terça-feira, abril 28, 2015

O Rei de Amarelo

Muito tempo atrás, escrevi pela primeira vez aqui no blog uma referência ao famoso ensaio de H. P. Lovecraft, O Horror Sobrenatural na Literatura (foi neste post, para ser exato), observando que era uma leitura curiosa, mas, no cômputo final, um tanto frustante, pois Lovecraft comenta, literalmente, dezenas de autores e obras que despertam interesse em qualquer fã do gênero, sendo que, no caso da grande maioria, é remota a possibilidade de que nós, brasileiros, venhamos algum dia a ter acesso a esse material (na verdade, a maior parte dessas obras, hoje, deve ser rara até em seus países de origem). Ao longo dos anos, mencionei o ensaio outras vezes, geralmente quando, contra as expectativas, conseguia ler algum dos livros ou contos nele comentados. O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, é mais um deles, mas possui certas características que são únicas… E, devo dizer, curiosíssimas.

O comentário de Lovecraft sobre O Rei de Amarelo é elogioso, mas breve e sem maior aprofundamento. O próprio Lovecraft ficaria surpreso se soubesse que, depois de sua morte, a obra de Chambers passaria a ser frequentemente citada em conexão com a sua. Isso foi graças a um de seus amigos escritores, August Derleth (1909‑1971), que decidiu assumir o encargo de organizar e sistematizar as informações dispersas sobre os Mitos de Cthulhu, e, entre outras coisas, criou uma ponte entre eles e a assim chamada "Mitologia Amarela" de Chambers. A validade disso é até hoje objeto de discussão entre os fãs de ambos os autores, mas sobretudo entre os de Lovecraft, muitos dos quais acham essa ligação arbitrária e forçada. Só há um único conto de Lovecraft que realmente faz referência a elementos do universo de Chambers, e a intenção pode ter sido a de uma simples homenagem. É verdade, entretanto, que muitas passagens dos contos de Chambers evocam um tipo de horror que quem está acostumado a ler Lovecraft irá reconhecer.

Pode-se dizer que a força de O Rei de Amarelo não está tanto naquilo que ele diz, e sim no que deixa de dizer. O livro "real", o que podemos ler, tem o mesmo título de uma outra obra que só existe em seu universo de ficção. O "outro" O Rei de Amarelo é uma peça de teatro, mencionada em vários dos contos de Chambers como sendo, ao mesmo tempo, uma obra aclamada e maldita. Ao contrário do Necronomicon de H. P. Lovecraft, livro raro e secreto, no qual apenas poucos estudiosos do oculto já tiveram oportunidade de pôr as mãos, O Rei de Amarelo de Chambers é facilmente encontrado em livrarias em seu mundo fictício, e saudado pela crítica como uma obra que atingiu o mais alto nível de excelência artística – mas seu conteúdo é tão perturbador, que leva à loucura quem ousar lê-lo. Seu autor nunca é nomeado, e, quanto a enredo e personagens, só há informações vagas. O que vemos descrito, isso sim, são seus efeitos sobre as mentes de algumas pessoas.

O Rei de Amarelo "real" é principalmente um volume de contos – digo "principalmente" porque ele contém nove contos e também O Paraíso do Profeta, que é uma coisa difícil de definir, uma coleção de pequenos "poemas em prosa", cujo real significado provavelmente só o autor conhecia. Dos nove contos, os quatro primeiros estão em conexão com a peça O Rei de Amarelo; são os que apresentam maior teor de elementos fantásticos, e, em minha opinião, formam a melhor parte do livro. 

A primeira história, intitulada O Reparador de Reputações, é uma coisa muito bizarra à primeira vista… Não que se torne menos bizarra em seu desenrolar, mas, aos poucos, vamos percebendo que talvez nem tudo o que é narrado mereça credibilidade, já que o protagonista/narrador, Hildred Castaigne, apesar de julgar-se muito são (o louco nunca se acha louco), tem as faculdades mentais seriamente comprometidas, o que se deve, ao menos em parte, à leitura de O Rei de Amarelo. Basta dizer que o personagem nutre a esdrúxula ambição de ser coroado "imperador" dos Estados Unidos, título ao qual acredita de todo o coração ter direito – mas, para isso (pensa ele), terá que tirar do caminho outro "herdeiro" em potencial, seu primo Louis, este um jovem oficial militar e homem totalmente comum. Os delírios monárquicos de Hildred não são apenas acalentados por ele, mas alimentados por um personagem bizarro, um certo Sr. Wilde (uma homenagem a Oscar Wilde?), que vem a ser o reparador de reputações do título. Não fica claro se Wilde é simplesmente tão doido quanto Hildred, ou se tem seus próprios motivos misteriosos para incentivar a loucura do rapaz. A história passa-se em 1920 (pelo menos, é a data que Hildred fornece), sendo, portanto, um exercício de futurologia, já que o livro foi publicado em 1895. Nela, os Estados Unidos saíram recentemente vitoriosos de uma guerra contra a Alemanha (!), e, talvez em decorrência disso, são agora uma sociedade fortemente militarista. Embora o protagonista ache que o país vive tempos prósperos e gloriosos, parece haver muita gente descontente. O dia em que Hildred inicia sua narrativa é também o da inauguração da primeira Câmara Letal na cidade de Nova York, uma medida adotada pelo governo para ajudar os numerosos candidatos a suicida a encontrarem seu fim de forma "ordeira" e "limpa".

Antes de tornar-se conhecido como escritor, Robert W. Chambers já havia construído certa fama como desenhista e pintor, tendo contribuído com ilustrações para diversos jornais e revistas conhecidas da época. Sua educação nas artes visuais teve lugar em Paris, onde estudou de 1886 a 1893, morando no famoso Quartier Latin, o bairro boêmio, de estudantes e artistas, que teria um papel relevante em muitas de suas histórias. Fica evidente o quanto esse período de sua vida foi marcante para o autor: muitos de seus personagens são justamente jovens americanos, artistas ou estudantes de arte, que moram no Quartier Latin. O segundo conto de O Rei de Amarelo, A Máscara, é o primeiro a fazer uso dessa ambientação. É um texto dolorosamente lindo, cujo mote parece algo sugerido por um sonho. Boris e Alec, jovens estudantes americanos, moram no Quartier Latin e são amigos inseparáveis; Alec, pintor, é o narrador da história. Seu amigo Boris, escultor, de forma não explicitada, descobriu uma espantosa fórmula alquímica que transforma os seres vivos que nela são mergulhados em uma bela pedra semelhante ao mármore. Flores, pequenos peixes e um coelho servem de cobaias para essa curiosa experiência, e todos se convertem em maravilhosas "esculturas" ― mas, é claro, Boris está brincando com algo que não compreende, o que não pode terminar bem. Para tornar a trama mais complexa e mais humana, existe a paixão platônica que Alec nutre por Geneviève, a companheira de Boris. É um conto mais sereno, que cai bem depois da agitação febril que caracteriza O Reparador de Reputações, e sua força dramática é inegável.


(É curioso lembrar que, quando Hildred Castaigne descreve o prédio da Câmara Letal em O Reparador de Reputações, ele menciona que sua fachada é ornada por um conjunto de esculturas representando as Parcas, entidades da mitologia grega que controlavam a duração da vida dos mortais; as estátuas são "obra de um jovem escultor americano, Boris Yvain, que morrera em Paris com apenas 23 anos". Em A Máscara, ao entrarmos no estúdio de Boris, podemos ver lá as Parcas, ainda inacabadas. Esse é o primeiro de vários exemplos de como Chambers gostava de entrelaçar suas histórias, sugerindo que todas tinham lugar num mesmo universo.)

Na sequência, temos No Pátio do Dragão, cujo protagonista, ainda abalado pela leitura de O Rei de Amarelo, busca o conforto e a estabilidade oferecidos pela religião – mas, dentro da própria igreja onde assiste à missa, descobre-se sendo observado por um organista de aparência estranha e olhar maligno. Saindo da igreja, o personagem tenta voltar para a segurança de seu apartamento, que fica no "Pátio do Dragão", assim chamado por localizar-se na Rue du Dragon (tanto o pátio quanto a rua existiam mesmo), mas o organista macabro o persegue (ou seria tudo coisa de sua mente perturbada?). Há sugestões veladas de que esse organista é, na verdade, um ente demoníaco. Acredito, ainda, que o autor tenha-se aproveitado do curioso nome do logradouro para dar um duplo sentido ao título do conto, que, no original, era In the Court of the Dragon: court pode significar tanto pátio quanto corte, e o dragão é um dos símbolos usados na Bíblia para representar o diabo. "Na corte do diabo", então? Sinistro…

O último conto da primeira parte, e também o último a mencionar explicitamente a peça O Rei de Amarelo, é O Emblema Amarelo, considerado por muitos críticos como a história de Chambers com maior carga de elementos sobrenaturais. Novamente, o protagonista é um artista americano vivendo em Paris, um pintor que é chamado apenas de "Sr. Scott", e que pode, ou não, ser Jack Scott, que aparecia como coadjuvante em A Máscara (de novo, eis o entrelaçamento). Da janela de seu estúdio, Scott consegue avistar uma igreja próxima, com seu pequeno cemitério ao lado… E o guarda do cemitério é um sujeito anormalmente pálido e de olhar mortiço, cuja cara branca e balofa lembra ao pintor um verme de sepultura (provavelmente, não é coincidência que a descrição do guarda do cemitério lembre a do organista de No Pátio do Dragão). O repulsivo personagem começa a aparecer recorrentemente nos pesadelos de Scott, perguntando-lhe com insistência a respeito de um tal "Emblema Amarelo", que parece simbolizar algum mal antigo e inimaginável (Hum… Pensando bem, a conexão com Lovecraft não é tão absurda), ligado de alguma forma a O Rei de Amarelo, livro que Scott, até então, evitara a todo custo. Até então.

De acordo com a introdução de Carlos Orsi, os quatro contos de que acabo de falar formam a primeira parte de O Rei de Amarelo, e, como foi dito, apresentam elementos fantásticos. À guisa de transição para a segunda parte, de cunho mais realista, há dois textos "soltos", que não se enquadram em nenhum dos dois conjuntos. Um deles é O Paraíso do Profeta, que já descrevi, e o outro, o belo A Demoiselle d'Ys. Neste, o jovem protagonista americano está caçando sozinho nas charnecas do norte da França quando se perde, e, em meio à natureza selvagem, é salvo e acolhido por uma linda mocinha que se dedica à arte medieval da falcoaria. Aliás, tudo parece medieval nesse mundo isolado onde o jovem entrou, mas, apesar da estranheza geral, ele não pensa muito a respeito, pois sua atenção está toda voltada para sua bela anfitriã – mas surpresas o aguardam (e ao leitor) antes do fim da história. É um conto encantador sobre amor, nostalgia, e sobre a fragilidade da "realidade".

Talvez não seja mesmo por acaso que A Demoiselle d'Ys esteja onde está: um lembrete de que a realidade pode não ser tão certa nem tão sólida quanto achamos que ela é, vem a calhar antes de entrarmos na parte "realista" do livro. Essa parte também é conhecida como o "Quarteto das Ruas", porque consta das histórias A Rua dos Quatro Ventos, A Rua da Primeira Bomba, A Rua de Nossa Senhora dos Campos, e Rue Barrée. Também aqui, Chambers faz de sua juventude em Paris a fonte de inspiração mais frequente, mas, embora devesse ser uma coisa extraordinária estudar arte em uma das cidades mais bonitas e de vida cultural mais intensa do mundo, os contos não têm a mesma força sem o toque sobrenatural da primeira parte. O destaque, creio, fica com A Rua da Primeira Bomba, que descreve as durezas do cerco de Paris durante a Guerra Franco-Prussiana: o horror da escassez de alimentos ganha um eficiente símbolo na figura de um personagem em especial, um menino de espírito empreendedor que se especializa em ficar de tocaia junto aos bueiros, para matar os ratos e vendê-los aos cidadãos esfomeados. Chambers (para sua sorte!) não testemunhou esses eventos, já que o cerco teve lugar durante o inverno de 1870-71, anos antes de sua chegada a Paris, mas, sem dúvida, ouviu muitas histórias a respeito.

Os outros três contos da segunda parte tratam de aspectos do cotidiano dos moradores do Quartier Latin, embora com enfoques diferentes: A Rua dos Quatro Ventos tem um clima melancólico e fala sobre solidão, enquanto A Rua de Nossa Senhora dos Campos e Rue Barrée são simples histórias juvenis sobre paixões e descobertas. Com um detalhe revelador: uma das questões centrais dessas histórias é o choque entre os costumes liberais (dissolutos talvez fique mais próximo da realidade) dos estudantes veteranos, já plenamente adaptados ao estilo de vida parisiense, e a visão de mundo inocente, até simplória, de um jovem recém-chegado, ainda com as marcas de uma educação tradicional em alguma cidadezinha do interior dos Estados Unidos. Robert W. Chambers talvez estivesse retratando a si próprio em personagens como o veterano Foxhall Clifford, que aparece nas duas últimas histórias e, ao olhar para os calouros Hastings e Selby, parece sentir um misto de pena de sua ingenuidade e inveja de sua pureza.

Em tempo: essas duas últimas histórias de O Rei de Amarelo prefiguram o rumo que a carreira literária de Chambers tomaria a seguir – ele se rendeu às pressões do mercado e passou a dedicar-se ao tipo de literatura que vendia, o que, na época, significava romance-para-moças, gênero com o qual acabou ficando rico. H. P. Lovecraft nunca o perdoou por isso, e, em O Horror Sobrenatural na Literatura, lamenta pelos bons trabalhos de terror que Chambers nunca produziu.

Como observação final, quero registrar que achei muito boa a edição da Intrínseca. Só há uma coisa que eu teria feito diferente: as notas. Se ter as notas no final do livro já é pouco prático, imaginem no final de cada conto!… O resultado é uma constante, incômoda e desnecessária interrupção no fluxo da leitura, o que poderia ser evitado mediante o simples expediente de colocar as notas no rodapé das páginas.

sexta-feira, março 13, 2015

Total War Rome - Destruição de Cartago

– (...) O que você faria depois de eles se renderem?
– Não cometeria o erro cometido em Cartago sessenta anos atrás. Eu arrasaria Numância completamente. Dividiria seu território igualmente entre cada oppidum ao redor, para fazer amizade com aqueles que antes foram nossos inimigos. Pelo mesmo motivo, levaria os filhos dos guerreiros sobreviventes a Roma, não para humilhá-los, mas para exibi-los em minhas procissões triunfais como os adversários nobres e dignos que são. E os educaria como oficiais romanos, como Gulussa e Hipólita, e os colocaria encarregados de uma força celtibera auxiliar para lutar por Roma enquanto avançamos ao norte pelas montanhas em território gaulês, que é para onde eu iria depois de conquistá-los. O legado do cerco de Numância não seria o triunfo vazio de um inimigo tão derrotado que jamais poderia se reerguer, mas a celebração de um inimigo transformado em um combatente por Roma.

*          *          *

A série de romances Total War: Rome é uma iniciativa louvável. A partir do sucesso do game de estratégia de mesmo nome, esses livros surgem como uma oportunidade valiosa para suscitar em alguns jovens o interesse pela História em geral, e pela Antiguidade em particular. Tudo bem, não em muitos: basta uma rápida espiada em qualquer fórum de games do gênero na internet para constatar que a grande maioria dos gamers (claro que com honrosas exceções) é formada por pessoas comuns, pouquíssimo intelectualizadas (muitas mal sabem escrever) e sem o menor interesse em saber o que foi que inspirou a criação do jogo com o qual se divertem. Mas vamos ser francos: um único adolescente do século XXI que venha a se fascinar com a vida e as realizações de romanos ou gregos já pode ser considerado uma façanha, e um serviço prestado ao mundo moderno. O lucro que os criadores do jogo e dos romances tiverem obtido ou venham a obter no processo, pode ser considerado uma recompensa merecida.

Destruição de Cartago é o primeiro volume da série, e, como o título indica, trata da Terceira e última Guerra Púnica, que durou de 149 a 146 a.C., e ao final da qual Roma, por fim, aniquilou o mais perigoso e persistente inimigo que já enfrentara até então. Cartago, cidade de origem fenícia situada no norte da África, em território da atual Tunísia, dominou durante séculos as rotas comerciais no Mediterrâneo, acumulando com isso enorme riqueza e poder, tornando-se a maior potência da época – o que fatalmente a colocaria numa posição de rivalidade em relação a Roma, quando esta última começou a tentar expandir seu poder e influência para além da Península Itálica.

A história narrada em Destruição de Cartago é a de Cipião, o Jovem, cujo nome completo era Públio Cornélio Cipião Emiliano, neto por adoção de Públio Cornélio Cipião, conhecido como Cipião, o Africano, um dos mais celebrados generais romanos, sempre lembrado por ter derrotado o temido Aníbal na batalha de Zama, em 202 a.C., o que deu a vitória a Roma na Segunda Guerra Púnica. Justamente por sentir que Cartago jamais deixaria de ser uma ameaça às ambições e possivelmente à própria existência de Roma, Cipião, o Africano, pretendia destruir totalmente a cidade, mas não teve autorização do Senado romano para isso. Cartago, derrotada, foi gradualmente reconstruindo suas forças ao longo das décadas seguintes, e, em meados do século II a.C., havia-se tornado mais rica que nunca, apesar de haver perdido suas colônias na Espanha, na Sicília e em grande parte do norte da África, tomadas por Roma durante a guerra. A origem da riqueza de Cartago era o comércio marítimo: fiéis a suas raízes fenícias, os cartagineses eram hábeis marinheiros e ainda melhores como negociantes, capazes de encontrar oportunidades para obter lucro em praticamente qualquer situação. Compravam e vendiam qualquer coisa: vinho, azeite, minérios, cereais, tecidos, armas, gado, escravos.

Em Roma, por essa época, existiam partidos anti e pró-Cartago, e não é difícil imaginar que, em Cartago, também houvesse vozes anti e pró-Roma; é claro que, independentemente da política, havia comércio entre as duas cidades, e lobbies influentes que não queriam que os lucros que vinham daí cessassem. Por outro lado, havia muitos – tanto romanos quanto cartagineses – que não viam possibilidade de convivência pacífica entre ambas a longo prazo: o Mediterrâneo simplesmente não era grande o bastante para isso. No Senado de Roma, a voz mais forte a favor da guerra total era a de Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), que passaria à História como Catão, o Censor. Veterano da Segunda Guerra Púnica, ele defendia a aniquilação completa do inimigo; não viveu o suficiente para ver seu desejo realizado, mas o bordão que criou, e que sempre pontuava seus enérgicos discursos no Senado, tornou-se uma palavra de ordem que continuaria a guiar os romanos na guerra, mesmo depois de sua morte: Carthago delenda est ('Cartago deve ser destruída').

É importante saber que Cipião, o Jovem, foi adotado não porque fosse órfão; entre os romanos, era considerado da máxima importância que nenhum homem morresse sem deixar ao menos um descendente masculino, pois as linhagens se perpetuavam somente pelo lado paterno, e evitar-lhes a extinção era uma preocupação constante de todos, por razões primeiro religiosas, e, mais tarde, também legais. Sendo assim, a lei e os costumes ofereciam essa alternativa: se um pai tivesse vários filhos homens, ele poderia, a seu critério, permitir que um deles fosse adotado por um amigo ou parente que não tivesse nenhum, e essa adoção podia ocorrer já na idade adulta, sem qualquer problema. Desnecessário dizer que não se devia adotar qualquer um: com esse gesto, você estava escolhendo quem herdaria todos os seus bens, e, muito mais importante que isso, a história e as glórias da sua família, bem como a responsabilidade, que nunca era leve, de continuar essa história com honra.

(Por uma questão de comodidade, daqui por diante, ao dizer "Cipião", estarei me referindo ao Jovem; quando quiser falar de seu avô adotivo, direi "Cipião Africano". É verdade que, depois de sua vitória sobre Cartago, Cipião também ganhou o direito de ser chamado Africano, o que aumenta ainda mais a confusão, mas o fato é que a nomenclatura usada pelos romanos exige, muitas vezes, que se estabeleçam convenções desse tipo, pois é muita gente com o mesmo nome ou com nomes parecidos.)

O pai natural de Cipião era o general Lúcio Emílio Paulo, que, já tendo dois outros filhos mais velhos, permitiu a seu amigo Públio Cornélio Cipião – filho de Cipião Africano – adotar o terceiro, que, a partir daí, passou a ter o mesmo nome que o pai e o avô adotivos, acrescido do Emiliano ao final, que servia para distingui-lo de ambos, além de lembrar que nascera da gens dos Emílios. Lúcio Emílio Paulo conduziu o exército romano à vitória na batalha de Pidna, em 168 a.C., que determinou a rendição da Macedônia e sua transformação em província romana. Aos olhos do mundo da época, essa vitória estabeleceu definitivamente Roma como uma potência, tendo o significado simbólico de extinguir de vez o que ainda restava do poder macedônico forjado por Filipe II e expandido por seu filho Alexandre, quase dois séculos antes. E foi em Pidna, segundo o autor David Gibbins, que o jovem Cipião, então com 17 anos, teve seu batismo de sangue, ao lado de seu fiel amigo Fábio Petrônio Segundo, da mesma idade e, também ele, filho de um veterano de Zama. Fábio é um personagem fictício, sob cujo ponto de vista o autor enfoca a maior parte dos acontecimentos ao longo do livro. Embora de origem humilde, sua bravura e a lealdade incondicional ao amigo de alta estirpe o levam a ascender na carreira militar, de modo que, por ocasião da batalha final contra Cartago, já ocupa o posto de primipilo (em latim, primipilus, 'primeira lança'), o centurião de mais alta patente numa coorte – o mais alto posto acessível a um homem que não fosse de nascimento ilustre no exército romano, até aquela época.

Por falar nisso, o livro está cheio de informações empolgantes para apaixonados por história militar (sei que são poucos, mas eu sou um deles e o blog é meu! – risos). Na época, as legiões ainda não eram o exército profissional que se tornariam mais tarde (a reforma de Mário ainda não havia acontecido): os cidadãos eram recrutados para uma campanha específica, conforme a necessidade, e, uma vez concluída esta, davam baixa, retornavam à vida civil, havendo a possibilidade de virem a ser convocados novamente. Porém, algumas coisas a respeito do exército romano já eram como continuariam a ser: disciplina e lealdade já eram as virtudes mais valorizadas. Um bom legionário não discutia uma ordem, e tinha muito mais medo de seu comandante que de qualquer inimigo, por boas razões: para eles, fugir do inimigo numa batalha era um péssimo negócio, pois significava apenas trocar uma morte que todos considerariam honrosa por outra que cobriria de vergonha o nome de sua família – que era, provavelmente, a coisa que um romano tradicional mais prezava na vida. Desertores não recebiam piedade alguma, e ainda deviam considerar-se afortunados quando a urgência dos tempos de guerra lhes garantia uma execução rápida, com um golpe de espada na nuca; sempre que havia tempo e viabilidade, a preferência era por transformar desertores em exemplos, submetendo-os a mortes mais dolorosas e humilhantes, como o fustuarium (o condenado era abatido a porretadas pelos próprios companheiros) ou até mesmo o damnatio ad bestias, a clássica – e aterradora – execução por feras famintas, que, além da execução em si, era também uma "curiosidade" a ser apresentada à população por ocasião de grandes eventos públicos (isso aparece no livro).


Destruição de Cartago aborda um problema com o qual Roma debateu-se durante gerações, como já sabe quem leu meus comentários sobre a série O Imperador, de Conn Iggulden: suas conquistas territoriais, seu poder militar e sua influência no cenário geopolítico da época haviam feito dela um império em tudo, exceto no nome – e na forma de administração e governo. Esse império continuava tentando reger-se como se fosse uma cidade-estado, e qualquer tentativa de inovação esbarrava no tradicionalismo empedernido que sempre foi uma característica do pensamento romano, pois os membros do Senado, em sua maioria, acreditavam sinceramente que o que havia funcionado para seus pais e avós, continuaria funcionando para seus filhos e netos. Para nós, hoje, parece natural aceitar o fato de que o mundo está sempre em transformação, mas, naquele tempo, isso não entrava na cabeça da maioria das pessoas – muitas vezes, nem mesmo das mais instruídas.

O escritor norte-americano James Freeman Clarke dizia que o político pensa na próxima eleição, e o estadista, na próxima geração. Infelizmente, não é de hoje que os "políticos" são muito mais comuns que os estadistas. Na Roma republicana, os governantes supremos eram dois cônsules, eleitos para mandatos de apenas um ano, o que causava certos problemas. Muitos cônsules não se interessavam em começar obras públicas que, embora de grande proveito para a cidade, não poderiam ser concluídas ainda em seu governo, simplesmente porque quem colheria as glórias seria quem calhasse de estar exercendo o consulado quando a obra fosse inaugurada. Pior: havia os que queriam a todo custo marcar seu ano de consulado com um triunfo, e, para conseguir isso, ordenavam ações militares em situações que poderiam ser resolvidas de forma diplomática, desperdiçando uma enormidade de recursos e de vidas. A propósito: hoje em dia, "triunfo" é geralmente entendido como um simples sinônimo de vitória, mas aqui, a palavra é usada com seu significado original; quem não souber o que era um triunfo romano pode descobrir clicando aqui.

O exército também sofria por outro motivo. Havia uma coisa chamada cursus honorum (latim para 'caminho da honra'), que vinha a ser a sequência de cargos que um romano de origens ilustres ocupava ao longo da carreira, incluindo tanto postos civis quanto militares. O próximo cargo que alguém iria ocupar dependia de indicações, que, em teoria, deveriam basear-se no desempenho que o sujeito tivesse mostrado nas funções anteriores – mas, é claro, às vezes as amizades e a troca de influências acabavam pesando mais que a competência. Por causa disso, uma legião que recebia um novo comandante só podia orar aos deuses para que ele tivesse boa cabeça para a guerra – pois, em casos de azar extremo, poderia tratar-se de alguém que, além de não ter capacidade alguma, fosse burro demais para dar ouvidos aos conselhos dos oficiais experientes sob seu comando.

Cipião é um romano à moda antiga no que se refere ao senso do dever e à retidão moral, mas, por outro lado, entende a necessidade de mudanças, tanto na organização do exército quanto no governo. Sua personalidade naturalmente franca e honesta faz com que ele se desanime quando, depois de participar de sua primeira campanha militar, na Macedônia, retorna a Roma para o triunfo de seu pai Emílio Paulo, e percebe todo o potencial para a intriga que existe nos meandros da política da capital. Isso é parte dos motivos que o levam a afastar-se da vida pública e, desgostoso, passar os anos seguintes no isolamento, caçando nas florestas montanhosas da Macedônia, acompanhado apenas pelo fiel Fábio.

Como dissemos, isso é parte dos motivos; há mais. Neste romance (que, não custa lembrar, é uma obra de ficção, tendo a história apenas como inspiração), Cipião é apaixonado por Júlia, a filha fictícia de um personagem real, Sexto Júlio César – houve vários homens com o mesmo nome; este, em particular, foi eleito cônsul em 157 a.C. Por causa de seus deveres para com a família e a República, Cipião abre mão de Júlia e ambos se casam com outras pessoas: ela, com um certo Metelo, dez anos mais velho e notório desafeto de Cipião; ele, com Cláudia Pulcra, por quem não tem qualquer afeição maior e com quem nunca chega a viver de forma conjugal. O ressentimento por ter sido obrigado a renunciar a seu amor soma-se ao fato de Cipião ser um soldado por natureza, não tendo a menor vontade de suportar anos de tédio exercendo cargos jurídicos ou administrativos, à espera do dia em que o cursus honorum talvez (só talvez) acabe levando-o a um posto de comando militar. Isso parece ainda menos provável considerando o período de paz que Roma vive após a derrota dos macedônios.

A esperada notícia de uma nova guerra em perspectiva é, por fim, trazida por Políbio (sim, o famoso historiador grego), amigo e mentor de Cipião, quando vai visitá-lo nas montanhas da Macedônia: os celtiberos, na Espanha, estão agitados, e, talvez insuflados por Cartago, parecem prestes a se rebelar contra o domínio romano. Note-se que os celtiberos, por muito tempo, haviam sido súditos de Cartago, pois a Espanha era possessão cartaginesa até ser tomada por Roma durante a Segunda Guerra Púnica, e que fizeram parte do exército que os romanos, sob o comando de Cipião Africano, enfrentaram naquele conflito. São guerreiros formidáveis, que Cipião respeita e sempre desejou transformar em aliados de Roma. A campanha contra os celtiberos, concluída com a tomada da cidade de Intercácia, surge como uma oportunidade de retomada da carreira militar de Cipião e como um aquecimento para a guerra final contra Cartago. Treze anos depois da derrocada desta última, Cipião voltaria à Espanha e lideraria a tomada de Numância, que marcou a sujeição definitiva dos celtiberos. No devido tempo, esse povo produziria não apenas excelentes legionários, como ele esperava, mas também estadistas, generais, e inclusive imperadores.

Citei há pouco um período de paz vivido por Roma depois da vitória sobre a Macedônia; deveria ter dito "período de aparente paz", pois, durante esses anos, está em andamento uma espécie de "guerra fria" entre Roma e Cartago. Os cartagineses reconstruíram sua poderosa marinha de guerra e agora têm dois portos separados, um deles totalmente dedicado às atividades bélicas, e erigiram altos molhes em volta de todo o complexo, para impedir a espionagem a partir de navios passando por sua costa. Roma cometeu um grave erro dando ao inimigo tempo para refazer suas forças.

Muitos historiadores atribuem a longa duração das duas primeiras Guerras Púnicas (a Primeira durou 23 anos, e a Segunda, 17), ao menos em parte, a uma espécie de equilíbrio: enquanto os cartagineses eram superiores no mar, os romanos levavam vantagem em terra firme. De fato, as legiões romanas de então, embora ainda não tivessem atingido o grau de excelência ao qual chegariam mais tarde, já eram muito mais disciplinadas e versáteis que qualquer outro exército que algum povo do ocidente pudesse pôr em campo naquela época. Já os cartagineses, devido a sua experiência na navegação comercial, conheciam o mar e sabiam conduzir um navio. Além disso, os romanos consideravam o serviço militar uma ocupação viril e valorosa, que conduzia o homem à honra e à glória; seu exército era uma força homogênea, formada essencialmente por cidadãos. Os cartagineses, por outro lado, não pareciam achar as artes da guerra algo particularmente honorável; tinham um exército que era um verdadeiro saco-de-gatos, composto de mercenários oriundos de quase todos os cantos do mundo conhecido. Praticamente só os oficiais eram cartagineses. A marinha, em compensação, contava com uma participação maior de cidadãos.

Na penúltima parte do livro, Fábio e Cipião vão a Cartago como espiões, disfarçados de mercadores, para descobrir o máximo possível sobre o poder militar inimigo. Isso já é às vésperas da guerra final, e o comandante supremo cartaginês de então é um homem chamado Asdrúbal, que se diz descendente do legendário Aníbal, contra quem Cipião Africano, o avô adotivo de Cipião, lutou na Segunda Guerra Púnica; de certa forma, a história parece prestes a se repetir. O que os dois espiões descobrem é aquilo que Cipião já imaginava: Cartago não poupou dinheiro nem trabalho para preparar-se para a guerra. A armada e o exército estão a postos, e até mesmo foi ressuscitada uma tradição de tempos antigos, a tropa de elite conhecida como o Batalhão Sagrado. Nada de mercenários nessa força: os soldados são todos jovens oriundos de famílias nobres cartaginesas, educados para serem guerreiros esforçados, quase fanáticos, que defenderão suas posições até a morte. O fato de esse batalhão estar pronto para entrar em ação revela algo mais: que os cartagineses estão se preparando para a guerra há muito tempo, pois esses rapazes, sem a menor dúvida, vêm sendo treinados desde a infância.


O desfecho da história é épico, sangrento e definitivo, não trazendo surpresas, exceto uma: pouco antes da batalha final em Cartago, Cipião conhece um jovem oficial de nome Gneu Metelo Júlio César, que, claro, é o filho de sua amada Júlia com seu velho rival Metelo – oficialmente, pelo menos. Cipião só precisa somar dois mais dois para perceber que o rapaz é, na verdade, seu próprio filho ("verdade" fictícia, é claro, pois Gneu não é personagem histórico). Naturalmente, o jovem Gneu irá sobreviver à batalha, fazer uma carreira honorável, e, um dia, tornar-se patriarca do ramo César da gens dos Júlios – o que implicaria que Caio Júlio César, que nasceria quase meio século depois, poderia ser seu neto ou bisneto, e, portanto, descendente genético, embora não nominal, de Cipião! Claro que tudo isso é pura liberdade criativa de David Gibbins, e, de qualquer forma, a ideia apresenta uma inconsistência fatal: como já vimos, as linhagens, entre os romanos, só se perpetuavam pelo lado paterno, de modo que um filho de Metelo e Júlia não levaria "Júlio César" no nome – teria o nome da família do pai, não da mãe.

Gibbins demonstra um vasto conhecimento da matéria que está abordando – ele é envolvido com arqueologia, tendo inclusive dirigido pesquisas nos sítios de Cartago –, mas não é propriamente um narrador formidável: seus personagens são todos muito parecidos na índole e no modo de pensar, sentir e agir. Em diversas partes ao longo do livro, são inseridos no texto pequenos "ensaios" sobre política e guerra sob a forma de diálogos, que, embora fascinantes, quebram o ritmo da história, e, às vezes, aparecem em momentos pouco críveis, como quando Cipião, ainda jovem, fica sabendo que um assassino acaba de ser despachado para eliminar Petreu, o velho centurião que foi seu mestre na academia – e, em vez de sair correndo para tentar salvar a vida do velho homem, lança-se a uma discussão que ocupa várias páginas, com Fábio e outro amigo, Ênio, sobre as intrigas que rolam pelas ruas de Roma e sobre a quem esse assassinato iria beneficiar. Só depois de o assunto estar bem debatido e esmiuçado é que os rapazes se põem em movimento!… Não acho isso lá muito realista.

A leitura de Destruição de Cartago é empolgante, mas não sei se seria a mais indicada para adolescentes que acabam de descobrir o mundo antigo por meio de um jogo de computador, e provavelmente ainda sabem pouco sobre ele. Algum grau de conhecimento prévio sobre a história de Roma, sua cultura e organização militar, se não for essencial, é certamente de grande ajuda. Porém, o livro tem um mérito especial: apresenta ao leitor, seja ele quem for, um vislumbre da essência original de Roma, uma cidade que, na época retratada, estava-se tornando cada vez mais poderosa, mas cujos habitantes (até então) ainda se pareciam muito com os da Roma dos primeiros tempos, uma Roma pequena e pobre, cuja riqueza repousava na bravura e nas virtudes de homens como Rômulo, Caio Cévola, Horácio Cocles, Marco Corvo, entre tantos outros. A essência de um povo severo, muitas vezes inflexível, para quem honra, dever e lealdade eram quase tudo o que tinha importância na vida, e os que não agiam de acordo com essa crença eram vistos como indignos de serem considerados verdadeiros romanos.

sábado, fevereiro 28, 2015

O Monstro de Florença

Este livro-reportagem muito bem escrito trata de um dos maiores, se não o maior mistério da crônica policial italiana em todos os tempos: o serial killer que ganhou da imprensa (na verdade, de Mario Spezi, coautor do livro) o apelido de "o Monstro de Florença". Embora, na capa, o nome de Spezi apareça junto ao de Douglas Preston, escritor norte-americano relativamente famoso no campo do romance policial, o texto parece ter sido integralmente escrito por Preston. A coautoria atribuída a Spezi fica por conta do fato de ele, no exercício de suas funções de jornalista, ter acompanhado a história do Monstro desde 1981 – muito antes de conhecer Preston – e formado, ao longo dos anos, um vasto arquivo de documentos referentes ao caso. Sua obsessão pelo assunto, e o conhecimento que acumulou sobre ele, levaram seus colegas da imprensa a apelidá-lo de "monstrólogo". Foi Spezi quem, apoiado em todo esse conhecimento, colocou Preston a par de tudo quando este último chegou a Florença, no ano 2000.

Foi em junho de 1981, a propósito, que a polícia e a imprensa somaram dois mais dois e perceberam que havia um serial killer em ação. O assassinato do casal Carmela De Nuccio e Giovanni Foggi, quando faziam sexo dentro de um carro junto à estrada rural denominada Via dell'Arrigo, perto de Florença, tinha muitos pontos de semelhança com o de Stefania Pettini e Pasquale Gentilcore, em 1974, em Borgo San Lorenzo, também nos arredores de Florença ― e, embora isso só tenha sido "desenterrado" depois, também com o de Barbara Locci e Antonio Lo Bianco, em 1968. O exame balístico mostrou que os projéteis responsáveis pela morte das vítimas, em todos os três crimes, eram de um mesmo lote, e, mais importante, haviam saído todos da mesma arma, uma pistola Beretta calibre 22. Um novo assassinato, com características idênticas, ocorreu em outubro de 1981, e outro em 1982. Daí em diante, os crimes se sucederam, sempre um por ano e sempre no verão, até 1985, quando pararam. Oito assassinatos duplos – dezesseis pessoas mortas. O modus operandi do assassino era sempre o mesmo: espreitar um casal que estacionasse o carro num local ermo a fim de fazer sexo, e atacar quando estivessem mais entretidos. Homem e mulher eram mortos a tiros e, depois, o corpo da vítima feminina era arrastado até uma certa distância e submetido a mutilação sexual – tudo sempre tão igual e metódico que chegava a parecer um ritual, o que não é raro em se tratando de serial killers. Análises de peritos da polícia determinaram que o assassino escolhia cuidadosamente o local, matando apenas em terreno que conhecesse bem; já as vítimas eram escolhidas ao acaso, bastava que estivessem no lugar certo (ou, do ponto de vista delas, errado) e que fossem um casal (numa ocasião, o Monstro pegou dois turistas alemães gays, mas os peritos foram unânimes em considerar que foi por engano, tanto que, ao perceber que eram dois homens, ele se retirou sem completar o ato costumeiro).


Por muito tempo, os suspeitos favoritos da polícia foram dois irmãos sardos, Salvatore e Francesco Vinci. Primeiro Salvatore e depois Francesco haviam sido amantes de Barbara Locci, a vítima feminina do crime de 1968, assassinada quando estava com o amante da vez, Antonio Lo Bianco, o que poderia ter servido de motivação para o ato – ciúme ou despeito. Acontece que o marido de Barbara, um certo Stefano Mele, havia confessado o assassinato dela e de Antonio, exatamente com a mesma motivação, sendo preso em seguida – e preso continuava em 1974 e 1981, de modo que não poderia ter cometido os crimes seguintes. Apesar disso, a análise balística não deixava dúvida: todos os assassinatos tinham sido praticados com a mesma arma. Poderia ter acontecido que Stefano – um homem de cabeça meio fraca –, depois de cometer o crime, tivesse entrado em pânico e feito uma canhestra tentativa de livrar-se da pistola, que, dessa forma, teria acabado em poder de um dos irmãos, já que estes tinham ligações com ele e sua família.

O fato de serem sardos já lançava uma certa sombra sobre os Vinci. Embora a Sardenha, politicamente falando, seja uma região autônoma da Itália, os sardos, em muitos sentidos, são um povo à parte, e gostam de continuar assim; para eles, os italianos do continente são "estrangeiros". Sardos têm há muito tempo a fama de violentos e vingativos, e também de se regerem por leis próprias, não escritas, e, por isso, não darem muita importância às leis instituídas. Acontece que nem Salvatore nem Francesco pareciam encaixar-se no perfil do assassino – um perfil feito pelo FBI americano, a pedido da polícia italiana. O Monstro (segundo o tal perfil) parecia sofrer de uma grave inadequação sexual, sendo provavelmente impotente e não se sentindo capaz de interagir com pessoas vivas, de modo que procurava "possuir" as mulheres da única maneira que conseguia: matando-as. Quanto aos homens, eram apenas um obstáculo que ele removia. Pois bem… Francesco, o mais jovem dos irmãos Vinci, era um notório mulherengo, enquanto Salvatore era ainda menos seletivo, "pegando" mulheres e homens indistintamente. Com certeza nenhum dos dois era impotente ou tinha medo de pessoas vivas. Entretanto, parece que ao menos parte do pessoal da polícia, promotores etc., tinha uma tendência a agarrar-se a uma teoria (mesmo que ilógica) e fazer o que fosse preciso para manter a investigação atrelada a ela – inclusive ignorar evidências, se estas fossem contrárias à tal teoria. Isso custou a ambos os Vinci longas temporadas na prisão.

Ainda nessa esfera, é preciso assinalar que o livro não pinta um retrato muito lisonjeiro da polícia italiana de maneira geral: dos oito duplos assassinatos investigados em conexão com o caso, apenas no último é que alguém teve a ideia de isolar a cena do crime. Nos outros sete, policiais, jornalistas e até reles curiosos puderam circular livremente pelos locais, e só Deus sabe quantas pistas que poderiam ter sido importantes foram inutilizadas. Isso sem mencionar as diversas vezes em que a investigação enveredou por becos sem saída devido a conflitos de egos, incapacidade de reconhecer erros, ou por causa da tradicional rivalidade entre a polícia e os carabinieri, que são o equivalente italiano de uma polícia militar.

Como é dito em algum lugar do livro, a investigação a respeito do Monstro de Florença transformou-se, ela própria, num monstro, e não apenas por causa das dimensões enormes que assumiu ao longo de muitos anos. Pessoas foram acusadas e presas injustamente, e mais de uma delas teve a reputação e/ou a vida arruinada. Numa reviravolta bizarra, o próprio Mario Spezi passou um tempo atrás das grades e foi levado a julgamento, acusado de obstrução da justiça, de plantar provas contra um inocente, e até mesmo de ser um dos "mandantes" dos crimes do Monstro. Quanto a Preston, escapou por pouco de passar os mesmos apertos, e parece que a única coisa que livrou sua pele foi sua cidadania americana – sendo que precisou deixar a Itália e abster-se de lá retornar durante um bom tempo, pois, caso o fizesse, poderia mesmo acabar preso. Uma vez em segurança nos Estados Unidos, entrou em contato com organizações de proteção à imprensa de diferentes países e deflagrou uma campanha internacional pela libertação do amigo. Fosse por causa dessa pressão ou porque os juízes acabaram vendo a luz, o fato é que Spezi foi absolvido e saiu de cabeça erguida, aclamado por jornalistas do mundo todo como um herói da liberdade de imprensa. Outros não tiveram a mesma sorte.

Além de tudo o que já citei, a investigação do Monstro incluiu o melhor e o pior que existe em qualquer força policial ou sistema de justiça: houve homens tenazes e corajosos, que, em seu esforço para descobrir o culpado, foram muito além daquilo que as atribuições de seus cargos exigiam, e houve oportunistas vulgares, que usaram o caso como trampolim para progredir na carreira. Pior ainda: Preston tem certeza de que a prisão e o julgamento de Spezi aconteceram por obra e graça do inspetor-chefe Michele Giuttari e do promotor Giuliano Mignini, que teriam levantado as acusações contra ele como represália pelas duras críticas que lhes fizera em artigos publicados em jornais.

O leitor atento provavelmente terá estranhado quando eu disse que Spezi foi acusado de ser mandante dos crimes do Monstro de Florença: desde quando um indivíduo perturbado que mata com motivação sexual tem "mandante"? Quem explica isso é um aristocrata florentino, amigo de Spezi e Preston, o conde Niccolò Caponi. Numa conversa com Preston, Caponi lhe apresenta o conceito de "dietrologia" (do italiano dietro, 'atrás'), a "ciência" de sempre ver coisas ocultas nos bastidores, de nunca aceitar explicações simples, dando sempre preferência à versão mais rebuscada que for oferecida a respeito de qualquer assunto ― e, se envolver figuras importantes da sociedade, melhor ainda. Em outras palavras: para a opinião pública italiana (segundo Caponi), não seria suficientemente emocionante admitir que o Monstro de Florença era algum tipo de assassino psicótico, que agia por conta própria e matava por suas próprias razões doentias; era muito mais interessante acreditar que, por trás dos crimes, havia alguma organização secreta, provavelmente uma seita satânica que enviava o assassino, ou assassinos, em busca de despojos sexuais humanos para serem usados em rituais macabros. Por mais que custe crer, essa versão digna de tabloide sensacionalista orientou durante anos uma das principais linhas de investigação no caso do Monstro (conduzida por Giuttari, o que explica o porquê dos ataques de Spezi). Eu diria que o conde Niccolò tem um olhar bastante arguto, mas engana-se quando afirma que o gosto pela "dietrologia" é uma característica tipicamente italiana: basta ver a paixão do público norte-americano (e de muita gente em todos os países do mundo) por teorias da conspiração, para constatar que esse fenômeno não tem fronteiras.

O Monstro de Florença é um livro de não-ficção que não fica a dever nada a um bom romance de suspense – e, por falar nisso, não poderia deixar de mencionar que, além de Preston, outro escritor americano interessou-se pela história do Monstro: ninguém menos que Thomas Harris, autor de O Silêncio dos Inocentes e de sua sequência, Hannibal, que mostra o psiquiatra/psicopata Dr. Hannibal Lecter vivendo em Florença e trabalhando como curador da biblioteca do Palácio Caponi (sim, o palácio da família do conde Niccolò). Harris estudou o caso do Monstro e até assistiu aos julgamentos de alguns acusados, e detalhes reais dos crimes e de sua investigação foram uma clara fonte de inspiração para seus escritos.

sexta-feira, janeiro 23, 2015

Peter Pan

Não sei se Peter Pan ainda é muito popular entre as crianças da geração atual, mas a minha infância ele sem dúvida marcou, e bastante. Conheci o personagem (por que não confessar?) por meio do desenho animado da Disney… Acho que foi assim para a maioria das pessoas desde 1953, ano em que o desenho estreou. Só agora, já com 40 anos nas costas, é que fui ler o livro de James M. Barrie. Quando garoto, li a versão de Monteiro Lobato, publicada em 1930 ― bem antes de qualquer tradução do livro original para o português. Lobato era fluente em inglês, tendo, inclusive, traduzido desse idioma várias obras importantes, especialmente infanto-juvenis, como O Livro da Selva, de Rudyard Kipling. O engraçado é que, já sendo um tradutor renomado, ele não tenha sugerido aos editores com quem costumava trabalhar sobre a possibilidade de publicar no Brasil o livro de Barrie, ou talvez a sugestão não tenha sido aceita, não se sabe. Em todo caso, o que o criador do Sítio do Pica-pau Amarelo acabou fazendo foi escrever seu próprio Peter Pan, no qual, em vez de meramente traduzir a história, tratou de recontá-la à sua maneira. Isso resultou num divertido caso de "adoção", com o herói da Terra do Nunca contracenando com os personagens do Sítio em pelo menos duas ocasiões nos livros seguintes de Lobato (aliás, embora eu não tenha conhecimento de nenhuma prova disso, desconfio seriamente que Barrie e Lobato tenham trocado algumas cartas). Outro dado interessante (e este sim, concreto) é que Barrie doou os direitos autorais de Peter Pan ao hospital infantil de Great Ormond Street, em Londres, porque, como explicou a amigos e familiares na época, queria que sua obra beneficiasse os jovens de todas as maneiras possíveis. Bacana, não é? Embora a legislação que regulamenta a propriedade intelectual no Reino Unido preveja que uma obra caia em domínio público após 70 anos da morte do autor, aparentemente existem providências legais que podem ser tomadas para evitar isso, pois o hospital continua, ainda hoje, obtendo uma parcela significativa de sua receita graças à generosidade de Barrie, que faleceu em 1937.

Peter Pan, o personagem, é mencionado pela primeira vez no romance The Little White Bird ('O Passarinho Branco'), de 1902. Esse era um livro para o público adulto, e a menção a Peter Pan o faz parecer quase uma figura folclórica: um personagem conta a outro sobre o misterioso menino que não crescia e que, de vez em quando, podia ser encontrado brincando no parque de Kensington Gardens (onde hoje há uma estátua representando Peter). A aventura que todos conhecemos e amamos, entretanto, surgiu em 1904, como uma peça de teatro, depois adaptada na forma de livro, cuja publicação original foi em 1911.

Fazer um pequeno resumo do enredo é inevitável quando se está comentando um livro, por mais que seja desnecessário se esse livro for Peter Pan. Todos conhecemos o começo da história: Wendy, João, Miguel e seus pais, Sr. e Sra. Darling, formam uma típica família inglesa do início do século XX. Nada de diferente ou emocionante jamais aconteceu com qualquer um deles, até o dia em que a mãe percebe que há folhas de árvore no chão, junto à janela do quarto das crianças, como se alguém houvesse entrado por ali, o que não é possível, pois o quarto fica no terceiro andar. Wendy, interpelada a respeito, não se mostra surpresa, pois, embora até aquele momento ainda não tenha propriamente conversado com Peter Pan, ela sabe quem ele é, e também sabe que costuma ficar escondido atrás da janela para ouvir as histórias que a Sra. Darling conta aos filhos.

Surge aí uma questão que é mais importante do que parece: como é que Wendy já conhecia Peter Pan? A resposta está numa explicação que o autor havia oferecido pouco antes, sobre as muitas e diferentes "Terras do Nunca": existe uma dentro da cabeça de cada criança. Peter faz parte da Terra do Nunca de Wendy, e por isso ela já sabe tudo sobre ele, antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. Não é de surpreender que Peter faça parte também das Terras do Nunca de João e Miguel, acostumados como eles estão a pensar como a irmã mais velha.

Quando Pan aparece em carne e osso, trazendo consigo a possibilidade de Wendy e os irmãos conhecerem de facto a Terra do Nunca, temos um momento-chave: o momento em que a linha que separa fantasia e realidade temporariamente se apaga, permitindo a alguns habitantes do nosso mundo (somente alguns: os que sabem de certos segredos ou conhecem as pessoas certas) passar, concretamente, para os domínios da imaginação. Para o leitor de hoje, pode parecer que essa ideia, embora nunca deixe de ser sedutora, já é conhecida de sobra, por haver tantas histórias baseadas nela, incluindo clássicos como A História Sem Fim e As Crônicas de Nárnia, mas convém não esquecer a época em que Barrie viveu e escreveu: Peter Pan foi provavelmente uma das primeiras obras modernas de fantasia a lançarem mão desse recurso.

A Terra do Nunca é algo como o parque de diversões perfeito para crianças que não ligam de arriscar a vida ― pois, por estranho que pareça para quem está acostumado com a versão adoçada da Disney, sangue e morte fazem parte do dia a dia de Peter e seus amigos. O narrador menciona, com a indiferença de quem faz uma observação sobre o tempo, que "o número de meninos na ilha, evidentemente, varia de acordo com quem é morto, e coisas assim". Além dos meninos, os outros habitantes da ilha são animais selvagens de tipo não especificado, as esquivas e relativamente inofensivas sereias, uma tribo de índios ferozes com os quais Pan e sua gangue mantêm uma relação de respeitosa inimizade, e, é claro, os piratas, comandados pelo legendário capitão James Gancho.

Ao falar sobre os piratas, o autor não faz cerimônia para usar referências históricas reais: vários nomes são citados, a maioria de piratas que existiram mesmo, e também o do rei Carlos II, tomado como referência cronológica ― um caso raro em que a história do mundo fictício e a do real se misturam, sugerindo que a Terra do Nunca deve ficar em algum lugar "físico", afinal de contas (como devem se lembrar, pouco antes havia sido dito que ela ficava nas cabeças das crianças; a dubiedade provavelmente é intencional). Chega-se a dizer que, antes de se tornar capitão, Gancho serviu como imediato sob o comando do bem real Barbanegra ― Edward Teach (?-1718), talvez o mais famoso pirata de todos os tempos.

Sobre Gancho, eu realmente não esperava ter de escrever isso, mas preciso dizer a verdade: trata-se do personagem mais carismático do livro, na verdade o único personagem interessante. Peter Pan, o "herói", não passa de um moleque irritante, bobo, superficial, convencido e egoísta ― e não me venham dizer que todo garoto dessa idade é assim: eu próprio tenho dois sobrinhos, agora já crescidos, que, quando tinham a provável idade de Pan, eram muito mais dignos de admiração que ele (talvez eu não devesse encher tanto a bola daqueles garotos, que de vez em quando leem o meu blog, mas enfim… Não estou dizendo mentira nenhuma!). Além do mais, isso de "idade" é relativo quando estamos falando de alguém que não envelhece ― afinal, imagino que, mesmo sem nunca ficar mais alto ou trocar a dentição, um cara que já viveu talvez séculos tenha o dever de ter acumulado alguma sabedoria. Pan não acumulou nenhuma. Para não dizermos que não há traço algum de complexidade em sua personalidade, ele sofre de um conflito íntimo: embora goste de ser visto como o bambambã, o que nunca precisa de ninguém, e despreze os adultos em geral e as mães em particular, Peter tem momentos de fragilidade, nos quais precisa daquele carinho incondicional que só uma mãe (biológica ou não) pode oferecer. Nesses momentos, é Wendy quem o conforta, pois, embora isso vá surpreender e talvez até chocar muita gente, é isso o que ela é para ele: uma mãe. Jamais uma namorada, noção que a mente infantil e simplória de Peter nem sequer concebe.

Quanto aos outros personagens, há pouco a dizer. Wendy deixaria as feministas irritadas, pois, com todas as possibilidades de aventura oferecidas pela Terra do Nunca, só se interessa em brincar de casinha, ainda que com meninos reais fazendo as vezes das bonecas. Os Meninos Perdidos parecem todos levemente retardados, mas talvez não seja culpa deles, pois, como é dito em vários momentos ao longo do livro, são proibidos de saber qualquer coisa que seu chefe não saiba ou de serem melhores que ele seja no que for ― e, com um parâmetro desses, não dá para exigir muito dos coitados. João e Miguel, por fim, são duas perfeitas nulidades, que só ganharam um lugar na história por serem irmãos de Wendy. O capitão Gancho é diferente: trata-se de um homem de boas maneiras e de certa cultura, educado num colégio inglês tradicional, cruel mas também valente, dotado de senso de honra (tudo bem, um senso de honra um tanto "flexível", como o de todo pirata) e dado a ter momentos contemplativos, coisa que seu arqui-inimigo vestido de verde nem saberia o que significa.

Barrie dá a seu bando oportunidade para inúmeras aventuras, das quais apenas algumas chegam a ser narradas, e não preciso falar sobre elas, pois qualquer criança mais ou menos esperta (e também os que já foram crianças) se lembrará de no mínimo uma boa parte, seja graças ao desenho ou a alguma das muitas versões infantis impressas que o livro já ganhou, isso para não falar no surpreendentemente empolgante filme Hook (1991), com Dustin Hoffman como o capitão Gancho e Robin Williams na pele de um Peter Pan finalmente adulto (!). A parte mais significativa, porém, é, de longe, o capítulo Você Acredita em Fadas?, em que a fada Sininho salva a vida de Peter ao beber o veneno que Gancho havia destinado a ele, e então, às portas da morte, só tem uma esperança de salvar-se: a condição é que um número suficiente de crianças mundo afora ainda acredite em fadas. A imaginação ainda se afirma como uma das forças mais poderosas que existem, mesmo nesse mundo moderno, que lhe é tão pouco propício, e esse trecho de Peter Pan é, sem dúvida, uma das passagens mais famosas a celebrarem esse fato, em toda a história da literatura de fantasia. Curiosamente, esse momento-chave do livro foi abolido na versão da Disney, pois nela Gancho tenta matar Peter usando uma bomba em vez de veneno, e Sininho o salva apenas alertando sobre o perigo.

O final de Peter Pan é ao mesmo tempo esperançoso e melancólico. É esperançoso porque nos deixa com a firme convicção de que a imaginação sempre existirá no mundo, e melancólico porque afirma que a participação de cada um de nós nesse milagre cessa, de forma inexorável, assim que deixamos a infância ― um ponto de vista com o qual eu nunca vou concordar. Para mim, um ser humano (de qualquer idade) só perde o acesso aos reinos da fantasia quando permite, voluntariamente, que suas capacidades imaginativas definhem e morram. Mesmo assim, o final do livro tem sua beleza e lirismo, e deixa o leitor com vontade de refletir.

Como já deve ter notado quem me leu até aqui, não achei Peter Pan a oitava maravilha do mundo; não vou me derramar em elogios só porque se trata de um clássico. Com base nas versões que conhecia, e no que sabia sobre o livro, eu esperava bem mais dele. Entretanto, ele não chegou a ser um clássico à toa ― tem suas qualidades, que não são desprezíveis. Além disso, não se deve cometer o erro de esquecer o fator linha do tempo. Quando este livro foi escrito, a literatura de fantasia como a compreendemos hoje mal dava seus primeiros passos; praticamente não havia onde se apoiar, e a inspiração só podia vir direto da mitologia e do folclore, raízes originais da literatura de imaginação. É fato que qualquer leitor que goste de fantasia e tenha uma experiência razoável com o gênero, sem dúvida poderá citar ao menos um punhado de obras que superam Peter Pan em anos-luz, mas que foram escritas muito depois, e, portanto, têm sua dívida para com a obra de James Barrie, seja porque ela foi uma influência, ou apenas porque abriu um caminho.

sexta-feira, dezembro 12, 2014

Ao Cair da Noite

Gosto de comparar a atividade de escrever com uma corrida: um romance está para um conto assim como uma maratona está para os cem metros rasos. O romancista, tal como o maratonista, precisa saber administrar seus recursos ao longo da "prova", saber o momento de acelerar e o de desacelerar, e pode até mesmo, com técnica e paciência, recuperar-se de uma largada ruim e vencer. Já o contista vive situação semelhante à de um corredor velocista: a vitória e a derrota são decididas em questão de instantes. Numa corrida de cem metros rasos, a única maneira de vencer é garantindo a dianteira logo nos primeiros segundos; não haverá tempo para tentar de novo. O mesmo se aplica ao conto: o autor só dispõe do espaço de poucas páginas para fazer com que sua história funcione – ou não. No mundo do atletismo, é preciso escolher: não dá para ser velocista e maratonista, já que cada modalidade requer preparação física e treinamento específicos. Na literatura, em princípio, nada impede que um mesmo autor se dedique ao romance e ao conto, mas apenas os muito bons em seu ofício conseguem se sair igualmente bem nos dois gêneros.

Nenhum crítico do mainstream jamais vai admitir que Stephen King seja um bom escritor. A maioria deles provavelmente nunca o leu, nem pretende; parece que meter o malho no cara é meio que um requisito para ser bem visto em certos círculos, quiçá para ser convidado a certas festas. Não é considerado cool gostar de Stephen King, talvez porque ele tenha muitos fãs e seus livros vendam muito. Afinal, admitir que algo de que o "grande público" gosta possa ser bom significa admitir também que muito mais gente além dos críticos pode ter cérebro, e isso seria blasfemo, não seria?

A essa espécie de "crítico", deixo o meu mais cordial fuck you, junto com minhas desculpas a algum que eventualmente não se enquadre no estereótipo. O que acontece é que King geralmente satisfaz com brilhantismo a todas as exigências que um leitor razoável poderia fazer a um escritor: sua prosa é fluente, agradável de acompanhar, seus personagens têm vida, sua narração prende, seus mistérios convencem, seus horrores funcionam. Se tudo isso não bastar para fazer de alguém um bom escritor, bem, então receio que coisa alguma possa fazer essa "mágica".

Portanto, e pouco importa o que digam certos frustrados invejosos, sim, Stephen King é um dos que dominam, e muito bem, a arte da escrita. Quem já leu várias de suas obras tem a impressão de que ele fica à vontade tanto em narrativas curtas quanto nas longas, e isso torna duplamente curiosa a confidência que ele nos faz na introdução de Ao Cair da Noite: sua própria experiência, como escritor, a respeito da questão conto/romance. Segundo King, "muitas coisas na vida são como andar de bicicleta, mas escrever contos não é uma delas. pra esquecer como se faz". Ele começa relembrando (com uma certa nostalgia, ao que parece) os tempos em que era um jovem professor do ensino médio, escrevia contos nas horas vagas e tentava vendê-los para publicação em revistas. Nessa época, pelo que nos conta, ele não se lançava em reflexões teóricas sobre o ato de escrever: simplesmente escrevia, de forma mais ou menos instintiva, conforme as ideias iam aparecendo, e a "opção" pelo conto não era opção nenhuma, mas uma necessidade, já que histórias curtas são mais rápidas de escrever e mais fáceis de vender, o que era um fator a considerar para um jovem aspirante a escritor, e já com esposa e filhos em quem pensar. Mais tarde, com a carreira já consolidada e podendo escrever em tempo integral, King passou a se dedicar ao romance, e, segundo ele mesmo, parece ter perdido a "manha" de como escrever contos; ele chega a contar, no que parece até uma confissão, que algumas boas ideias morreram porque ele não sabia mais como pô-las por escrito.

A salvação (sempre segundo King) veio de forma inesperada, com um convite para editar o volume de 2006 de uma antologia anual que reúne sempre 20 dos melhores contos publicados nos EUA ao longo do ano anterior. Para selecionar os 20 que fariam parte do livro, King leu centenas de contos, a maioria de autores novos, o que, para ele, valeu por um curso intensivo de recapitulação sobre a arte da ficção curta. É a essa experiência que o escritor atribui o revigoramento de suas capacidades como contista, e, por conseguinte, a própria existência da maior parte das histórias que encontramos neste Ao Cair da Noite. Que, vamos admitir desde já, estão longe de ter a mesma força que aquelas do extraordinário Sombras da Noite: seja devido à idade ou por algum outro motivo, Stephen King parece cada vez mais relutante em recorrer a elementos sobrenaturais, preferindo com frequência o thriller psicológico e o suspense. Mesmo quando o sobrenatural aparece, geralmente é de forma bem mais soft que aquilo que nós, leitores de longa data, estávamos acostumados a esperar de King. Há apenas uma ou outra exceção – mas nem mesmo tudo isso faz de Ao Cair da Noite uma leitura ruim.

Uma observação que talvez seja pertinente: revendo o sumário do livro, verifiquei que Ao Cair da Noite inclui ao todo 13 histórias; destas, cinco não mostram qualquer sinal de elementos sobrenaturais. Em quatro outras, o sobrenatural até aparece, mas de forma incidental, quer dizer, ele faz parte da narrativa, mas sem desempenhar papel central, ou até mesmo é apresentado com incerteza – sabem aquele tipo de situação em que o personagem e/ou o leitor ficam em dúvida sobre se estão diante de um mistério ou se a coisa pode ter explicação natural? Sobram quatro contos nos quais a presença do sobrenatural é indiscutível e essencial, e foi uma sacada inteligente começar o livro justamente com um desses: Willa, um dos "contos novos". Trata-se da história de um grupo de passageiros cujo trem sofreu uma pane, e que agora estão encalhados num fim-de-mundo semiesquecido no interior do Wyoming, à espera de que sejam tomadas providências para permitir que continuem sua viagem. O protagonista, David, tem a sensação de que há alguma coisa importante que ele e seus companheiros estão deixando de perceber, mas não consegue distinguir o que pode ser. Quando nota que sua noiva, Willa, que viajava com ele, não está na estação, David deduz que ela deve ter ido (sem avisá-lo) matar o tempo num bar de beira de estrada a alguma distância dali, e decide ir atrás dela, sem imaginar o que irá descobrir.

O segundo conto, A Corredora, em compensação, é um típico "Stephen King 2.0". Uma mulher chamada Emily perdeu seu bebê de poucos meses; nessa situação, em que muitas pessoas buscariam alívio no álcool, ela, quem diria, encontra refúgio na corrida. Começa a praticá-la todos os dias, de forma cada vez mais obsessiva, até estar com um preparo físico digno de uma atleta olímpica – e um casamento a ponto de implodir. Ao ter um atrito sério com o marido por conta dessa obsessão, Emily decide sair de casa, ao menos por uns tempos, toma emprestada a casa de praia de seu pai, e lá fica durante as semanas seguintes, preenchendo o tempo com leitura e, é claro, principalmente com corridas. O que ela não esperava era que um de seus vizinhos naquela praia tranquila fosse um maníaco homicida, e que correr, que era sua terapia, pudesse, de uma hora para outra, virar um fator crucial para sua sobrevivência. Uma história sem qualquer sugestão de presenças espectrais, mas na qual não faltam surpresas, aflição e arrepios.

Seguem-se altos e baixos, como é normal em qualquer livro de contos. Há certas histórias curtas e, a meu ver, sem maior relevância: O Sonho de Harvey, Posto de Parada, The New York Times a Preços Promocionais Imperdíveis (sim, isso é o título do conto!) e mais algumas. Mas é então que nos deparamos com algo muito mais interessante: As Coisas que Eles Deixaram Para Trás. Essa é a história de Scott Staley, um homem que um belo dia achou que andava trabalhando demais e precisava de um descanso, e então ligou para o trabalho e mentiu que estava doente. Atire a primeira pedra quem nunca fez isso pelo menos uma vez na vida! Acontece que: 01) Scott trabalhava no World Trade Center; 02) o dia em que ele decidiu dar-se folga foi precisamente terça-feira, 11 de setembro de 2001. Não é difícil imaginar o efeito de algo assim sobre a cabeça de uma pessoa. Todos os colegas de trabalho de Scott – pessoas com quem ele conviveu durante anos – morreram de uma vez só, e ele sabe que só se salvou por acaso, pelo fato fortuito de seu desejo de ficar na cama haver sobrepujado sua força de vontade exatamente naquele dia, e não em outro qualquer. Mas, terríveis como possam ser, esses eventos ainda fazem parte do universo conhecido e "palpável". Bem diferente dos fatos inexplicáveis que começam a acontecer com Scott cerca de um ano depois: objetos pessoais dos colegas mortos aparecem em seu apartamento, lugar ao qual apenas ele deveria ter acesso, sem contar que tais objetos já nem deveriam existir, pois não há como não terem sido destruídos no atentado que matou seus donos. Com o surgimento de cada objeto, Scott também passa a ter terríveis visões dos últimos e desesperados momentos da pessoa que o possuía. Mesmo quase pirando de medo (e quem o culparia por isso?), nosso herói sente, ou acredita, que tudo isso esteja acontecendo por um motivo; talvez seus colegas, onde quer que estejam, queiram que ele faça por eles algo que já não podem fazer por si mesmos.

As Coisas que Eles Deixaram Para Trás é um ótimo conto, mas não leva a coroa de melhor do livro, só por culpa de N. Acredito que essa seja a história curta de maior alcance e a mais ambiciosa a sair do computador de King em muitos anos. Certo, não é tão "curta" assim: são 57 páginas. A narrativa é apresentada como sendo um conjunto de anotações feitas por John Bonsaint, um renomado psiquiatra que se suicidou recentemente. À primeira vista, as anotações parecem banais, referindo-se a um paciente que o Dr. Bonsaint designa apenas pela inicial N. E esse "N." sofre de um caso extremo de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), que o faz gastar horas, todos os dias, a contar e organizar todo tipo de coisa. Pacientes desse transtorno geralmente não conseguem explicar o porquê de agirem assim; alguns relatam sentir que contar e organizar é necessário para manter o universo nos eixos – só que, no caso de N., isso não é força de expressão. Ele afirma saber exatamente onde, quando e como começou seu distúrbio: num campo na região rural de uma pequena cidade do Maine (claro que tinha que ser no Maine!), onde chegou por acaso, enquanto praticava seu hobby de fotografar paisagens. Nesse campo existe um estranho círculo de pedras, que, examinadas à luz do dia, não parecem ter nada de extraordinário… Mas, ao crepúsculo, parecem ter sido entalhadas com caras espantosas; algumas, de monstros inimagináveis; outras, humanas, mas, segundo N., ainda mais horrendas que as primeiras.


Além disso, as pedras, vistas a olho nu, são sete, mas, olhando através do visor de sua câmera, são oito. Ele está convencido de que o círculo é algum tipo de portal, ligando nosso mundo a alguma dimensão de pesadelos, e o que é pior: está convencido também de que esse portal está apenas precariamente selado, e de que o fato de tê-lo descoberto fez dele, N., o guardião involuntário da passagem. O conto perpetua uma tradição antiga na literatura fantástica, aquela clássica situação em que o desafortunado personagem se vê diante da que talvez seja a dúvida mais angustiante com que um ser humano pode se defrontar: estou mesmo lidando com algo sobrenatural, ou estou simplesmente ficando louco? A mesma indagação já deu origem a um punhado de obras-primas do gênero; para conhecer um excelente exemplo, leiam O Horla, de Guy de Maupassant – em minha opinião, um dos melhores contos de terror já escritos. Durante a leitura de N., também é impossível não pensar em H. P. Lovecraft, inclusive (mas não apenas) pela menção do nome "Cthun", que bem poderia ser apenas outra forma de "Cthulhu"!… Porém, apesar dessas insinuações de dívidas para com esses autores, King faz questão de deixar bem explícito que a influência decisiva para N. veio mesmo de O Grande Deus Pã, de Arthur Machen: a epígrafe do livro é um trecho dele; no próprio conto, o personagem N. pergunta ao Dr. Bonsaint se alguma vez o leu; e se, com tudo isso, alguma dúvida ainda restar, uma das notas ao final do volume esclarece tudo. Apesar de meu primeiro contato com a obra de Machen não ter sido tão emocionante quanto eu esperava, eu sempre soube que O Grande Deus Pã era uma história que eu teria que ler, e agora muito mais.

Para finalizar, quero registrar a curiosa presença de O Gato dos Infernos, um conto antigo (a publicação original é de 1977, e tem adaptação no filme Tales from the Darkside, ou Contos da Escuridão, de 1990), mas que, inexplicavelmente, ainda não havia aparecido em nenhuma das coletâneas anteriores. É legal ter esse vislumbre do "antigo" Stephen King, o do tempo em que ele não se preocupava tanto em soar moderno. Entretanto, eu procuro não julgá-lo: um escritor não tem que escrever pensando em agradar a seus leitores, tem que escrever para agradar a si mesmo, e, ainda que Ao Cair da Noite não tenha me mantido empolgado da primeira à última página como outros trabalhos do autor já fizeram, ele de forma alguma é um livro que eu considere dispensável. Todo fã de King tem que ler.

sexta-feira, novembro 21, 2014

Em Nome do Mal

Devo começar confessando que romance policial nunca ocupou um lugar no "top four" de meus gêneros preferidos de leitura, que, embora eu nunca tenha pensado muito a respeito, é provavelmente formado por fantasia, ficção científica, ficção histórica e horror, não necessariamente nessa ordem (eu não saberia em que ordem colocá-los, na verdade) e pelos crossovers possíveis entre esses gêneros. Quanto à ficção policial, devo ter lido no máximo dois ou três livros desse tipo na vida; não sei por que, mas o gênero nunca me empolgou de verdade. Mesmo em se tratando de um autor de que gosto, como Sir Arthur Conan Doyle, merecidamente considerado um gigante da ficção policial por ter criado Sherlock Holmes, foi a seus contos de terror que dediquei atenção de forma preferencial. Tenho duas das aventuras de Holmes na minha estante, esperando a vez – mas o fato de já estarem esperando há um bom tempo, enquanto vários outros livros foram lidos assim que chegaram, deve ter algum significado.

Sendo assim, é preciso procurar uma explicação para o fato de que Em Nome do Mal, de autoria do (para mim) desconhecido escocês James Oswald, tenha me atraído. Provavelmente foi porque a capa e o título apontavam mais para uma obra de terror do que policial, e porque, ao pegá-lo e fazer aquele reconhecimento básico que todo leitor sabe como é (contracapa, orelhas, seguidas de uma folheada aleatória e da leitura de pequenos trechos em qualquer lugar onde os olhos batam), a impressão foi a de que o que encontraria seria um crossover entre os dois gêneros, o que de fato é o caso... De certa forma. A ideia soou interessante e um tanto inusitada, pois, embora vários escritores consagrados de literatura policial também tenham se aventurado em histórias sobrenaturais (e vice-versa: não esqueçamos Edgar Allan Poe!), mesmo esses parecem considerar os dois tipos de histórias como compartimentos estanques dentro de sua obra. Talvez isso aconteça porque a ficção policial, como gira em torno de investigação, apele muito à lógica e à razão, enquanto o terror, para funcionar, depende do estímulo a algumas das emoções mais básicas do ser humano. De todo modo, desde que se saiba fazer isso bem, é uma mistura que pode perfeitamente render coisas boas.

Edimburgo, Escócia. Recém-promovido a inspetor, o policial Anthony McLean sofre a aflição de uma perda pessoal quando sua avó, que o criou desde a morte de seus pais quando ele tinha quatro anos de idade, entra em coma, com pouca chance de se recuperar. Ainda afetado por esse acontecimento, McLean se depara com uma série de assassinatos excepcionalmente cruéis, e de suicídios ocorridos em condições estranhas. Todos esses casos parecem não ter relação alguma entre si, mas, ao mesmo tempo, mostram semelhanças que o cérebro investigativo do inspetor se recusa a admitir que sejam meras coincidências. As vítimas são todas homens idosos e ricos, membros respeitados da sociedade de Edimburgo, e todos eles tiveram o tórax aberto, retalhado, sendo que cada um teve um órgão diferente cortado e colocado em sua boca (credo). O detalhe desconcertante é que, logo depois de cada assassinato, houve um suicídio, de alguém aparentemente sem nenhuma conexão com a vítima – e, apesar disso, sempre aparecem evidências inegáveis apontando que o suicida foi o assassino. Mais perturbador ainda: se cada assassino se matou logo em seguida, e a polícia não divulgou detalhes das mortes, como é possível que todos os crimes tenham sido cometidos de modo idêntico, parecendo seguir um mesmo modus operandi, como se fosse um ritual?

As estranhezas não param por aí. Uma velha mansão que pertenceu a uma rica e poderosa família no começo do século XX está sendo reformada quando a derrubada de uma parede em suas fundações revela uma câmara oculta, e, dentro dela, um espetáculo macabro: o corpo mumificado de uma jovem assassinada há cerca de 60 anos. Suas mãos e pés estão pregados ao piso de madeira, há uma espécie de círculo mágico traçado à sua volta, e vários órgãos foram retirados e conservados dentro de vidros, que, por sua vez, foram dispostos ao redor, seguindo um padrão. Isso tudo torna óbvio que ela foi morta em algum tipo de cerimônia demoníaca. Como se trata de um crime praticado há tantas décadas, de modo que os responsáveis muito provavelmente já estão mortos, McLean não pode dedicar muito tempo a tentar elucidá-lo, pois seus superiores preferem, e com razão, que ele se foque nos crimes atuais, cujo mentor ainda pode estar à solta, mesmo que os executores diretos tenham se matado. Só que tudo o que ele vai descobrindo sobre esses outros casos parece levá-lo de volta ao da garota morta, como se, de uma forma sinistra que ele ainda não consegue determinar, todas as mortes estivessem interligadas. E, embora muitos dos elementos que ele vai descobrindo sejam seus velhos conhecidos devido a seus anos de experiência como detetive de polícia, há outros que parecem não ter explicação... Pelo menos, nenhuma explicação natural. Dessa forma, uma das coisas que conferem interesse ao livro é a chance que o leitor tem de ver uma mente essencialmente analítica e racional – a mente de um detetive – tentando processar fatos que, embora reais, só parecem fazer sentido caso ele admita um fundamento sobrenatural para eles, o que, por uma questão de princípios, recusa-se a fazer... até ser obrigado pelas circunstâncias.

Quem for ler Em Nome do Mal esperando uma grande dosagem de terror sobrenatural na fórmula talvez se decepcione: embora esse elemento seja uma parte fundamental no todo da história, ele mostra muito pouco a sua cara ao longo dela. Se eu próprio, de maneira geral, não me decepcionei, foi porque descobri no livro outras boas qualidades para compensar aquilo que eu procurava e não encontrei. A principal delas é sem dúvida a narrativa envolvente, que vai conduzindo o leitor de capítulo em capítulo, e o desafio de ir juntando as peças e, quem sabe, matar as charadas antes que o detetive o faça – isso me aconteceu umas duas vezes durante a leitura, e confesso que me peguei bem satisfeito ao ver que minhas teorias se confirmavam. Suponho que esse exercício mental seja uma das coisas que fazem os verdadeiros fãs de literatura policial gostarem tanto do gênero, e bem que fiquei com vontade de praticá-lo mais. O que achei frustrante foi o final, muito repentino e "fácil", se considerarmos as expectativas que o livro leva o leitor a criar.

Em Nome do Mal é o primeiro volume de uma série, mas é também uma narrativa "fechada", com início, meio e fim, de modo que ninguém precisa ficar com receio de lê-lo e depois ter que esperar talvez anos pela continuidade de uma história que o autor deixou "pendurada" num momento-chave. McLean soluciona o seu caso, mas seu próprio passado nebuloso, sobre o qual o autor, nessa primeira aventura, dá apenas pistas, leva-nos a ter vontade de continuar a acompanhá-lo. Posso dizer que, apesar do final pouco satisfatório, o livro não faz feio aos olhos de um não-fã de ficção policial, e que, se as próximas histórias do inspetor McLean seguirem nesse passo, James Oswald pode ter ganho um leitor assíduo.