O mal prega a tolerância, até que se torne dominante. A partir daí, ele procura silenciar o bem. (São John Henry Newman)
Nunca encontrei um diabo ateu. (Pe. Gabriele Amorth, exorcista-chefe do Vaticano)
Ele fez vocês à Sua imagem… mas nós os refizemos à nossa. (Nefarious)
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Se Nefarious tivesse sido filmado dez anos atrás, teria alcançado uma notoriedade discreta, sendo saudado por um segmento de aficionados do terror que muito apreciariam a chegada de um filme sobre possessão demoníaca que faz a proeza de fugir da maioria dos estereótipos desse subgênero – estereótipos esses que se consolidaram por meio das toneladas de imitações de O Exorcista (1974), baseado no livro de William Peter Blatty e dirigido por William Friedkin, que praticamente criou sozinho o referido subgênero e é hoje aclamado, com justiça, como um clássico e como um dos melhores filmes de terror já feitos, embora, infelizmente, a vastíssima maioria dos filmes que ele inspirou durante esses 50 anos sejam esquecíveis… com uma honrosa exceção aqui e outra ali. E, sim, Nefarious realizou essa proeza, oferecendo como resultado um filme de possessão (sem exorcismo) que investe na tensão psicológica e no debate de ideias, deixando de lado os sustos fáceis, os efeitos visuais mirabolantes e a "exibição vulgar de poder" (e aqui dou o devido crédito às palavras do demônio Pazuzu através dos lábios da garota Regan, no filme de Friedkin).
Hoje, embora ainda seja tudo isso, Nefarious se reveste também de um significado maior. Na atual conjuntura, em meio à guerra cultural que estamos vivendo, um filme com pontos de vista conservadores, com uma premissa baseada numa visão de mundo cristã, e potencial para fazer sucesso e suscitar o debate, deixa o pessoal "do lado de lá" de orelha em pé, como é fácil verificar ao procurarmos saber qual foi a reação dos "especialistas": mais de 70 por cento da crítica detonou o filme – para surpresa de ninguém, pois sabemos que, com raríssimas exceções, esse povo é fortemente woke, de modo que não poderiam dizer nada de bom sobre uma obra alinhada com as pautas da "extrema-direita", como esta; o julgamento deles é puramente ideológico, sem nada a ver com o mérito artístico. E, como também sabemos, para a beautiful people e para a mídia, que está quase toda nas mãos deles, se você defende que a vida humana é sagrada, que pátria e família são importantes, que um ser humano com pênis e testículos é um homem e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher, que a liberdade de pensamento e de expressão é base para a existência de qualquer outro tipo de liberdade, então você é "extrema-direita".
(Sim, sabemos o quanto a galera woke ama a liberdade de expressão: eles amam tanto que têm ciúme, querem só para eles.)
Na primeira cena de Nefarious, temos um suicídio: o Dr. Alan Fischer, que, como viremos a saber, é um psiquiatra de grande renome, joga-se do terraço do edifício onde tem seu consultório. O doutor estava prestes a emitir o parecer final a respeito de um serial killer condenado à morte; se sua conclusão fosse a de que o homem era insano, a sentença não poderia ser aplicada. Ante a necessidade de que esse parecer seja dado, o caso é assumido pelo Dr. James Martin (Jordan Belfi), um ex-aluno de Fischer especialmente brilhante. O condenado, Edward Wayne Brady (Sean Patrick Flanery) está detido numa penitenciária em Oklahoma, um dos 27 estados americanos que têm previsão legal para a pena de morte, e é para lá que o Dr. Martin se dirige para uma entrevista com ele – na manhã do próprio dia marcado para a execução de Brady, que deverá ocorrer naquela noite, a menos que Martin o declare insano. Portanto, o ônus de decidir sobre a vida ou a morte do assassino pesa unicamente sobre os ombros do médico.
A maior parte do filme consiste nos diálogos entre James e Edward… ou entre James e aquele que todos supõem ser Edward. Logo no começo da conversa, o prisioneiro se identifica como sendo na verdade um demônio, que está apenas ocupando o corpo de Brady. Seu verdadeiro nome, segundo ele diz, está num dialeto fenício extinto há milênios, então ele o traduz para o inglês moderno e diz a James que pode chamá-lo de Nefarious. Temos a palavra nefário em português, mas é raramente usada a não ser por quem esteja procurando deliberadamente falar difícil, então "nefarious" pode ser traduzido por vil, perverso, maligno. Um sujeito como James, ateu e sem o mínimo interesse em qualquer assunto relacionado a religião, não saberia disso, é claro, mas o primeiro e um dos mais sérios problemas enfrentados quando se está lidando com um demônio é aquilatar o tamanho do desafio: a entidade pode ser desde um reles demônio soldado raso (e mesmo um desses não é um oponente que se deva subestimar) até um grão-duque infernal que comande 60 legiões. Nefarious, no entanto, mostra-se desusadamente franco e objetivo para um demônio, e facilita essa parte declarando-se "lorde e alto príncipe". Portanto, dispõe de poderes que lhe permitiram induzir o Dr. Fischer ao suicídio, porque queria ser entrevistado não por ele, mas por James… E, quando o jovem psiquiatra pergunta por quê, o demônio responde que quer que ele escreva sua história.
Não é preciso dizer que James (no começo) não leva a sério de maneira nenhuma o que Edward/Nefarious diz. Para ele, demônios não existem – simples assim. Sua tarefa, ou assim ele pensa, consiste apenas em descobrir se o condenado acredita realmente no que está falando (e, nesse caso, é um doido de pedra, que não pode ser executado, mas passará o resto da vida num manicômio judicial) ou se só está jogando com ele, tentando convencê-lo de que é louco para escapar da execução (e, se for assim, é seu dever endossar a condenação dele). Porém, o suposto demônio inesperadamente vira o jogo ao dizer a James que, antes que o dia termine, ele – James – terá cometido três assassinatos… E não posso dizer mais sobre esse ponto para não dar spoiler; posso apenas adiantar que o psiquiatra se arrependerá do ceticismo com que a princípio recebe essas palavras.
Nefarious é um filme cuja força não está na ação, mas nos diálogos – e, nesse ponto, a dupla de atores principais impressiona com o desempenho que entrega: Belfi está bem, mas Flanery dá um show, praticamente interpretando dois papéis, e fazendo-o com maestria. Edward Brady parece um animal acuado, gagueja muito, evita o contato visual, está trêmulo, encolhido, com toda a sua linguagem corporal demonstrando a vergonha dos crimes que cometeu e o sofrimento de estar sob o domínio de Nefarious – enquanto este último se mostra à vontade, como quem tem total controle de uma situação e sabe disso, e fala pelos cotovelos, sempre de modo lógico e articulado. Isso nos leva a um ponto muito importante: o único momento em todo o filme em que o demônio demonstra medo é quando, a pedido de James, o capelão da penitenciária, Pe. Louis, entra na sala onde está ocorrendo a conversa – mas não demora nada para que ele perceba que o medo é desnecessário. Quando o padre e o psiquiatra se apresentam, ao apertarem as mãos, o capelão diz "Padre Louis… Mas pode me chamar de Louis, ou de Lou", ao que James replica: "Doutor James Martin". O título de padre deveria ser, de longe, muito mais importante e honorável que o de doutor, mas, enquanto James faz questão de ser tratado por seu título, Louis pouco parece ligar para o dele, o que já diz uma coisa ou duas sobre o tipo de padre modernex que ele é – um tipo bem comum, infelizmente. Na vida real, um padre desses provavelmente estaria em trajes civis; no filme ele veste clergyman para que o espectador possa identificá-lo facilmente como padre, mas usa também uma estola toda colorida, que simboliza seus pendores progressistas. Ao perceber que está diante de um padre, Edward/Nefarious pula da cadeira, tentando afastar-se dele o quanto lhe permite a corrente que prende suas algemas à mesa, e berra: "O que quer comigo, filho de Deus?" Essa é também a única vez que ele pronuncia o nome de Deus, o que durante todo o resto do tempo evita cuidadosamente fazer, referindo-se a Ele apenas como "o Inimigo"; é só o pânico do momento que o leva a esquecer-se de fazer isso. (Trataremos da importância dos nomes daqui a pouco.) Porém, como dito acima, bastam poucos minutos de conversa com o sacerdote para o lorde-demônio se tranquilizar:
Pe. Louis: Não estou aqui para lhe fazer mal, Edward. Estou aqui para ajudá-lo. (…) Pessoalmente, nunca encontrei um demônio, nunca tomei parte num exorcismo, nem espero fazê-lo. Muitas das coisas que nos incomodam são apenas nossos próprios medos e pensamentos desordenados.
Nefarious (depois de uma longa pausa): Então… você não considera a possessão demoníaca uma possibilidade?
Pe. Louis: Nossa compreensão evoluiu além disso.
Nefarious (depois de uma pausa ligeiramente mais curta): Bem, eu… estou contente de que você diga isso. Eu me sinto muito melhor. E eu estava errado sobre você. Deveria tê-lo convidado a me visitar muito antes, mas estou contente de que tenha vindo. Estou contente por estarmos todos nos dando bem.
Pe. Louis: Você gostaria que eu ficasse?
Nefarious (prontamente): Não. Já terminamos.
Por causa de sua unção apostólica, tendo validamente recebido o sacramento da ordem, o Pe. Louis está investido de uma parcela do poder de Cristo, incluindo a capacidade de expulsar demônios – e isso Nefarious teme. Mas, quando percebe que Louis não tem fé nesse poder e não vai usá-lo, até porque acha que demônios não passam de "metáforas", ele relaxa. Sua interação com o padre passa a ser amigável, e ele chega a tentar apertar-lhe a mão, o que Louis não permite – talvez por via das dúvidas. O recado que o roteiro quer passar com isso tudo fica claro: há certas alas dentro da Igreja que estão fazendo pouco ou nada para atrapalhar os planos de Satanás e seus asseclas. Para estes últimos, a infiltração de uma mentalidade progressista no meio cristão é ótima.
Nefarious é um filme difícil de comentar sem dar spoilers, porque 80 por cento de seu interesse está no campo da discussão de ideias, de modo que a tentação de descambar para longas dissertações que entregariam tudo é grande. Vou tentar contentar-me em sublinhar dois ou três pontos essenciais, que servirão para dar uma noção básica a algum leitor que porventura encontre este post sem ter ainda visto o filme. Disse acima que Nefarious se sente no pleno controle da situação, e isso literalmente, pois foi ele quem tramou para que sua conversa com James acontecesse exatamente nas circunstâncias em que de fato acontece. Isso fica evidente neste diálogo:
James: Edward, você entende por que eu estou aqui? Entende que eu tenho o poder de salvar sua vida ou de condená-lo?
Nefarious: O que eu entendo, James, é que você não teria nenhum poder sobre mim se eu não lhe tivesse dado esse poder lá de baixo.
James, ignorante de religião, jamais perceberia, mas o que temos aí é a paráfrase de um trecho de outro diálogo, este entre Jesus e o governador romano Pilatos (Jo 19, 10-11). Nada mais adequado, já que, segundo a teologia, Satanás esforça-se por imitar Deus, embora sempre de maneira distorcida ou invertida, o que nos remete às descrições de missas negras, com suas cruzes de cabeça para baixo e orações recitadas de trás para frente… Foi Nefarious quem propositalmente se pôs naquela situação, e o fez com um objetivo bem determinado.
O demônio vai mais longe, falando a James sobre algumas das grandes chagas da sociedade moderna, a maioria delas engendradas por seu mestre Lúcifer, com sua ajuda e a de outros demônios – mas também afirma que há algumas nas quais eles "lá de baixo" nem tinham pensado: essas os homens inventaram sozinhos, para grande satisfação das hostes infernais. O pior (ou, dependendo do ponto de vista, melhor) é que James, do alto da sua arrogância woke, acha que tudo lá fora está indo às mil maravilhas.
Nefarious: Olhe, James não se trata apenas de você ou do Edward. Trata-se de todos: toda a raça humana. Todos nós (demônios) contra todos vocês.
James: Se é assim, o seu lado não está se saindo muito bem. (…) Nunca fomos tão livres. Alcançamos altos índices de alfabetização. Estamos acabando com o racismo, com a intolerância, com a desigualdade de gênero. As pessoas podem amar quem elas quiserem, ser o que quiserem, fazer o que quiserem. A diversidade não é mais um sonho. O discurso de ódio não é mais tolerado. Chegamos a uma posição moralmente superior.
Nefarious: James… Acho que eu te amo.
Para Nefarious e sua "patota", é ótimo que James e milhões de outros abestados pensem dessa forma. O que o demônio enxerga e o psiquiatra não, é que o que o mundo moderno chama de "liberdade" consiste em não assumir responsabilidade por nada; que, se hoje em dia quase todo mundo é alfabetizado, isso não acontece sem que uma tonelada de ideologias nocivas sejam ensinadas junto com as letras a crianças que ainda não têm como se defender; que agora dizer a verdade, ou chamar as coisas pelo nome que elas têm, é considerado "discurso de ódio", e assim por diante. As sociedades modernas estão caminhando a passos largos para o maior e mais enlameado buraco em que alguma sociedade já se meteu em toda a História – e estão indo para esse buraco na maior das alegrias, crentes de que estão fazendo grandes progressos. Satanás deve estar às gargalhadas. Ele e seus servos sempre tiveram a mentira como uma de suas principais armas, mas não significa que não possam dizer a verdade quando lhes convém, e é o que Nefarious faz quando cruamente mostra a James que o que ele chama pelo antisséptico nome de "interrupção eletiva" (ou seja, aborto) não é diferente do que os fenícios faziam na Antiguidade como ato de adoração a ele e a outros demônios (que eles tinham na conta de deuses), queimando bebês vivos diante de imagens antropozoomórficas de bronze.
Satanás e seus demônios também parecem ter familiaridade com as lições de Sun Tzu sobre a importância de conhecer o inimigo. Quando James (afetadamente, como é próprio dele) se mostra surpreso ao ouvir conversa teológica vir da boca de um demônio, Nefarious lhe dá a real: "Eu conheço mais teologia que qualquer ser humano que já tenha vivido." E isso faz todo o sentido. Há gente que diz "eu acredito em Deus" como se isso, por si só, significasse grande coisa; bem, todos os demônios também acreditam. Outras pessoas, equivocadamente, veem uma afinidade entre satanismo e ateísmo – quando, na verdade, se admitirmos que Deus não existe, então, por óbvio, Satanás também não. Satanismo significa revolta contra Deus, e não faz nenhum sentido revoltar-se contra algo em cuja existência não se acredita. Isso me leva a outro ponto: o inimigo, ou melhor, "Inimigo", com letra maiúscula, é como Nefarious se refere a Deus; já Jesus, ele chama de "o Carpinteiro". Evita nomeá-los porque, como ele mesmo diz, nomes têm poder. Na certa não foi por outro motivo que se escusou de dizer a James seu verdadeiro nome, substituindo-o por uma versão adaptada. (Não que um pateta como James fosse saber o que fazer com tal informação, mas para que correr riscos desnecessários?) Padres exorcistas sempre dizem que, uma vez que se consiga fazer com que um demônio diga seu nome, um grande passo foi dado para vencê-lo – mas que eles se negam com todas as forças a fazê-lo, porque sabem que… bem, que os nomes têm poder.
A direção de Nefarious é a quatro mãos, assinada por Chuck Konzelman e Cary Solomon, também produtores; este último também é responsável por Deus Não Está Morto (2014), um filme muito simples, quase amadorístico, mas que também apresenta um ponto de vista claramente cristão e tem o debate de ideias como eixo de seu roteiro, o que o torna interessante, mesmo com as deficiências que tem. A comparação deixa evidente que Solomon progrediu muito como cineasta: considero Nefarious muito bem feito, embora pessoas que entendem mais de cinema que eu (e que gostaram do filme) tenham apontado certas falhas que, para mim, passaram por alto. Não é demais elogiar de novo o soberbo desempenho de Sean Patrick Flanery, que, vejam só, eu descobri que já conhecia há muito tempo, embora não fosse reconhecer nunca: lá no início dos anos 90, ele protagonizava a série de TV O Jovem Indiana Jones, que, como o título já entrega, conta as aventuras da juventude do célebre arqueólogo imortalizado no cinema por Harrison Ford. Eu adorava essa série, mas de lá para cá, que me lembre, não tinha tornado a ver Flanery.
Em nossos dias, um filme como Nefarious está nadando contra a correnteza da mídia mainstream. Foi-se o tempo em que Hollywood apostava em produções de forte apelo religioso, como Os Dez Mandamentos ou O Manto Sagrado, que faziam sucesso porque dialogavam com um público indelevelmente conectado à mensagem e ao modo de vida cristão que (gostem os modernetes ou não) tornaram possível o nascimento da civilização ocidental como a conhecemos, e a mantiveram de pé durante séculos. O próprio O Exorcista, um filme assustador e perturbador, termina com a inevitável conclusão de que a fé em Deus é o único antídoto verdadeiramente eficaz contra o mal que ensombrece a alma humana – e que tantas vezes se manifesta sem necessidade de possessão alguma. Hoje, a indústria do cinema nem considera a possibilidade de permitir o surgimento de coisas assim, e não é porque não fossem dar lucro: a maioria das pessoas ainda crê em Deus e nos valores humanos fundamentais, e ainda deseja consumir obras que reflitam sua visão de mundo; acontece que a referida indústria está fechada com um lado da guerra cultural, e, para esse lado, desmantelar o cristianismo é essencial, porque ele é o maior obstáculo à instauração de uma nova forma de totalitarismo, desta vez de alcance global. É por isso que, já há décadas, tudo o que seja cristão só é representado, na grande mídia, de duas maneiras: ridícula ou maléfica. Quem tentar fazer algo diferente jamais encontrará, na esfera dessa grande mídia, apoio ou investimentos para tirar sua ideia do papel. Para os realizadores que desejam produzir obras que deem voz aos valores cristãos e tradicionais, e para o público ávido por obras assim, resta o caminho das produções independentes, e Nefarious é um dos melhores exemplos disso que vi nos últimos anos.