terça-feira, março 26, 2024

Nefarious


O mal prega a tolerância, até que se torne dominante. A partir daí, ele procura silenciar o bem. (São John Henry Newman)

Nunca encontrei um diabo ateu. (Pe. Gabriele Amorth, exorcista-chefe do Vaticano)

Ele fez vocês à Sua imagem… mas nós os refizemos à nossa. (Nefarious)

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Se Nefarious tivesse sido filmado dez anos atrás, teria alcançado uma notoriedade discreta, sendo saudado por um segmento de aficionados do terror que muito apreciariam a chegada de um filme sobre possessão demoníaca que faz a proeza de fugir da maioria dos estereótipos desse subgênero – estereótipos esses que se consolidaram por meio das toneladas de imitações de O Exorcista (1974), baseado no livro de William Peter Blatty e dirigido por William Friedkin, que praticamente criou sozinho o referido subgênero e é hoje aclamado, com justiça, como um clássico e como um dos melhores filmes de terror já feitos, embora, infelizmente, a vastíssima maioria dos filmes que ele inspirou durante esses 50 anos sejam esquecíveis… com uma honrosa exceção aqui e outra ali. E, sim, Nefarious realizou essa proeza, oferecendo como resultado um filme de possessão (sem exorcismo) que investe na tensão psicológica e no debate de ideias, deixando de lado os sustos fáceis, os efeitos visuais mirabolantes e a "exibição vulgar de poder" (e aqui dou o devido crédito às palavras do demônio Pazuzu através dos lábios da garota Regan, no filme de Friedkin).

Hoje, embora ainda seja tudo isso, Nefarious se reveste também de um significado maior. Na atual conjuntura, em meio à guerra cultural que estamos vivendo, um filme com pontos de vista conservadores, com uma premissa baseada numa visão de mundo cristã, e potencial para fazer sucesso e suscitar o debate, deixa o pessoal "do lado de lá" de orelha em pé, como é fácil verificar ao procurarmos saber qual foi a reação dos "especialistas": mais de 70 por cento da crítica detonou o filme – para surpresa de ninguém, pois sabemos que, com raríssimas exceções, esse povo é fortemente woke, de modo que não poderiam dizer nada de bom sobre uma obra alinhada com as pautas da "extrema-direita", como esta; o julgamento deles é puramente ideológico, sem nada a ver com o mérito artístico. E, como também sabemos, para a beautiful people e para a mídia, que está quase toda nas mãos deles, se você defende que a vida humana é sagrada, que pátria e família são importantes, que um ser humano com pênis e testículos é um homem e um ser humano com vagina e ovários é uma mulher, que a liberdade de pensamento e de expressão é base para a existência de qualquer outro tipo de liberdade, então você é "extrema-direita".

(Sim, sabemos o quanto a galera woke ama a liberdade de expressão: eles amam tanto que têm ciúme, querem só para eles.)

Na primeira cena de Nefarious, temos um suicídio: o Dr. Alan Fischer, que, como viremos a saber, é um psiquiatra de grande renome, joga-se do terraço do edifício onde tem seu consultório. O doutor estava prestes a emitir o parecer final a respeito de um serial killer condenado à morte; se sua conclusão fosse a de que o homem era insano, a sentença não poderia ser aplicada. Ante a necessidade de que esse parecer seja dado, o caso é assumido pelo Dr. James Martin (Jordan Belfi), um ex-aluno de Fischer especialmente brilhante. O condenado, Edward Wayne Brady (Sean Patrick Flanery) está detido numa penitenciária em Oklahoma, um dos 27 estados americanos que têm previsão legal para a pena de morte, e é para lá que o Dr. Martin se dirige para uma entrevista com ele – na manhã do próprio dia marcado para a execução de Brady, que deverá ocorrer naquela noite, a menos que Martin o declare insano. Portanto, o ônus de decidir sobre a vida ou a morte do assassino pesa unicamente sobre os ombros do médico.

A maior parte do filme consiste nos diálogos entre James e Edward… ou entre James e aquele que todos supõem ser Edward. Logo no começo da conversa, o prisioneiro se identifica como sendo na verdade um demônio, que está apenas ocupando o corpo de Brady. Seu verdadeiro nome, segundo ele diz, está num dialeto fenício extinto há milênios, então ele o traduz para o inglês moderno e diz a James que pode chamá-lo de Nefarious. Temos a palavra nefário em português, mas é raramente usada a não ser por quem esteja procurando deliberadamente falar difícil, então "nefarious" pode ser traduzido por vil, perverso, maligno. Um sujeito como James, ateu e sem o mínimo interesse em qualquer assunto relacionado a religião, não saberia disso, é claro, mas o primeiro e um dos mais sérios problemas enfrentados quando se está lidando com um demônio é aquilatar o tamanho do desafio: a entidade pode ser desde um reles demônio soldado raso (e mesmo um desses não é um oponente que se deva subestimar) até um grão-duque infernal que comande 60 legiões. Nefarious, no entanto, mostra-se desusadamente franco e objetivo para um demônio, e facilita essa parte declarando-se "lorde e alto príncipe". Portanto, dispõe de poderes que lhe permitiram induzir o Dr. Fischer ao suicídio, porque queria ser entrevistado não por ele, mas por James… E, quando o jovem psiquiatra pergunta por quê, o demônio responde que quer que ele escreva sua história.

Não é preciso dizer que James (no começo) não leva a sério de maneira nenhuma o que Edward/Nefarious diz. Para ele, demônios não existem – simples assim. Sua tarefa, ou assim ele pensa, consiste apenas em descobrir se o condenado acredita realmente no que está falando (e, nesse caso, é um doido de pedra, que não pode ser executado, mas passará o resto da vida num manicômio judicial) ou se só está jogando com ele, tentando convencê-lo de que é louco para escapar da execução (e, se for assim, é seu dever endossar a condenação dele). Porém, o suposto demônio inesperadamente vira o jogo ao dizer a James que, antes que o dia termine, ele – James – terá cometido três assassinatos… E não posso dizer mais sobre esse ponto para não dar spoiler; posso apenas adiantar que o psiquiatra se arrependerá do ceticismo com que a princípio recebe essas palavras.

Nefarious é um filme cuja força não está na ação, mas nos diálogos – e, nesse ponto, a dupla de atores principais impressiona com o desempenho que entrega: Belfi está bem, mas Flanery dá um show, praticamente interpretando dois papéis, e fazendo-o com maestria. Edward Brady parece um animal acuado, gagueja muito, evita o contato visual, está trêmulo, encolhido, com toda a sua linguagem corporal demonstrando a vergonha dos crimes que cometeu e o sofrimento de estar sob o domínio de Nefarious – enquanto este último se mostra à vontade, como quem tem total controle de uma situação e sabe disso, e fala pelos cotovelos, sempre de modo lógico e articulado. Isso nos leva a um ponto muito importante: o único momento em todo o filme em que o demônio demonstra medo é quando, a pedido de James, o capelão da penitenciária, Pe. Louis, entra na sala onde está ocorrendo a conversa – mas não demora nada para que ele perceba que o medo é desnecessário. Quando o padre e o psiquiatra se apresentam, ao apertarem as mãos, o capelão diz "Padre Louis… Mas pode me chamar de Louis, ou de Lou", ao que James replica: "Doutor James Martin". O título de padre deveria ser, de longe, muito mais importante e honorável que o de doutor, mas, enquanto James faz questão de ser tratado por seu título, Louis pouco parece ligar para o dele, o que já diz uma coisa ou duas sobre o tipo de padre modernex que ele é – um tipo bem comum, infelizmente. Na vida real, um padre desses provavelmente estaria em trajes civis; no filme ele veste clergyman para que o espectador possa identificá-lo facilmente como padre, mas usa também uma estola toda colorida, que simboliza seus pendores progressistas. Ao perceber que está diante de um padre, Edward/Nefarious pula da cadeira, tentando afastar-se dele o quanto lhe permite a corrente que prende suas algemas à mesa, e berra: "O que quer comigo, filho de Deus?" Essa é também a única vez que ele pronuncia o nome de Deus, o que durante todo o resto do tempo evita cuidadosamente fazer, referindo-se a Ele apenas como "o Inimigo"; é só o pânico do momento que o leva a esquecer-se de fazer isso. (Trataremos da importância dos nomes daqui a pouco.) Porém, como dito acima, bastam poucos minutos de conversa com o sacerdote para o lorde-demônio se tranquilizar:

Pe. Louis: Não estou aqui para lhe fazer mal, Edward. Estou aqui para ajudá-lo. (…) Pessoalmente, nunca encontrei um demônio, nunca tomei parte num exorcismo, nem espero fazê-lo. Muitas das coisas que nos incomodam são apenas nossos próprios medos e pensamentos desordenados.

Nefarious (depois de uma longa pausa): Então… você não considera a possessão demoníaca uma possibilidade?

Pe. Louis: Nossa compreensão evoluiu além disso.

Nefarious (depois de uma pausa ligeiramente mais curta): Bem, eu… estou contente de que você diga isso. Eu me sinto muito melhor. E eu estava errado sobre você. Deveria tê-lo convidado a me visitar muito antes, mas estou contente de que tenha vindo. Estou contente por estarmos todos nos dando bem.

Pe. Louis: Você gostaria que eu ficasse?

Nefarious (prontamente): Não. Já terminamos.

Por causa de sua unção apostólica, tendo validamente recebido o sacramento da ordem, o Pe. Louis está investido de uma parcela do poder de Cristo, incluindo a capacidade de expulsar demônios – e isso Nefarious teme. Mas, quando percebe que Louis não tem fé nesse poder e não vai usá-lo, até porque acha que demônios não passam de "metáforas", ele relaxa. Sua interação com o padre passa a ser amigável, e ele chega a tentar apertar-lhe a mão, o que Louis não permite – talvez por via das dúvidas. O recado que o roteiro quer passar com isso tudo fica claro: há certas alas dentro da Igreja que estão fazendo pouco ou nada para atrapalhar os planos de Satanás e seus asseclas. Para estes últimos, a infiltração de uma mentalidade progressista no meio cristão é ótima.

Nefarious é um filme difícil de comentar sem dar spoilers, porque 80 por cento de seu interesse está no campo da discussão de ideias, de modo que a tentação de descambar para longas dissertações que entregariam tudo é grande. Vou tentar contentar-me em sublinhar dois ou três pontos essenciais, que servirão para dar uma noção básica a algum leitor que porventura encontre este post sem ter ainda visto o filme. Disse acima que Nefarious se sente no pleno controle da situação, e isso literalmente, pois foi ele quem tramou para que sua conversa com James acontecesse exatamente nas circunstâncias em que de fato acontece. Isso fica evidente neste diálogo:

James: Edward, você entende por que eu estou aqui? Entende que eu tenho o poder de salvar sua vida ou de condená-lo?

Nefarious: O que eu entendo, James, é que você não teria nenhum poder sobre mim se eu não lhe tivesse dado esse poder lá de baixo.

James, ignorante de religião, jamais perceberia, mas o que temos aí é a paráfrase de um trecho de outro diálogo, este entre Jesus e o governador romano Pilatos (Jo 19, 10-11). Nada mais adequado, já que, segundo a teologia, Satanás esforça-se por imitar Deus, embora sempre de maneira distorcida ou invertida, o que nos remete às descrições de missas negras, com suas cruzes de cabeça para baixo e orações recitadas de trás para frente… Foi Nefarious quem propositalmente se pôs naquela situação, e o fez com um objetivo bem determinado.

O demônio vai mais longe, falando a James sobre algumas das grandes chagas da sociedade moderna, a maioria delas engendradas por seu mestre Lúcifer, com sua ajuda e a de outros demônios – mas também afirma que há algumas nas quais eles "lá de baixo" nem tinham pensado: essas os homens inventaram sozinhos, para grande satisfação das hostes infernais. O pior (ou, dependendo do ponto de vista, melhor) é que James, do alto da sua arrogância woke, acha que tudo lá fora está indo às mil maravilhas.

Nefarious: Olhe, James não se trata apenas de você ou do Edward. Trata-se de todos: toda a raça humana. Todos nós (demônios) contra todos vocês.

James: Se é assim, o seu lado não está se saindo muito bem. (…) Nunca fomos tão livres. Alcançamos altos índices de alfabetização. Estamos acabando com o racismo, com a intolerância, com a desigualdade de gênero. As pessoas podem amar quem elas quiserem, ser o que quiserem, fazer o que quiserem. A diversidade não é mais um sonho. O discurso de ódio não é mais tolerado. Chegamos a uma posição moralmente superior.

Nefarious: James… Acho que eu te amo.

Para Nefarious e sua "patota", é ótimo que James e milhões de outros abestados pensem dessa forma. O que o demônio enxerga e o psiquiatra não, é que o que o mundo moderno chama de "liberdade" consiste em não assumir responsabilidade por nada; que, se hoje em dia quase todo mundo é alfabetizado, isso não acontece sem que uma tonelada de ideologias nocivas sejam ensinadas junto com as letras a crianças que ainda não têm como se defender; que agora dizer a verdade, ou chamar as coisas pelo nome que elas têm, é considerado "discurso de ódio", e assim por diante. As sociedades modernas estão caminhando a passos largos para o maior e mais enlameado buraco em que alguma sociedade já se meteu em toda a História – e estão indo para esse buraco na maior das alegrias, crentes de que estão fazendo grandes progressos. Satanás deve estar às gargalhadas. Ele e seus servos sempre tiveram a mentira como uma de suas principais armas, mas não significa que não possam dizer a verdade quando lhes convém, e é o que Nefarious faz quando cruamente mostra a James que o que ele chama pelo antisséptico nome de "interrupção eletiva" (ou seja, aborto) não é diferente do que os fenícios faziam na Antiguidade como ato de adoração a ele e a outros demônios (que eles tinham na conta de deuses), queimando bebês vivos diante de imagens antropozoomórficas de bronze.

Satanás e seus demônios também parecem ter familiaridade com as lições de Sun Tzu sobre a importância de conhecer o inimigo. Quando James (afetadamente, como é próprio dele) se mostra surpreso ao ouvir conversa teológica vir da boca de um demônio, Nefarious lhe dá a real: "Eu conheço mais teologia que qualquer ser humano que já tenha vivido." E isso faz todo o sentido. Há gente que diz "eu acredito em Deus" como se isso, por si só, significasse grande coisa; bem, todos os demônios também acreditam. Outras pessoas, equivocadamente, veem uma afinidade entre satanismo e ateísmo – quando, na verdade, se admitirmos que Deus não existe, então, por óbvio, Satanás também não. Satanismo significa revolta contra Deus, e não faz nenhum sentido revoltar-se contra algo em cuja existência não se acredita. Isso me leva a outro ponto: o inimigo, ou melhor, "Inimigo", com letra maiúscula, é como Nefarious se refere a Deus; já Jesus, ele chama de "o Carpinteiro". Evita nomeá-los porque, como ele mesmo diz, nomes têm poder. Na certa não foi por outro motivo que se escusou de dizer a James seu verdadeiro nome, substituindo-o por uma versão adaptada. (Não que um pateta como James fosse saber o que fazer com tal informação, mas para que correr riscos desnecessários?) Padres exorcistas sempre dizem que, uma vez que se consiga fazer com que um demônio diga seu nome, um grande passo foi dado para vencê-lo – mas que eles se negam com todas as forças a fazê-lo, porque sabem que… bem, que os nomes têm poder.

Há outros pontos dos diálogos entre o demônio e o psiquiatra que eu gostaria muito de abordar, mas aí já estaria entregando muita coisa; acho que o que detalhei até aqui é suficiente para dar uma ideia do que espera por quem decidir ver o filme – e vale muito a pena vê-lo. Não apenas os pontos discutidos, mas também o final, que reserva diversas surpresas, ficarão na mente do espectador durante um bom tempo. Nefarious é um bom exemplo de como é possível fazer filmes notáveis com um baixo orçamento – segundo informações da internet, cinco milhões de dólares, o que, para os padrões da indústria cinematográfica, é o troco da padaria. Também não é um filme que fosse receber atenção da grande mídia, ao menos nenhuma atenção positiva, e, se chegou a ser exibido nos cinemas nacionais, eu não fiquei sabendo. Foi assunto forte no YouTube há alguns meses, recebendo comentários positivos de produtores de conteúdo cujas opiniões eu prezo – e negativos de outros cujo desagrado, para mim, é sinal de coisa boa. Na época, consegui ver o filme na internet, depois de muita procura, e não me senti muito bem de não estar contribuindo com minhas moedas para que ele fosse bem-sucedido e pudesse ajudar a encorajar outras iniciativas semelhantes – mas que opção eu tinha? Era assistir assim ou então não assistir. Foi por isso que agora, que ele finalmente ficou disponível no YouTube Premium, fiz questão de não meramente alugá-lo, mas comprá-lo, o que, acredito, quita minha dívida, fora o fato de que é um desses filmes que vale a pena ter, e rever de tempos em tempos. Por sinal, acabo de revê-lo, e precisava disso para me sentir razoavelmente seguro para escrever sobre ele – um mau hábito meu que torna minhas resenhas sobre filmes basicamente inúteis, já que só consigo postá-las meses depois do lançamento. Paciência! Eu só escrevo sobre um filme quando acho que ele tem relevância duradoura (ou quando acho que perdeu a oportunidade de tê-la…), e, analisando por esse lado, talvez as resenhas tenham sua razão de existir, afinal de contas.

A direção de Nefarious é a quatro mãos, assinada por Chuck Konzelman e Cary Solomon, também produtores; este último também é responsável por Deus Não Está Morto (2014), um filme muito simples, quase amadorístico, mas que também apresenta um ponto de vista claramente cristão e tem o debate de ideias como eixo de seu roteiro, o que o torna interessante, mesmo com as deficiências que tem. A comparação deixa evidente que Solomon progrediu muito como cineasta: considero Nefarious muito bem feito, embora pessoas que entendem mais de cinema que eu (e que gostaram do filme) tenham apontado certas falhas que, para mim, passaram por alto. Não é demais elogiar de novo o soberbo desempenho de Sean Patrick Flanery, que, vejam só, eu descobri que já conhecia há muito tempo, embora não fosse reconhecer nunca: lá no início dos anos 90, ele protagonizava a série de TV O Jovem Indiana Jones, que, como o título já entrega, conta as aventuras da juventude do célebre arqueólogo imortalizado no cinema por Harrison Ford. Eu adorava essa série, mas de lá para cá, que me lembre, não tinha tornado a ver Flanery.

Em nossos dias, um filme como Nefarious está nadando contra a correnteza da mídia mainstream. Foi-se o tempo em que Hollywood apostava em produções de forte apelo religioso, como Os Dez Mandamentos ou O Manto Sagrado, que faziam sucesso porque dialogavam com um público indelevelmente conectado à mensagem e ao modo de vida cristão que (gostem os modernetes ou não) tornaram possível o nascimento da civilização ocidental como a conhecemos, e a mantiveram de pé durante séculos. O próprio O Exorcista, um filme assustador e perturbador, termina com a inevitável conclusão de que a fé em Deus é o único antídoto verdadeiramente eficaz contra o mal que ensombrece a alma humana – e que tantas vezes se manifesta sem necessidade de possessão alguma. Hoje, a indústria do cinema nem considera a possibilidade de permitir o surgimento de coisas assim, e não é porque não fossem dar lucro: a maioria das pessoas ainda crê em Deus e nos valores humanos fundamentais, e ainda deseja consumir obras que reflitam sua visão de mundo; acontece que a referida indústria está fechada com um lado da guerra cultural, e, para esse lado, desmantelar o cristianismo é essencial, porque ele é o maior obstáculo à instauração de uma nova forma de totalitarismo, desta vez de alcance global. É por isso que, já há décadas, tudo o que seja cristão só é representado, na grande mídia, de duas maneiras: ridícula ou maléfica. Quem tentar fazer algo diferente jamais encontrará, na esfera dessa grande mídia, apoio ou investimentos para tirar sua ideia do papel. Para os realizadores que desejam produzir obras que deem voz aos valores cristãos e tradicionais, e para o público ávido por obras assim, resta o caminho das produções independentes, e Nefarious é um dos melhores exemplos disso que vi nos últimos anos.

domingo, janeiro 28, 2024

Internato para Meninas Cruéis

Este foi outro daqueles livros que, mesmo não fazendo parte (bem, aparentemente não fazendo parte) de nenhum dos meus gêneros favoritos, me prenderam a atenção por um motivo ou outro, tanto que resolvi dar-lhes uma chance. E, como por vezes acontece nesses casos, tive boas surpresas: o que parecia à primeira vista ser apenas um relato dramático e um tanto revoltante sobre a adolescência feminina mostrou possuir elementos de uma boa história de suspense, gênero que, para mim (estou sendo totalmente subjetivo, OK?), está ali a meio caminho entre a ficção policial e o terror (que não precisa necessariamente envolver o sobrenatural, embora eu goste mais quando envolve). Tudo bem que a "surpresa" é parcialmente anulada pela sinopse da contracapa, que, afinal, precisava dar ao possível leitor uma noção global do que o livro realmente é, sob pena de que esse leitor largasse a obra julgando ser apenas uma história sobre os sofrimentos de uma garota desajustada no ensino médio. Pois, sim, Internato para Meninas Cruéis é isso – mas não é isso.

O ano é 1991, e Sarah Taylor, de 15 anos, está começando o segundo ano do ensino médio, só que, desta vez, não numa escola pública como aquelas em que sempre estudou até então. Sem que Sarah soubesse, sua mãe pegou um texto que ela escreveu sem pretender que jamais fosse lido por ninguém, e o mandou, junto com uma carta de pedido de bolsa de estudos, para o Internato St. Ambrose para Meninas, uma prestigiosa instituição particular de ensino na Nova Inglaterra, a algumas horas de viagem da cidadezinha melancólica onde as duas vivem. E parece que os dotes de escritora da garota impressionaram as pessoas certas, pois a bolsa foi concedida. Para Sarah, uma garota solitária e problemática apesar da inteligência acima da média, a mudança brusca para um mundo diferente não é uma perspectiva empolgante, embora ficar onde estava também não seja. Em sua cidade, tudo que ela pode esperar depois que terminar a escola é algum emprego maçante e mal remunerado; ela não tem amigos, e sua mãe, Theresa, é uma pessoa bastante vulgar e superficial, com quem Sarah não consegue sentir maior afinidade – mas com uma vontade de elevar o padrão de vida da família, o que a levou a fazer o que fez. A "família", por sinal, são só as duas: Sarah é filha única e Theresa é mãe solteira, com alta rotatividade de namorados. Sobre seu pai, tudo que Sarah sabe é que era um aspirante a roqueiro, o que atiçou os sonhos de vida glamourosa na então jovem Theresa… mas, é claro, a banda do rapaz nunca decolou e a relação dos dois acabou antes que a filha nascesse, ou talvez logo depois – não faz diferença. A vida reles não ajudou Sarah, que, para piorar, sofre de sérios problemas psiquiátricos: bipolaridade, provavelmente combinada com algo mais grave, mas o livro não entra em detalhes. Sua mente tem o péssimo hábito de levá-la a passeios alucinatórios por realidades paralelas sem sua permissão, uma condição que não tem cura, podendo apenas ser controlada mediante medicação. Aos 15 anos, ela já tentou o suicídio por duas vezes.

(Talvez seja oportuno registrar que em 1991 não existia essa modinha de ter problemas psiquiátricos, como hoje. Em 2024, entre os "jovens dinâmicos" da geração Z, se você não puser nos seus perfis nas redes sociais que tem pelo menos depressão ou algum grau de autismo e toma medicamentos controlados, você não é "bacana". [Isso é o mínimo aceitável; se puder colocar que tem algo mais grave ou mais exótico, tipo uma síndrome de Tourette, tanto melhor.] Já naquele início dos anos 90, quem realmente tinha esses problemas fazia de tudo para mantê-los ocultos, para não ser visto pelos outros como maluco ou, na melhor das hipóteses, estranho.)

Que Sarah fosse ter problemas de adaptação, seria de se esperar: ela é uma das poucas estudantes pobres naquele colégio frequentado pelas filhas de algumas das famílias mais abastadas do estado de Massachusetts. Seu vestuário simples (todo preto: ela parece ser meio gótica), a falta de traquejo social e de familiaridade com o modo de vida da classe alta a mantêm à margem, sem fazer qualquer amizade a não ser com sua colega de quarto, Ellen Strotsberry, mais conhecida por "Strots", uma atleta por natureza (mas também uma fumante inveterada já aos 15 anos; certas coisas que hoje nos parecem óbvias não o eram tanto assim naquela época) e evidentemente masculinizada, embora Sarah procure não julgar. Só que os "problemas de adaptação" assumem uma dimensão mais terrível por intervenção de uma certa Margareth "Greta" Stanhope, que ocupa o quarto bem do outro lado do corredor do dormitório, exatamente em frente ao de Sarah e Strots. Greta, para resumir, é aquilo que hoje chamamos de "patricinha", em todos os sentidos, inclusive os piores.

(É verdade que "patricinha" é uma gíria tipicamente brasileira, e que parece ter mudado sutilmente de significado ao longo do tempo. Por coincidência, ela apareceu por volta da mesma época em que esta história é ambientada; eu próprio era adolescente então, e lembro bem de quando começamos a ouvi-la ser usada. "Patricinha", logo que surgiu, era apenas o equivalente feminino de "mauricinho", termo que apareceu primeiro e designava um garoto ou rapaz que andava sempre com o visual da moda e vestia as marcas mais desejadas; tinha um leve tom pejorativo, mas era um pejorativo bem-humorado, e o mesmo acontecia com "patricinha", que, como dito, era a contraparte feminina, a garota que andava sempre produzida e muito bem vestida – e, no começo, a palavra só queria dizer isso mesmo. Por um desses fenômenos da língua que ninguém explica, "mauricinho" teve a sua época e depois caiu em desuso, mas o mesmo não aconteceu com "patricinha", que, além de continuar bem vivo no vocabulário dos jovens, foi ganhando com o tempo um sentido um pouco diferente: ainda queria dizer "garota elegante, normalmente rica", mas também adquiriu uma conotação ruim, como se na verdade significasse "garota que, porque é rica e elegante, se acha melhor que todo mundo, é arrogante e até má". Suponho que a novela teen Malhação, com seu uso repetido sempre dos mesmos estereótipos, tenha algo a ver com essa mudança de acepção.)

Greta, portanto, é a antítese de Sarah: rica, bonita, elegante e fútil. Sua implicância com a novata começa praticamente sem qualquer motivo concreto (como costumam começar as implicâncias, principalmente entre crianças ou adolescentes), e ela logo passa a fazer pequenas maldades – ou melhor, maldades que começam pequenas, mas vão escalando de forma consistente ao longo dos meses seguintes. Como toda vilã paty (pensando bem, como todo vilão adolescente, tanto faz o sexo – vide Draco Malfoy em Harry Potter), ela tem duas "capangas" fiéis, Francesca e Stacia, que seguem cegamente sua "líder" e mostram um potencial para o mal quase tão grande quanto o dela.


Além de Strots, há mais uma pessoa no St. Ambrose que demonstra simpatia para com Sarah. Pelo que pude entender, é costume nos internatos norte-americanos que cada andar dos dormitórios destinados às alunas tenha, além dos quartos delas, um pequeno apartamento que é ocupado por um professor ou professora que fica responsável por "controlar as coisas" por ali; é o "conselheiro residencial", ou apenas "CR". E o CR do andar onde moram Sarah, Strots, Greta e algumas dezenas de outras meninas é o jovem professor Nick Hollis. Nick tem uns 25 anos, ensina inglês e literatura, está se preparando para o doutorado, e é uma espécie de versão americana e moderna de Apolo (agora que escrevi isso, notei que ele de fato lembra muito a descrição de Apolo segundo Rick Riordan): alto, bonito, atlético e "descolado", enfim, o "sonho de consumo" de qualquer garota adolescente, e ainda mais desejável por ser inatingível, já que, além de ele ser casado, é um professor, de modo que qualquer envolvimento que viesse a ter com uma aluna poderia não só custar-lhe o emprego como desembocar num processo judicial. Nick ajuda Sarah quando ela sofre uma de suas crises por ter negligenciado sua medicação, e faz isso com interesse genuíno, não como alguém que está "só fazendo seu trabalho", o que conquista a estima e a confiança da garota, independentemente do "tesão" que ela já tinha nele. Com isso eles se conhecem num nível mais pessoal, Nick passa a admirar a inteligência de Sarah e a gostar da companhia dela, e os dois criam o hábito de se verem regularmente para conversar sobre livros.

Disse acima que Greta começa a implicar com Sarah sem motivo aparente; a antipatia da primeira para com a segunda tem início logo que as duas se conhecem, e vem, no início, simplesmente do fato de que, para Greta, Sarah é uma "ninguém" e está fora de seu lugar, "poluindo" um ambiente que só deveria pertencer à elite. Porém, se fosse só essa antipatia, talvez ela se empenhasse menos em infernizar a colega. A verdade é que algo mais acontece: Sarah começa a suspeitar, por alguns indícios, que Nick e Greta têm um caso – e Greta, a suspeitar que ela sabe. É tudo muito vago e inconclusivo, mas, para Greta, é o suficiente. Suas maldades, que começam discretas, só fazem subir de nível até a situação ficar insustentável.

A autora Jessica Ward parece estar escrevendo sobre coisas que conhece de perto, e, pelo visto, o bullying é algo tão presente em escolas exclusivamente femininas quanto em qualquer escola, embora, claro, seja um tipo diferente de bullying. Meninos são brutos, mas ao menos são francos: o bullying que praticam é claro e direto. Se for para humilhar um colega, você o humilha olhando na cara, e, se for para bater, você bate. Simples assim. Já o bullying feminino é sutil, dissimulado, tortuoso: uma frase dita por uma mulher a outra e que, se ouvida ao acaso por um homem, parecerá um elogio, pode ser na verdade uma farpa cruel, que não deixa de atingir o alvo. É assim entre as mais jovens também. A narração é em primeira pessoa, e há um nítido esforço por parte de Ward para "incorporar" a personagem, procurando escrever tal como Sarah escreveria – ou seja, como uma adolescente de inteligência aguçada e com um talento inato para a literatura, mas, ao mesmo tempo, com uma percepção um tanto curta da realidade, que decorre tanto da pouca idade e experiência quanto de ser uma desajustada desde que consegue se lembrar, e portanto não ter tido acesso a algumas vivências que uma garota "normal" teria conhecido. Sarah chega, por vezes, a ser um tanto cínica, mas embora eu, pessoalmente, não tenha praticamente nenhuma paciência para com o cinismo, fui capaz de dar-lhe um desconto, considerando as coisas pelas quais passou. Trata-se de uma garota com problemas reais – não de alguém que inventa problemas para se sentir especial.

No que se refere à estrutura da história, o componente de suspense vai se anunciando gradualmente, para tomar o primeiro plano durante a última quarta parte do livro, quando as picuinhas adolescentes dão lugar a fatos muito sérios e trágicos, que não detalharei para não dar spoiler. Arrisco a hipótese de que Ward (que, em outras obras, também assina como Jessica Bird ou como J. R. Ward) optou por ambientar sua história no início dos anos 90 para excluir o fator internet, pois várias situações importantes ou interessantes ao longo do livro não soariam plausíveis num mundo onde as adolescentes vivessem online a maior parte do tempo e contassem com possibilidades de comunicação quase ilimitadas. O resultado geral é positivo, com uma combinação de drama, crítica social e suspense que se mostra perfeitamente capaz de proporcionar várias horas de leitura instigante.

quinta-feira, março 23, 2023

O Gênio do Crime

Devo meu primeiro contato com a obra de João Carlos Marinho (1935-2019) ao meu colega e amigo Fábio, que estudou comigo da quinta à oitava série, lá na segunda metade da década de 80, e isso aconteceu de um jeito muito legal. Sempre fui o "leitor da turma", talvez o único entre 30 e poucas crianças que realmente lia por prazer. Como o Fábio e eu já tínhamos essa camaradagem e conversávamos sobre tudo, eu naturalmente comentava com ele sobre as histórias que estava lendo ou havia lido, falava sobre como ler é legal, e, com o tempo, isso despertou sua curiosidade e fez com que ele também começasse a ler. Depois que terminamos o ensino fundamental eu o vi poucas vezes, e agora faz muitos anos que não tenho notícias dele; espero que tenha mantido o hábito, e, se assim for, posso somar isso ao pequeno rol das coisas boas que fiz na vida. Porém, na época tive uma recompensa mais imediata e mais concreta: uma vez mordido pelo bicho da leitura, o Fábio também começou a fuçar a biblioteca da escola, e eventualmente me dava dicas de coisas interessantes com as quais eu ainda não havia topado. Foi dessa forma que vim a conhecer pelo menos dois nomes-chave da recente literatura infanto-juvenil brasileira: Pedro Bandeira, com seu excelente A Droga da Obediência, que se tornaria o piloto da aclamada série Os Karas, e o próprio João Carlos (ou J. C.) Marinho, com O Gênio do Crime.

E O Gênio do Crime começa falando sobre uma coisa que marcou e ainda marca muitas infâncias: álbuns de figurinhas. É claro que eles existem até hoje, mas, embora possa ser só impressão minha, me parece que antigamente esse filão era bem mais explorado, talvez porque a molecada de décadas passadas não tivesse à disposição tantas opções de diversão quanto as crianças de hoje. Havia até editoras cuja principal área de atuação era a criação de álbuns. Eu mesmo nunca fui um dos maiores adeptos desse hobby, que me lembre tive dois álbuns durante toda a infância, um de bichos e outro dos personagens da Disney, mas lembro que todo ano saíam vários, a maioria com repercussão modesta, mas havia sempre um ou dois que viravam febre entre a garotada. Alguns álbuns eram destinados às crianças em geral, enquanto outros visavam claramente os meninos ou as meninas (hoje em dia não faltaria um imbecil lacrador para "problematizar" isso). Os álbuns de futebol, por exemplo, eram território dos meninos, e um deles (fictício, é claro) é o mote para esta aventura.

É preciso ter em mente que o livro foi publicado originalmente em 1969, antes da promulgação da lei 5.768, de 1971, que proibiu a realização de concursos com distribuição de prêmios vinculados a coleções de figurinhas. De fato, nos álbuns que eu tive, vinha impressa na contracapa a informação de que todas as figurinhas (que o texto chamava de "cromos") eram fabricadas e distribuídas em quantidades iguais, não havendo, portanto, "figurinhas difíceis", e também a de que o preenchimento do álbum não dava direito a quaisquer prêmios. No livro, um álbum de figurinhas de futebol se tornou mania entre os garotos, e, além da curtição de colecionar, há também um concurso que oferece a quem completar a coleção um conjunto de camisas do time favorito e uma bola oficial – coisas que os meninos da época, e desconfio que também muitos dos de hoje, matariam para ter. O garoto Edmundo, como todo mundo (hehehe) está fazendo de tudo para completar seu álbum, e já faz muito tempo que só lhe falta uma figurinha, a do jogador Rivelino, um dos craques mais admirados daquela época que também foi a de Pelé, Garrincha e outras lendas. É quando seu amigo Pituca vem com a informação de que há um cambista no centro de São Paulo que vende as figurinhas difíceis, naturalmente que por um valor muito superior ao de "mercado". Dessa forma Edmundo completa o álbum e, em companhia de Pituca, vai até a fábrica de figurinhas para reclamar seu prêmio – e encontra lá um ajuntamento de garotos que vieram com o mesmo objetivo, só que os prêmios não estão sendo entregues, o que gera tanta revolta que acaba num quebra-quebra. A fábrica está para ser incendiada pelos moleques enfurecidos, e a coisa só não chega a vias de fato graças à intervenção de Edmundo, que convence os outros a exigir os prêmios pelas vias legais.

Dias depois, Edmundo recebe em casa a visita do dono da fábrica, seu Tomé, que lhe conta seu drama: há uma quadrilha de falsários fabricando réplicas perfeitas das figurinhas difíceis e vendendo-as por altos preços para a garotada. Com isso, a quantidade de álbuns cheios está atingindo patamares absurdos, e ele, na obrigação de dar os prêmios prometidos, está rapidamente se aproximando da falência. Seu Tomé viu, da janela de seu escritório, o início de tumulto na frente de sua fábrica, e viu também como Edmundo convenceu os outros a desistir do vandalismo e fazer as coisas dentro da lei. Impressionado com a coragem e a presença de espírito do garoto, o industrial vem pedir a ele que tente descobrir a fábrica clandestina, já que, como diz, figurinhas são coisa que pertence ao mundo das crianças, e um adulto investigando despertaria suspeitas. É claro que os pais de Edmundo vetam a ideia na hora, mas o garoto não resiste à tentação de uma aventura detetivesca batendo em sua porta, e decide ajudar mesmo sem o consentimento deles. Ao seu lado estão Pituca e o Bolacha, também conhecido como "o gordo". E o gordo… bem, é o gordo.


Quem começa a ler O Gênio do Crime tem a impressão de que Edmundo vai ser o herói, e é fato que, nas partes da aventura que envolvem ação, que exigem coragem e agilidade, ele é o membro da turma que se sobressai; o Bolacha, por outro lado, tem outra coisa: miolos. Pituca ajuda, mas é basicamente um papagaio-de-pirata na história, já que não é tão arrojado quanto Edmundo e muito menos tão esperto quanto o gordo.

Pois não é por acaso que a série de livros que cresceu a partir de O Gênio do Crime, e da qual Marinho deixou 13 volumes, não se chama As Aventuras da Turma do Edmundo, e sim As Aventuras da Turma do Gordo. Esse personagem sem nome, conhecido apenas pelos apelidos Bolacha, Bolachão ou "o gordo" (sem maiúscula) é o que realmente movimenta as tramas. Vendo com os olhos de hoje, é mais ou menos claro que, se ele fosse uma pessoa real, diríamos que sofre de um grau leve de autismo: distraído, volta e meia está com a cabeça longe, como num trecho impagável em que todos estão discutindo o caso em investigação, exceto o gordo, que está com o olhar parado e não abre a boca. Quando interpelado, nem ele parece saber direito no que estava pensando: "acho que era numa vaca que tem na fazenda do meu pai". Quando resolve raciocinar, porém, ele é brilhante, tanto que demonstra ser o único capaz de quebrar o sofisticado esquema de despistamento que o líder dos falsários (o tal gênio do crime do título) arquitetou para impedir a localização de sua fábrica clandestina a partir dos cambistas que vendem as figurinhas. Bolacha consegue deixar para trás até mesmo Mr. John Smith Peter Tony, renomado detetive escocês que também está envolvido na investigação.

O Gênio do Crime é o tipo de livro que, depois de ter lido na infância ou adolescência, você tem vontade de apresentar aos seus filhos (eu certamente teria essa vontade, caso tivesse filhos). Até a pontuação desleixada contribui para o estilo coloquial, e o resultado é tão bom que eu, sempre bastante chato quando se trata de correção de texto em livros, consegui fechar um olho para essa característica, de tão agradável que flui a leitura. Uma aventura para garotos, protagonizada por garotos, cheia de boas ideias e narrada com uma baita eficiência… Exigir ainda mais que isso deste pequeno livro seria muito injusto, mas o fato é que sim, ele oferece mais: um vislumbre de como era a infância em São Paulo na década de 60 – muito diferente da de hoje, e isso é fato em São Paulo como no resto do mundo. Destaque para o jogo conhecido como "abafa" ou "bafo", que consistia em colocar figurinhas no chão, com a face para baixo, e tentar virá-las com tapas; como as próprias figurinhas eram a aposta envolvida, esse era outro meio do qual os garotos dispunham para tentar conseguir as que faltavam em seus álbuns. Cheguei a ver isso quando eu ainda era bem pequeno, mas pouco depois, lá por meados da da década de 80, as figurinhas passaram a ser autocolantes, o que foi prático para os colecionadores, mas também condenou o jogo de abafa ao gradual esquecimento, já que as novas figurinhas eram mais rígidas e pesadas, difíceis de virar. E a garotada de hoje, provavelmente, nem sabe que houve um tempo em que as figurinhas não eram autocolantes, tal como pensam que a TV já foi inventada com o controle remoto. O tempo passa mesmo, não tem jeito.


Para concluir, como de costume, um pouco de informação prática. O exemplar que tenho (comprado em sebo, como boa parte da minha biblioteca) é da edição do Círculo do Livro, que inclui também O Caneco de Prata, uma "aventura surrealista" na definição do autor, que trata de um campeonato de futebol entre escolas, narrado de forma… bem… surrealista, enquanto paralelamente também explora a paixão do gordo por Berenice, uma menina que ele conheceu em O Gênio do Crime. Curiosamente, como vocês talvez consigam distinguir na imagem do início deste post, e por razões que desconheço, essa edição do Círculo do Livro grafou o nome do autor como João Carlos Marinho Silva, embora ele sempre tenha assinado suas obras como apenas João Carlos Marinho – e fica ainda mais difícil de entender se levarmos em consideração que seu nome completo era João Carlos Marinho Homem de Mello, sem "Silva" nenhum. Todas as Aventuras da Turma do Gordo estão disponíveis em volumes individuais pela editora Global, que também oferece um box contendo a "saga" completa. Se vocês estiverem procurando por bons livros para dar de presente às crianças ou pré-adolescentes das suas famílias, ou simplesmente quiserem revisitar suas próprias infâncias por algumas horas, essa é uma ótima pedida.

quinta-feira, novembro 17, 2022

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro

Guillermo del Toro já foi assunto aqui no blog por várias vezes, por conta de Hellboy, da Trilogia da Escuridão e da série de TV derivada, The Strain, de seu envolvimento com a trilogia cinematográfica O Hobbit… Que eu me lembre, é isso. Existem vários outros de seus trabalhos que admiro pacas, filmes como Cronos (1993), A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), entre outros, que também poderiam virar assunto, e talvez ainda virem. E o cara sempre volta: desta vez, com a série antológica O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro, cuja primeira temporada, com oito episódios, ficou disponível na Netflix agora em outubro.

Os primeiros comentários que ouvi e li, antes de ter contato direto com o material, foram no sentido de que se tratava de uma série bastante macabra e pesada, feita sem aliviar a mão, fosse nos conceitos perturbadores ou nas cenas aflitivas – e esse é um lado que Del Toro, como muitos autores ou realizadores do gênero fantasia, sabidamente possui: basta lembrar de O Labirinto do Fauno, que tem cenas delicadas de magia e encantamento, mas tem também um punhado de criaturas horripilantes e uma cena de um homem sendo assassinado a sangue frio a golpes de garrafa. É fato que, aqui, os episódios são dirigidos por outras pessoas, mas, na qualidade de produtor executivo e criador do conceito da série, coube a Del Toro a escolha dos diretores e, presumivelmente, a supervisão geral, de modo que podemos dizer que seu estilo pessoal perpassa tudo. Ele aparece no início de cada episódio, fazendo um breve comentário enigmático sobre o que veremos a seguir, e apresentando o diretor ou diretora. Por sinal, a julgar pelo rápido levantamento que fiz na internet, são, em sua maioria (mas nem todos), diretores pouco conhecidos, com relativamente pouca coisa em seus currículos, pelo menos enquanto diretores – a australiana Jennifer Kent, por exemplo, que dirigiu O Murmúrio, último episódio desta primeira temporada, teve uma extensa carreira como atriz, mas assina a direção de apenas três filmes até o momento (é verdade que um deles é o muito comentado e elogiado O Babadook, que ainda preciso ver). O importante é notar que Del Toro parece estar apostando em diretores que ainda estão em ascensão, sejam os que ainda não acumularam um grande currículo por serem relativamente jovens, ou os que sempre trabalharam em outras funções no cinema ou TV e estão agora se acostumando com a cadeira da direção.

Assisti a essa primeira temporada num espaço de alguns dias e, por tratar-se de uma série antológica, quer dizer, com cada episódio contando uma história fechada e independente, aplica-se, também aqui, o que sempre digo a respeito de livros de contos: existem altos e baixos e isso é natural – mais que natural, é inevitável. A impressão geral foi muito favorável, e torço para que venham mais temporadas num futuro relativamente próximo. Também à semelhança do que tenho feito com livros de contos, não pretendo comentar cada episódio em detalhes; falarei daqueles que, como espectador, eu tiver achado notáveis e/ou que apresentem alguma… hã… curiosidade.

Muitos fãs de Guillermo del Toro devem ter pensado o mesmo que eu pensei sobre esta série: que faltou ter ao menos um episódio dirigido por ele. Como se fosse para compensar em parte isso, há dois episódios baseados em contos de sua autoria. O primeiro, Lote 36, é dirigido por outro Guillermo, o Navarro, também mexicano e seu colaborador antigo, que trabalhou como diretor de fotografia em vários de seus filmes. Foi inevitável pensar em Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, mas só os títulos é que são parecidos. A história se ambienta em janeiro de 1991 – uma datação tão precisa é possível porque o episódio começa com um personagem vendo na TV o pronunciamento do presidente George Bush (pai) logo após o primeiro ataque aéreo americano contra Bagdá, que deu início à fase "quente" da Guerra do Golfo, que já se arrastava desde meados do ano anterior. O protagonista (que não é o personagem da primeira cena) é Nick Appleton, um veterano do Vietnã que está devendo a um agiota, o qual lhe tem feito ameaças regularmente. Para tentar conseguir o dinheiro que pode ser a diferença entre a vida e a morte, Nick recorre a diversos expedientes, e um deles requer uma breve explicação… Nos Estados Unidos são comuns os self storages, lugares onde as pessoas podem alugar depósitos individuais, numerados, para pôr a tralha que não têm mais onde guardar em casa; se o locatário de um depósito morre sem herdeiros, desaparece ou deixa de pagar o aluguel durante um determinado número de meses, a administração do storage procede a uma espécie de "despejo": o conteúdo do depósito é levado a leilão, e o comprador tem um prazo para retirar tudo, a fim de que o espaço possa ser alugado novamente. Um "lote", então, é a totalidade do conteúdo de um desses depósitos abandonados. O detalhe interessante, por assim dizer, é que esses leilões são uma loteria: os participantes fazem seus lances sem saber o que vão encontrar quando abrirem o lugar. Pode estar cheio de objetos raros que renderão uma pequena fortuna num antiquário, ou conter apenas pilhas de jornais velhos, mobília quebrada, roupas roídas por traças, e todo tipo de quinquilharia sem valor que pessoas idosas (geralmente) guardaram ali porque seus familiares estavam ameaçando jogá-las fora. Nick, então, arrisca o dinheiro que tem comprando alguns desses lotes, na esperança de encontrar algo que dê lucro. O mais recente é o de número 36, que pertenceu ao mesmo "velhote esquisito" desde que o storage começou a funcionar, logo após o fim da Segunda Guerra, e agora o velhote acaba de morrer. Em meio à costumeira montanha de inutilidades empoeiradas, Nick descobre um móvel valioso e curioso, uma mesa feita especialmente para a invocação de espíritos, e, dentro de suas gavetas, três livros muito raros e sinistros. O ex-soldado é do tipo cético – e mais que isso, um cético chato: quando um especialista em ocultismo, que ele procura em busca de uma avaliação dos itens, tenta lhe explicar sobre os mistérios e histórias sombrias envolvendo aqueles livros, ele interrompe impaciente, pois a única coisa que lhe interessa é saber quantos dólares pode conseguir pelo conjunto. Tudo o que posso dizer sem revelar mais do que devo é que ele vai ver-se numa situação na qual seu ceticismo não lhe servirá de nada. Nick é o tipo de protagonista do qual é importante que o espectador não goste, e o roteiro se encarrega disso: além de sua rabugice, ele é preconceituoso, mostrando uma evidente má vontade para com negros, latinos e, provavelmente, para com qualquer estrangeiro – embora eu lhe dê razão num ponto, o de não gostar do fato de que aparentemente só determinados tipos de pessoa é que têm o direito de exigir respeito e de se indignar caso não o recebam: negros são protegidos pela lei e pelo senso comum contra ofensas de cunho racial, mas, por outro lado, eles próprios são livres para dirigir ofensas (inclusive de cunho racial) contra brancos, à vontade, sem que nada aconteça; já era assim em 1991, e hoje muito mais. O mesmo se aplica aos gays em relação aos héteros, às mulheres em relação aos homens e por aí afora: basta apresentar o seu crachá de membro de qualquer "minoria oprimida", que você tem carta branca para fazer e dizer o que quiser, incluindo as coisas mais escrotas e absurdas, e ninguém pode protestar, sob pena de ser rotulado de ista e fóbico. Desculpem-me os politicamente corretos, mas isso não é certo; a verdade não deixa de ser verdade só porque quem está dizendo-a é um sujeito desagradável como Nick Appleton. Mas esse não é o ponto aqui: Lote 36 é um episódio forte e envolvente, um excelente pontapé inicial para a série, além de nos deixar com vontade de ler mais dos trabalhos de Del Toro no campo da literatura.

O segundo episódio, Ratos de Cemitério, é baseado num conto de alguém chamado Henry Kuttner, nome que não me é estranho e que pretendo pesquisar. O episódio é várias coisas, mas, antes de mais nada, é claustrofóbico, motivo pelo qual minha namorada, Cintia, achou-o uma experiência bastante desagradável – e, pelo que ela me contou depois, foi ainda pior para uma amiga, que ficou tão incomodada que nem foi até o final: "dropou" o episódio e a série. E eu entendo: há muitas maneiras de abordar o terror, muitas "pontas por onde pegá-lo" (acho que a expressão é de Stephen King, mas não tenho certeza), e a claustrofobia é uma delas, usada ao longo da história do gênero por muitos autores e diretores. Aqui especificamente, a maior parte da ação transcorre debaixo da terra, dentro de túmulos ou em túneis tão apertados que mal dá para uma pessoa rastejar por eles, e, para algumas pessoas, ambientes apertados, mesmo vistos numa simples tela, podem ser desesperadores. O ano é 1919 (assim consta na lápide de uma jovem sepultada poucos dias antes) e o local é a cidade de Salém, Massachusetts, palco dos famosos julgamentos de bruxaria no século XVII. O protagonista é um homem de nome Masson, que, assim como Nick Appleton, está gravemente endividado. Masson vive de perambular pelos cemitérios saqueando sepulturas, "aliviando" os mortos de quaisquer objetos de valor com os quais eles tenham sido enterrados, mas sua atividade não lhe tem rendido muito ultimamente, e seu credor está pressionando. É então que ele fica sabendo da morte de um figurão da sociedade, um comerciante muito rico e influente, cuja viúva faz questão de enterrar com ele uma de suas posses mais valiosas: um sabre cerimonial que o falecido ganhou de presente do próprio rei da Inglaterra. É claro que Masson imediatamente coloca o túmulo do comerciante no topo de sua lista de prioridades, mas, embora ele esteja acostumado a brigar com ratos em suas andanças noturnas em cemitérios, nem imagina o que vai encontrar desta vez. O episódio é mesmo aflitivo, mas também tem toques irresistíveis de humor (geralmente negro). O ator David Hewlett está magistral no papel de Masson. Vincenzo Natali (de Cubo e Monstro do Pântano) dirige.

Guillermo del Toro sempre foi um grande fã de H. P. Lovecraft. Um de seus sonhos já de muitos anos, e bem conhecido por quem acompanha sua carreira, é dirigir um grandioso filme adaptando um dos contos mais ambiciosos do escritor, Nas Montanhas da Loucura, mas, pelo que li tempos atrás, ele teria brigado feio com os produtores em potencial porque eles queriam meter uma trama romântica na história (!). De vez em quando circulam rumores de que o projeto está em vias de finalmente engrenar, mas, até o momento em que escrevo, nenhum boato sobre o qual eu tenha lido me pareceu ser mais que isso – boato. Enquanto Nas Montanhas da Loucura não acontece, Del Toro nos traz em seu Gabinete as adaptações de duas outras histórias de Lovecraft, estas de porte mais modesto, mas nem por isso menos cultuadas, e muito merecidamente, pelos fãs do autor: O Modelo de Pickman e Os Sonhos na Casa da Bruxa.

O primeiro, dirigido por Keith Thomas e estrelado por Ben Barnes (de O Retrato de Dorian Gray e Westworld), é apenas frouxamente inspirado no texto original, e eu entendo o motivo: o conto é muito discursivo, o que não funcionaria bem na tela. Barnes interpreta o protagonista Thurber, que no conto era também o narrador, e que no episódio ganhou um primeiro nome, William. Nesta versão, Thurber, ainda rapazote, é um dos mais destacados estudantes de arte na Universidade Miskatonic (fundada em 1690 e cuja simples menção deixa qualquer fã de Lovecraft de orelha em pé) quando sua turma recebe um novo aluno, um tal Richard Upton Pickman, um sujeito mais velho, já nos seus 30 ou quase isso, e de passado misterioso. Thurber imediatamente sente uma curiosidade intensa a respeito do novo colega, que demonstra já ser um artista de grandes capacidades, dotado de um talento natural aperfeiçoado por um número muito maior de anos de prática do que qualquer um de seus colegas pós-adolescentes pode ter tido – mas com um detalhe: seja qual for o motivo artístico proposto, Pickman transforma-o em imagens assustadoras, repletas de sugestões de elementos do oculto, da feitiçaria e do além-túmulo, e sempre com uma habilidade prodigiosa. No início é Thurber quem repetidamente procura a companhia de Pickman (que claramente preferiria ser deixado só), fascinado que está tanto por sua arte macabra quanto por sua personalidade misteriosa – mas então a narrativa dá um salto de vários anos, e encontramos um William Thurber já maduro, casado e com um filho, além de membro conceituado da comunidade dos artistas em Massachussetts; nesse ínterim Richard Pickman reaparece, depois de uma longa ausência. Agora é Pickman quem parece ansioso por reatar a antiga amizade, declarando que o julgamento crítico de Thurber é valioso para ele, enquanto Thurber, tomado de desagradáveis suspeitas a respeito de qual pode ser a verdadeira origem da arte de Pickman, prefere não ter ligações com o pintor, e, principalmente, não gosta da ideia de vê-lo rondando sua família… Não irei mais adiante para evitar spoilers, o que é ainda mais importante aqui porque, como a adaptação é muito livre, o episódio reserva surpresas inclusive para quem leu a história, e longe de mim querer estragá-las. Pode-se discutir (e seria uma discussão deveras interessante) se a versão de O Modelo de Pickman trazida por Del Toro e Keith Thomas ainda é Lovecraft, mas, mesmo que não seja, é inegável que o roteirista Lee Patterson soube apropriar-se do legendarium do autor e com ele produzir uma história digna de respeito, que consegue manter-nos durante uma hora inteira com os olhos pregados na tela. Barnes não surpreende – considero-o um ator correto, mas talhado para papéis de galã e que dificilmente nos apresentará algo muito diferente disso; por outro lado, Crispin Glover, no papel de Richard Pickman, é um pesadelo à parte (no sentido elogioso!), com uma atuação ao mesmo tempo feroz e irônica e um olhar que é simultaneamente o de um visionário que enxerga outros mundos e o de um maníaco.

Acho necessário fazer um parágrafo separado apenas para comentar o magnífico trabalho de arte que vemos em O Modelo de Pickman. É atordoante pensar na quantidade de horas de trabalho investidas por um artista (aliás, provavelmente vários) para criar pinturas que a câmera iria mostrar apenas de relance (e confesso que apertei o pause várias vezes para tentar analisar mais detidamente as imagens). Seria interessante saber se todas essas pinturas foram feitas especialmente para o episódio ou se algumas delas eram trabalhos preexistentes, usados com permissão dos autores – pois, como já comentei em outro lugar, muitos artistas plásticos fãs de Lovecraft já fizeram suas tentativas de materializar os terríveis quadros de Pickman a partir das descrições fornecidas no texto. As pinturas de Pickman em si eram a parte que mais me intrigava nesse conto, e continuam a sê-lo nesta adaptação. Assumindo todos os riscos (tal como o de enlouquecer), eu bem que gostaria de fazer uma visitinha ao atelier dele.

A outra adaptação de um conto de Lovecraft presente nesta temporada é Os Sonhos na Casa da Bruxa, com direção de Catherine Hardwicke (Crepúsculo) e tendo como ator principal Rupert Grint (o Rony Weasley dos filmes de Harry Potter). Numa comparação com O Modelo de Pickman, Os Sonhos na Casa da Bruxa até tem um pouquinho mais de correlação com o conto que lhe deu origem – e, apesar disso, entrega um resultado menos bom. No conto, o protagonista Walter Gilman é um estudante de graduação da Universidade Miskatonic que, curiosamente, mistura sua exaustiva dedicação a alguns dos campos mais complexos da alta matemática com um interesse por folclore e pelas histórias dos julgamentos de bruxaria – e acaba fundindo os dois campos de conhecimento. Gilman acredita, ou, melhor dizendo, tem certeza, com base nas conclusões teóricas da matemática, de que a existência de outras dimensões é um fato, ao qual só falta a prova material. Ele acredita também (e isso sim é uma crença) que as antigas bruxas conheciam o segredo de como viajar entre as dimensões; as velhas histórias de voos noturnos em vassouras ou no dorso de animais mágicos poderiam não ser mais que uma representação simbólica disso. Dos registros que leu sobre a época dos julgamentos, chamou-lhe especial atenção a história de uma tal Keziah Mason, que teria fugido da Cadeia de Salém em 1692. A casa onde morou essa célebre bruxa ainda existe, e Gilman consegue alugar o exato quarto onde ela viveu e, presumivelmente, praticou seus feitiços. As paredes da decrépita habitação estão rabiscadas com símbolos e diagramas que todos sempre supuseram tratar-se de algum tipo de escrita demoníaca, mas que o estudante reconhece como sendo matemática avançadíssima, um tipo de conhecimento que deveria ser impossível para uma velha comum e provavelmente analfabeta do século XVII. E, ao dormir naquele quarto, Gilman passa a ter sonhos cada vez mais perturbadores envolvendo Keziah e seu suposto "familiar", uma criatura semelhante a um grande rato com cara humana (um "familiar", ao que se acreditava, era um pequeno demônio em forma animal, ou semi-animal, que o diabo dava de presente a cada bruxa por ocasião de sua iniciação, e que prestava serviços a ela). Para Lovecraft, a obsessão intelectual de Gilman, sua determinação de provar perante a ciência que outras dimensões existem e que viajar entre elas é possível, era motivação válida e plenamente suficiente para seu protagonista; nesta adaptação, o roteirista deve ter achado que um objetivo tão abstrato e impessoal quanto esse não atrairia a empatia do público para o personagem, e assim, inventou para ele uma história trágica: Gilman, na infância, tinha uma irmã gêmea a quem era muito ligado, e que morreu em tenra idade, com o detalhe de que o pequeno Walter a viu ser arrastada, em sua forma espiritual (ou fantasmal, se quiserem) para uma espécie de limbo que ficaria em outra dimensão, enquanto seu corpo físico ficava para trás. Daí em diante, o rapaz ficou obcecado por parapsicologia, por fenômenos mediúnicos e pela possibilidade da comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, vindo inclusive a fazer parte de uma sociedade espiritualista. É por esse caminho que ele acaba indo parar no velho quarto de Keziah Mason. Na minha opinião, essa "humanização" da trama pode funcionar para os espectadores que nunca leram Lovecraft, mas os que conhecem o conto vão achar o novo enredo uma coisa prosaica e novelesca, que apaga muito da sensação de estranheza extraterrena que conferia à história original a maior parte de seu interesse; além disso, a novidade de fazer com que as viagens de Gilman entre as dimensões sejam possibilitadas por uma espécie de poção foi, a meu ver, um recurso bastante ordinário. Visualmente, achei a representação de Keziah exagerada: poderia ficar mais assustadora se a apresentassem simplesmente como uma velha de olhar maligno em trajes de época, em vez de um espectro hollywoodiano padrão, totalmente criado em CG, que poderia ter saído de algum filme da franquia Invocação do Mal ou de qualquer outro "terrorzão de shopping". Por outro lado, Brown Jenkin, o familiar da bruxa, ficou perfeito – adequadamente macabro.

A Autópsia, dirigido por David Prior, aposta no já tantas vezes bem-sucedido crossover entre ficção científica e terror, propondo uma versão ainda mais assustadora para o clássico Invasores de Corpos (1978). O veterano ator F. Murray Abraham (de quem eu sempre me lembro como o compositor Antonio Salieri, o rival de Mozart em Amadeus) interpreta o Dr. Carl Winters, um igualmente veterano médico legista que atende ao chamado de um velho amigo, o xerife Nate Craven, delegado de uma outrora tranquila cidadezinha mineradora que, há algum tempo, vem sendo assolada por uma onda de desaparecimentos; agora aconteceu um acidente inexplicável na mina que emprega a maior parte da população e que é a base da economia da cidade, tirando a vida de vários trabalhadores. Winters confidencia ao amigo que está sofrendo de um câncer terminal e tem poucos meses de vida – e faz isso pouco antes de entrar na gelada e tétrica sala onde realizará sozinho a autópsia dos mineiros mortos e fará descobertas horrendas. O episódio é muito bom, tenso do início ao fim e com um conceito de arrepiar os cabelos. Só estejam avisados de que, como ele trata em grande parte de autópsias, vocês poderão achar algumas cenas um tanto difíceis de assistir. Eu achei.

Como tantas vezes, o melhor de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro ficou para o final: é justamente O Murmúrio (The Murmuring), dirigido pela já citada Jennifer Kent e tendo como principais atores Essie Davis (também australiana e que atuou em O Babadook) e Andrew Lincoln (da série The Walking Dead). E, assim como o primeiro, este último episódio da temporada é baseado num conto de Del Toro. O primeiro comentário que me veio à cabeça ao terminar de assisti-lo foi que nunca devemos achar que determinado tema já está batido demais para render uma boa história de terror, seja na literatura, cinema ou TV: parece-me que o velho tema da casa assombrada, contanto que seja explorado com competência, nunca deixará de causar calafrios. A história se passa nos anos 50 e os protagonistas são Nancy e Edgar Bradley, um casal de ornitólogos que recentemente passou por uma tragédia pessoal, a perda da filha ainda bebê. Fazendo da dedicação ao trabalho sua terapia, os dois partem para uma pesquisa de campo a fim de estudar os hábitos dos pilritos (pássaros semiaquáticos e migratórios, espécie comum na Europa), o que exigirá que passem um longo tempo numa desabitada região de charcos – o local não é nomeado, mas parece ficar em alguma parte das Ilhas Britânicas. Lá, o casal se aloja numa grande e antiga casa, completamente isolada, parecendo ser a única na pequena ilha onde fica. Está desabitada há 30 anos, mas os retratos nas paredes sugerem que já foi a moradia de uma família perfeitamente normal e feliz – um casal e seu filho pequeno. Nancy se intriga imaginando por que eles teriam partido deixando para trás seus móveis e todos os objetos pessoais, incluindo até mesmo um grande número de cartas, mas seu trabalho com os pilritos ocupa demais seu tempo e energia para que ela possa pensar muito a respeito… Até começar a ouvir e ver certas coisas na casa. Coloquei nessa ordem de propósito: primeiro ela ouve, em meio às horas e horas de gravações dos sons dos pássaros, uma voz infantil sussurrando que está com frio. É indispensável observar que, de acordo com as explicações da própria Nancy, murmuring, em inglês, pode ter dois sentidos: um, bem conhecido e de uso comum, é o de falar baixo, sussurrar; o outro se refere às formações que bandos de pássaros em voo podem assumir, às vezes sugerindo certas figuras (eu nunca tinha ouvido falar nessa segunda acepção). Mais tarde, ela passa a ver o menino andando pela casa às escuras durante a madrugada, às vezes encharcado, com a roupa escorrendo água… É apavorante de verdade, e nisso há muito mérito da diretora, cuja condução é ora sensível, ora implacável. Outra coisa que o espectador nota é que o fato de apenas Nancy ter consciência dessa presença não pode ser mero acaso; Edgar declara repetidamente que nunca viu nem ouviu nada. Isso pode significar, de modo implícito, que, embora tenha sofrido (e ainda sofra) tanto quanto a esposa com a morte da filhinha, ele já conseguiu "ir em frente"; Nancy ainda não. A incapacidade dela de falar sobre sua perda, e o fato – observado pelo marido – de que não verte nenhuma lágrima, indicam que toda a sua dor está trancada dentro dela, atormentando-a dia a dia. Talvez seja essa dor recolhida o que a coloca em sintonia com a dor daqueles que moraram (e aparentemente ainda moram) naquela casa. O Murmúrio chega muito perto da perfeição, conseguindo em uma hora o que muitos longas-metragens de terror não conseguem no dobro desse tempo, e reforça minha vontade de conhecer os filmes anteriores de Jennifer Kent, bem como minha expectativa do que mais ela poderá nos trazer no futuro.

Seguindo minha resolução de só entrar em detalhes sobre um episódio no caso de ele ter chamado muito a minha atenção, percebo que acabei falando (mais longamente ou menos) sobre seis dos oito; houve dois episódios dos quais eu não gostei, e por esses passarei muito rapidamente. Um deles foi o terceiro, Por Fora, que, embora abordando temas importantes (até que ponto uma pessoa é capaz de ir em busca de aceitação social e o poder da TV para influenciar comportamentos e criar necessidades), simplesmente não me "pegou"; não consegui construir uma ligação com a protagonista e achei o desenrolar tedioso, de modo que, mesmo que o episódio tenha a mesma duração que a maioria dos outros, com cerca de uma hora, me pareceu muito mais longo que isso. O outro foi o penúltimo, A Inspeção, cujo maior mérito, a meu ver, é o de conseguir imergir com perfeição o espectador na atmosfera dos anos 70 (o ano citado é 1979), por meio do visual dos personagens e da trilha e efeitos sonoros, evocando aquele mundo psicodélico e com tendência ao exagero estético; a fotografia também parece ter sido planejada para remeter a filmes daquela década ou do comecinho da seguinte, como Alien e O Enigma de Outro Mundo – e vamos descobrir que todo o trabalho investido em criar essa semelhança foi com bons motivos, motivos que têm a ver com o roteiro. Infelizmente, esse roteiro nunca chega a dizer a que veio: a maior parte do episódio é preenchida por longas e tediosas conversas entre os personagens, e, quando o componente fantástico é finalmente apresentado, mostra-se genérico, gratuito e jogado de qualquer maneira. Valeu a curiosidade de rever o agora idoso Peter Weller, ator que protagonizou Robocop, um dos melhores filmes de ficção científica de ação da década de 80.

Enfim, Guillermo del Toro fez um belo trabalho criando e produzindo esta série, que, embora irregular, certamente recompensa bem o tempo investido para assisti-la, para os amantes do terror em geral e para os fãs de Del Toro em particular. Pelo que vi na internet, a receptividade do público tem sido boa, o que nos permite cultivar a esperança de que essa primeira temporada não seja a última. Seria excelente se, nas próximas, fossem trazidos contos de outros autores notáveis de terror, fossem antigos ou contemporâneos – Arthur Machen, Edgar Allan Poe, Stephen King, Clive Barker… Mas torço para que, se isso acontecer, as adaptações sejam mais fiéis que as de Lovecraft que vimos. Seria bom, ainda, que Del Toro assumisse a direção em alguns episódios. É esperar para ver.

quinta-feira, agosto 25, 2022

O Minotauro

Meu primeiro contato com a obra de Monteiro Lobato, isso lá nos meus quatro ou cinco anos de idade, foi por meio da primeira versão do Sítio do Picapau Amarelo para a TV, aquela clássica, com Zilka Salaberry como D. Benta, Jacira Sampaio como Tia Nastácia, André Valli como o Visconde de Sabugosa, entre outros. Mesmo agora, mais de 40 anos depois, lembro nitidamente de muitos detalhes que se tornaram queridos para mim – músicas, cenas específicas, bordões de personagens, as caras dos atores que os interpretavam –, mas nenhuma lembrança é mais vívida que a da fase baseada no livro O Minotauro, por causa da sensação que eu, pequenino, tinha quando o referido monstro aparecia. A fantasia usada pelo ator (na verdade, a máscara e pouca coisa mais) era bem elementar, mas é claro que aos quatro anos de idade eu não tinha critério para avaliar isso, e, quando ele aparecia, andando lentamente, de forma ameaçadora, ao som de uma música tenebrosa, eu, sentadinho no chão diante da velha TV preto-e-branco que tínhamos na época, me encolhia – mas nem pensava em parar de assistir. Lembro-me da sensação com uma clareza espantosa: parecia que uma bola de chumbo se formava instantaneamente no meu estômago, e continuava ali por um bom tempo, mesmo depois que o temível homem-touro saía de cena.

Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com o universo de Lobato quando cheguei à idade escolar, e tive a sorte de ter professoras que me incentivaram a ler (coisa que meus pais também faziam em casa) e tinham especial reverência para com o autor: provavelmente elas próprias o haviam lido na infância. E foi o que eu também fiz. Na já famosa biblioteca do SESI perto de onde cresci (vejam aqui e aqui) existia uma edição em oito volumes contendo todas as histórias do Sítio. Peguei todos emprestados, um por um (sem me preocupar em seguir a ordem numérica), embora precise confessar que "dropei" algumas histórias, como O Poço do Visconde e Aritmética da Emília, porque o que queria eram aventuras, de modo que achei esses livros "didáticos" demais (mas li a História do Mundo para as Crianças de cabo a rabo; sempre tive uma "coisa" com História). Ainda tenho planos de corrigir esses meus deslizes da infância.

Uma coisa da qual eu gostava especialmente era quando Lobato se deixava levar por sua paixão pela Grécia antiga, e os dois maiores exemplos disso são O Minotauro e Os Doze Trabalhos de Hércules, sendo que falei um pouco sobre este último num post que tratava desse herói. Já o primeiro começa onde termina uma outra história, O Picapau Amarelo, na qual todos os seres e personagens do universo das fábulas e das lendas pedem permissão para se mudarem para o Sítio, e, para acomodá-los, D. Benta compra algumas propriedades vizinhas, usando parte do dinheiro ganho com a extração do petróleo em O Poço do Visconde (essas histórias estão todas encadeadas mesmo). Esse Sítio do Picapau Amarelo estendido vira então uma espécie de versão caipira do Império de Fantasia, e sei que isso dá origem a várias aventuras e surpresas, embora não me lembre mais da maioria delas. Uma das últimas coisas a acontecer é a festa do casamento de Branca de Neve (ela mesma, a do conto de fadas) com Codadade, um príncipe das 1001 Noites, e essa festa é interrompida pelo ataque combinado de todos os monstros da mitologia grega. Na confusão, Tia Nastácia desaparece, e em seguida, não lembro por que, todos os seres da fábula voltam para seus locais de origem. Deduzindo que a velha cozinheira tão querida por todos deve ter sido capturada e carregada por algum dos monstros, D. Benta, seus netos, Emília e o Visconde partem para a Grécia para tentar resgatá-la (nas histórias de Lobato, nem espaço nem tempo são empecilhos para coisa alguma, desde que se tenha imaginação suficiente).

Está claro que, se o objetivo da expedição é resgatar Tia Nastácia das garras de algum monstro mítico, o período histórico ao qual os aventureiros devem se dirigir é aquele anterior à Guerra de Troia, em plena Idade do Bronze, quando se supõe que tenham vivido os grandes heróis gregos como Hércules, Teseu, Jasão e tantos outros; entretanto, o mergulho no passado é feito, por assim dizer, de forma gradual. A primeira parada é a Atenas do século V a.C., o assim chamado "século de Péricles", período em que, sob a administração inteligente desse notável ditador de múltiplos talentos, a cidade conheceu seu apogeu cultural. As Guerras Greco-pérsicas tinham-se encerrado com a vitória dos gregos, e, livres dessa ameaça externa, estes últimos puderam dedicar um volume sem precedentes de recursos e trabalho às artes plásticas, à arquitetura e à literatura. D. Benta, uma senhora de muita cultura, sempre teve esse como seu período favorito na História grega, e acaba decidindo ficar ali mesmo, com sua neta Narizinho, enquanto Pedrinho, Emília e o Visconde continuam sua odisseia no passado em busca de Tia Nastácia. Para isso, os três viajam para os tempos da "Grécia heroica", que, para os gregos dos dias de Péricles, já são um passado remoto. A partir daí, o livro alterna capítulos ambientados nas duas épocas. Como hóspedes de Péricles, D. Benta e Narizinho têm a chance de conhecer grandes vultos das artes, ciências e filosofia da Grécia, como os escultores Fídias e Policleto, o historiador Heródoto, o dramaturgo Sófocles, o filósofo Sócrates, entre outros. Enquanto isso, nos tempos míticos, Pedrinho, Emília e o Visconde sobem o monte Olimpo para xeretar como vivem os deuses, assistem escondidos Hércules liquidar a terrível hidra de Lerna no segundo de seus famosos Doze Trabalhos, e, é claro, vão ao resgate de Tia Nastácia, depois de terem consultado o célebre Oráculo de Delfos para descobrir-lhe o paradeiro.

Mesmo sendo apenas um "aperitivo" para Os Doze Trabalhos de Hércules, livro muito mais extenso e ambicioso, O Minotauro é uma pequena joia da literatura infanto-juvenil brasileira, que, no tempo em que crianças e adolescentes ainda liam livros (bem, pelo menos algumas crianças e adolescentes liam), deve ter plantado em muitas jovens cabeças a primeira noção a respeito da importância verdadeiramente inestimável que a civilização grega teve para o mundo ocidental em todos os aspectos da vida. As conversas que D. Benta mantém com Péricles e seus eminentes convidados fazem a proeza de estarem num nível de compreensão acessível para qualquer criança esperta, sem serem rasas, e estão cheias de "iscas" para a curiosidade infantil, que provavelmente levaram muitos meninos e meninas a quererem saber mais sobre as personalidades e os acontecimentos que são mencionados. (Na época da publicação original, essas informações tinham que ser procuradas em enciclopédias, e por vezes me pergunto se não era melhor desse jeito, já que é uma tendência natural no ser humano dar mais valor àquilo que custou esforço para obter – inclusive conhecimento. Easy comes, easy goes.) E há pelo menos uma fala dela, já perto do final do livro, que só fez ficar mais atual nesses 83 anos que se passaram desde que O Minotauro foi escrito. A convite de Péricles, D. Benta e Narizinho vão assistir, com ele e seus amigos, a uma encenação da tragédia Alceste, de Eurípedes – na época, uma obra que estava estreando. Ao final da peça, conversando sobre ela com Sófocles, D. Benta declara:

– Este drama me fez compreender muita coisa, e sobretudo o que para um povo inteligente significa uma "arte geral".
Sófocles não entendeu.
– Sim, uma arte que interessa a todos da cidade, absolutamente a todos, desde gênios como Sófocles, Péricles, Aspásia e Sócrates, até modestos vendedores de figos, como aquele ali – e apontou para um vendedor de rua, que se sentara perto e que "sentira" o drama de Eurípedes tão bem quanto o próprio autor. – Isto, meu senhor, é o que nos falta no mundo moderno, esta absoluta identidade entre o sentimento do povo e a arte. A arte lá é uma coisa para os eleitos, para as chamadas elites; aqui é para todos, sem a menor exceção – para ricos e para pobres.

O que resta a dizer depois dessas palavras? Não há nada a acrescentar, dá apenas para comentar e ilustrar, e sei de um exemplo que cai como uma luva. Quando minha namorada, Cintia, se cansa do ajuntamento de vizinhos batendo papo na calçada diante de sua porta (é aquele tipo de gente com vocabulário de umas 40 palavras, para quem "caraio" é vírgula, e que parece não saber falar baixo), ela costuma tocar música clássica bem alto. É tiro e queda: não dá 60 segundos e todo mundo some. Quer dizer, esse pessoal está tão idiotizado pela exposição a funk, "sertanejo universitário" e outras atrocidades, que positivamente não suporta ouvir Mozart; qualquer coisa que lembre arte ou cultura os repele, faz com que se sintam mal. Não se enganem, não há nada de casual nisso; muita gente trabalhou com afinco e durante muito tempo para que o nível intelectual médio do nosso povo descesse até esse ponto. Exceto por algum milagre, nenhum desses "mano" (o erro de concordância é proposital) jamais vai ler um livro na vida, nem se perguntar o que está fazendo no mundo ou por que as coisas são como são e não de outro jeito, e, para os que querem o fim da civilização ocidental (não pela sua destruição propriamente dita, e sim por meio de uma sutil e gradual remodelagem feita de dentro para fora), é ótimo que seja assim. Ainda acho que Monteiro Lobato tinha uma visão idealizada demais da Grécia antiga, mas o mero fato de que na época os teatros precisavam ter capacidade para 20, 30, 50 mil pessoas já diz algo sobre o nível cultural de seu povo no tempo de Péricles. Como é explicado no livro, na Atenas de então, como em outras cidades, todo mundo ia ao teatro; o ingresso custava um valor simbólico, e os que mesmo assim não pudessem pagar, recebiam ingressos gratuitos, custeados por um fundo do tesouro público destinado a fins culturais e artísticos. O resultado disso, e de outras ações semelhantes, podia ser sentido dando-se uma volta pelo mercado para ouvir as conversas: havia gente que nem mesmo sabia ler discutindo pontos de filosofia ou trocando análises argutas sobre a política da cidade. É claro que era bem mais complicado governar gente assim do que um povo que mal sabe falar, e, mesmo assim, Péricles e outros ditadores fizeram tudo ao seu alcance para que o teatro, a filosofia, a poesia, a literatura em geral, e todas as outras formas de engrandecimento cultural, florescessem o máximo possível, promovendo uma elevação contínua das capacidades intelectuais de seus povos. (A palavra "ditador" tem um sentido odioso para nós, mas na época queria dizer algo diferente.) A única explicação para isso é que possuíam virtude, uma palavra (e um conceito) que nos soa tão pouco familiar nos dias de hoje.

Por fim, preciso fazer um alerta. O que despertou em mim a vontade de reler O Minotauro foi o acaso de encontrar (numa daquelas feirinhas temporárias de livros que aparecem e desaparecem periodicamente nos corredores de certos shoppings) uma pilha de exemplares de uma edição recente publicada por uma para mim desconhecida editora Pé da Letra. Cada exemplar custava módicos dez reais, então adquiri um e me preparei para um delicioso reencontro com um pedaço tão querido da minha infância… Sabe de nada, inocente. Trata-se de uma edição de péssima qualidade (vai ver é por isso que é barata) e, muito pior que isso, toda estropiada pela censura politicamente correta, algo que, pensando bem, não é nenhuma surpresa, pois antecedentes não faltam (vejam aqui). Entre os personagens do Sítio há um que é muito significativo, apesar de só aparecer uma vez ou outra, o Tio Barnabé, que é uma espécie de personificação da sabedoria popular dos rincões interioranos do estado de São Paulo na época de Monteiro Lobato; pelo que me lembro, sua principal aparição é no livro O Saci, no qual ele conta tudo sobre o próprio, para atender à curiosidade de Pedrinho, menino da cidade. Pois bem… Em O Minotauro, Emília, tentando explicar a um personagem grego o hábito moderno do fumo, cita Tio Barnabé como exemplo:

Lá no Sítio há o Tio Barnabé, um negro de mais de noventa anos, que não tira o cachimbo da boca. Os médicos dizem que se ele não fumasse estaria já com cem anos.

Isso era o que dizia o texto original… Na edição woke da Pé da Letra, a palavra negro foi substituída por senhor. Eu sei, não tem lógica, nem coerência, nem honestidade intelectual alguma: esperar qualquer uma dessas coisas dessa galera lacradora é como esperar que uma macieira dê jacas. Hoje em dia certas livrarias têm uma estante separada para livros de "autoria negra", onde colocam, entre outros, Machado de Assis, que, para mim, sempre foi "apenas" o maior escritor brasileiro e um dos maiores do mundo em todos os tempos; o fato de ele ter sido negro (na verdade era mulato) nunca sequer entrou nas minhas considerações. Por outro lado, simplesmente dizer que um personagem é negro é considerado ofensivo ao ponto de precisar ser censurado. Se refletirmos a respeito, as duas coisas (e muitas outras) apontam para uma mesma realidade: o Brasil, que sempre teve uma identidade de país miscigenado, e que até recentemente, de modo geral, lidava bem com isso, está se transformando numa sociedade na qual as pessoas são classificadas e julgadas, antes de qualquer coisa, pela cor de sua pele – e os promotores dessa nova "cultura" juram que estão combatendo o racismo.

E fica pior. Procurando por Tia Nastácia nos cafundós da Grécia heroica, a mesma Emília pergunta a um pastor se por acaso a teria visto, o que dá lugar ao seguinte e impagável diálogo:

– Que jeito tem essa criatura? – perguntou o pastor.
– Uma beiçuda – respondeu Emília – com reumatismo na perna esquerda, nó na tripa, analfabeta, mil receitas de doces na cabeça, pé chato, gengiva cor de tomate, assassina de frangos, patos e perus, boleira aqui na pontinha, pipoqueira, cocadeira…
– Pare, Emília! – gritou Pedrinho. – Estou vendo que o pó desandou você duma vez.
Foi inútil o berro. Emília estava mesmo desandada e continuou:
– Uma negra pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas beiço o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma velha cor de carvão, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de beiços deste tamanho na boca? Se viu, é ela.
– Não repare, pastor – disse o menino. – Emília é como certos despertadores que às vezes desandam.
O pastor ficou na mesma, porque não sabia o que era despertador.

(Não farei comentários sobre os "outros efeitos" do pó de pirlimpimpim que possibilita todas essas viagens no tempo e no espaço; sei que é um ponto problemático, mas mesmo assim não sou a favor de mutilar o texto.)

Senhoras e senhores, com vocês versão da Pé da Letra:

– Que jeito tem essa criatura? – perguntou o pastor.
– Lábios carnudos – respondeu Emília. – (…) Uma senhora pitadeira dum pito muito preto e fedorento. Não sabe o que é pito? Ai, meu Deus do céu! Estes gregos não sabem nada de nada. Mas lábios o senhor sabe o que é, não? Pois basta isso. Não viu uma senhora, de lenço vermelho de ramagens na cabeça e um par de lábios carnudos? Se viu, é ela.

Emília do Sítio do Picapau Amarelo, a marquesa de Rabicó em pessoa, referindo-se a Tia Nastácia não mais como uma "negra beiçuda", e sim como uma "senhora de lábios carnudos"… Lábios carnudos. Pois é. É isso. Suponho que já devamos agradecer por terem permitido que ao menos o pito continuasse a ser descrito como preto. Alguém pode me explicar como, de que raio de maneira omitir a palavra negro (como se o mero ato de mencionar a etnia de uma pessoa fosse ofensivo por si) ajuda a "combater o racismo"? Por que é que, em um momento, separar escritores uns dos outros pela cor da pele é importante, e em outro, é preciso adulterar um texto escrito há mais de 80 anos só porque ele tinha a "ousadia" de descrever as características físicas de uma personagem, entre elas o fato de ser negra? Vocês podem dizer "ei, não ponha tudo no mesmo saco: quem teve a ideia de jerico de criar a 'estante da autoria negra' foi uma pessoa, e quem fez essa barbaridade contra a obra de Monteiro Lobato foi outra". É, mas ambas foram movidas pela mesma ideologia, e, para essa, não há problema algum em dizer uma coisa agora e o seu exato oposto daqui a cinco minutos. Quando não se acredita que exista uma verdade, incoerência e hipocrisia não são motivo de vergonha.

Vamos mais longe. Admitamos por um momento que as falas de Emília no texto original de O Minotauro sejam preconceituosas: isso nos dá o direito de "corrigir" o que o autor escreveu? Eu entenderia se o editor acrescentasse ao livro uma nota preliminar explicando que a linguagem e os conceitos da época do autor eram diferentes dos atuais, mas colocar uma expressão como "lábios carnudos" na boca da Emília é um total despropósito, algo como fazer o Cebolinha, de repente, começar a pronunciar todos os erres corretos. Pior? Provavelmente pior. Há mais exemplos, entre os quais sobressai o momento em que Tia Nastácia, já resgatada, emociona-se ao rever sua querida patroa D. Benta e corre para abraçá-la, gritando: "Sinhá! (…) Sou eu, sua negra velha, Tia Nastácia…" Na edição da Pé da Letra ela diz "sou eu, sua ajudante". Ajudante. Ajudante. AJUDANTE. Pelo menos não puseram "colaboradora", que é como agora são chamados os que antigamente eram "empregados" ou "funcionários", mas soa igualmente morto, frio, sem emotividade, sem as conotações afetuosas do "sua negra velha". Sei o que estão pensando e concordo plenamente: é deprimente mesmo.

Entretanto, Monteiro Lobato ainda é Monteiro Lobato e assim será sempre; esse tipo de vandalismo praticado contra sua obra apenas reflete os tempos nojentos que estamos atravessando, e que, Deus o permita, ficarão para trás e serão lembrados somente como uma lição a ser aprendida. E, como eu não queria dar o serviço pela metade, tratei de procurar por outra edição que pudesse ser lida sem causar náuseas. A L&PM tem uma, dentro de sua coleção L&PM Pocket, que, até onde pude verificar, respeita o texto original. Ou então, se vocês forem da mesma geração que eu e estiverem se sentindo nostálgicos, pode valer a pena dar uma fuçada na Estante Virtual para tentar conseguir um exemplar de uma das velhas edições da Brasiliense (editora fundada pelo próprio Lobato), com as pra lá de clássicas ilustrações de Manoel Victor Filho.