sexta-feira, setembro 04, 2015

Deuses e Heróis

Conta-se que Escopas, homem nobre e importante da região grega da Tessália, pediu ao afamado poeta Simônides de Ceos que compusesse uma ode em louvor a suas vitórias – que podem ter sido no campo de batalha ou em competições atléticas; as fontes divergem. Tratava-se de uma prática comum na época: poetas eram solicitados a compor obras sobre o tema que lhes fosse proposto, recebiam por isso, e era assim que muitos deles ganhavam a vida. A ode deveria ser entoada num banquete que Escopas planejava oferecer. Chegado o dia, ao lhe ser pedido que apresentasse o poema, Simônides levantou-se com sua lira e cantou uma das mais belas odes já ouvidas na Tessália, celebrando as vitórias de seu anfitrião. (Não estranhem se uso "cantar" em vez de "declamar"; na época, os poemas eram realmente cantados, pois não se fazia distinção entre poesia e música.) Para obter um melhor efeito lírico, o poeta ornamentou a obra com menções aos feitos dos admiráveis gêmeos Castor e Pólux, filhos de Zeus e Leda, irmãos da célebre Helena de Esparta, mais conhecida como Helena de Troia.

Seria de se imaginar que qualquer homem razoável se sentisse honrado por ter seu nome citado lado a lado com os de tão insignes heróis, mas, infelizmente, Escopas era do tipo egocêntrico. Queria a admiração de seus convivas toda para si, e não estava disposto a partilhá-la, nem mesmo com os legendários filhos de Zeus, de modo que não lhe agradou o que estava ouvindo. Quando Simônides, tendo terminado de cantar, dirigiu-se a ele para receber sua recompensa, Escopas pagou-lhe metade da soma combinada, dizendo-lhe, em tom de troça, que cobrasse o restante de Castor e Pólux. Simônides, decepcionado e ofendido, retornou ao seu lugar em meio à zombaria geral dos convidados.

Pouco mais tarde, um dos servos de Escopas entrou no salão de banquete e avisou a Simônides que estavam lá fora dois jovens a cavalo, que diziam ter de lhe falar com urgência. Saindo, o poeta não encontrou ninguém à sua espera, mas repentinamente o teto do salão veio abaixo, matando Escopas e seus convidados. Depois de pedir ao servo mais detalhes sobre a aparência dos jovens que o haviam procurado, o desconcertado Simônides convenceu-se de que não eram outros senão os próprios Castor e Pólux. A história termina dizendo que os corpos dos comensais do banquete ficaram tão desfigurados, que seus familiares não conseguiam identificá-los para poder dar a cada um os ritos funerários devidos, mas Simônides lembrava o nome de cada um dos presentes e o exato lugar onde ele estava sentado, e, graças a isso, todos os corpos puderam ser identificados.

Essa bela história talvez não seja verídica (embora eu não a desacredite totalmente: considero uma rematada tolice duvidar de que maravilhas possam mesmo acontecer), mas, seja ou não, ela ilustra bem um fato curioso acerca dos grandes poetas da Antiguidade: suas vidas tendem a fundir-se com a própria mitologia que lhes servia de tema, de modo que para nós, hoje, eles acabam por ser figuras quase tão legendárias quanto os heróis cujos feitos celebravam. Assim foi com o maior de todos, Homero, a quem são atribuídas a Ilíada e a Odisseia, e com outros que vieram depois – entre eles Simônides, o protagonista de Deuses e Heróis.

Mary Renault, cujo Rei Morto, Rei Posto já tive oportunidade de comentar, conduz a nós, seus leitores, em outro mergulho na Antiguidade Clássica, embora, desta vez, a um período histórico posterior e bem diferente daquele em que tiveram lugar as façanhas do herói Teseu. Simônides viveu aproximadamente de 556 a 468 a.C., numa Grécia mais civilizada e de instituições já consolidadas, e, por consequência, uma Grécia que podia dedicar mais atenção às artes, fato que é bem retratado no romance. O que, é claro, não significa que as guerras tivessem ficado no passado – nem as guerras contra inimigos externos, no caso o Império Persa, nem as guerras locais, entre diferentes cidades-estado gregas, coisa que permeou praticamente toda a história da Grécia Antiga e impediu o êxito de diversas tentativas de unificação política entre os povos de língua e cultura helênicas. Simônides, por sinal, foi o autor do famoso epitáfio gravado no monumento erigido em homenagem a Leônidas e seus trezentos espartanos ("Ide dizer a Esparta, ó estranhos que passam / Que aqui, obedientes às suas leis, jazemos."), aliás, um dos poucos fragmentos de sua obra que chegaram até nós, infelizmente. Tampouco são conhecidos muitos detalhes de sua biografia, de modo que a autora teve de fazer o que fazia tão bem: mesclar a informação histórica disponível com o produto de sua própria imaginação. O livro é um mosaico de eventos factuais e fictícios e de personagens históricos e inventados, sendo que estes últimos não parecem menos convincentes que os primeiros, e a interação entre todos é perfeitamente plausível. Quer dizer, parte do que aqui lemos efetivamente aconteceu – e o restante poderia ter acontecido.

A narrativa segue um esquema semelhante ao de Rei Morto, Rei Posto: um Simônides já idoso, aproximando-se do final de uma carreira prestigiosa, parece sentir que é chegado o momento de contar suas memórias, e essa história tem início na ilha de Ceos (hoje Kea), uma das Cíclades. Seu pai, Leoprepes, era um homem de posses para os padrões da ilha e um de seus cidadãos mais proeminentes, o que não significa que não trabalhasse duramente, ou que seus filhos pudessem, em princípio, esperar da vida muito mais que isso. Para maior azar de Simônides, ele era o filho varão mais jovem, além de agraciado pela natureza com um tipo físico pouco admirado entre os ilhéus, e entre os gregos da etnia jônica em geral: baixo e magro, embora de boa constituição; pele morena e cabelos negros, sem falar num rosto não exatamente atraente, enquanto seu irmão, Teásides, era o jovem heleno perfeito sempre retratado por pintores e escultores – alto, loiro, belo e atlético. Só isso já teria bastado para definir o papel de cada um: Teásides era o filho de quem os pais esperavam que os enchesse de orgulho e trouxesse honra ao nome da família; já Simônides, se dependesse dos planos deles, nunca iria muito além de ser um trabalhador não remunerado nas lavouras e rebanhos do pai. Apesar disso, os dois irmãos se dão bem; na verdade, Teásides parece ser o único a dedicar a Simônides alguma atenção e afeto.

Durante a infância e início da adolescência, Simônides exerce a ocupação mais icônica possível para um menino grego: a de pastor. E, como todo pastor, tem por hábito cantar e tocar flauta para preencher as longas horas vazias vigiando os carneiros que pastam. É dessa forma que descobre seu talento, pois possui uma voz naturalmente afinada, e, tão importante quanto isso para um poeta da época, uma ótima memória. Entretanto, por muito tempo, ele guarda só para si sua ambição de ser poeta, e acaba por amargurar-se, já que, vivendo na rústica Ceos, e ainda sendo o filho desprezado de um pai severo e austero, realizar esse sonho parece impossível. Sua sorte muda quando um poeta de nome Cléobe, de passagem pela ilha, se apresenta no casamento de um homem importante da comunidade – e o velho Leoprepes lá está como convidado, levando toda a família, até mesmo o filho feioso que geralmente é deixado em casa. O jovem acaba sendo aceito como ajudante e aprendiz pelo artista, e em sua companhia deixa Ceos, aos 14 anos, para tentar a sorte na carreira escolhida.

Cléobe vem a ser mais pai para Simônides do que Leoprepes alguma vez o foi, ensinando-lhe seu ofício com dedicação e paciência. Mesmo quando fica evidente que o rapaz é um talento dos grandes, jamais demonstra ciúme, nem qualquer receio de ser superado pelo discípulo. Natural de Éfeso, o velho bardo possui uma casa e certo patrimônio nessa cidade, mas a vida de um poeta, naquela época, era uma vida errante, sujeita a todas as agruras que podem atingir os que não têm pouso certo. Durante os primeiros anos a serviço de seu novo mestre, Simônides conhece boa parte da Grécia insular e continental, passa por apertos de todos os tipos, e, principalmente, aperfeiçoa sua arte, amplia seu repertório e conhece pessoas interessantes. Seu aprendizado prossegue em Éfeso, onde mestre e discípulo se fixam por algum tempo, e de onde acabam fugindo (assim como grande parte da população) por causa da ameaça da invasão persa. O novo domicílio dos dois é a cidade de Samos, na época, provavelmente, a mais rica do mundo helênico, embora não a de maior efervescência cultural: essa já era então, como ainda o seria por muito tempo, Atenas. Samos é governada pelo tirano Polícrates (a palavra "tirano", na origem, não tinha o sentido que hoje lhe atribuímos: significava apenas um governante que tivesse chegado ao poder pelos próprios meios, e não por herança ou por eleição regular). Lá, Simônides começa, aos poucos, a atuar de forma profissional, embora não de um jeito que seu mestre considere particularmente honroso: cantando numa taberna. Mesmo não sendo muito bem vista, essa ocupação lhe permite garantir seu pão de cada dia, e, não menos importante que isso, fazer muitos contatos, o que era outra coisa da qual um poeta grego daqueles tempos não podia prescindir.

Não obstante, é em Atenas, já com 20 e poucos anos, que o jovem poeta vê sua carreira decolar de verdade, em grande parte graças à proteção e incentivo de outro tirano, Pisístrates, que, no entanto, é muito diferente de Polícrates. Enquanto o tirano de Samos parece apadrinhar artistas da mesma forma como adquire objetos preciosos (ou seja, por mera exibição de riqueza e poder), Pisístrates é um real admirador das artes em geral e da poesia em especial. Há um trecho particularmente interessante, que reproduz uma conversa da qual participam o tirano, seu filho Hiparco, e Simônides, e que demonstra a preocupação dos dois primeiros com a preservação das grandes obras poéticas, que, na época, eram transmitidas apenas oralmente e conservadas de memória. Nunca passou pela cabeça de Simônides que as obras de Homero, por exemplo, pudessem ser perdidas – ele próprio sabe de cor a Ilíada e a Odisseia (que, juntas, têm mais de 27 mil versos), e, embora seja alfabetizado, jamais considerou a possibilidade de escrever nem os poemas que aprendeu, nem os seus próprios: para ele, a escrita é para fins práticos e prosaicos, como a contabilidade da fazenda de seu pai. Poesia deve ser guardada somente no espaço entre as duas orelhas, como ele diz; isso é questão de orgulho não só para ele, mas para a maioria dos poetas da época… E, se me for permitida uma observação pessoal, devo dizer que, embora ser capaz de declamar toda a obra de Homero de cor seja, sem dúvida, um feito formidável e digno de admiração, é difícil não ter vontade de xingar um pouco esses sujeitos quando penso no sem-número de obras deslumbrantes que certamente desapareceram para sempre, só porque alguém, um dia, por orgulho, recusou-se a registrá-las por escrito. Baquílides, sobrinho e discípulo de Simônides, parece ter sido um dos primeiros poetas a romper com esse preconceito e passar a escrever, o que o tio acaba aceitando, sem nunca verdadeiramente aprovar.

(Observe-se também, apenas de passagem, que "entre as duas orelhas" é um anacronismo de linguagem, pois, na época, ainda não se sabia que o cérebro era o responsável pela inteligência e pela memória; a teoria mais aceita era a de que essas funções fossem do coração. Quanto à questão de para que o cérebro realmente servia, as opiniões se dividiam. Aristóteles, um dos maiores filósofos gregos, que viveu cerca de um século depois do tempo de Simônides, acreditava que ele funcionasse como uma espécie de radiador, dissipando o excesso de calor do organismo; outros atribuíam à massa cinzenta funções ainda menos nobres, como a de produzir o muco que lubrifica nossas vias respiratórias.)

Pisístrates é um governante justo, que ganha a admiração e o respeito de Simônides, assim como da maior parte dos atenienses, e, quando morre, seus filhos parecem ser capazes de, juntos, dar continuidade ao trabalho do pai. Eles recebem o título de arcontes – o arcontado era uma assembleia formada por nove cidadãos eminentes, que partilhavam entre si as responsabilidades do governo –, embora todos saibam que têm, na prática, muito mais poder que seus pares. Hípias, o mais velho, é mais sisudo e preocupado, enquanto o outro, Hiparco, é um homem que gosta de aproveitar a vida e de cercar-se de companhias agradáveis. Não que seja dado a orgias ou excessos, pelo menos não de modo habitual; Simônides o estima, e, aos poucos, a relação de ambos extrapola a de artista e mecenas, transformando-se em verdadeira amizade. Não há motivo algum para que o poeta se importe com a queda que Hiparco tem por belos rapazes, nem com o hábito dele de ter sempre um favorito partilhando de seu divã nos banquetes, e, mais tarde, sem dúvida, também seu leito. Esses favoritos estão sempre mudando, cabendo a cada um deles um "reinado" de poucos meses, de modo que, por tudo o que Simônides pode ver, seu amigo não tem propensão a formar laços sentimentais, e ainda menos a qualquer tipo de fixação ou obsessão. Porém, os seres humanos nunca deixam de nos surpreender, e isso era tão verdadeiro na Grécia de 2500 anos atrás quanto o é hoje.

Na época em que Simônides viveu, relacionamentos homoafetivos eram vistos com naturalidade entre a alta sociedade (não entre a população em geral) na maioria das cidades gregas, mas existiam certas regras não escritas que deviam ser observadas. Havia uma distinção bem clara entre "amante" e "amado". O amante (erastes) era um homem adulto, normalmente na casa dos 30 ou 40 anos, já estabelecido socialmente e quite com a obrigação de assegurar a continuidade da família – quer dizer, geralmente um homem casado e com filhos. O "amado" (eromenos – pronuncie como proparoxítona) era um efebo (adolescente). O primeiro oferecia o afeto, o segundo o recebia – não era uma via de mão dupla, ao menos não em teoria. Não era bem visto que o parceiro mais jovem correspondesse; ser alvo das atenções do mais velho era visto como uma honra, especialmente se ele fosse alguém de alta posição social, mas não como um prazer. Se a reciprocidade existisse, era de bom tom que só fosse manifestada em privado. Tais relacionamentos podiam, ou não, incluir intercurso sexual. O mais importante era o que o eromenos podia aprender com o erastes, principalmente no que se referia a aprimorar o traquejo social, a conhecer pessoas e ingressar em certos círculos, o que iria repercutir em toda a sua futura vida social – ter um erastes com influência e contatos podia colocar o jovem no caminho de uma carreira bem-sucedida. Por fim, era considerado louvável que o erastes mantivesse uma visão realista das coisas, abstendo-se de se apaixonar pelo jovem parceiro, uma vez que esse tipo de relação tinha prazo de validade, devendo acabar quando o rapaz deixava a puberdade, já que, a partir daí, ele passaria a ter outras coisas das quais se ocupar, como a carreira e o casamento, até chegar aos 30 e poucos anos, idade em que estaria apto a tornar-se erastes de seu próprio eromenos. De qualquer forma, o normal era que uma ligação desse tipo durasse alguns anos; não era frequente que um mesmo homem vivesse a experiência mais que duas ou três vezes ao longo da vida, pois não era visto como adequado continuar a ter esse comportamento depois de uma certa idade. A alta rotatividade de favoritos no divã de Hiparco era uma exceção, tolerada porque naquela época, como hoje, os poderosos eram vistos como pessoas a quem era permitido transgredir certas convenções.

Simônides, ao menos na versão de Mary Renault, não se envolve com nada disso – sua conduta parece ser estritamente heterossexual, seja por ter sido criado em meio aos costumes austeros de Ceos, ou apenas por uma questão de preferência pessoal. Mesmo suas relações com mulheres não são muitas, em parte devido a sua intensa dedicação a sua arte, em parte por causa de traumas da juventude, ligados à rejeição que não poucas vezes sofreu por causa de sua feiura – que, aliás, em sua opinião, teve o lado bom de mantê-lo fora da mira dos apreciadores de efebos. Porém, ele acaba sendo testemunha de uma ocasião em que uma relação erastes/eromenos abalou a sociedade ateniense. Os protagonistas do episódio são o jovem Harmódio, filho de uma família ateniense antiga e tradicional, e Aristogíton, atleta de certo renome. Harmódio é de uma beleza extraordinária, o que nem sempre é uma sorte; em seu caso, atraiu o azar de chamar a atenção de Hiparco, que fica obcecado pelo rapaz, a ponto de aparentemente já não comer ou dormir direito (observações de Simônides, a cujos olhos atentos não escapa a aparência abatida e febril de seu amigo). Seja porque seu coração já pertence a Aristogíton, ou porque lhe repugna a ideia de ceder ao assédio de Hiparco a troco de ascensão social, ou simplesmente porque o arconte não lhe agrada – e talvez por tudo isso –, o fato é que Harmódio repetidamente repele as investidas amorosas que vai recebendo, o que acaba levando Hiparco ao desespero, e a chegar a um ponto do qual Simônides jamais o julgaria capaz: o de tentar vingar-se do jovem adotando represálias contra sua família. Isso tudo conduz a um desenlace desconcertante e terrível.

O livro termina com esse incidente, que teve lugar quando Simônides tinha pouco mais de 40 anos, sendo que ele viveria até próximo dos 90; o poeta ainda viajaria muito, viveria em diferentes lugares (Tessália, novamente Atenas, e por fim a Sicília, na época colônia grega, onde terminaria seus dias) e foi contemporâneo de muitos eventos importantes da história grega, além, é claro, de ter composto inúmeros poemas, que, infelizmente, nunca leremos. Portanto, se Deuses e Heróis tem um defeito, é o de ser curto demais. Acompanhar a prosa de Mary Renault é um prazer difícil de descrever, especialmente numa boa tradução, feita por alguém que, mais que o mero domínio das línguas inglesa e portuguesa, também tinha cultura para compreender as inúmeras referências históricas e mitológicas presentes no texto, e tratá-las de forma adequada: registro aqui todo o meu respeito ao Sr. Donaldson M. Garschagen, um tradutor de verdade, de um tipo que quase não existe mais. Também cabe avisar que essa mesma cultura, bem como a capacidade de apreciar uma linguagem elaborada, será muito útil a quem desejar ler o livro.

O fato de Simônides ter vivido durante um dos períodos mais importantes para o desenvolvimento intelectual da Grécia não passa em branco. Ao longo da narrativa, o protagonista tem oportunidade de interagir com um expressivo punhado de figuras relevantes: poetas como Laso, Íbico, o já citado Baquílides, e, de modo especial, Anacreonte, este um de seus melhores amigos; o arquiteto e escultor Teodoro; o filósofo e matemático Pitágoras; e o dramaturgo Ésquilo. Todos pessoas reais, alguns mais famosos, outros menos, mas todos tendo contribuído de forma valiosa para o engrandecimento da cultura grega, e, por consequência, de toda a cultura ocidental – na época, hoje e para sempre.

Uma curiosidade final: entre as lembranças esparsas que vão surgindo enquanto ele conta sua história (algo que esperaríamos de um homem idoso), o Simônides de Mary Renault nos oferece uma versão um pouco diferente da história do banquete de Escopas, que eu contei no início deste post; uma versão mais simpática a Escopas, e na qual o elemento sobrenatural aparece atenuado, de modo que o leitor pode, se o preferir, atribuir a salvação da vida do poeta a uma coincidência providencial. Se admitirmos que essa versão foi a que de fato aconteceu, então aquela outra certamente recebeu uma adaptação, destinada a fazer dela uma fábula com conteúdo moral. A verdade nunca será conhecida, mas, seja como for, eu me permito ter a opinião de que a versão que contei é mais bonita.

E agora é para concluir mesmo: o título original do livro é The Praise Singer, e existe uma outra edição brasileira, da editora Siciliano, que adotou a sua tradução literal, chamando-se O Cantor do Prazer. Eu prefiro o título da edição que tenho, a mais antiga, da Nova Fronteira, publicada em 1984, pois, embora não tenha nada a ver com o título original, ele reflete melhor o espírito da obra de Simônides, que passou a vida cantando sobre deuses e heróis, enquanto O Cantor do Prazer faz parecer que ele se dedicava à poesia erótica… Como eu já escrevi antes, o mais literal nem sempre é o melhor.

quinta-feira, agosto 20, 2015

Crônicas de Gelo e Fogo - A Guerra dos Tronos

– (...) O desertor sabe que sua vida está perdida se for capturado, e por isso não vacilará perante nenhum crime, por mais vil que seja. Mas você não me compreendeu bem. A pergunta não era sobre o motivo por que o homem tinha de morrer, mas sim por que eu tive de fazê-lo.
Bran não tinha resposta para aquilo.
– O rei Robert tem um carrasco – respondeu, em tom incerto.
– Tem – admitiu o pai. – E os reis Targaryen também tiveram antes dele. Mas o nosso costume é o mais antigo. O sangue dos Primeiros Homens ainda corre nas veias dos Stark, e mantemos a crença de que o homem que dita a sentença deve manejar a espada. Se tirar a vida de um homem, deve olhá-lo nos olhos e ouvir suas últimas palavras. E se não conseguir suportar fazê-lo, então talvez o homem não mereça morrer. Um dia, Bran, você será vassalo de Robb, mantendo um domínio seu para o seu irmão e o seu rei, e a justiça caberá a você. Quando esse dia chegar, não deve ter nenhum prazer na tarefa, mas tampouco deverá desviar os olhos. Um governante que se esconde atrás de executores pagos, depressa se esquece do que é a morte.

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Quando as Crônicas de Gelo e Fogo e a série de TV baseada nelas, Game of Thrones, tornaram-se populares no Brasil, e, consequentemente, o nome de George R. R. Martin passou a ser citado com frequência, eu bem que tive a sensação de que já tinha ouvido (ou, bem mais provavelmente, lido) esse nome em algum lugar. Depois de quebrar a cabeça durante um bom tempo, tive um eureka, aparentemente por nenhum motivo em especial, e fui desencavar a minha velha coleção da saudosa Isaac Asimov Magazine, lá do início da década de 90, tempo de minha não menos saudosa adolescência. Bingo: lá estava, na edição número quatro da revista, a história A Flor de Vidro, de autoria de Martin. E, se o nome do autor demorou a "tocar um sino" na minha memória, da história em si eu lembrava bem, pois sempre a considerei uma das melhores publicadas pela IAM brasileira ao longo de todas as suas 25 edições. Era um estupendo conto de ficção científica sobre o qual eu adoraria me estender escrevendo, mas isso fugiria ao escopo deste post; fica para uma próxima vez. Basta dizer que a grandiosidade e a complexidade que caracterizam as Crônicas de Gelo e Fogo já estavam lá, assim como alguns detalhes menores, mas que ajudam a marcar o estilo inconfundível do autor: a sonoridade dos nomes exóticos inventados é semelhante, e, quando ele quer descrever uma figura feminina de beleza etérea, parece ter uma tendência a dar-lhe olhos cor-de-violeta. Porém, é necessário observar que uma obra é de ficção científica, e a outra, de fantasia – dois gêneros muito diferentes. É fato que o público das duas tende a ser o mesmo, e que muitos autores transitam livremente entre uma e outra, mas fantasia e ficção científica têm entre si muito mais diferenças que semelhanças… E, mesmo assim, Martin mostra-se igualmente bom em ambas.

Poderíamos dizer que as Crônicas de Gelo e Fogo têm uma ambientação medieval, mas não se trata da "nossa" Idade Média; a trama se desenrola num mundo fictício. O mundo, em si, não é nomeado (pelo menos, não até onde já li), mas o continente onde se passa a maior parte dos acontecimentos da saga chama-se Westeros, um nome que traz sugestões de "ocidente", e, de fato, ele está localizado a oeste no mapa, com o Mar Estreito a separá-lo do continente vizinho, Essos (nome que sugere "oriente", em inglês East). Essos é muito maior, mas os westerosi pouco conhecem a respeito dele ― ou seja, Essos está para Westeros assim como a Ásia estava para a Europa medieval. Westeros abriga os assim chamados Sete Reinos, que, em tempos idos, eram mesmo reinos independentes, mas, na época em que se passa a história, são meras províncias de um único e vasto reino, de modo que quem usar a coroa governa, na prática, todo o continente, com exceção apenas do que está ao norte da Muralha… E da Muralha, falaremos daqui a pouco, pois poucas palavras não bastam. Ainda a respeito do mundo da saga, há uma peculiaridade importante: nele, a duração das estações é imprevisível. Os verões podem durar anos, e os invernos, o equivalente a uma vida inteira.

Catorze anos antes do início da narrativa, houve uma rebelião na qual diversas casas nobres, aliadas, derrubaram Aerys Targaryen, o Rei Louco. Um jovem cavaleiro de nome Jaime Lannister, que servia na guarda do rei, traiu e assassinou seu senhor, ao mesmo tempo em que se desenrolava a Batalha do Tridente, na qual Robert Baratheon, lorde de Ponta Tempestade, venceu em combate singular o filho mais velho de Aerys, Rhaegar, vindo então a sentar-se no legendário Trono de Ferro como o novo senhor dos Sete Reinos. Robert casou-se com Cersei Lannister, irmã gêmea de Jaime; seu sogro, Lorde Tywin, é o atual chefe da casa Lannister, a família mais rica de Westeros. Jaime e Cersei têm um irmão mais novo, Tyrion — um anão. Desde a infância alvo de desprezo geral por causa de sua condição física, Tyrion procura compensar o fato por meio da inteligência: é o membro estudioso da família, embora seja também um grande apreciador de vinho, farra, jogo e meretrizes.

Até serem depostos, os Targaryen parecem ter reinado durante muito tempo em Westeros; são um clã antigo e orgulhoso, que possui uma misteriosa afinidade com dragões ― em mais de um lugar do livro insinua-se que talvez tenham sangue de dragão nas veias, o que não é de todo absurdo: de acordo com muitas lendas (e também histórias de fantasia), os dragões são conhecedores de magia antiga, e pelo menos alguns deles possuem o poder de tomar a forma humana, podendo, nesse estado, relacionar-se com seres humanos e, possivelmente, até gerar descendência. Em Westeros, os dragões estão extintos, mas sua existência ainda não foi relegada ao status de lenda: os últimos morreram há apenas 150 anos. Poucas gerações antes dos dias em que transcorre a saga, reis da dinastia Targaryen os utilizaram como armas devastadoras em suas guerras. E, não por acaso, o emblema dos Targaryen é um dragão. Os únicos sobreviventes da dinastia são os dois filhos mais jovens do rei Aerys – Viserys, um rapaz, e Daenerys, uma donzela agora com 13 anos. Estão refugiados em Essos, sobrevivendo graças ao auxílio de antigos vassalos dos Targaryen, o que valeu a Viserys a incômoda alcunha de Rei Pedinte; mesmo assim, ele ainda alimenta a ambição de retornar a Westeros, derrubar Robert e ocupar o Trono de Ferro, o espantoso assento real que um de seus ancestrais mandou forjar com mais de mil espadas de inimigos derrotados. Para tentar concretizar essa ambição, Viserys arranja o casamento da irmã com Khal Drogo, um poderoso chefe tribal do povo Dothraki, uma nação de cavaleiros nômades das vastas pradarias de Essos. Em troca, Viserys espera que Drogo lhe dê um exército…

Um dos principais aliados de Robert Baratheon na guerra contra os Targaryen foi Eddard "Ned" Stark, da casa Stark, que controla a vasta e fria região conhecida apenas como o Norte, a parte mais extensa, mas menos povoada dos Sete Reinos. Os dois são amigos desde a juventude, e quase se tornaram cunhados: Robert era apaixonado pela irmã de Eddard, Lyanna. A jovem foi raptada durante a guerra pelo príncipe Rhaegar, e morreu no cativeiro – mais um motivo para o grande ódio de Robert por Rhaegar em particular e pelos Targaryen em geral. E é em torno de Eddard Stark que gira a narrativa neste primeiro volume das Crônicas. Casado com Lady Catelyn, ele tem cinco filhos legítimos. O mais velho, Robb, é um rapaz destemido de 14 anos, que está sendo educado para suceder ao pai como lorde de sua casa; Sansa, de onze, é uma dama por natureza: linda, educada, sonhadora, frágil, e não especialmente esperta; Arya, de nove, é o oposto da irmã, pois se aborrece com costura, mexericos palacianos e bailes, ama o ar livre e sonha em tornar-se uma guerreira; Bran, de sete, é irrequieto e curioso, e tem o perigoso hobby de escalar os velhos muros e torres de Winterfell, a fortaleza dos Stark, indo e vindo pelos telhados e ameias como se fosse um esquilo; e Rickon, o caçula, tem apenas três anos, de modo que é muito cedo para saber o que ele será e o que não será. Além desses filhos legítimos, Eddard tem mais um, ilegítimo ("bastardo", palavra que, embora com conotações ofensivas, é sem dúvida bem mais usada), quase da mesma idade de Robb. Esse chama-se Jon Snow ― não Stark, mas Snow ('Neve'), sobrenome tradicional de filhos bastardos no Norte. Em Westeros, como em toda parte onde existem nobres, é comum que eles tenham filhos fora do casamento, mas, de modo geral, contentam-se em enviar algum dinheiro para suprir o sustento da criança – isso quando não a deixam à própria sorte. Eddard Stark fez diferente. Jon foi criado em Winterfell, junto com seus filhos legítimos e quase em pé de igualdade com eles. O pai, provavelmente, teria desejado que a igualdade fosse completa, mas não poderia fazer isso sem afrontar gravemente Lady Catelyn, que apenas tolera o bastardo, sem esconder que o prefere fora de sua vista. Jon convive com um dilema que envolve sua própria existência: ele admira profundamente o pai, a quem considera o homem mais honrado que conhece – mas, se Eddard não tivesse, ao menos uma vez, faltado para com sua honra, ele, Jon, não existiria. A identidade da mãe de Jon Snow é um dos segredos que mais intrigam os fãs das Crônicas.

Tudo isso são antecedentes. A história que vai ser narrada em A Guerra dos Tronos começa com a morte de Lorde Jon Arryn, senhor do castelo de Ninho da Águia, um homem já de certa idade que foi uma figura importante da rebelião e uma espécie de segundo pai para os jovens Ned Stark e Robert Baratheon, além de ter-se tornado concunhado de Ned ao casar-se com Lysa, irmã de Catelyn. Durante os últimos 14 anos, Jon Arryn ocupou o cargo de Mão do Rei – seu homem de maior confiança, conselheiro mais próximo e, quando necessário, substituto. Agora, Lorde Arryn morreu de forma repentina, supostamente vitimado por uma doença fulminante, mas há quem acredite que ele foi envenenado por ter descoberto algum grave segredo envolvendo pessoas importantes, algo que tais pessoas não iriam querer que chegasse ao conhecimento do rei Robert. O rei, então, vai de visita a Winterfell, com praticamente toda a sua corte (um deslocamento e tanto), a fim de pedir a Ned Stark que assuma o cargo que Arryn deixou vago, o que ele aceita relutantemente, movido apenas pelo senso do dever, pois não deseja o poder e preferiria ficar na terra que ama, em sua casa, com sua família. Robert, que Ned não via há anos, mudou muito; o formidável guerreiro de outrora amoleceu, engordou, e o hábito de abusar do vinho, que antes era ocasional, tornou-se quase diário. Nem mesmo seus amigos mais chegados podem nutrir a ilusão de que ele seja um excelente rei, mas Ned sabe que seu velho amigo é, na essência, um homem decente, e tem esperança de poder ajudá-lo a governar bem. Infelizmente para ele e para muitos outros, a política na capital Porto Real revela-se uma coisa tortuosa e traiçoeira, que a própria natureza honesta de Ned torna-o pouco hábil para enfrentar.

Entre os que comparecem a Winterfell durante a visita do rei está Benjen Stark, irmão de Eddard e membro graduado da Patrulha da Noite. Essa corporação tem uma tradição de séculos defendendo a Muralha, que separa os Sete Reinos das regiões geladas do extremo norte do continente, habitadas por ferozes tribos selvagens – e, segundo alguns, também por gigantes e outras coisas estranhas e perigosas. Quando li sobre a Muralha, imediatamente tive quase certeza de que tinha sido inspirada na Muralha de Adriano (detalhes aqui); mais tarde tive a confirmação, ao ler, em algum lugar da internet, uma pequena matéria na qual George R. R. Martin contava que essa ideia lhe veio quando, durante uma viagem pela região da fronteira Inglaterra/Escócia, visitou as partes da Muralha que ainda estão em pé e ficou imaginando como era a vida dos homens que ali montavam guarda, responsáveis por deter investidas de povos bárbaros e por resguardar a segurança das populações civis atrás deles. Porém, há uma diferença importante: os que guarneciam a Muralha de Adriano eram legionários romanos, soldados de um exército profissional; eram voluntários, altamente treinados e disciplinados, e, além disso, gozavam de um certo status. Já em Westeros, a força que cuida da Muralha é a tal Patrulha da Noite, que até tem em suas fileiras alguns nobres, cavaleiros e voluntários idealistas – mas o grosso das tropas é composto de criminosos condenados, a quem foi oferecida a escolha entre passar o resto de seus dias na Muralha e enfrentar a execução sumária ou coisa pior. Ao Lorde Comandante Jeor Mormont e seus oficiais – entre os quais Benjen Stark – cabe a dura tarefa de transformar esses celerados em soldados comprometidos com uma causa. Então, para a surpresa de todos, o jovem Jon Snow comunica ao tio Benjen que deseja "vestir o negro" – expressão tradicional que significa juntar-se à Patrulha da Noite, aludindo à cor de seus trajes, que, aliás, a meu ver, é bem estranha: uma força que atua numa região gelada e quase sempre coberta de neve deveria vestir branco, a fim de ficar menos visível para seus inimigos. No caso de Jon, só mesmo o idealismo, o desejo de aventura ou as duas coisas podem explicar essa aspiração. Em Winterfell, a despeito da má vontade da madrasta, ele tem uma vida confortável, a companhia do pai e dos meio-irmãos (parece dar-se bem com todos), aprende com os melhores mestres e, mesmo que não possa esperar chegar tão alto quanto os filhos legítimos de lorde Stark, poderá, quem sabe, ser senescal de Robb quando este for lorde – um futuro bem mais promissor que o da maioria dos bastardos. Na Muralha, tudo o que o espera é frio, perigo, desconforto, e a companhia menos recomendável possível. Porém, uma vez tendo tomado sua decisão, ele parte para o norte com Benjen, enquanto seu pai toma o rumo contrário, em direção a Porto Real, acompanhado por homens escolhidos, e levando consigo Arya e Sansa – esta, prometida ao príncipe Joffrey, filho mais velho do rei. Robb e Catelyn ficam responsáveis por Winterfell, e, quanto a Bran, ele sofre um grave acidente (não vou dar spoiler entrando em detalhes) e fica entre a vida e a morte. O que Eddard encontrará na capital, e Jon na Muralha, irá definir duas das principais linhas narrativas do romance. A terceira linha principal trata da vida da jovem Daenerys Targaryen em Essos… E há ainda outras linhas, menos importantes, mas tão fascinantes quanto.


Dizer que um autor ou obra é "o maior acontecimento na literatura de fantasia desde Tolkien" é algo que já foi tão usado e abusado, que há muito já perdeu qualquer capacidade que alguma vez tenha tido de impressionar alguém; é como dizer que este ou aquele jovem jogador de futebol tem as qualidades de um "novo Pelé". E é claro que isso já foi dito também de George R. R. Martin e suas Crônicas de Gelo e Fogo. Comparar é desnecessário, perigoso e injusto – afinal, Martin é o primeiro a reconhecer que Tolkien é uma de suas mais fortes influências, de modo que, se não fosse pela Terra-média, é provável que Westeros e Essos nunca tivessem nascido, ou que, pelo menos, não fossem tão grandiosos. Entretanto, mantendo uma distância segura das malfadadas comparações, e ciente de que fazer previsões é sempre arriscado, eu ouso apostar que as Crônicas vieram para ficar, e que, daqui a cinquenta anos, os novos autores de fantasia de então poderão muito bem estar mencionando tanto Tolkien quanto Martin com gratidão e reverência, e confessando-se, por sua vez, influenciados por ambos. A Guerra dos Tronos (e acredito que também os volumes seguintes, que espero ler em breve) tem aquele "algo mais", nem sempre fácil de definir, que distingue um bom livro de um grande livro. Temos aqui todo o necessário para dar nascimento a uma nova "mitologia": um mundo vasto e fascinante, com história, geografia e cultura próprias; uma trama complexa, cheia de reviravoltas e surpresas; e, talvez o mais apaixonante, personagens incríveis, cada um com seu perfil e jeito de ser, suas forças e fraquezas, e suas contradições. Os exemplos que me vêm à cabeça agora são dois. Primeiro, Lady Catelyn, uma mulher admirável, verdadeira heroína – corajosa, sábia, cheia de fibra, capaz de tudo pela família… e, não obstante, capaz também de ser incrivelmente mesquinha em sua implicância para com Jon Snow, simplesmente porque o rapaz, sem ter culpa alguma disso, é para ela um lembrete constante de que seu marido um dia lhe foi infiel. Segundo, Jaime Lannister, essencialmente um homem vaidoso, prepotente e sem escrúpulos, mas também devotado à família (embora haja um segredo chocante envolvendo essa parte); para Tyrion, aliás, Jaime é o único membro da família que já lhe demonstrou bondade ou amizade. Mesmo a traição cometida por Jaime contra Aerys Targaryen – o rei cuja vida jurara defender com a sua – tem dois lados, embora só bem mais tarde venhamos a conhecer sua versão da história. De todo modo, o que eu pretendia com esses dois exemplos (apenas dois dentre os muitos que poderia citar) era demonstrar o que quero dizer quando afirmo que os personagens de Martin são mais que rostos e nomes: são pessoas. Não totalmente bons, nem totalmente maus: pessoas. Bem… Nem todos, é verdade. Uma boa história também precisa de seus personagens previsíveis.

Quem ler a mesma edição que eu, notará que o texto como um todo tem um sabor inconfundível do português europeu, com um uso frequente de palavras, expressões e estruturas frasais típicas dessa variante do idioma, juntamente com muitos erros de concordância, verbos conjugados em pessoas diferentes dentro da mesma frase… A impressão que dá é a de que a edição brasileira foi feita aproveitando uma tradução portuguesa preexistente, que passou por uma canhestra tentativa de adaptação. Pessoalmente, sempre li livros editados em Portugal sem qualquer adaptação, e nunca tive problemas com isso; seria muito melhor ler na tradução original que nessa versão que tenta transformar o texto em português brasileiro, mas consegue apenas continuar a ser português europeu – só que agora cheio de erros.

Ainda há muito que eu gostaria de dizer sobre este livro (que, não esqueçam, é apenas o primeiro da saga!) e também sobre a estupenda série de TV Game of Thrones, mas é melhor não deixar o texto longo demais, e, além disso, oportunidades não hão de faltar, pois tenho certeza de que este não será de forma alguma meu único post sobre o universo de George R. R. Martin. Em textos futuros, pretendo dar um jeito de inserir uma porrada de coisas que pensei em escrever aqui, e só não o fiz para não me alongar ainda mais.

terça-feira, julho 28, 2015

A Trilogia da Escuridão + The Strain

Quando um voo da Regis Airlines, procedente de Berlim, se prepara para pousar no aeroporto internacional John F. Kennedy, em Nova York, não parece haver razão alguma para imaginar que algo possa estar errado. A enorme aeronave toca o solo em segurança e no horário previsto. Porém, quando seus motores desligam, o mesmo acontece com todas as luzes a bordo, e, o que é pior, a tripulação deixa de responder às insistentes tentativas de comunicação por parte da torre de controle do aeroporto. E há os passageiros, que normalmente ficam num frenesi para desembarcar assim que o avião aterrissa, mas que, no presente caso, parecem estar muito quietos… Quietos demais para ser um bom sinal. A primeira coisa em que todos pensam, claro, é numa ação terrorista, possivelmente com uso de armas químicas ou biológicas. Para lidar com a possível presença de patógenos desconhecidos, é chamada a equipe do Centro de Controle de Doenças, liderada pelo Dr. Ephraim Goodweather, também coordenador do Projeto Canário, cuja função é manter vigilância constante contra ameaças de epidemias. Quando Ephraim ("Eph" para os amigos) e sua colega, a Dra. Nora Martinez, ambos pesadamente protegidos contra qualquer contágio, entram no avião para investigar, a cena que encontram é atordoante. Duzentas e seis pessoas, entre passageiros e tripulação, estão aparentemente mortas, sem sinal de violência, e, se houve infecção, o agente foi algo diferente de tudo o que os dois experientes epidemiologistas já viram. Com o tempo, quatro pessoas – três passageiros e o comandante – despertam, mas nenhuma delas consegue dizer o que aconteceu no voo, e nem mesmo acrescentar qualquer informação que lance alguma luz sobre a estranheza do caso.

A investigação conduzida pelas autoridades encarregadas do tráfego aéreo só encontra um objeto suspeito, ou, no mínimo, estranho a bordo do avião: uma enorme caixa retangular de madeira de lei, toda coberta de intrincadas figuras entalhadas representando morte e sofrimento. A caixa dá a ideia de um esquife, mas tem mais de dois metros e meio de comprimento, e, em vez de uma simples tampa, possui portas duplas, à maneira de um guarda-roupa, por assim dizer. Quando é aberta, descobre-se que possui um trinco pelo lado de dentro. No mais, a caixa contém apenas terra. O inacreditável é que ela não consta no manifesto de bagagem, o que não faz nenhum sentido: em tempos pós-Onze de Setembro, deveria ser impossível embarcar com carga não declarada em qualquer voo com destino aos Estados Unidos, e ainda mais um objeto desse tamanho. Eph deseja submeter a caixa a mais análises, assim como os corpos das vítimas e os quatro sobreviventes, que, nem é preciso dizer, deverão ficar sob rigorosa quarentena até segunda ordem – mas não consegue que nenhuma dessas providências seja tomada. A caixa desaparece misteriosamente, apesar de estar sendo mantida em área de acesso restrito, e um dos sobreviventes é uma advogada arrogante e (infelizmente) com "contatos importantes", que consegue que ela e os outros sejam liberados, solenemente passando por cima das normas de segurança médica. Quanto ao exame dos corpos, ele bem que começa a ser feito, mas os procedimentos são interrompidos de forma bizarra, quando os supostos mortos começam a levantar das mesas de autópsia e a atacar quem encontram pela frente, usando novos e horrendos órgãos que parecem ter desenvolvido durante o período de latência que foi confundido com morte.

O agente é, sem dúvida, um vírus, e, como todo vírus, tem um único objetivo na existência: infectar seres vivos, para obrigar suas células a funcionar como fábricas, produzindo o maior número possível de novos vírus. Isso mesmo: um vírus só existe para se replicar. Ele não faz mais nada. Não é capaz de mais nada. Sob esse aspecto, como dissemos, o vírus em questão é igual a qualquer outro… Em tudo o mais, porém, é horrivelmente único. Ele "reescreve" o código genético do organismo infectado, causando transformações físicas para tornar o hospedeiro mais útil aos "interesses" do vírus. Os órgãos internos secam e atrofiam, já que a maior parte das funções que realizavam não são mais necessárias à nova criatura. Na garganta, desenvolve-se uma espécie de tentáculo muscular, que fica recolhido, talvez enrolado quando em repouso, mas que, esticado, chega a medir até um metro e oitenta de comprimento, terminando num ferrão. A criatura usa o tentáculo como se fosse um chicote para subjugar a presa; feito isso, crava o ferrão para sugar o sangue – e quem é sugado fica infectado, de modo que o processo recomeça.

A última parte lembra algo? Não é mera coincidência. Há um homem em Nova York que conhece tanto as antigas lendas quanto a realidade por trás delas. Abraham Setrakian, um judeu de origem armênia, mas criado na Romênia, é proprietário de uma loja de penhores no Harlem, mas já foi professor de literatura e folclore eslavos na universidade de Viena, e teve seu primeiro contato com a praga vampírica mais de 60 anos antes, quando era prisioneiro dos alemães em Treblinka, na Polônia. Embora Treblinka fosse um campo de extermínio, Setrakian, como outros prisioneiros jovens e fortes, foi mantido vivo, em caráter temporário, para que o Terceiro Reich pudesse se beneficiar de sua força de trabalho. Foi graças a essa prorrogação de vida que ele teve a chance de aproveitar o caos que se abateu sobre o campo por ocasião de um ataque do exército russo, e escapar. Antes de sua fuga, contudo, o jovem Abraham testemunhou um horror ainda maior que as atrocidades dos nazistas, que faziam parte do cotidiano do lugar. Escondida nas sombras da noite, uma criatura misteriosa, dotada de força e velocidade impossíveis, esgueirava-se pelos barracões que serviam de alojamento aos prisioneiros, alimentando-se dos homens adormecidos, e, o que é pior, com a conivência do comandante do campo – Abraham tem certeza desse detalhe, pois foi ele quem construiu e entalhou a caixa, por ordem do comandante e para uma finalidade que não é difícil imaginar. O oficial nazista permitia a esse ser fartar-se do sangue dos prisioneiros – que seriam mortos de qualquer forma – e lhe oferecia abrigo, em troca… do quê? A busca da resposta para essa pergunta, do conhecimento da verdadeira natureza da criatura, e de uma maneira de destruí-la, viriam a tornar-se a razão da vida de Setrakian durante as décadas seguintes. Agora ele está velho e sofrendo do coração, mas, se seu vigor físico já não é igual ao de outros tempos, sua coragem continua a mesma, e sua mente está mais aguçada que nunca.

Embora seja um folclorista por formação, Setrakian não negligenciou o que a ciência tinha a contribuir durante seus longos anos de pesquisas e investigações. Ele já sabe, por exemplo, que o que transforma seres humanos em vampiros é um vírus, não uma maldição ou qualquer outra coisa sobrenatural. Descobriu também que o vetor da praga é um pequeno verme, com menos de cinco centímetros de comprimento e espessura pouco maior que a de um fio de cabelo, e com uma habilidade extraordinária para perfurar a pele humana: se você tiver contato físico com um desses, em segundos ele estará na sua corrente sanguínea, e então, nada mais poderá ser feito para salvá-lo. O velho professor apurou, ainda, que a criatura que ele viu em Treblinka era um vampiro-mestre, algum tipo de consciência antiga e maligna, capaz de trocar de corpo ao longo do tempo – o que o faz praticamente imortal – e que controla o contágio do vírus para servir a seus próprios planos. Os vampiros comuns são seres apenas semi-inteligentes, capazes de pouca coisa além de ir atrás de sangue e espalhar a praga, mas o Mestre pode, quando assim deseja, transformar certos humanos escolhidos em uma classe superior de vampiros, mais espertos e poderosos, com capacidade de controlar seus instintos e lembrança total de suas vidas anteriores. Esses, ele reserva para serem seus servidores diretos.


Todo esse conhecimento acumulado por Setrakian, bem como sua impressionante coleção de armas e livros, irá mostrar-se de importância vital para o pequeno grupo dos que irão opor-se aos planos do Mestre a fim de tentar evitar um "apocalipse vampiro" de proporções mundiais. Desse grupo fazem parte Eph e Nora, que por meios tortuosos vêm a conhecer o professor e a somar forças com ele, já que, no fim das contas, todos têm o mesmo objetivo, embora discordem sobre quem recrutou quem para sua causa. Aos três, junta-se eventualmente um sujeito de nome Vasiliy Fet, um filho de imigrantes russos que trabalha para a secretaria municipal de saúde como exterminador de pragas, sendo os ratos sua especialidade. Graças a sua experiência profissional, Vasiliy é o primeiro a perceber que, sob certos aspectos, os vampiros agem de forma parecida à dos roedores. Além disso, ele pensa de forma fria, desprovida de sentimentalismo. Eph e Nora, ao menos no início, sentem uma compreensível hesitação em situações que exigem a eliminação física de vampiros, porque não conseguem deixar de pensar neles como os seres humanos que já foram, e pelos quais eles, como médicos, juraram zelar. Já para Vasiliy, a partir do momento em que alguém é infectado, passa a ser nada mais que um veículo disseminador de doença, assim como os ratos – e deve ser tratado tal como eles. Essa atitude, aprovada por Setrakian, causa horror e repulsa aos outros dois, o que abala a união do grupo ― e isso só pode ser bom para o Mestre… Porém, muitas reviravoltas ainda terão lugar antes do fim.

E, como se a situação já não fosse desesperadora o suficiente, existem outras forças e outros interesses em ação. Um tal Eldritch Palmer (haveria algum paralelo com Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick? Hum…), um dos homens mais ricos do mundo, está agindo em parceria com o Mestre. Para começar, foi graças a ele que o grande vampiro conseguiu transpor o oceano para chegar da Europa aos Estados Unidos ― pois, embora os vampiros desta história tenham muitas diferenças em relação aos vampiros clássicos, também possuem semelhanças, e uma delas é a incapacidade de atravessar água em movimento, a não ser com a ajuda de humanos; qual seria a explicação científica para isso, não se sabe (no terceiro volume é oferecida uma explicação mítica). Palmer é um homem poderoso em todos os sentidos, exceto o físico: sempre teve uma constituição débil e uma saúde frágil. Já tem certa idade, uma idade à qual um homem comum com os mesmos problemas dificilmente teria chegado; só conseguiu manter-se vivo graças ao fato de ter dinheiro para recorrer sempre aos mais modernos tratamentos médicos, e ainda não acha que tenha vivido o suficiente. Na verdade, ele almeja a imortalidade, que o Mestre já ofereceu a alguns humanos antes: Palmer quer ser transformado num daqueles vampiros superiores, com memória e inteligência, e assim seguir vivendo indefinidamente. Em troca, providenciou a viagem do Mestre (com pressões ou subornos às pessoas certas, conseguiu que a enorme caixa fosse embarcada naquele voo, sem registros e sem perguntas), e agora usa sua influência junto à imprensa numa maciça campanha de desinformação, para evitar que o público em geral fique sabendo o que realmente está acontecendo. Nisso, a incredulidade teimosa que é sempre a reação da maioria diante do insólito é uma grande aliada: a TV e os jornais falam em “tumultos”, "saques", uma onda de desaparecimentos, e todo tipo de perturbação da ordem, mas sem nunca revelar o que há por trás de todo esse caos. Boatos circulam, é claro, mas as pessoas preferem acreditar no que conhecem. Vampiros? Quem acreditaria nessa "bobagem"? A maior parte das pessoas vai sempre se obstinar em fechar os olhos à realidade, se ela for muito diferente daquilo que estão acostumadas a ver como "realidade".

Escrevi acima que os vampiros da Trilogia da Escuridão têm diferenças e também semelhanças com os vampiros clássicos. Pois outra semelhança, além da questão da água corrente, é a velha crença segundo a qual um vampiro recém-transformado irá atrás, em primeiro lugar, de seus familiares e amigos – daqueles que ele amou em vida. Essa crença, infelizmente, é verdadeira. Ao longo do primeiro volume, Noturno, enquanto o mundo ainda mantém uma certa aparência de normalidade, acompanhamos a disputa entre Eph Goodweather e sua ex-esposa, Kelly, pela guarda do filho de onze anos, Zack. Isso pode parecer apenas um recurso para fazer de Eph um personagem mais complexo, dando-lhe background e mais humanidade, mas vira algo bem diferente a partir do momento em que Kelly é infectada pelo vírus. Em sua nova existência como vampira, ela não vai descansar enquanto não infectar também o garoto para poder tê-lo novamente junto dela, de modo que a disputa que antes acontecia nos tribunais irá continuar, só que de uma maneira bem mais selvagem e assustadora.

Puxa, comentar livros muito ricos é difícil! Conforme vou escrevendo, vão surgindo mais e mais pontos interessantes que não parece certo deixar de mencionar. Um deles acaba de me ocorrer por causa dessa comparação entre os vampiros de que estamos falando aqui e os vampiros clássicos. Mas, afinal, que raios é um "vampiro clássico"? Suponho que podemos defini-los como sendo os vampiros criados por autores vitorianos como Bram Stoker, John William Polidori, Joseph Sheridan Le Fanu, esse pessoal, e os que vieram depois, diretamente influenciados por eles, tanto na literatura quanto no cinema. Porém, o vampiro em si é mais antigo que isso, e, em sua origem, muito menos glamouroso. Para falar a verdade, nas lendas da Europa oriental, que datam, no mínimo, do fim da Idade Média (e muito provavelmente de bem antes), os vampiros são descritos como seres repelentes, tão dignos de pena quanto de temor, com uma aparência hedionda – às vezes cadavérica, outras com traços animais –, que andavam nus ou cobertos de trapos imundos, escondiam-se em túmulos enlameados e tinham pouca ou nenhuma inteligência. Que diferença entre isso e as representações de vampiros na cultura popular do século XXI, não?… O que a Trilogia da Escuridão faz, de certa forma, é apontar para as origens, ao mostrar a face mais bestial e menos sedutora do vampirismo. Ao mesmo tempo, a existência de exemplares "superiores", como os escolhidos do Mestre, pode ser vista como a possível origem das noções a respeito de vampiros mais inteligentes e sofisticados, como os Lordes Ruthven, as Carmillas e os Dráculas dos vitorianos.


Os fãs do cineasta mexicano Guillermo del Toro ficaram surpresos com a notícia de sua estreia como escritor, e, quando se soube que seria em parceria com o veterano Chuck Hogan, foi inevitável a dúvida: será que esse não vai ser mais um daqueles casos em que um dos autores faz o trabalho, enquanto o outro entra com o nome famoso? Porém, quem leu convenceu-se do contrário: Hogan provavelmente foi o responsável por dar forma ao texto, mas o estilo de Del Toro está por toda parte; a própria ideia geral deve ter sido dele. E, se a estreia do cara na literatura surpreendeu, o fato de a obra resultante ser adaptada para a tela já era de se esperar – só que a tela em questão acabou sendo a da TV em vez da do cinema, seu campo costumeiro de atuação. O que nos leva ao próximo tópico…

Na TV

The Strain (algo como "linhagem, descendência") era o título original da Trilogia da Escuridão, e foi mantido na série de TV baseada nela. A produção é do canal FX, e a primeira temporada, exibida nos Estados Unidos em 2014, já está disponível entre nós em DVD. A segunda está indo ao ar este ano em terras gringas, e a terceira está confirmada para 2016; uma temporada para cada volume da trilogia. Quando a série chegou ao Brasil, foi exibida e lançada em DVD com o título em inglês mesmo, que provavelmente foi considerado mais chamativo – algo bem típico do nosso país, embora eu não possa dizer que aprovo.

Quem lê um livro e gosta muito costuma ficar contrariado quando assiste à versão audiovisual e constata que muita coisa foi alterada – mas será que faz sentido ter essa reação quando o próprio autor esteve envolvido na produção? Quando as mudanças feitas foram decididas ou, pelo menos, aprovadas por ele? É o que se verifica aqui: Del Toro e Hogan criaram a série, baseada, naturalmente, em seus próprios livros, e assinam a produção executiva; além disso, Del Toro dirigiu o episódio-piloto, verdadeiro longa-metragem com mais de 70 minutos de duração, muito mais que os outros episódios, que têm em torno de 40 minutos cada. Num dos extras encontrados nos DVDs da primeira temporada, ele diz que uma das coisas legais nas alterações feitas é que, dessa forma, a série reserva surpresas até mesmo para quem leu os livros. Eu acrescentaria que, para os autores, essa produção deve ter representado uma oportunidade rara: a de "passar a limpo" uma obra depois de já publicada! Quem escreve fatalmente conhece a experiência e a sensação: você está trabalhando num texto (seja um post para um blog ou uma trilogia de romances, tanto faz) e, depois de muito quebrar a cabeça, por fim consegue lhe dar uma forma final que o deixa satisfeito – naquele momento. Porém, é inevitável que, ao reler o resultado mais tarde, você ache que poderia ter ficado melhor, caso tivesse feito isto ou aquilo de forma diferente. Até onde sei, a história da literatura registra raros casos de livros que tenham sido "mexidos" de forma significativa (ao menos por seus próprios autores) depois de publicados. Hoje em dia, entretanto, novas mídias abrem possibilidades novas, e, graças a isso, Del Toro e Hogan puderam reinventar o que consideraram "reinventável" em sua saga, sem atormentar seus leitores com diferentes versões dos livros.

Nos papéis principais da série estão David Bradley (que interpreta Abraham Setrakian na atualidade, sendo substituído por Jim Watson nas cenas da juventude do personagem), Corey Stoll (Eph Goodweather), Mia Maestro (Nora Martinez), Kevin Durand (Vasiliy Fet), Jonathan Hyde (Eldritch Palmer) e Robin Atkin Downes (o Mestre). E, a meu ver, duas das mais importantes mudanças ocorridas na transição das páginas para a tela são representadas por dois personagens que não fazem parte dessa lista de "principais". Um deles já existia nos livros, embora só aparecesse no segundo volume e tivesse relativamente pouca importância: é Thomas Eichhorst, que comandava o campo de Treblinka quando Setrakian era prisioneiro lá. Convertido em vampiro, Eichhorst continua vivo (se é que ser vampiro é estar vivo) e em plena atividade no século XXI. Na série, o personagem aumentou muito em importância, aparecendo, e bastante, desde o início da primeira temporada. No presente, serve ao Mestre, sendo o contato entre ele e Palmer; no passado, é uma figura-chave durante os flashbacks ambientados nos dias da Segunda Guerra, que, por sinal, foram muito ampliados em relação ao que havia nos livros. Para completar, Eichhorst é magnificamente interpretado por Richard Sammel, que, além de atuar bem, tem até a aparência perfeita para "ser" um oficial nazista.


A outra personagem a que me referi é a hacker Dutch Velders; essa foi criada para a série. Ela começa do lado errado: Palmer a contrata para derrubar os principais servidores de internet da América do Norte, a fim de dificultar as comunicações e reduzir as chances de que se forme alguma resistência organizada contra a propagação da praga vampírica. Dutch, que nada sabe sobre o vírus e seus efeitos, executa a sabotagem acreditando estar "apenas" servindo a alguma trapaça corporativa; quando conhece o grupo de heróis e compreende o que ajudou a fazer, ela muda de lado e torna-se uma aliada valiosa para Setrakian e companhia – além de atrair o interesse de Vasiliy, um sujeito, até então, bem pouco romântico. Dutch é interpretada por Ruta Gedmintas, que, por causa desse nome incomum e de sua beleza exótica, cheguei a pensar que viesse de algum país improvável, mas não: a gata é inglesa (sua personagem também é, apesar do apelido de Dutch, 'Holandesa'), nascida na histórica Canterbury, e já participou de outras produções de destaque, como The Tudors, que, infelizmente, ainda não conheço. A inclusão de Dutch na trama parece atender às rápidas mudanças no mundo da mídia e das comunicações: o primeiro volume da Trilogia foi publicado em 2009, mas começou a ser bolado alguns anos antes, por volta de 2005. Nessa época, a internet já era parte integrante da vida de pessoas e nações, mas as comunicações ainda não eram totalmente dependentes dela, como hoje, de modo que Hogan e Del Toro provavelmente não pensaram que Palmer e o Mestre teriam que fazer algo com a rede para que seu plano funcionasse. Já em 2014, esse seria necessariamente um ponto essencial da coisa toda, e é aí que entra Dutch. São os autores reinventando sua criação, como escrevi acima.

Acho curioso, ainda, assinalar um detalhe sobre Nora. Nos livros, nada é dito sobre sua nacionalidade, mas, como seu nome e biotipo indicam origem hispânica, o leitor é levado a deduzir que ela pode ser mexicana, ou hispano-americana mesmo. Na série, é revelado que ela nasceu na Argentina e lá viveu sua infância, presumivelmente durante os anos 70 e início dos 80, ainda sofrendo os efeitos de uma das mais cruéis ditaduras que a América Latina, infelizmente tão experiente com esse tipo de coisa, já conheceu. Em um ou dois diálogos com Eph, Nora traça breves comparações entre tirania e vampirismo, baseadas no que viu e sentiu em seu país de origem quando era criança. Aí tem o dedo de Del Toro, que, sendo mexicano e admirado mundo afora, está em boa posição para lembrar ao público dos Estados Unidos que o resto do mundo existe e tem seus próprios problemas ― algo que os ianques têm extrema facilidade em esquecer. Além disso, o cara parece considerar questão de honra mostrar a dura realidade da vida de pessoas comuns sob regimes ditatoriais, como deve ter notado quem viu O Labirinto do Fauno.

A Trilogia da Escuridão e The Strain, a série de TV, são algo um pouco diferente das coisas que os fãs de Guillermo del Toro estão acostumados a receber dele, mas não menos fascinante ou empolgante. Ambas as obras misturam com eficiência drama, suspense, terror e ficção científica, e acorrentam o leitor/espectador de forma implacável, levando-o a querer mais e mais, até chegar ao desfecho da coisa toda. Prevejo que quem assistir à primeira temporada da série vai querer ler os livros, nem que seja só por não aguentar esperar mais dois anos pelo final da história. E essa é uma leitura que recomendo com entusiasmo!

segunda-feira, junho 15, 2015

A Companhia Negra

Durante séculos, a tropa mercenária conhecida como a Companhia Negra construiu para si uma sólida reputação que se estendeu por vários reinos. Sua eficiência no campo de batalha e seu empenho em honrar os contratos firmados fizeram-na respeitada e temida. Porém, os melhores tempos da Companhia parecem ter passado. Reduzidos em número e em prestígio, seus remanescentes, atualmente, trabalham para o Síndico (governante) da cidade portuária de Berílio, pouco tendo a fazer além de ajudar a manter a ordem, o que, como na maioria das cidades portuárias, às vezes se torna um problema.

Notícias de guerra chegam de longe. A Dama, uma feiticeira de enorme poder, derrotada em eras passadas, está de volta, ressuscitada graças às artes de alguns de seus seguidores, conhecedores de magia necromântica. Nos tempos antigos, a Dama e seu amante, outro poderoso feiticeiro conhecido como o Dominador, haviam derrotado dez de seus mais fortes inimigos e aprisionado suas almas, obrigando-os a se tornarem seus servos; esses são conhecidos como os Tomados, e a mesma magia que trouxe a Dama de volta à vida os trouxe também – se é que dá para chamar seu estado de "vida". A Dama retoma seu reinado de tirania e sua busca por mais poder; além disso, ela quer impedir que o Dominador desperte também. Opondo-se a ela, há uma força rebelde, encabeçada por um grupo de magos chamado o Círculo, e a guerra está se espalhando como fogo pelo continente.

Inesperadamente, um gigantesco navio de aparência sinistra surge em Berílio, e quem está no comando é ninguém menos que um dos Tomados, que atende pelo nome de Apanhador de Almas. Esse servo da Dama faz uma proposta ao comandante da Companhia Negra (que todos os seus soldados conhecem simplesmente como o "Capitão"; usar o próprio nome parece ser um costume raro na Companhia): quer que se juntem a ele a serviço de sua senhora, indo ajudar a enfrentar os rebeldes. A proposta não pode ser aceita, já que o contrato feito com o Síndico de Berílio ainda está em vigor, mas o empecilho desaparece poucos dias depois, quando o Síndico é morto durante uma revolta – com o detalhe de que não são os revoltosos os responsáveis por sua morte, e sim uma criatura denominada forvalaka, uma espécie de vampiro com características felinas e poderes transmórficos (no folclore do leste europeu, onde a lenda dos vampiros teve origem no nosso mundo, eles eram chamados de vorkolakas; pode não ser coincidência). O forvalaka fora aprisionado, com outros de sua espécie, numa tumba na necrópole de Berílio, séculos atrás, e foi libertado apenas dias antes, quando um raio caído de um céu claro destruiu a placa de pedra onde estava gravado o feitiço de confinamento que o mantinha preso. O comportamento de ir atrás de uma vítima específica – e até mesmo invadir uma fortaleza bem guardada para apanhá-la – em vez de simplesmente procurar por sangue onde fosse mais fácil, também não é exatamente típico. Ou seja, parece ter havido uma conspiração (seja das circunstâncias ou de alguém mais concreto) para permitir, na verdade quase obrigar a Companhia Negra a entrar para o serviço da Dama.

O narrador da história, Chagas, é também um dos personagens mais interessantes. Ele responde, ao mesmo tempo, pelas funções de médico e de cronista da Companhia, responsável pelos registros históricos – tudo isso além de ser um soldado combatente. Mais instruído que a maioria dos outros, Chagas percebe as manipulações que existem por trás de cada lance da guerra, e, embora às vezes seja impossível não se perguntar se está lutando do lado certo, há um ponto sobre o qual ele não tem ilusões: aquilo não é uma luta entre o "bem" e o "mal". A Dama é tirânica, mas os rebeldes tampouco são anjos. Os dois lados cometem crimes. É em meio a tudo isso que ele e seus companheiros terão de tentar sobreviver, fazer jus a seu pagamento, e manter intacta a honra da Companhia Negra.


Talvez o diferencial de Glen Cook em relação a outros autores de fantasia seja o fato de que, embora suas histórias se passem num mundo imaginário, esse mundo não é idealizado ― seus personagens enfrentam uma realidade bem dura. No mundo deles, tal como no nosso, miséria e criminalidade estão quase por toda parte, é arriscado confiar na honra do inimigo (e, não raro, até na dos próprios aliados), e a guerra tem muito pouco de heroísmo, emoção ou glória, sendo composta de uma porcentagem muito maior de medo, brutalidade e sujeira. O autor (nascido em 1944) já foi fuzileiro naval, o que explica sua familiaridade com ambientes militares e, provavelmente, sua popularidade entre o pessoal das forças armadas, tanto nos Estados Unidos quanto nos outros países onde sua obra foi publicada. Ao ser interpelado sobre esse assunto certa vez numa entrevista, Cook disse que seus personagens e algumas situações eram inspirados em pessoas que conheceu e em eventos que testemunhou durante seu serviço militar, o que fazia com que suas narrativas tivessem um tipo de realismo que não é possível em histórias de autores que só possuem conhecimento livresco sobre a vida na caserna. Desconfio, também, que a experiência militar tenha levado Cook a desenvolver um gosto exacerbado por prontidão e praticidade, e que por isso ele não goste de gastar tempo pensando em nomes próprios de sonoridade exótica, o que explicaria o motivo pelo qual, em A Companhia Negra, tanto os personagens quanto os lugares são nomeados com palavras comuns: os personagens são Elmo, Corvo, Caolho, Capitão, Tenente, Lindinha, Manco, Sussurro; as cidades, Berílio, Ferrugem, Geada, Rosas, Celeiros, Lordes, Talismã e por aí vai.

A Companhia Negra, primeiro volume da série de mesmo nome, foi publicado originalmente em 1984, e, portanto, pode ter influenciado os criadores do jogo de computador Myth: the Fallen Lords, lançado treze anos depois – eu senti um clima muito parecido em ambos, talvez por terem em comum o fato de representarem guerras nas quais as tropas tradicionais ainda são essenciais, mas o uso de magias potentes pode fazer a balança pender para um ou outro lado. Tanto o livro quanto o jogo tentam levar para a guerra medieval algo do terror das guerras modernas, introduzindo armas capazes de matar muita gente de uma vez só, sem que faça qualquer diferença a força, a coragem ou a perícia individuais, não mais que o fato de alguém usar as melhores armas e armaduras. Não há lança-chamas ou grandes bombas, mas há magias que causam efeitos semelhantes aos dessas armas, e até piores.

Pessoalmente, não gostei tanto assim de A Companhia Negra: ele vale o tempo que toma, mas não chega a empolgar. O que o autor se propõe a fazer é contar a história de uma guerra, mas, apesar do indiscutível realismo, poucas vezes ao longo do livro temos um vislumbre do que a guerra de fato significa para os seres humanos de carne e osso (e notem que eu não disse que isso não aparece: apenas que aparece pouco). Volta e meia, a narrativa escorrega para uma simples enumeração de batalhas travadas ali e acolá, de cidades conquistadas ou perdidas por cada um dos lados – tudo inventariado de forma banal, sem que o leitor fique sabendo como foram essas batalhas, com exceção da grande batalha final em que o exército rebelde em massa ataca a fortaleza da Dama, essa sim descrita em pormenores. Não por acaso, o que mais cativa em todo o livro é o pequeno punhado de personagens cujas individualidades são um pouco mais exploradas. Homens como Corvo, um indivíduo enigmático, capaz de ser sanguinário ou gentil – ele chega a adotar Lindinha, uma pequena órfã da guerra; Elmo, um sargento veterano, homem ao mesmo tempo corajoso e ponderado; Caolho e Duende, magos de combate da Companhia, que brigam como cão e gato (com direito a confrontos de truques mágicos que resultam em verdadeiros shows para os companheiros), mas, no fundo, são grandes amigos; Calado, também mago de combate, de cujos lábios ninguém jamais ouviu uma palavra; e o próprio Chagas, homem de certa cultura e a memória da Companhia. São eles os responsáveis pela maior parte dos bons momentos.

Enfim, eu tive a sensação de estar diante de um mundo fictício e de um enredo geral que poderiam render histórias grandiosas, mas, pelo menos neste primeiro livro, na minha opinião, isso não chegou a acontecer. Pode ser que os volumes seguintes sejam mais empolgantes; se tiver oportunidade de ler, direi o que achei.

quinta-feira, maio 28, 2015

Escuridão Total Sem Estrelas

Um novo livro de um autor importante sendo lançado é sempre um acontecimento empolgante para seus fãs, mesmo os que não encaram madrugadas em filas diante de livrarias para conseguir estar entre os primeiros a comprá-lo – pessoalmente, nunca consegui ser "xiita" desse jeito em relação a nada. Porém, não deixo de entender os camaradas que fazem isso: no meu caso, topei com Escuridão Total Sem Estrelas na vitrine da Livraria Digital durante uma passada pelo shopping Bourbon de Novo Hamburgo, e tive que comprá-lo na mesma hora. Ainda ia a outros lugares, seria bem mais prático se não estivesse carregando nada, e o livro certamente não iria fugir se eu deixasse para comprá-lo na semana seguinte, mas, mesmo assim, comprei, e logo comecei a lê-lo, o que implicou em deixar outros livros na fila por mais um tempo. Mas não muito tempo, pois "devorei" minha nova aquisição em questão de poucos dias.

A primeira coisa que chama atenção em Escuridão Total Sem Estrelas, antes mesmo de o abrirmos, é a bem bolada apresentação editorial: a Suma de Letras, atualmente responsável pela publicação de Stephen King no Brasil, fez um trabalho caprichado, aproveitando a sugestão do título. A capa é preta, com letras igualmente pretas, que só são legíveis por terem acabamento fosco, contrastando com a textura lustrosa do fundo, e até as bordas das páginas são pretas!... Só a lombada e a contracapa trazem letras brancas, imagino que porque o recurso da textura só tenha um resultado legível se a fonte for grande.

A publicação original de Escuridão Total Sem Estrelas é de 2010, e talvez o hiato de cinco anos explique o motivo do pouco estardalhaço em torno do lançamento nacional: a essa altura do campeonato, os fãs mais ansiosos já o leram em edições importadas, ou na internet mesmo. Para os que ainda não leram, entretanto, a espera valeu a pena, pois o livro oferece tudo o que estamos acostumados a esperar de King, ainda que seja um exagero colocá-lo entre as melhores coisas que o cara já escreveu. Trata-se de quatro histórias que exploram diferentes esferas da costumeira área de atuação do autor, variando do tradicional conto de terror sobrenatural ao suspense psicológico, por vezes com leves pinceladas de ficção policial.

A primeira e mais longa história intitula-se 1922, citando o ano em que os eventos a serem narrados teriam transcorrido. Os protagonistas são Wilfred James, um plantador de milho do Nebraska, e sua família: a esposa, Arlette, e o filho adolescente, Henry. (Talvez não esteja fora de propósito lembrar que também é no Nebraska que se desenrola o conto As Crianças do Milharal, que vocês podem ler na coletânea Sombras da Noite; trata-se de um dos estados mais rurais dos EUA, famoso justamente por seus vastos milharais.) Dá para perceber que Arlette sempre teve um gênio ruim e que provavelmente sempre desejou viver na cidade, enquanto Wilfred e o filho são homens do campo por excelência, mas o conflito de verdade tem início quando ela herda as terras do pai, vizinhas às do marido, e decide vendê-las, o que lhe proporcionaria dinheiro suficiente para começar a vida em outro lugar. Ocorre que o comprador em potencial é uma empresa que pretende instalar ali um matadouro de porcos, o que irá poluir o riacho local e obrigar os vizinhos a conviverem com mau cheiro e dejetos. A solução apresentada por Arlette é muito simples: Wilfred pode vender suas terras também, e a família toda se mudaria para a cidade – só que o fazendeiro prefere morrer a fazer isso. Segundo ele, "cidade é lugar para idiotas", e o filho concorda totalmente. A questão chega a um impasse, até que Wilfred, já em desespero, começa a ter pensamentos nefastos: e se Arlette "desaparecesse"? A ideia de que, depois de sete anos desaparecida, ela seria considerada oficialmente morta e suas terras passariam a ser dele, só surge de maneira periférica na cabeça do fazendeiro, que é o narrador da história: fica claro que o crime que ele pensa em cometer não é motivado pela cobiça, e sim pelo apego ao único modo de vida que conhece, e pelo pânico que lhe causa a ideia de uma mudança. E isso apesar de Wilfred não ser o camponês bronco que vocês talvez estejam imaginando: a maior parte do tempo livre que os afazeres agrícolas lhe deixam é preenchida por leituras, e, refletindo esse hábito, sua narrativa é salpicada de citações literárias. Embora seja uma boa história, 1922, em minha opinião, estende-se além do necessário, ocupando, só ela, mais de um terço do livro, e não traz elementos sobrenaturais, a não ser que queiramos interpretar assim certas passagens macabras que também podem ser entendidas como alucinações da mente de Wilfred, atormentado pela culpa – é provável que suscitar essa dúvida no leitor fizesse parte dos planos do autor.

Na sequência, temos Gigante do Volante. A personagem principal é Tess, uma escritora que alcançou um relativo sucesso com seus romances policiais light sobre um grupo de velhinhas cujos passatempos preferidos são tricô e desvendar assassinatos (o paralelo com Miss Marple, a famosa personagem de Agatha Christie, é tão óbvio que o autor prefere citar explicitamente a semelhança, talvez para que ninguém o acuse de plágio – o que parece já ter acontecido com Tess). A escritora, entretanto, não está na mesma faixa etária de suas personagens: tem 30 e poucos anos e, além do que lhe rendem os direitos autorais de seus livros, costuma ganhar uns extras fazendo palestras em livrarias, bibliotecas e eventos. É em sua viagem de volta de uma dessas palestras que ela sofre a experiência que irá marcá-la pelo resto da vida. Ao pegar um atalho sugerido pela simpática bibliotecária que organizou a palestra, um dos pneus de seu carro é estourado por pedaços de madeira com pregos que alguém deixou cair (jogou?) na estrada. Quem aparece para oferecer ajuda é um enorme e prestativo motorista – que, em vez de trocar-lhe o pneu, acaba estuprando-a, e depois, julgando-a morta, descarta-a num lugar ermo onde jazem os restos de, no mínimo, duas outras mulheres. Ela decide não ir à polícia, mas tomar o assunto nas próprias mãos, vingar a si mesma e às vítimas que a precederam, além de poupar outras mulheres de passar pelo mesmo. Porém, essa busca por vingança acaba trazendo à tona um lado da escritora que ela até então não conhecia, e que não a faz se sentir mais tranquila consigo mesma. Também aqui não há nada sobrenatural: o horror nestas páginas é de outro tipo, e King demonstra dominá-lo igualmente bem. Como frequentemente se diz, é impossível a um homem compreender ou imaginar como fica a cabeça de uma mulher que foi estuprada, mas o autor, sem dúvida, se esforçou: deve ter lido vários depoimentos e artigos de psicologia para compor a personagem. O resultado é, no mínimo, perturbador.

O terceiro conto (enfim!) traz ao livro a presença do "estranho, bizarro e inesperado", como diria Jack Palance. Extensão Justa é a história de um homem chamado Dave Streeter, que, diagnosticado com um câncer terminal, sabe que só lhe restam alguns meses de vida, e que esse curto intervalo de tempo será muito desagradável, isso para falar eufemisticamente. Então, aparentemente por acaso, ele conhece um estranho negociante que se apresenta como Sr. Odabi (o autor dá a dica de que isso é um anagrama, e o significado das letras depois de reordenadas fica óbvio quando se toma conhecimento da natureza do negócio que ele tem a oferecer). Odabi explica que vende "extensões" – qualquer tipo de extensão de que a pessoa necessite: extensões de amor para apaixonados, extensões de crédito para os que enfrentam problemas financeiros, e até mesmo extensões de "pinto" para os insatisfeitos com seu "equipamento de fábrica". Para alguém na situação de Streeter, ele declara estar em condições de oferecer uma extensão de vida a preço módico; porém, além do preço acertado, há outro ponto a considerar. Segundo Odabi, "até mesmo coisas que não existem possuem peso. Peso negativo, que é o pior tipo". Sendo assim, o peso a ser removido dos ombros de Streeter precisa ir para algum lugar – falando sem rodeios, precisa ser transferido para alguém, e é o próprio Streeter quem precisa decidir quem será, precisa dar um nome, apontar uma pessoa específica, pois, também de acordo com Odabi, "essa história de sacrifício anônimo já foi testada e não funciona". (Se isso fez alguém lembrar do clássico conto A Caixa, de Richard Matheson, não é mera coincidência; pelo menos, não creio que seja.) Extensão Justa é o conto mais curto, o melhor e, ouso dizer, o mais "Stephen King" do livro. Deixo para cada leitor julgar se isso tem ou não a ver com o fato de ser também o único a apresentar elementos sobrenaturais.

Fechando o quarteto de histórias, Um Bom Casamento é um suspense psicológico sobre a impossibilidade de se conhecer completamente uma pessoa. Darcy Anderson é uma mulher de meia-idade, com um casamento feliz que já dura 27 anos, dois filhos adultos, e uma vida tranquila e normal, qualquer que seja o prisma por onde se olhe. Seu marido, Bob, é contador (conseguem imaginar profissão mais "normal" que essa?) e parece ser o sujeito mais centrado do mundo: bom marido, bom pai, organizado e metódico em tudo o que faz, talvez até um pouco demais. Para Darcy, ela e sua família habitam um universo confortável, previsível e à prova de abalos… Até ela descobrir, por puro acaso, um nicho oculto num canto da garagem de sua casa, onde Bob evidentemente pretendia que ela não o encontrasse. Nesse esconderijo estão os documentos pessoais de uma mulher que Darcy não conhece, mas cujo nome não lhe é estranho, e ela logo lembra por que: ouviu o nome nos telejornais. Aquela mulher foi a mais recente vítima de um misterioso serial killer conhecido como "Beadie". A horrenda conclusão que se impõe com esse achado estilhaça num único instante todas as certezas que Darcy acreditava ter, além de confrontá-la com a decisão mais dura de sua vida: o que seria pior? Denunciar o pai de seus filhos e vê-lo ser condenado à prisão perpétua? Ou continuar dormindo ao lado de um monstro, fingindo não saber de nada e deixando-o livre para seguir matando? Contar mais que isso seria dar spoiler, mas acho engraçado (ou assustador, depende do ponto de vista) mencionar a parte em que, logo após ter feito sua descoberta, Darcy fala ao telefone com o marido, que está numa viagem de trabalho. Embora ela se esforce por aparentar normalidade, Bob facilmente percebe que algo está errado, e com a mesma facilidade deduz – corretamente – do que se trata, apressando, então, seu retorno, a fim de que os dois possam ter a "conversa franca" que a situação exige. Uma inflexão diferente na voz da esposa, uma mínima alteração no padrão das pausas em relação ao costumeiro, um ligeiro gaguejar aqui e ali, e pronto: Bob já sabe o que precisa saber, e é mais do que provável que, se os papéis estivessem trocados, Darcy também soubesse. Isso apenas mostra o quanto duas pessoas se conhecem depois de tanto tempo vivendo juntas – e a questão aqui é: elas podem se conhecer muito, mas não completamente. Nunca completamente.

Quem já leu bastante Stephen King aprendeu a reconhecer a diferença entre o autor em sua melhor forma e quando ele está apenas "dentro do esperado". Pessoalmente, nunca o vi ficar abaixo disso, e, mesmo em seus momentos menos inspirados, qualquer coisa escrita por ele é garantia de, no mínimo, fazer valer o tempo e o dinheiro investidos pelo leitor. Escuridão Total Sem Estrelas não pode em hipótese alguma ser colocado no mesmo patamar de clássicos como Christine ou O Iluminado, mas, apesar da variabilidade no nível das histórias, fica, tirando uma média, pelo menos alguns degraus acima das coisas mais fraquinhas já produzidas pelo cara ao longo de sua extensa e prolífica carreira.