplesmente "Topo!", ou o equivalente a isso. O trato está feito, assim, de boca, sem necessidade de missa negra, pentagramas, livros profanos, mulher nua servindo de altar e essa presepada toda. Desse momento em diante, Dorian nunca mais envelhece um só dia: as marcas que, pelas leis da natureza, o tempo deveria deixar em seu rosto vão, ao invés, sendo transferidas para o retrato. E não só as marcas do tempo: cada maldade que ele pratica, cada desvio moral ao qual se entrega em busca de prazeres novos (tudo seguindo os conselhos de lorde Wotton e os seus desdobramentos inevitáveis) também provoca mudanças horripilantes na efígie, que passa a ser o segredo mais bem guardado de Dorian, trancado a sete chaves, longe dos olhos de todos. Com o tempo, como não poderia deixar de acontecer, sua aparência inalterada começa a chamar atenção, e, combinada com a fama proporcionada por suas inúmeras depravações e vícios, faz com que passe a ser encarado, pelos que o conhecem, com algo que beira o horror supersticioso. A relação entre Dorian e o retrato vai-se tornando progressivamente mais macabra e obsessiva, e seu final não poderia ser agradável – é claro que não vou contar o final, mas adianto a quem viu o filme e pretende ler o livro que o final de um tem pouco a ver com o do outro. Depois me contem qual dos dois acharam melhor – ou, dependendo do ponto de vista, pior.

Uma coisa que achei curiosa foi a contextualização histórica, que extrapola o que havia no romance – e o faz de forma plausível e inteligente. Por exemplo, há referências a uma guerra, obviamente a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ora, Oscar Wilde, que morreu em 1900, talvez até pudesse ter previsto a iminência de um confronto na Europa num futuro próximo, levando em conta a situação política em seus dias, mas é claro que não teria como incluir datas ou detalhes, a menos que os inventasse – e futurologia não era bem a sua seara literária. Não há enunciação de ano no romance, mas é fácil perceber que a ambientação é contemporânea à da vida do autor. Ora, se a história se passasse na mesma época em que foi escrita, Dorian Gray, que tem 20 anos no início do romance, teria nascido por volta de 1870, e, como estaria com 40 e poucos no desfecho da narrativa, isso coincidiria exatamente com os dias da guerra. Automóveis e telefones, coisas quase desconhecidas durante a vida de Wilde, mas que já começavam a se tornar corriqueiras na segunda década do século XX, também aparecem.

Num apanhado geral, considerei o filme bastante satisfatório e, até certa altura da história, muito fiel à narrativa original, com detalhes variando, mas a essência do enredo sendo mantida. No último terço, aproximadamente, é que o roteiro degringola, com lorde Wotton decidindo assumir o papel de investigador implacável para descobrir o segredo de Dorian – o Wotton da história original jamais teria energia para realizar tal empreitada, nem caráter para considerá-la necessária – e a relação artificial de Dorian com Emily, filha de Wotton (personagem que, como disse acima, foi inventada para o filme) sendo usada como pivô para o desejo de regeneração e redenção experimentado pelo protagonista, desejo esse, por sinal, que o filme exagera muito. As atuações, em sua maioria, são acima da média, e a recriação da Londres do século XIX é perfeita: uma cidade cinzenta, suja, poluída, com sua magnífica arquitetura manchada pela onipresente fuligem de milhares de chaminés – enfim, uma cidade que pagava o preço da Revolução Industrial que fizera da Inglaterra o país mais rico do mundo –, e onde cenários de riqueza e ostentação e outros da mais sórdida miséria coexistiam separados por poucos passos de distância. Os espectadores que vierem a ler o livro levarão, no mínimo, uma boa amostra do clima que devem imaginar ao imergirem em suas páginas para algumas horas de leitura fascinante.