quinta-feira, fevereiro 23, 2017

O Senhor das Moscas

Eu não ligo mais para esse mundo
Eu só quero viver minha própria fantasia.
O destino nos trouxe a estas praias
O que tinha que ser agora está acontecendo.

Eu descobri que gosto desta vida em perigo
Viver no limite nos faz sentir como um só.
Quem liga agora para o que é certo ou errado, isto é a realidade.
Matando nós sobrevivemos, onde quer que possamos vagar,
Onde quer que possamos nos esconder, temos que fugir.

Eu não quero que a existência termine.
Nós devemos nos preparar para os elementos.
Eu só quero sentir que somos fortes
Nós não precisamos de um código de moralidade.

Eu gosto de toda essa emoção misturada e raiva
Isso traz à tona o animal,
o poder que você pode sentir.
E sentindo-nos tão altos com toda essa adrenalina
Excitados, mas assustados de acreditar no que nos tornamos.

Santos e pecadores
Algo dentro de nós
Nós somos o senhor das moscas.

Santos e pecadores
Algo que nos quer
Para ser o senhor das moscas.


                                        Iron Maiden
                                        Lord of the Flies
                                        Álbum: The X Factor (1995)

*       *       *

Quando um livro atinge o status de clássico, seu autor ganha o raro privilégio da imortalidade: seu nome continuará a ser citado séculos e, em casos extremos, milênios depois de sua morte biológica. Em compensação, o livro, pela exposição e influência que passa a ter, vira objeto de inúmeros estudos, e, por consequência, fica sujeito a todo tipo de interpretação – muitas delas que, estou certo, deixariam o autor sem fala se lhe perguntassem a respeito. Por mais que eu ame o estudo da literatura, uma coisa que sempre me incomodou nele, pelo menos dentro do ambiente acadêmico, foi essa obrigatoriedade de sempre encontrar algum significado oculto ao analisar qualquer obra… Significados esses que, com toda a probabilidade, em sua maioria jamais passaram pela cabeça do autor. Uma vez que um livro passa a ser considerado um clássico, parece se tornar inconcebível a possibilidade de que, ao escrevê-lo, o autor quisesse dizer exatamente aquilo que disse, e nada mais que isso. Citando Stephen King, que, por sua vez, estava citando Bob Dylan, a explicação deve ser que, quando você tem muitos garfos e facas, é preciso cortar alguma coisa. Não que eu ache que O Senhor das Moscas seja um exemplo de livro que diz claramente tudo o que quer dizer: pelo contrário, ele sem dúvida apresenta diversas alegorias e metáforas, e lê-lo apenas como história de aventuras seria perder de vista seus aspectos mais interessantes. Apenas acho exagerado (forçado, se quiserem) ficar tentando ver nele tudo quanto é significado político, como já vi fazerem. A meu ver, é muito mais razoável interpretá-lo como um convite a refletir sobre a natureza do ser humano e sobre a sociedade, que, no fim das contas, é um desdobramento de nossa própria essência, já que interagir uns com os outros é uma parte indissociável da condição humana.

Para (tentar) ser mais claro, eu poderia dizer que sim, certamente há alegorias políticas em O Senhor das Moscas; porém, discordo de quem quer ver aí referências específicas: "Jack é Hitler", ou mesmo o nazifascismo de modo geral. Para mim, isso é, ao mesmo tempo, forçar uma interpretação e limitar o alcance da obra. Talvez, na verdade, eu veja O Senhor das Moscas como uma história que se presta melhor à aplicabilidade que à alegoria, conforme a diferença entre as duas é explicada por Tolkien: "Acho que muitos confundem 'aplicabilidade' com 'alegoria', mas a primeira reside na liberdade do leitor, e a segunda, na dominação proposital do autor."

Também já li em algum lugar que o tema deste livro, ou, ao menos, um de seus temas, é o do mal supostamente inerente ao ser humano – e essa ideia já é mais difícil de desprezar, considerando o título da obra: 'Senhor das Moscas' é a tradução literal de Ba'al Zebuth, nome de um deus cultuado pelos antigos fenícios e cananeus, e que era associado tanto à chuva e à fertilidade (quando de bom humor) quanto à morte, principalmente a morte pela peste (quando enfurecido), donde a ligação com as moscas. O nome dessa divindade chegou aos tempos modernos como Beelzebub em inglês, Belzebu em português, e formas parecidas nas outras línguas – e, em todas elas, é um dos inúmeros nomes do diabo da tradição judaico-cristã. Com um título desses, não parece forçado aceitar que se trate de um livro a respeito do mal.

Na história, é tempo de guerra. Não sabemos qual guerra, e isso não é relevante para seus fins. Ocorre que um avião transportando dezenas de estudantes ingleses é abatido por artilharia inimiga e cai numa ilha aparentemente desabitada do Pacífico; a maioria dos jovens passageiros escapa, mas nenhum membro da tripulação sobrevive, de modo que os garotos, com idades variando de seis a doze anos, estão por sua própria conta, sem qualquer adulto para ajudá-los, tampouco para lhes dizer o que fazer ou não fazer. Estão assustados, é claro, mas também empolgados, pois aquela situação oferece mais oportunidades para aventuras e descobertas do que eles normalmente teriam em toda a vida. Dois deles, Ralph e Porquinho, encontram uma grande concha que, quando soprada da forma adequada, produz um som potente que pode ser ouvido praticamente em toda a ilha, e que logo se torna o sinal de reunir. Os dois garotos são muito diferentes, mas, de certa forma, se completam: Ralph, por ser bonito e ter um talento natural para liderar, preenche o papel do herói no imaginário dos companheiros, e é logo eleito o chefe; Porquinho é gordo e tímido, mas claramente o mais inteligente ali. Pouco depois, entra em cena uma terceira figura proeminente, Jack Merridew, que lidera um grupo que costumava ser um coro, e que também viajava no avião. Por estar acostumado ao comando, Jack mostra-se disposto a rivalizar com Ralph pela liderança geral, mas, quando o outro é eleito por aclamação, parece, no começo, aceitar o fato; Ralph lhe permite conservar a liderança do coro, e os dois parecem estar formando uma amizade.


A primeira coisa sobre a qual O Senhor das Moscas nos leva a refletir (ou, ao menos, comigo foi assim) é o fato de que, por mais civilizados e sofisticados que nos tornemos, nada mudará a verdade básica de que a selvageria sempre será o estado natural do homem. Não é preciso muito para revertermos a ela – e, em se tratando de crianças, é preciso menos ainda. Em questão de semanas, os elegantes e bem-educados alunos de tradicionais instituições de ensino britânicas já estão lembrando mais uma tribo pré-histórica – quer pela aparência, quer pelo comportamento. Cansados de sua dieta de frutas do mato, os garotos voltam seus olhos para os porcos selvagens que habitam a ilha… Porém, muito mais determinante que a vontade de todos de comer carne é o forte desejo de Jack de experimentar aquelas sensações que apenas um caçador conhece: o "poder de impor sua vontade a uma coisa viva". Abater seu primeiro porco torna-se uma obsessão, e ele converte os antigos membros do coro num time de caçadores – que, aos poucos, também vão se adaptando a fazer as vezes de sua guarda pessoal, sendo leais antes a ele que a Ralph. O primeiro conflito sério acontece quando Jack e seu grupo retornam de sua primeira caçada bem-sucedida (depois de muitas tentativas falhadas), carregando um porco morto: para ir caçar, eles abandonaram a fogueira que todos haviam concordado em sempre manter acesa no topo de um morro, e ela se apagou. O objetivo da fogueira é chamar a atenção de algum navio que porventura passe próximo à ilha, o que é a única chance de serem resgatados. De fato, um navio apareceu – Ralph o viu. E passou direto, pois a fogueira estava apagada.

A partir daí, conforme vai acumulando sucessos na caça, Jack vai ficando cada vez mais disposto a desafiar a autoridade do líder; matar parece aumentar sua autoestima e diminuir sua inclinação para obedecer, seja às ordens de Ralph ou a regras de qualquer espécie. Esse espírito contagia primeiro o coro, e depois, gradualmente, alguns dos outros.

Cada um dos principais personagens de O Senhor das Moscas passa por sua própria jornada de crescimento, o que não quer dizer necessariamente um processo de melhoria, mas apenas o caminho inevitável de tornar-se aquilo que está destinado a ser. Ralph, por exemplo, aprende a duras penas o que liderar realmente significa. Todo mundo já sonhou em ser o chefe da turminha da vizinhança (e quem nunca, que atire o primeiro coelho azul de pelúcia). Pudera: na cabeça de uma criança, "chefe" é alguém que manda em todo mundo e em quem ninguém manda, que pode fazer tudo o que quiser e não precisa fazer nada que não queira; é só status e privilégio. Porém, Ralph não demora a compreender que o posto é uma responsabilidade pesada, que exige sacrifícios e, muitas vezes, é desesperador. Tendo sido professor, o autor do livro, William Golding (1911-1993), sem dúvida sabia bem como são as crianças, particularmente os meninos. E o fato é que meninos se entusiasmam por uma ideia com a mesma facilidade com que perdem o interesse nela pouco depois. Quando Ralph sopra a concha, todos comparecem sem demora; parece haver algo na solenidade da coisa que torna essas reuniões divertidas, mas as decisões que nelas são tomadas, embora referendadas por todos e, a princípio, seguidas, são esquecidas em pouco tempo. Não é fácil ser chefe desse jeito.

Quando um dos garotos menores começa a falar sobre um "bicho" que aparece à noite, parece, a princípio, que a coisa não é mais que um pesadelo, ou um medo infantil sem origem definida – mas, quando o menino some sem que ninguém saiba como, e outros passam a acreditar ter visto a criatura, já não é tão fácil ter certeza. Ralph e Porquinho insistem que não pode haver nenhum animal ameaçador, porque nenhum grande carnívoro sobreviveria numa ilha tão pequena, mas ficam sem ter o que responder quando outro dos pequenos afirma que "o bicho sai do mar" – o que multiplica o potencial assustador do boato. Jack, por seu turno, não faz esforço algum para que os outros percam o medo; em vez disso, procura usar o "mito" em benefício próprio, garantindo a todos que, se houver um bicho, ele e seus caçadores vão matá-lo. Se isso for uma alegoria (ou se quisermos exercer a nossa liberdade como leitores para encontrar a aplicabilidade do texto), os caçadores podem simbolizar o exército, e o próprio Jack, qualquer um dos inúmeros ditadores sobre os quais a História nos conta, pois foi assim que a maioria deles chegou ao poder: tirando vantagem do medo que a população sentia, oferecendo proteção, tanto faz se contra ameaças reais ou imaginadas. Em algum momento, um dos personagens pensa em voz alta que "talvez não haja nenhum bicho; talvez sejamos só nós" (não consegui encontrar a passagem para copiar a frase exata, mas é essencialmente isso), referindo-se de maneira alegórica, mas mesmo assim bem clara, ao mal que cada pessoa traz dentro de si – e que, não raras vezes, é projetado no outro, porque fica mais fácil lidar com ele dessa forma. O ódio de Jack por Porquinho também não é gratuito: o gordinho é a voz da razão e do conhecimento, que dissipam o medo. Se Jack permitir que isso aconteça, ficará privado de seu maior trunfo.

Jack leva adiante seu trabalho de sedição, que chega ao ponto da ruptura, com ele e seus seguidores separando-se da "tribo" para formar a sua própria. Para convencer mais garotos a trocar de grupo, ele lança mão de qualquer meio ao seu alcance, desde promessas (principalmente a de que quem o seguir sempre terá carne para comer) até intimidação. À medida em que a inimizade entre os dois grupos vai ficando mais amarga e mais séria, as regras de conduta introjetadas mediante anos de educação vão se revelando como nada mais que um fino verniz, que descasca e cai se não for continuamente reforçado. Enquanto Ralph tenta fazer com que seus companheiros não se esqueçam do que significa ser humano, Jack e os seus vão progressivamente cedendo à tentação da violência e da arbitrariedade, num conflito que acaba por ser mais profundo e de implicações mais graves (ao menos para quem está vivendo a situação) que o tradicional antagonismo "bem" versus "mal". Não há surpresa quando a tensão descamba para a violência homicida – mas a ausência de surpresa não faz com que o fato deixe de ser chocante. Bem, ao menos deveria sê-lo; não creio que o público dos anos 2000, acostumado a ver violência extrema ser apresentada como uma forma de entretenimento, se perturbe com o final da narrativa. O que eu não consigo ver como um bom sinal.

O Senhor das Moscas, publicado originalmente em 1954, teve o mesmo destino de muitos outros clássicos: não foi nenhum sucesso instantâneo. Sua primeira edição não vendeu nem três mil cópias, mas, redescoberto durante as décadas de 60 e 70, ganhou o status de cult e acabou dando a seu autor o Prêmio Nobel de Literatura em 1983. Hoje é leitura obrigatória em muitas escolas secundárias em todos os países de língua inglesa – e eu sinceramente espero que isso, por si só, não leve muita gente a desenvolver uma antipatia a priori por ele, o que seria mesmo uma pena. A grande sacada do livro, na minha opinião, é a de ter pego um enredo que nada tinha de original (grupos de personagens isolados em ilhas desertas ou lugares semelhantes são um plot que vem sendo explorado desde a Antiguidade) e, a partir disso, criado tantas situações fascinantes e cheias de significados. Além disso, Golding é excelente na arte da narração e da descrição; provavelmente o melhor exemplo disso está no capítulo chamado Visão de Uma Morte, no qual o autor demonstra saber perfeitamente como é uma tempestade nos trópicos – coisa que a maioria dos anglo-saxões não consegue nem imaginar. Em resumo, O Senhor das Moscas deve ser lido, antes de mais nada, por prazer, mas é altamente aconselhável manter um olho aberto para o que ele pode nos ensinar e para as reflexões que pode estimular. E essa é a melhor combinação que podemos encontrar num livro.

quarta-feira, janeiro 18, 2017

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada

Depois de Morte Súbita e dos romances policiais escritos sob o pseudônimo de Robert Galbraith, eis J. K. Rowling de volta ao universo de Harry Potter, nove anos depois de Harry Potter e as Relíquias da Morte, conclusão oficial da saga. Os azedos de plantão, é claro, já deram seu veredito: "ela só está a fim de ganhar mais dinheiro!" Rowling simplesmente não precisa disso: ela já tem o suficiente para assegurar uma vida mansa a todos os seus descendentes até a vigésima ou trigésima geração, com folga. Portanto, ela não está nisso pelo dinheiro – pelo menos, não mais. Se continua escrevendo, é porque gosta, e seus fãs certamente não vão reclamar.

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada é algo um tanto diferente. A história, escrita por Rowling em cooperação com John Tiffany e Jack Thorne, foi concebida como roteiro para uma peça de teatro, a ser dirigida por Tiffany, e que estreou (com ingressos esgotados e todo o alarde que seria de se esperar) no Palace Theatre, em Londres, em 30 de julho de 2016. O livro foi lançado no Brasil em 31 de outubro – nada mais adequado: em pleno Dia das Bruxas. Confesso que fiquei meio decepcionado ao folheá-lo pela primeira vez, pois, embora soubesse que a história teve origem no teatro, imaginava que a autora tivesse reescrito o roteiro sob a forma de romance para a publicação, mas não: o que temos no livro é o próprio roteiro. Ler desse jeito causa estranheza a quem está acostumado a acompanhar as peripécias do jovem bruxo, mas não será isso que irá impedir os potterheads (fãs apaixonados da saga) espalhados pelo planeta de devorar essa nova aventura.

A história contada na peça inicia-se 19 anos depois dos eventos narrados em Harry Potter e as Relíquias da Morte – portanto, em 2016 mesmo – e se estende alguns anos para o futuro. Harry está agora com 37 anos de idade, trabalha no Ministério da Magia (para ser exato, é chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia), está casado com Gina Weasley e tem três filhos: Tiago, Alvo e Lílian (a tradutora Anna Vicentini teve que seguir o controverso sistema de nomenclatura adotado por Lia Wyler, que traduziu os sete volumes anteriores e tinha por hábito traduzir nomes próprios e até mesmo – sei lá com qual critério – rebatizar certos personagens). Tiago, o mais velho, e a caçula, Lílian, foram batizados em homenagem ao pai e à mãe de Harry, e parecem ser filhos perfeitos. A ovelha negra da família é o do meio, Alvo Severo Potter. Seu primeiro nome homenageia o lendário diretor da não menos lendária Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, Alvo Dumbledore; o segundo, Severo Snape, o professor que Harry odiou durante sete anos, só para descobrir ao final que, na verdade, o homem era um herói. A peça começa quando Alvo está indo para Hogwarts pela primeira vez, junto com sua prima Rosa – filha de Rony Weasley, irmão de Gina e melhor amigo de Harry desde sempre, e de Hermione Granger, outra grande amiga e aluna mais brilhante de Hogwarts em sua época. Rosa é de opinião que, na viagem de um dia inteiro de trem até a escola, ela e Alvo, a exemplo do que aconteceu com seus pais, poderão ter a chance de fazer as amizades que irão influenciar seus destinos pela vida afora, e mais, também acredita que, por serem quem são, todos vão querer ser amigos dos dois, de modo que poderão escolher à vontade. Para a decepção da garota, o único amigo que seu primo faz é Escórpio Malfoy… Por ironia, filho de Draco Malfoy, arqui-inimigo de Harry durante toda a vida escolar de ambos.

(Toda vez que eu lia o nome Escórpio, era impossível não pensar na arma de cerco romana.)

As surpresas não param por aí. Na cerimônia de seleção, na qual o Chapéu Seletor decide para qual das quatro casas de Hogwarts cada novo aluno será mandado, Alvo acaba sendo designado para a Sonserina, que foi desde sempre a casa dos Malfoy, além de ter sido a de Tom Riddle, antes de ele se tornar o temido Lorde Voldemort. Embora isso vá lhe permitir ter a companhia de seu novo amigo quase em tempo integral, não deixa de ser um choque, pois, até onde se tem lembrança, todos os ancestrais e parentes de Alvo, pelos dois lados da família, sempre foram da Grifinória.

Seja como for, Alvo e Escórpio logo percebem que é uma sorte terem um ao outro: nenhum dos dois tem praticamente qualquer outro amigo. Alvo não demonstra talento para nada em particular, nem mesmo para o voo de vassoura, o que acaba com as esperanças que muita gente alimentava, de que ele viesse a honrar os feitos de seu pai e seu avô no campo de quadribol; Escórpio é inteligente e estudioso, mas tímido. De modo que os dois rapidamente assumem seu papel como aquele tipo de estudante que pode ser encontrado em qualquer escola, mágica ou não, esgueirando-se pelos corredores, procurando evitar ser visto, já que é presa fácil para bullies. Alvo se sente de forma oposta ao que acontecia com o pai em sua idade: enquanto Harry detestava as férias (porque tinha que passá-las com seus insuportáveis tios trouxas) e contava os dias para voltar a Hogwarts, Alvo detesta a escola, se bem que em casa não pareça se sentir muito melhor. Embora Harry se esforce por ser um bom pai, o garoto não gosta nem um pouco do fato de ser filho do famoso Harry Potter, e menos ainda de todas as expectativas que isso naturalmente cria nas pessoas – expectativas essas que, em sua própria opinião, ele sempre irá frustrar.

Todavia, por pior que Alvo ache sua vida, a de Escórpio é ainda pior. Muita gente ainda associa os Malfoy a Voldemort, de quem o avô de Escórpio, Lúcio Malfoy, foi um fiel servidor – e correm boatos persistentes de que Astória, esposa de Draco e mãe de Escórpio, foi enviada para o passado a fim de engravidar do próprio Voldemort, presumivelmente quando ele ainda era Tom Riddle, e humano o suficiente para gerar filhos. Ou seja, se esses boatos tiverem fundamento, significa que o verdadeiro pai de Escórpio é… Você-Sabe-Quem. Porém, verdade seja dita, o garoto não parece lembrar em nada o grande bruxo das trevas: segundo Alvo, Escórpio é bom, o que nenhum filho de Voldemort poderia ser; já segundo Draco, ele é por natureza um seguidor, e não um líder, o que tampouco combina com uma possível ascendência "voldemortiana". E há mais: se Astória tivesse viajado ao passado, só poderia ter sido por meio de um viratempo, um dispositivo mágico capaz de realizar esse feito – e todos os viratempos de cuja existência se tinha conhecimento estavam guardados no Ministério, onde foram destruídos durante uma batalha entre Comensais da Morte (os servos de Voldemort) e os membros da Ordem da Fênix, comandada por Dumbledore; esse episódio está narrado num dos últimos livros da saga, não lembro ao certo qual. Portanto, e por vários motivos, os boatos parecem um completo disparate, o que não impede que continuem a ser um doloroso espinho na carne de Escórpio.

Os primeiros três anos de Alvo Potter em Hogwarts passam em rápidos flashes. O importante para os fins da peça é o que acontece em seu quarto ano, quando ele e seu amigo Escórpio estão com 14 – não por acaso, a mesma idade que Harry tinha ao tomar parte no Torneio Tribruxo, como sabe quem leu Harry Potter e o Cálice de Fogo, o quarto volume da série. O torneio, realizado durante o ano letivo de 1994-95, terminou de forma terrível e trágica, com o retorno de Voldemort e a morte do outro campeão de Hogwarts, Cedric Diggory (a Sra. Lia Wyler que me desculpe, mas eu me nego a chamar o coitado de "Cedrico"!). Durante todo o torneio, os dois garotos haviam vivido uma relação de rivalidade e admiração mútua ao mesmo tempo, e, ao concluírem a última tarefa da competição, que daria a vitória a quem o fizesse, nenhum dos dois achou justo que o outro fosse derrotado: decidiram vencer juntos, e, para isso, pegaram ao mesmo tempo a taça da vitória – que, sem que eles imaginassem, estava enfeitiçada para levar instantaneamente quem a tocasse até a presença de Voldemort. O bruxo das trevas só estava interessado em Harry, de modo que, ao ver que havia outro rapaz com ele, displicentemente ordenou a um de seus servos que o matasse. Cedric, portanto, teve uma morte tola e desnecessária, coisa pela qual Harry jamais se perdoou – como se tivesse culpa.


Alvo, naturalmente, conhece essa história. Acontece então que, pouco antes de ele partir para seu quarto ano em Hogwarts, Harry e seus homens dão uma batida na qual estouram um covil de bruxos das trevas, e apreendem, entre outras coisas, um viratempo clandestino. O ocorrido chega aos ouvidos do jovem Alvo, enquanto o perigoso objeto fica sob custódia no Ministério – e, por falar nisso, a atual Ministra da Magia é ninguém menos que Hermione Granger (agora Granger-Weasley). Por uma daquelas coincidências fatais, Alvo também ouve uma conversa entre seu pai e Amos Diggory, o pai de Cedric, hoje um ancião solitário e inválido que vive num lar para bruxos idosos. Sabendo que Harry agora tem acesso a um viratempo, Amos implora que ele o use e volte no tempo para impedir a morte de seu filho, mas Harry, com dor no coração, tem que se recusar: de acordo com os mais conceituados teóricos da magia, o máximo que uma pessoa pode voltar no passado sem perigo de causar perturbações graves no fluxo do tempo é de cinco horas – quem pode prever as possíveis consequências de uma intervenção num fato ocorrido há 22 anos? Alvo, por outro lado, compadecido do velho, fascinado pela possibilidade de corrigir o que considera um dos erros de seu pai e sem um pingo de juízo na cabeça, decide empreender a arriscada missão. Para isso, conta com a ajuda de seu inseparável Escórpio e de uma jovem que diz chamar-se Delfine ("Delfi") e ser sobrinha de Amos Diggory, prima de Cedric. Os dois garotos fogem do Expresso de Hogwarts em plena viagem – o que, até onde se sabe, ninguém antes deles jamais conseguiu fazer, embora tenha sido tentado por transgressores legendários como Sirius Black e os gêmeos Fred e Jorge Weasley –, reúnem-se a Delfi, e os três invadem o Ministério em busca do fatídico viratempo… E, embora essas já pareçam ser façanhas notáveis, isso é apenas o começo. No decorrer da história, fica provado algo que quem, por enquanto, só leu Harry Potter talvez ainda não tenha percebido, mas que todo leitor de ficção científica sabe: que mexer no passado é extremamente perigoso, não importa se por meios tecnológicos ou mágicos. Por mais tentadora que pareça a ideia de ser testemunha ocular de grandes acontecimentos históricos ou de fazer um safári em meio a dinossauros ou mamutes, acho que, no fim das contas, é uma boa coisa que a viagem no tempo seja, por tudo o que se sabe, impossível segundo as leis da física… Embora seja verdade que já se disse o mesmo a respeito de ultrapassar a barreira do som, coisa que, hoje em dia, até meras aeronaves comerciais fazem tranquilamente.

Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, sem dúvida, mantém o espírito da saga; se reescrito, talvez não rendesse um romance, mas daria um conto de boa extensão e, certamente, irresistível para qualquer um dos milhões de "órfãos" que tiveram pelo menos alguns dias de depressão quando terminaram de ler o que acreditavam ser o último livro das aventuras de Harry. Além de nostálgico (inevitável…), é também empolgante rever, agora na idade adulta, aqueles personagens cuja infância e adolescência acompanhamos tão de perto. Muita coisa continua igual e muita coisa mudou. O próprio Draco Malfoy tornou-se menos arrogante, imagino que tanto por ter amadurecido quanto por causa das coisas que passou ao tentar seguir os passos do pai como um Comensal da Morte, e, levado pela necessidade de proteger o filho, aceita o que duas décadas antes teria, sem dúvida, considerado impossível: colocar-se ao lado de Harry como aliado. Talvez, até, como amigo, possibilidade que fica em aberto numa cena da peça. Senti muita falta do gentil e atrapalhado meio-gigante Rúbeo Hagrid, que só aparece em cenas que retratam o passado; não temos nenhuma notícia dele, por onde anda ou o que está fazendo na época em que se passa a ação principal. No mais, assistir a essa peça deve ser uma experiência e tanto. Há coisas que o roteiro descreve e que só podemos ficar imaginando como, em nome de Merlim, podem ser apresentadas num palco: os efeitos especiais devem ser de deixar no chinelo muita coisa que se vê no cinema (não nos filmes de HP, é claro). Quem sabe não tenhamos uma surpresa e seja anunciada uma montagem brasileira? O surgimento de um filme é inevitável, mas ainda deve demorar, e eu realmente torço para que seja um filme – não uma totalmente desnecessária "trilogia", ou coisa que o valha. É esperar pra ver.

quinta-feira, dezembro 29, 2016

Rogue One: Uma História Star Wars


Fomos, Cintia e eu, ver o novo filme da franquia Star Wars, anteontem, no Cinépolis 4D do Shopping JK Iguatemi, em São Paulo – o mesmo cinema onde vimos Episódio VII: O Despertar da Força, exatamente um ano atrás. Para quem não conhece, trata-se de um cinema muito especial, com poltronas que se movem acompanhando o que acontece no filme, efeitos de vento, e até borrifos de água quando a cena assim exige. É tão legal que a gente até esquece essa bobagem de "4D" no nome! E esse filme, em especial, tornou a experiência bem divertida, fazendo valer os (bons) reais pagos a mais no ingresso. Mas vamos falar do que realmente importa.

Embora só tenhamos sabido disso no dia seguinte, vimos Rogue One no mesmo dia em que faleceu a atriz Carrie Fisher, que interpretou a Princesa Leia na trilogia clássica, nos anos 70 e 80, e também em O Despertar da Força. Fisher, de apenas 60 anos, sofreu um ataque cardíaco durante um voo da Inglaterra para os Estados Unidos, vindo a morrer horas depois no hospital da Universidade da Califórnia, em Los Angeles – e, como minha namorada observou de forma tão sagaz, a vida não é justa mesmo, pois a atriz deixa este mundo bem no momento em que começava a voltar a chover em sua horta. Com a compra da Lucasfilm (detentora dos direitos de Star Wars) pela Disney, em 2012, a promessa feita foi a de que os fãs seriam brindados com um novo filme da franquia todo ano – já que a Disney, sendo a Disney, dispõe de pessoal, estrutura e recursos para tanto. E, depois do necessário período de ajustes de pouco mais de dois anos, a promessa vem sendo mantida: O Despertar da Força dava sequência a O Retorno de Jedi, lançado no distante 1983, e, embora ainda estejamos aguardando pelo Episódio VIII, Rogue One vem para suavizar a espera. Trata-se de um spin-off, ou seja, uma história que não propriamente faz parte da saga, mas ambienta-se no mesmo universo e está, de alguma forma, relacionada a ela.

Outra observação de Cintia: Star Wars nunca esteve tão na moda quanto agora, e os filmes são apenas uma fração do fenômeno. Nas livrarias há, literalmente, dezenas de títulos disponíveis, romances ambientados nesse universo, indo desde as adaptações dos filmes até extrapolações que exploram as muitas lacunas que eles deixam, isso sem falar, é claro, nos milhares de produtos licenciados de todos os tipos. O logo de Star Wars e as caras dos principais personagens estão em qualquer lugar para onde olhemos! Isso, somado ao fato de Leia ter, muito provavelmente, lugar de destaque em todos os episódios da nova trilogia, representaria uma mina de ouro e um salto em termos de fama para Fisher, bem como para seus colegas de elenco, dos quais apenas Harrison "Han Solo" Ford consolidou uma carreira de sucesso no cinema depois de sua participação na franquia (não estou considerando os que já eram nomes consagrados na época, como Peter Cushing ou Alec Guiness). Infelizmente, Fisher não se beneficiará dessas novas oportunidades… Parece que parte de suas cenas destinadas ao Episódio VIII já haviam sido gravadas; resta-nos esperar para ver qual a mágica que o diretor e o roteirista irão fazer para suprir sua falta no restante do filme.


Rogue One, entre outras coisas, responde a uma questão que os fãs mais detalhistas de Star Wars vêm levantando desde 1977, ano em que foi lançado o filme que hoje chamamos de Episódio IV: Uma Nova Esperança, mas que por muito tempo foi conhecido apenas como Star Wars, ou, no Brasil, Guerra nas Estrelas. A questão é: como é possível que a Estrela da Morte, projetada para ser a arma definitiva do Império Galáctico, capaz de destruir planetas inteiros, e que demandou um volume absurdo de recursos e mão de obra, tivesse uma brecha em suas defesas, que Luke Skywalker e os outros pilotos da Aliança Rebelde puderam usar para destruí-la? Nesse novo filme, que se passa imediatamente antes do Episódio IV, ficamos sabendo que o principal responsável pelo projeto da superarma foi o cientista imperial Galen Erso (Mads Mikkelsen, da série Hannibal), que, no entanto, não concordava com a política tirânica do imperador Palpatine, e, por isso, tentou abandonar a posição que tinha, exilando-se, com a esposa e a filha pequena, num planeta primitivo, onde passou a viver como fazendeiro. Porém, agentes do Império acabam por conseguir localizá-lo e o capturam para obrigá-lo a finalizar o projeto inacabado da Estrela da Morte.

Galen é levado, sua esposa é morta, mas o casal consegue salvar a filha, Jyn, que fica sob a proteção de um homem chamado Saw Gerrera (Forrest Whitaker), um líder rebelde e velho amigo de seu pai. Anos mais tarde, Jyn, já adulta (Felicity Jones), está numa prisão do Império por causa de uma série de pequenas infrações não relacionadas à rebelião, quando é resgatada pelos rebeldes, que sabem quem ela é e planejam usá-la para encontrar Galen – e matá-lo, embora não contem a ela essa última parte. Escoltada pelos rebeldes, Jyn reencontra seu antigo tutor Saw Gerrera, que lhe mostra uma mensagem holográfica que Galen Erso gravou e enviou secretamente. No holograma, entre outras coisas, o cientista revela um segredo: embora tenha sido forçado a colaborar no desenvolvimento da Estrela da Morte, não queria ser responsável por dar ao imperador uma arma que seria usada para fortalecer sua tirania. Então, propositalmente, deixou um ponto fraco, que um piloto hábil e com conhecimento das plantas da Estrela da Morte poderia usar para destruí-la. Rogue One é a história de como os rebeldes obtiveram essas plantas, o que possibilitou aquela vitória épica ao final do Episódio IV, que sagrou o jovem Luke Skywalker como um guerreiro admirado. Para ir em busca dessas preciosas informações, Jyn é acompanhada por um curioso time de combatentes rebeldes sob a liderança do comandante Cassian Andor (Diego Luna). Todos os que compõem esse grupo são personagens cativantes, que certamente ficarão na memória dos fãs, mas já há muitos textos e vídeos pela internet afora tratando deles, de modo que prefiro adotar um foco diferente para o restante deste post. Não que o que vou dizer também já não tenha sido escrito, muito provavelmente, mas são considerações mais pessoais. Vamos a isso…

O que preciso comentar são as surpresas (e o contentamento) que essa nova fase de Star Wars tem trazido para os fãs da velha guarda como eu, proporcionando uma carga de emoção como não experimentávamos desde a trilogia clássica, formada por Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977), Episódio V: O Império Contra-ataca (1980) e Episódio VI: O Retorno de Jedi (1983), que marcou época no cinema de ficção científica… Na verdade, classificá-la dessa forma é controverso; eu mesmo sou da opinião de que "fantasia espacial" chega mais perto de definir o que Star Wars é – mas aqui não é o lugar de discutir isso. O importante é que a trilogia clássica marcou época e inaugurou o que hoje é praticamente uma nova mitologia, um universo vastíssimo, cheio de tramas entrelaçadas, aventuras épicas e personagens inesquecíveis. Não que esses primeiros filmes tivessem enredos complexos ou muito inovadores: era a boa e velha luta do bem contra o mal, e pouco mais que isso. Talvez essa simplicidade seja parte da magia, juntando-se à ação vertiginosa, ao visual marcante e aos personagens carismáticos para explicar o que nos fascina tanto. Star Wars nunca terá a mesma complexidade nos roteiros que Star Trek, e dificilmente se prestará tão bem a estimular reflexões sobre questões do mundo real – o que não significa que um seja melhor que o outro: são propostas completamente diferentes (daí por que nós, nerds, ficamos tão contrariados quando um leigo confunde os dois!), e há muita gente que adora ambos, como eu, por exemplo.

Justamente o fato de Star Wars, como regra, tender para a simplicidade nos enredos, faz com que Episódio VII: O Despertar da Força e Rogue One sejam surpreendentes: pela primeira vez na saga, há sugestões de que nem o Império Galáctico nem a Aliança Rebelde são blocos monolíticos, nos quais todos pensam igual. No Episódio VII, conhecemos Finn, um stormtrooper (soldado de infantaria do Império) que tem dúvidas sobre a validade moral da causa que defende, passa a questionar as ordens que recebe, e acaba por desertar e juntar-se aos rebeldes; em Rogue One, descobrimos que dentro da Aliança Rebelde existem dissidências, facções que discordam entre si e membros ambiciosos que não desejam apenas trazer de volta a paz e a justiça dos tempos da Velha República, mas também subir na cadeia de comando e obter poder para si próprios. E pensar que, quando soubemos que Lucasfilm agora pertencia à Disney, chegamos a ter receio de que os novos filmes viessem com argumentos mais infantis!… Até agora, tem sido o contrário. No mesmo rumo vai o final surpreendente e um tanto chocante de Rogue One, que, se alguém me perguntasse antes de eu tê-lo visto, eu diria ser impensável para um filme de Star Wars.


(Parêntese 1: Enquanto assistia a Rogue One, meu queixo caiu lá embaixo ao ver o legendário Peter Cushing – astro de terror dos anos 50, 60 e 70, falecido em 1994 – de volta ao papel de Grand Moff Tarkin, comandante da Estrela da Morte, que havia interpretado no Episódio IV. É claro que eu sabia que a computação gráfica já atingiu um grau de desenvolvimento que torna possível criar imagens extremamente realistas, mas há diferença entre saber isso na teoria e ver um cidadão morto há mais de 20 anos atuando num filme recém-lançado, de tal jeito que quem não soubesse do que se trata poderia pensar que ele não só continua vivo, como não envelheceu nada nos últimos 39 anos, feito os vampiros que matava em seus antigos filmes. Nesse passo, logo não serão mais necessários atores! Também graças aos milagres da computação gráfica, uma Carrie Fisher com pouco mais de 20 anos de idade faz uma rapidíssima aparição bem no final do filme. Pensando bem, o falecimento da atriz de carne e osso não deverá ser um empecilho tão grande assim.)

(Parêntese 2: Eu disse há pouco que Star Wars virou quase uma nova mitologia, o que, entre outros efeitos práticos, faz com que nós, fãs de toda a vida, tenhamos a saga tão entranhada no nosso imaginário, que nos parece impossível que algumas pessoas realmente não saibam de certas coisas. Isso causou um incidente engraçado quando Cintia, uma neófita nesse universo, quis ver as duas primeiras trilogias. Levei meus DVDs dos episódios I a VI para a casa dela, e assistimos a tudo juntos – primeiro a trilogia clássica, é claro, e depois a mais recente… Só que, durante aqueles comentários que são de praxe entre um filme e outro, eu deixei escapar a informação de que Darth Vader era pai de Luke e Leia! Claro que ela ficou danada por eu ter estragado a surpresa, mas que culpa eu tenho?! "Luke, eu sou seu pai" já virou uma expressão proverbial, a cena em que essa fala é dita foi reproduzida centenas de vezes em comédias, charges etc… O assunto já rendeu até livros de humor! Como é possível que alguém ainda não saiba??)

(Parêntese 3: Garoto ainda, ao me aboletar diante da TV ao lado de meu pai ou de algum amigo para assistir pela enésima vez à reprise de qualquer dos episódios da trilogia clássica [isso foi antes do tempo do DVD, e não tínhamos videocassete, de modo que reprises eram algo que merecia importância], eu sempre ficava agoniado quando começava a passar aquele inconfundível letreiro inclinado, porque, logo no início dele, dizia Episódio IV, ou V, ou VI… Pois, se aqueles eram os episódios quatro, cinco e seis, isso devia implicar, logicamente, que existissem os episódios um, dois e três, que eu não conhecia! É claro que não podia imaginar que os primeiros episódios, até então, só existiam como uma ideia na cabeça de George Lucas, e só seriam efetivamente filmados muitos anos depois. O mais inacreditável é que, na época, ninguém além de mim jamais pareceu reparar nisso, e hoje muita gente teima comigo que os dizeres Episódio IV, V e VI não existiam nas versões originais, e que só foram introduzidos nas edições lançadas depois que a segunda trilogia já existia… Tsc, tsc.)

Enfim, é muito bom ver que, depois de tanto tempo sem novidades (no cinema, pois nos livros, quadrinhos e games os lançamentos nunca pararam), Star Wars foi retomado com qualidade e com um vigor renovado. Todos ficaremos felizes se a franquia, num futuro relativamente próximo, conseguir rivalizar com Star Trek em número de longas-metragens, e talvez nem mesmo o surgimento de séries de TV seja um sonho tão impossível. Afinal, agora a coisa está nas mãos da Disney, e, se ela continuar demonstrando a mesma competência… Bem, aí nem mesmo o espaço será mais a fronteira final (opa, isso é de Star Trek). Que a força esteja com todos (ah, agora sim!).

Obrigado por tudo, Carrie Fisher. Que a força esteja com você também, onde você estiver agora.


sábado, novembro 05, 2016

Hannibal: a Série

Da última (e primeira!) vez que escrevi sobre um trabalho de Thomas Harris, a obra que comentei foi Hannibal: a Origem do Mal, que, dos livros a respeito do personagem Hannibal Lecter, foi o último a ser escrito e publicado, embora seja o primeiro por ordem cronológica. Na ocasião, tracei vagamente o plano de ler ou reler os outros livros, e, possivelmente, comentá-los um por um. Entretanto, antes que eu efetivamente pegasse o próximo da saga, que seria Dragão Vermelho, comecei a assistir à série de TV Hannibal, produzida pela NBC, e agora acabo de chegar ao final de seus 39 episódios, distribuídos em três temporadas, exibidas de 2013 a 2015. Ela começa com o personagem vivendo seu auge em termos profissionais, como um dos psiquiatras mais conceituados da cidade de Baltimore e, provavelmente, de todo o estado de Maryland, e quando, além de clinicar em seu consultó­rio, era frequentemente chamado a colaborar com a agência local do FBI, ajudando a montar perfis psi­quiátricos que pudessem orientar os investigadores na busca a criminosos insanos. Isso, é claro, foi an­tes de suas pró­prias atividades como serial killer serem descobertas, e de seu consequente confinamen­to na insti­tuição para, bem, criminosos insanos onde vamos encontrá-lo em Dragão Vermelho e O Si­lêncio dos Inocen­tes. Porém, se vocês ainda não assistiram à série e pretendem fazê-lo, estejam avisa­dos: seu criador, Bryan Fuller, não fez questão alguma de se ater ao que os leitores de Har­ris e os espectadores dos filmes baseados em seus livros já sabiam. Trata-se de uma rei­maginação radical do mundo que ro­deia Hannibal – e dele próprio.

Só para começar, a primeira coisa que salta aos olhos é a época em que os episódios estão ambientados. Sabemos, por meio dos li­vros e filmes, que Hannibal Lecter nasceu em 1933 e que testemunhou as provações que seu país natal, a Lituânia, atra­vessou durante a Segunda Guerra Mundial e em sua posterior anexação à União Soviéti­ca; aliás, as ex­periências traumáticas que o então menino Hannibal viveu durante a guerra foram, muito provavelmen­te, o gatilho que despertou o instinto assassino latente nele e que, de outra forma, talvez ti­vesse perma­necido adormecido durante toda a sua vida. Hannibal emigrou para os Estados Unidos no início dos anos 50 e estudou na prestigio­sa Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Seguindo essa cronologia, seus tempos de psiquiatra fa­moso deveriam coincidir com as décadas de 60 e 70; o filme Dragão Ver­melho informa que sua prisão teria acontecido em 1980. A série, entretanto, parece trans­correr na mes­ma época em que foi produzida e exibida, ou seja, em meados desta nossa própria e assus­tadora segun­da década do século XXI: os per­sonagens acessam a internet, portam smartphones e diri­gem carros mo­dernos. Se Hannibal (aqui inter­pretado pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen) estiver, como aparen­ta, nos seus 40 e poucos anos, en­tão deveria ter nascido no início dos anos 70, no mínimo 25 anos de­pois do fim da Segunda Guerra. Essa inconsistência não é explicada em momento algum da série.

Falar em internet me fez lembrar de outra coisa. Em Dragão Vermelho aparece o personagem Freddie Lounds, um repórter da imprensa sensacionalista, interpretado por Philip Seymour Hoffman, que es­creve para um tabloide – um jornale­co. Na série, ele, em vez disso, tem um site, mas o curioso não é isso, e sim o fato de ele ter virado ela: aqui, "Freddie" é o apelido de Fredericka (isso mesmo!) Lounds, papel de uma tal Lara Jean Chorostecki. Esse é apenas um exemplo do grau de liberdade que a série toma em relação a tudo o que já conhece­mos ligado à história de Hannibal.

Outros persona­gens não trocaram de sexo, mas nem por isso deixaram de sofrer grandes mudanças. Um deles é Will Graham, que, junto com Hannibal, é uma das figu­ras centrais. Em Dragão Vermelho ele era inter­pretado por Edward Norton, e era um agente do FBI, o responsável pela prisão de Hannibal; na série, o papel per­tence a Hugh Dancy, e Graham não é um agente, apenas um professor que leciona criminolo­gia para os trainées do FBI, e que, teoricamente, não deveria ter qualquer envolvimento direto com in­vestigações. Acontece que o cara possui um dom raro. Ao ver-se no cenário de um crime violento, consegue re­criar mentalmente o ocorrido, colocando-se no lugar do assassino, compreendendo seu modus operan­di, sentindo suas emoções e, muitas vezes, desco­brindo suas motivações, por mais loucas que se­jam. As ce­nas em que Will faz isso fazem com que pareça quase uma habilidade sobrenatural. Minto: parece mesmo sobrenatural. Não é preciso dizer que essa capaci­dade é extremamente útil na elucidação de as­sassinatos, e por isso a ajuda de Graham é frequen­temente solicitada pelo chefe da seção de Ciên­cias do Com­portamento, Jack Crawford – que, por sinal, também sofreu uma metamorfose, aliás mais uma. Em O Silêncio dos Inocentes, Crawford, vivido por Scott Glenn, tinha a cara de um agente de escri­tório, mais acostumado ao trabalho de coordenação que a sair pessoalmente atrás de assassinos; em Dragão Ver­melho ele era interpretado por Harvey Keitel, e pare­cia um delegado de polícia às vésperas da aposentadoria; em Hanni­bal, a série, Crawford aparece em sua encarnação mais durona: o ator Laurence Fishburne deu ao per­sonagem um jeitão de ex-fuzileiro. Crawford está ci­ente do quanto essas colaborações custam a Gra­ham, ho­mem afável e bondoso, que não suporta ver cães abandonados e por isso tem uma verdadeira matilha em casa. Sua natureza terna se choca terrivel­mente com os detalhes medonhos de todos aqueles assassi­natos, o que vai gradualmente abalando sua sanidade mental. Crawford sofre ao ver isso aconte­cer, mas o fato é que a participação de Graham salva vidas, e por isso ele não pode se dar ao luxo de dis­pensá-la – e Graham, embora não sendo obrigado, não tem coragem de negá-la. Will tem uma queda evidente por uma colega de trabalho, a psiquiatra Alana Bloom (papel da linda atriz canadense Caroline Dhaver­nas), ex-aluna de Hannibal, mas, embora não seja indiferente a ele, ela parece em dúvida sobre se seria uma boa ideia os dois se envolverem. O próprio Hannibal nunca está muito longe, embora haja episó­dios em que outros personagens (geralmente Will Graham) aparecem mais que ele.

(Uma observação que pouca gente deve ter feito, mas sem dúvida curiosa, é que Hannibal marca o reencontro de Mads Mikkelsen e Hugh Dancy, que já haviam contracenado em Rei Arthur, no qual ambos interpretavam cavaleiros da Távola Redonda: Mikkelsen era Tristão, e Dancy, Galahad.)

Li em algum lu­gar que, ao aceitar o papel-título na série, Mads Mikkelsen declarou que, apesar de sua admira­ção por Anthony Hopkins, não tinha a intenção de que "seu" Hannibal fosse igual ao dele. E, pelo visto, falava sério. Não podemos saber até que ponto Mikkelsen pôde influenciar os roteiros, mas o fato é que o per­sonagem, tal como interpretado por ele, não difere da versão de Hopkins apenas por uma questão de es­tilo e jeito de ser, mas também por diversos atos que pratica ao longo da série, e que o Hannibal de Hopkins ou faria de modo diferente, ou não faria em absoluto. O Hannibal de Hopkins tem um pendor para a ironia e o deboche, e por vezes demonstra um humor sutil e ácido; o de Mikkelsen é mais sério que um capincho, como dizemos aqui no Rio Grande do Sul: se esboçou um levíssimo sorriso, quase im­perceptível, duas vezes em toda a série, foi muito. Hopkins: Hannibal mata e come pessoas, mas esses atos, quase sempre, estão ligados a um senso de justiça – extremo e estranho, mas, ainda assim, um senso de justiça; quer dizer, é claro que não podemos aprovar o que ele faz, mas o entendemos. É muito raro que pratique uma crueldade gratuita. Mikkelsen: Hannibal também não mata aleatoriamente, mas é mais comum que o faça para proteger seus segredos e interesses do que por justi­ça; além disso, por ve­zes coloca pessoas em situações enlouquecedoras, de propósito, só pela curiosida­de de ver como irão rea­gir. Reitero que é difícil saber até onde as novas características do personagem devem ser atribuídas a Mads Mikkelsen e até onde são obra de Bryan Fuller, mas que ele está radical­mente di­ferente, isso, sem dúvida, está.

Novamente, preparem-se: o aviso de "recomenda-se discri­ção ao assistir", que aparece no início de todos os episódios, não é uma formalidade. A série é um desfile de mortes bizarras, perpetradas por serial killers tão insanos que, comparado com eles, Hannibal quase parece um cara normal. Há um sujeito que fabrica cordas para instrumentos musicais usando tripas hu­manas em vez das de animais. Outro é uma espécie de lobisomem hi-tech. Pelo menos três usam cadá­veres humanos como matéria-prima para instalações artísticas, e um, como terreno de plantio. Só em fi­car se pergun­tando se existirá mesmo tanta gente (?) com esse tipo de criatividade macabra, você já pode perder umas horas de sono. Volta e meia há uma cena de Hannibal cozinhando ao som de música clássica, mas com isso vocês vão se acostumar fácil. Para ele não parece haver diferença entre preparar um prato com ingredientes comuns adquiridos em sua delicatessen favorita, ou com pedaços de alguém.


Paralela­mente às buscas a esses assassinos (buscas essas nas quais Hannibal colabora com seu conhecimento psiquiátrico), Jack Crawford e seus subordinados nas Ciências do Comportamento lidam há anos com os crimes de um serial killer misterioso conhecido como o "Estripador de Chesapeake" (do nome do es­tuário que banha, entre outros, os estados de Maryland e Virgínia, sua área de atuação). Esse Estripa­dor, vocês adivinharam, é Hannibal em pessoa, que, como a maioria dos serial killers, tem um certo or­gulho de suas realizações, como se fossem algum tipo de obra artística, e ainda mais orgulho de fazer tudo o que faz enquanto passa boa parte do tempo convivendo com o pessoal do FBI, que o respeita, admira e tem suas opiniões em alta conta – ao mesmo tempo em que, sem saber, o caça febrilmente e sem sucesso. Mesmo precisando, por motivos óbvios, abster-se de reclamar o "mérito" de seus assassinatos, Hannibal quer receber reconhecimento por eles, e por esse motivo não fica nada satisfeito quando o Dr. Abel Gideon (outro médico psicopata, interpretado por Eddie Izzard, e interno do mesmo instituto onde Hannibal eventualmente iria parar) reivindica para si os crimes do Estripador de Chesapeake. Isso serve de estopim a uma bizarra batalha de egos entre assassinos, que é um, mas nem de longe o único conflito psicológico insólito que encontramos na série. Alguns desses conflitos são criações originais de Fuller, enquanto outros serão reconhecidos por quem leu os livros de Thomas Harris. Personagens conhecidos aparecem, embora tanto eles quanto suas histórias tenham sofrido transformações para se encaixar no universo recriado para a tela da TV.

Um desses personagens é Mason Verger, apresentado aos leito­res no último livro sobre Hannibal, intitulado apenas com o nome do personagem. Verger é um jovem milionário e inveterado abusador de crianças, que, graças ao poder e influência de sua família, escapou de qualquer pena mais severa, sendo "condenado" apenas a serviços sociais e a fazer terapia – com o Dr. Lecter. Logo fica claro para Hannibal que seu paciente não tem intenção alguma de se corrigir; Mason não apenas não leva a terapia a sério como tenta suborná-lo e, possivelmente, também seduzi-lo (há in­sinuações nesse sentido tanto no livro quanto no filme). Movido por seu já mencionado senso de justiça, Hannibal "cuida" de Mason à sua maneira; não fica cla­ro se o deixa com vida de propósito, mas o riqui­nho fica desfigurado e inválido, o que, para ele, é prova­velmente um casti­go muito pior que acabar no fogão de Lecter. Daí em diante, sua vida só tem um obje­tivo: vingar-se de Hannibal da maneira mais pa­vorosa imaginável. Não vou falar mais de Mason aqui, tanto para não dar spoiler para quem for ver a série, quanto pelo fato de que ainda tenho planos de falar do livro Hannibal, mas podem estar certos de que ele é um dos vilões mais diferentes e terríveis que já vi na literatura de suspense. No filme, Verger era interpretado pelo excelente Gary Oldman, embora fos­se impossível reco­nhecê-lo sob a maquiagem grotesca da cara desfigurada do personagem; na série, o papel é de Michael Pitt, que, a meu ver, captu­rou bem a combinação de maldade e frivolidade que carac­teriza o persona­gem antes do incidente. Já sua irmã e vítima, Margot, que existe no livro e na série, mas não no filme, é interpretada por Katharine Isabelle – e, também ela, enormemente diferente do que era na origem. Fuller chegou a dizer que tinha planos de que a agente Clarice Starling, tornada famosa pela interpretação de Jodie Foster em O Silên­cio dos Inocentes, também aparecesse, mas isso não havia se concretizado até o fim da terceira e última temporada. Também há boatos de uma possível retomada da série, mas, até o momento em que escrevo, não encontrei nenhuma informação concreta a respeito.

Acima de todas as subtramas, está sempre a relação entre Hannibal e Will Graham, uma relação cuja exata natureza nunca conseguimos descobrir. Os dois não apenas se compreendem: na ver­dade, cada um é a única pessoa ca­paz de compreender o outro, o que poderia fazer deles melhores ami­gos, quase almas gêmeas – mas nada tão simples assim acontece. Will ora se apoia totalmente em Han­nibal e pre­cisa desesperadamente dele, ora o odeia ao ponto de desejar sua morte, mesmo sem ter a confirmação das terríveis (e corretas) suspeitas que nutre. Já Hannibal é incapaz tanto de amor quanto de ódio; para ele, Will é uma pessoa digna de sua atenção, o que, pela sua cartilha, é um enorme elogio; o fato de que essa atenção, não raro, assume a forma con­creta de ciladas e tortura psicológica é para ele uma mera consideração secundária. Aqui e ali ao longo da série, e mais intensamente perto do final, há insinuações de que a relação dos dois poderia (caso as circunstâncias não o tornassem impossível) tomar um rumo homossexual; insinuações essas, a meu ver, que não contribuem em nada para a história, que poderia passar muito bem sem elas.

Sei que já fiz alertas demais para um post só, mas há mais um sem o qual não posso terminar: Hannibal não é uma série fácil de assistir, e não só por causa das ima­gens grotescas que volta e meia ocupam a tela. Muitos episódios são "psicológicos", o que significa que envolvem pouca ação de fato e, frequentemente, exibem cenas que não sabemos se são reais ou apenas as alucinações de alguém – em geral, Will Graham. Bem, pelo menos até que imagens claramente aluci­natórias se intro­metam no que até aí tinha aparência de realidade. Em seu mundo psicodélico, no qual vai se embre­nhando cada vez mais à medida em que sua sanidade vai ficando comprometida, Will vê Hannibal sim­bolizado ora por um enorme cervo negro, ora por um ser semelhante ao Deus Chifrudo da mitologia pri­mitiva – meio homem, meio cervo. O porquê da escolha do cervo, um herbívoro inofensivo, para repre­sentar um matador como Hannibal, é questão aberta à interpretação, mas tenho para mim que foi para fugir da obviedade de simbolizá-lo em um lobo ou outro animal predador. Esses episódios mais "men­tais" requerem muita atenção e paciência, e por vezes se tornam, numa palavra, cansativos. Aí vocês po­dem me perguntar: vale a pena? E a respos­ta só pode ser uma: é claro que vale. Entretanto, só recomen­do a série para cabeças fortes e tranquilas, que não achem que narrativa boa é a que aconte­ce em veloci­dade de videoclip e que, por amor a um excelen­te enredo geral, estejam dispostas a encarar alguns mo­mentos indigestos. E principalmente, desenca­nem de ficar ligando o que verão nesta série com o que já conheci­am dos livros e filmes. Aceitem que é uma recriação e mergulhem na história sem outras preocu­pações.

Um comentário prático à guisa de encerramento: cá pra nós, o jeito como Hannibal foi lançado em DVD no Brasil foi uma grande sacana­gem! Primeira temporada, volume 1, e Primeira temporada, volume 2? Pra quê? Quero dizer, pra que, além de obrigar o fã a pagar praticamente o do­bro, já que cada "volume" custa pouco menos do que cus­taria a temporada inteira, se lançada de uma vez só, numa única embalagem? O pior é que isso parece estar se tornando uma prática comum: já vi outras séries que estão sendo lançadas do mesmo jeito. De­pois, com que moral essas com­panhias vão poder reclamar se o público preferir recorrer à pirataria?

Por fim, isto agora os fãs de Arquivo X vão achar interessante: Gillian "Scully" Anderson aparece no pa­pel da Dra. Bedelia Du Mau­rier, a psiquiatra de Hannibal – que, como todo bom psiquia­tra, também tem sua própria psiquiatra. Gillian aparece primeiro de forma esporádica, para, lá pelo iní­cio da tercei­ra tempo­rada, assumir uma importância central na trama.

segunda-feira, outubro 31, 2016

Águias em Guerra

No início do primeiro século da Era Cristã, o então recém-instituído Império Romano parecia estar levando adiante com sucesso a conquista da Germânia, que, ao que tudo indicava, seguiria o mesmo caminho de muitas outras nações da Europa, Oriente Médio e norte da África: o de tornar-se mais uma província romana. Nas batalhas de Arbalo e do rio Lúpia, ambas em 11 a. C., o general romano Nero Cláudio Druso, enteado do imperador Augusto, havia obtido vitórias importantes sobre diversas tribos germânicas, as quais, desde então, polarizavam-se entre as que aceitavam o domínio de Roma e as que não o aceitavam – o que também era uma parte normal do processo de conquista. De todo modo, e muito graças a essas vitórias, a região do vale do Reno passou os vinte anos seguintes em relativa tranquilidade, experimentando um intenso desenvolvimento. Novas fortificações militares iam sendo construídas, e, em volta delas, surgiam vilas planejadas, mais limpas e seguras que os aldeamentos nativos. Boas estradas e pontes sólidas facilitavam a circulação de pessoas e mercadorias. Pela primeira vez, aquelas plagas até então selvagens ganhavam ares de civilização, e muitos dos nativos se adaptavam à nova realidade, passando a ganhar seu sustento graças às oportunidades que a presença dos romanos havia trazido, nos ramos do comércio e da indústria. Artesanias de diversos tipos, tabernas e pequenos comércios prosperavam como nunca, já que agora tinham como fregueses os soldados e os funcionários do Império Romano, que tinham salários regulares (!), o que, salvo algum imprevisto, significava dinheiro para gastar todos os meses – algo que, para os germânicos pobres, parecia coisa de outro mundo. Com isso, o padrão de vida médio da população da região sofreu uma melhora significativa, de modo que, apesar dos impostos que agora precisavam pagar a Roma, muitos não estavam descontentes. Em suma, no ano 9 d. C., a fase inicial e violenta da conquista parecia ter sido superada; daí em diante, ela se consolidaria na base da integração e da aculturação. Era o que parecia.

(A propósito: Druso, depois de sua morte, ganhou do senado de Roma o título de "Germânico", em homenagem a suas vitórias na Germânia. O título foi incorporado a seu nome, que passou a ser Nero Cláudio Druso Germânico, e foi herdado por seus filhos. O mais velho deles levou o mesmo nome que o pai e foi praticamente uma segunda edição dele, pois também se tornou um general de renome e praticou façanhas notáveis na Germânia; o mais jovem, Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, foi imperador de 41 a 54, com o nome de Cláudio.)

Da integração de que falávamos há pouco fazia parte, entre outras coisas, o costume de aceitar o alistamento de nativos no exército; eles serviriam nas auxiliae (tropas auxiliares) como cavalarianos, arqueiros, ou como infantaria leve, dotando a máquina de guerra romana com alcance e mobilidade, coisas que não eram o forte das legiões. Depois de arremessar os dois ou três dardos (pila, plural de pilum) que levavam, os legionários tinham que passar ao combate corpo a corpo; tampouco podiam mover-se muito depressa com suas pesadas armaduras e escudos. Por isso as auxiliae eram necessárias, embora, verdade seja dita, geralmente não gozassem de muito prestígio: os legionários regulares tendiam a olhar os soldados auxiliares com certo desprezo, já que, afinal, eram "bárbaros", que só ganhariam a cidadania romana – e, por consequência, o direito de ficar em pé de igualdade com eles – ao final de seu tempo de serviço, se vivessem até lá, é claro. Porém, também era tendência que esse preconceito fosse abrandando ao longo do tempo, pois, como a cidadania era extensiva aos descendentes, os filhos de soldados auxiliares podiam ser legionários, e essas novas gerações (ao menos, era o que se esperava) veriam os auxiliares com outros olhos.


Esse status mais baixo de que padeciam os soldados das auxiliae tinha exceções. Uma delas foi Ermin, ou Irmin (nome que os romanos latinizavam para Armínio, e que evoluiu para Hermann no alemão moderno), filho de Segímero, um dos líderes da tribo germânica dos Cherusci ('queruscos'). Ainda durante a fase inicial da tentativa de conquista da Germânia, o general e mais tarde imperador Tibério (irmão de Nero Cláudio Druso) tentara convencer Segímero a se aliar ao Império, e, para demonstrar benevolência, tomou Armínio, ainda menino, sob sua proteção, e o enviou para ser educado em Roma. Armínio retornou à Germânia por volta do ano 2, com cerca de 18 anos de idade, tendo ganho a cidadania romana (um caso excepcional, devido a suas origens aristocráticas e ao papel-chave que esperava-se que tivesse na política Roma/Germânia durante os próximos anos) e a patente de tribuno militar. Sua missão consistiria em liderar a cavalaria formada por seus compatriotas, apoiando as legiões em qualquer luta que fosse necessário travar contra as tribos que ainda não reconheciam a soberania de Roma. Públio Quintílio Varo, que ocupou o cargo de governador da Germânia no ano 6, repetidamente demonstrou estima pessoal pelo jovem oficial, e gostava de citá-lo como exemplo de bárbaro que se adaptara com sucesso ao modo de vida romano. Mal sabia Varo que Armínio, no íntimo, nunca havia sido sincero em sua aliança com Roma: em segredo, ele imaginava maneiras de unificar as tribos germânicas divididas por rivalidades para, aproveitando-se da confiança que os romanos agora depositavam nele, orquestrar uma insurreição que os expulsasse para sempre das terras ancestrais de seu povo.

(Tudo até aqui é histórico; de agora em diante, passo a comentar o romance Águias em Guerra, no qual o escritor queniano Ben Kane recria a história da batalha da Floresta de Teutoburgo, cujo desfecho frustrou em definitivo os planos romanos de conquista para a maior parte do território germânico.)

A narrativa do livro acompanha dois homens: um germano, Armínio, e um romano, o veterano centurião primus pilus Lúcio Comênio Tulo. Lembrando: o primus pilus (latim para 'primeira lança', às vezes traduzido como primeiro-centurião) era o comandante da primeira centúria de uma coorte, e tinha, na prática, uma patente mais alta que a dos outros centuriões, sendo responsável pela coorte toda (seis centúrias formavam uma coorte, e dez coortes formavam uma legião). Tulo é um homem enrijecido por muitas batalhas nas diferentes províncias onde já serviu, e está numa altura da vida em que a ideia de reformar-se vai assumindo contornos mais concretos. Com 40 e poucos anos, passou os últimos 25 no exército – ou seja, já poderia estar reformado, mas optou por prorrogar seu tempo de serviço, provavelmente por não conseguir imaginar-se vivendo como civil. Agora, no entanto, até seu vigor físico já não é o mesmo de outros tempos, e ele considera que pode ser uma boa ideia ir descansar, deixando as lides militares para oficiais mais jovens e ambiciosos.

O que Tulo não esperava era ser agraciado com a missão de servir de ama-seca para um desses jovens oficiais. O tribuno Lúcio Túbero acaba de chegar de Roma, tem 17 anos e está empolgado com seu primeiro comando militar. Ansioso por mostrar seu valor em combate, ele não recebe bem a notícia de que sua primeira missão será uma patrulha de rotina pela margem leste do Reno, na qual as probabilidades de ocorrer alguma luta são quase nulas: as tribos da região são aliadas de Roma, e aquelas que permanecem hostis estão, em princípio, bem distantes. Essas patrulhas, além de servirem para exercitar os soldados em longas marchas, tinham uma função eminentemente ostensiva: a visão de tropas romanas em movimento era considerada salutar mesmo para as tribos nativas já pacificadas, pois as inspirava a pagar seus impostos sem resmungar e desestimulava qualquer ideia infeliz que pudesse andar revolvendo nas cabeças dos menos satisfeitos. Nenhum incidente é esperado durante os vários dias que esse deslocamento deverá durar, mas há um fio de esperança para Túbero: nos últimos tempos, germanos Tencteri, cuja tribo ainda não aceita o domínio romano, têm feito incursões à região do rio para roubar gado de outras tribos, e há alguma chance de que a patrulha tope com um desses bandos de ladrões. Naturalmente que, embora Túbero tenha a patente mais alta, Tulo é quem de fato comanda a operação – mas o centurião percebe logo que deve ser sutil e diplomático: Túbero é afoito e arrogante. O consolo de Tulo reside no fato de que muitos tribunos que começaram desse jeito amadureceram e acabaram por tornar-se bons oficiais… O que não muda a antipatia instantânea que ele logo sente pelo moleque.

Só para esclarecer aos que não estiverem familiarizados com a hierarquia do exército romano, os tribunos militares eram os oficiais diretamente subordinados a um legado, que era o comandante de uma legião (um general podia comandar diversas legiões). Cada tribuno tinha sob suas ordens vários centuriões e, teoricamente, cerca de mil legionários, embora, na prática, fossem quase sempre menos, pois era raro que uma centúria tivesse exatamente cem homens. A questão delicada aí é que o posto de tribuno era muitas vezes ocupado por jovens oriundos das famílias patrícias (isto é, aquelas de berço nobre e normalmente ricas), formados numa academia, mas sem qualquer experiência militar real, que estavam dando seus primeiros passos no cursus honorum (detalhes aqui). Enfim, Túbero é um exemplar típico. Colocar um rapazola inexperiente numa posição de comando era uma concessão política, mas ninguém era louco de não tomar precauções para evitar que isso acabasse em desastre: os tribunos sempre tinham junto de si centuriões experientes para auxiliá-los e aconselhá-los, e, na maioria das vezes, eram espertos o suficiente para ouvir o que eles diziam. Havia um mecanismo que visava garantir isso: ao mesmo tempo em que estavam sob as ordens do tribuno, os centuriões tinham o poder de avaliá-lo. Se os relatórios que eles encaminhassem ao legado ou ao general em comando fossem continuamente desfavoráveis, o tribuno podia perder seu posto – o que seria um grande problema para sua carreira futura. Esse sistema, de modo geral, era eficiente, embora, é claro, não fosse à prova de influências e "amizades". E, como também é claro, era impossível evitar que alguns desastres efetivamente acontecessem.

Um deles tem lugar durante a patrulha pela margem leste: Túbero, acompanhado de alguns outros oficiais montados, decide explorar o caminho à frente das tropas e acaba topando com alguns guerreiros germanos que vêm conduzindo uma boiada. Assumindo logo que se trate dos ladrões Tencteri e sem falar a língua dos germanos, que tampouco falam latim, o tribuno arma uma confusão que resulta na morte de vários homens – que não são Tencteri coisa nenhuma, e sim da tribo local dos Usipeti, há muito aliados a Roma. A única maneira de evitar que a justa indignação do restante da tribo degenere numa revolta seria que o governador Varo fizesse um pedido formal de desculpas e aplicasse a Túbero uma punição exemplar… Mas o governador não se atreve a tanto, já que o rapaz é filho de um homem importante de Roma, amigo do próprio imperador. Armínio, que já antes disso vinha fazendo contatos com o objetivo de articular uma rebelião, habilmente tira proveito do ressentimento gerado pelo incidente para estimular um ânimo de rebeldia inclusive entre as tribos que até aí estavam do lado dos romanos. Tudo de forma discreta, até que chegue o momento certo para "virar a mesa". Desnecessário dizer que convencer as tribos germânicas de que tinham um inimigo comum – no caso, Roma – era o único meio factível de conseguir que cooperassem entre si, pois, sob condições normais, as relações de umas com as outras variavam da desconfiança à inimizade mortal.

Águias em Guerra é uma leitura empolgante! A recriação histórica parece perfeita aos olhos de alguém com um conhecimento bastante razoável sobre a época (modéstia à parte, esse sou eu – risos); Kane tomou umas poucas liberdades, as quais ele esclarece na nota ao final do livro. Além disso, há uma atmosfera de tensão ininterrupta, pois o autor consegue fazer o leitor sentir a enormidade do que está se preparando para acontecer. Armínio, ardiloso, esforça-se por parecer o oficial perfeito aos olhos do governador Varo: eficiente, solícito… Um pouco eficiente e solícito demais para o gosto de Tulo, que, apesar de manter relações cordiais com o germano, conserva, durante todo o tempo, uma certa reserva a respeito dele. Por mais de uma vez o centurião tenta expor sua desconfiança ao governador, mas este sempre o repreende duramente por "ousar" pôr em dúvida a lealdade de Armínio, a quem ele considera não só um fidelíssimo aliado de Roma, como seu amigo pessoal – uma opinião que Armínio trata de reforçar, repetidamente visitando o governador para longas conversas regadas a vinho e convidando-o para caçadas. Varo, apesar de também já haver exercido comandos militares, é essencialmente um político; Tulo, por outro lado, é um soldado até o último fio de cabelo, e a intuição que tantas vezes salvou sua vida (e as de seus homens) no campo de batalha, parece alertá-lo a manter um pé atrás em relação a Armínio. Enfim, se Tulo, e não Varo, fosse o governador da Germânia naqueles dias, é possível que os alemães de hoje falassem uma língua neolatina… Certo, Tulo é um personagem fictício, mas é provável que houvesse diversos homens parecidos com ele à volta do Varo histórico, e, se tivessem conseguido que ele os ouvisse, a História poderia ter tomado outro rumo. O pior é que vários indícios do que ia acontecer chegaram ao conhecimento de Varo, que os ignorou porque confiava cegamente em Armínio. E, se pensarmos bem, não havia como não vazarem informações: para conseguir a adesão de uma tribo a sua causa, Armínio precisava expor seu plano, que então era discutido entre os chefes e todos os guerreiros – e todos sabemos que um segredo que é confiado a muita gente nunca permanece secreto por muito tempo. O desastre poderia ter sido evitado se o governador tivesse sido mais esperto, o que tornou o caso todo ainda mais difícil de descer pela goela dos romanos.

Voltando ao livro, o momento que Armínio esperou durante tantos anos finalmente chega no outono do ano 9, quando a Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, lideradas por Varo em pessoa, estão retornando de seu acampamento próximo à vila de Porta Westfalica para suas bases permanentes na cidade de Vetera (a atual Xanten), onde deverão passar o inverno – e onde o relativo sedentarismo imposto pelas condições do tempo durante a estação fria será um descanso mais do que bem-vindo para os soldados, depois de uma primavera e verão de marchas exaustivas e algumas lutas. Acontece que, durante a marcha, Armínio procura Varo com a notícia (falsa) de uma sublevação entre os Angrivari, uma tribo cujo território fica relativamente próximo dali. Garantindo ao governador que ele e seus cavaleiros conhecem bem os caminhos da região e sabem exatamente por onde o exército deve marchar para chegar ao local o mais depressa possível, Armínio consegue que as legiões se metam numa trilha estreita e tortuosa, por dentro da floresta de Teutoburgo, na atual Baixa Saxônia, Alemanha. Na floresta, as três legiões, totalizando cerca de 14 mil homens, seriam emboscadas por uma confederação de tribos germânicas com cerca de 20 mil. Em circunstâncias normais, esse grau de inferioridade numérica nem chegaria a preocupar as legiões romanas, acostumadas a enfrentar – e derrotar – inimigos duas, três vezes mais numerosos que elas, mas desorganizados e pouco disciplinados. O problema foi o local onde o ataque ocorreu: para poderem transitar por aquela trilha estreita, as legiões tinham sido obrigadas a se afunilar até estarem marchando quase em fila indiana; isso, mais a densa mata que as rodeava, tornou impossível aos soldados entrarem em formação com a rapidez necessária ao serem atacados de surpresa por inimigos que, ao contrário deles, estavam acostumados com a floresta e com o terreno acidentado e lamacento. Os germânicos emergiam das sombras da floresta, faziam ataques-relâmpago e tornavam a desaparecer, para, pouco mais tarde, repetirem a manobra, e assim sucessivamente, causando baixas e minando o moral dos soldados. Ou seja, tudo correu conforme os planos de Armínio, que desde o início pretendia colocar as legiões no terreno mais desfavorável possível para elas, onde seus homens pudessem atacar sem precisar enfrentar os romanos em combate direto, pois ele sabia que, se o fizessem, eles perderiam. De cada legião não restou mais que um punhado de sobreviventes, e, ainda pior que isso, suas águias caíram nas mãos dos bárbaros. O episódio entraria para a história romana com o nome de Clades Variana (o 'Desastre de Varo'). Conta-se que, ao saber do acontecido, o imperador Augusto, então já um homem idoso, chorou, e que durante meses teve pesadelos, dos quais acordava gritando: "Vare, legiones redde!" ('Varo, devolva minhas legiões!')

Um dos muitos méritos de Águias em Guerra é que o autor não cai no simplismo tolo de eleger um lado como o "bem" e o outro como o "mal": alguns romanos podem ser arrogantes e prepotentes, mas também há os que são justos; os germânicos anseiam por recuperar sua liberdade (mesmo que seja para voltarem a viver como selvagens, lutando idiotamente uns contra os outros sem qualquer motivo real), e ninguém pode culpá-los por isso, mas também cometem atos bárbaros e brutais. Como eu disse, a indignação dos Usipeti ante os assassinatos perpetrados por Túbero é mais do que justa – mas não se pode dizer o mesmo da retaliação que praticam, saqueando várias vilas (habitadas por germanos como eles), assassinando e estuprando, até serem detidos, e por quem? Pelos romanos… Enfim, nesta história as coisas são bem mais complicadas que um mero confronto entre o bem e o mal: são mais parecidas com a realidade. Seguindo o mesmo espírito, as descrições das batalhas pouco têm de glorioso: são assustadoras e, não raro, repugnantes, como uma batalha de verdade. Também é uma realização notável do autor o fato de conseguir que o leitor experimente uma sensação de suspense enquanto acompanha os eventos, apesar de já saber qual será o resultado; isso é alcançado principalmente porque, a partir de certo momento, o fato de que a causa romana na Germânia está perdida é aceito por todos, e, daí em diante, o núcleo da história não é mais esse. Em face dessa realidade, cada personagem tem a reação que lhe cai melhor: Armínio e seus germanos comemoram, Varo suicida-se, Tulo se esforça de forma heroica para tirar dali com vida o maior número possível de seus homens – e a atitude deste último assegura-nos uma linha de ação eletrizante para seguirmos com a respiração suspensa até o final do livro.

Kane menciona que a ala ('asa', nome dado a uma unidade de cavalaria) que Armínio comanda é vinculada à Décima Sétima Legião, enquanto a coorte sob as ordens de Tulo pertence à Décima Oitava, mas tem o cuidado de só designar essas legiões pelos números, nada dizendo sobre seus nomes ou seus emblemas, e por uma razão muito boa: essas informações são desconhecidas. As duas, junto com a Décima Nona, tiveram um fim que foi considerado ignominioso, e, por isso, os cronistas da época e os das gerações seguintes parecem ter achado que quanto menos falassem sobre elas, melhor. Houve, mais tarde, uma série de expedições punitivas sob o comando do já citado Germânico, filho de Druso e sobrinho de Tibério, e as águias foram recuperadas, restaurando, ao menos em parte, o orgulho ultrajado de Roma, mas, mesmo assim, os números 17, 18 e 19 nunca voltaram a ser atribuídos a nenhuma outra legião. Também não houve reconquista definitiva dos territórios perdidos como resultado do Desastre de Varo; com isso, o Reno permaneceu como fronteira, e a Germânia romana limitou-se, daí em diante, a um pequeno território a oeste desse rio, incluindo partes das atuais Holanda e Bélgica, além da região alemã da Renânia, e tendo como principais cidades Maguntiacum (pronuncie Maguncíacum), hoje Mainz, e Augusta Treverorum, hoje Trier, onde ainda pode ser vista a imponente Porta Nigra ('Porta Negra'), edificação defensiva romana do século III.


Apesar da vitória obtida contra o exército mais poderoso do mundo, as ambições de Armínio de unir os germanos numa nação (da qual ele se faria rei) fracassaram por completo. As tribos só permaneceram lado a lado durante o tempo necessário para derrotar os romanos, retomando depois o seu costume ancestral de disputas territoriais, pilhagem mútua e guerras fratricidas; os primeiros progressos mais duradouros na direção de uma unificação da Germânia só seriam alcançados oito séculos depois, pelo franco Carlos Magno. Ainda assim, Armínio era um dos vultos históricos mais prezados pelos integrantes dos movimentos intelectuais e artísticos alemães que ganharam força a partir do fim do século XVIII, como o Sturm und Drang ('Tempestade e Ímpeto') e outros que o sucederam, todos marcados por um forte sentimento nacionalista, e que formariam o substrato cultural e filosófico para o surgimento do movimento Völkisch, que, por sua vez, teria como principal desdobramento a ascensão do nazismo. Entretanto, mesmo na Alemanha atual, Armínio possui status de herói, não obstante o fato de a vitória que o imortalizou ter sido alcançada por meio da mentira e da traição; talvez o pensamento por trás disso seja que invasores não merecem lealdade.

Ben Kane é uma amostra de quanta coisa interessante se publica mundo afora e não chega às estantes das livrarias brasileiras; felizmente, a editora portuguesa Top Seller decidiu investir nele, e o resultado foi esta edição de alta qualidade. Para os olhos cansados de um leitor acostumado a se horrorizar com os absurdos gramáticos que pipocam das páginas dos livros ambientados na Antiguidade publicados no Brasil, o maior mérito consiste em algo que, para os portugueses, é normal: como eles comumente já usam o pronome tu no dia a dia, também sabem como conjugar os verbos nessa pessoa, uma "arte" que, aqui no Brasil, perdeu-se completamente; sendo assim, não têm necessidade de ficar tentando recriar nenhuma "linguagem de época", o que as edições brasileiras fazem, quase sempre, de forma tão tosca e artificial. Há sutilezas que só quem já leu muitos livros em português europeu (ou estudou essa variante da língua) percebe: o você também é empregado, mas, em Portugal, esse é um tratamento um pouco mais formal, usado com indivíduos com quem não se tem maior proximidade; nós, brasileiros, nunca nos damos conta disso, mas você é uma contração de vossa mercê, que era um tratamento bastante cerimonioso. Entre os dois, existiu a forma de transição vosmecê. E, é claro, há uma série de palavras e expressões que, para nós, não são usuais (por exemplo, não se diz que alguém levou uma surra, e sim que "tomou uma tareia"), mas nada que uma rápida pesquisa na internet não resolva, e ampliar o vocabulário é sempre bom. Sem contar que quem, como eu, cresceu lendo livros de aventuras importados de Portugal, já sente carinho por esse linguajar pitoresco, que embalou tantos momentos empolgantes de nossas vidas de leitores. O texto do livro está quase perfeito; curiosamente, por alguma razão que não imagino, "romanos" ora é escrito com letra maiúscula, ora minúscula, mas, fora isso, não encontrei mais que três ou quatro pequenos erros de digitação. Um detalhe na sinopse da contracapa entrega que, pelo visto, em Portugal, assim como aqui, esses textos "periféricos" costumam ser preparados por pessoas diferentes das responsáveis pelo livro propriamente dito, e que, muitas vezes, não entendem muito do assunto: a sinopse fala em "ano 9 a. C.", em vez de 9 d. C., como se lê no miolo do livro e é o correto. Mesmo com a diferença brutal de nível cultural médio que existe entre brasileiros e portugueses, parece que lá, como aqui, também há essa tendência ingênua de pensar que, se o assunto é a Antiguidade, então todas as datas precisam ser obrigatoriamente a. C. Mas não é uma falha banal como essa que vai pôr a perder a excelência do livro, em todos os sentidos.

Por fim, para quem, como eu, gosta de metal, deixo duas dicas de "trilhas sonoras" perfeitas para dar ainda mais sabor à leitura de Águias em Guerra. Ambas são da banda canadense Ex Deo, e uma, chamada Teutoburg (Ambush of Varus), como o título já entrega, é diretamente inspirada no episódio. Essa é do segundo álbum dos caras, Caligvla, lançado em 2012. A outra é Legio XIII, do primeiro álbum, Romulus, de 2009; essa não tem relação direta com a batalha da Floresta de Teutoburgo, mas, pelo menos para mim, embala perfeitamente qualquer história cheia de ação protagonizada por legionários romanos, especialmente seu solo de guitarra, um dos mais empolgantes que já ouvi.