quarta-feira, maio 22, 2019

O Cemitério

Exatos 30 anos depois de ser adaptado para o cinema pela primeira vez, um dos melhores e mais assustadores romances de Stephen King retorna às telas numa nova versão, que tem suscitado polêmica entre os fãs do mestre do Maine e entre os apreciadores de terror em geral. Há quem considere a versão de 1989, dirigida por Mary Lambert, superior, há quem prefira o remake que acaba de estrear, assinado pela dupla Kevin Kölsch e Dennis Widmyer, e também há quem não aprove nenhuma das duas versões e só recomende o livro. Certo, eu já escrevi sobre muitos filmes, quase sempre explorando suas conexões com a literatura, mas não sou um comentarista de cinema – para isso, precisaria fazer as coisas numa velocidade vertiginosa, de preferência através de um canal no YouTube em vez de um blog. Ocorre que, além de eu não gostar de falar para a câmera, ter que lidar com prazos exíguos tiraria a diversão da coisa, pelo menos para mim, sem contar que sou apenas um apreciador de cinema, não um profundo conhecedor do assunto. Por tudo isso, nunca pensei a sério na possibilidade. Entretanto, não poderia deixar de ir ao cinema conferir pessoalmente o novo filme, e, enquanto assistia, uma série de possíveis comentários foi vindo espontaneamente à minha cabeça, de modo que, ao sair da sessão, já estava mais ou menos óbvio que eu teria que escrever um texto (há textos que eu decido escrever ou não escrever, e há outros que simplesmente se impõem). Então, revi o filme de Lambert, reli trechos-chave do livro, que li há anos, e lá vamos nós.

Louis Creed, médico, está se mudando com sua família para uma grande e acolhedora casa de subúrbio no município de Ludlow, no Maine (é claro!), pois vai assumir a chefia dos serviços médicos no campus da universidade desse estado, que fica em Bangor, relativamente perto. A casa fica à beira de uma rodovia por onde caminhões pesados trafegam velozmente dia e noite, o que faz Louis e sua esposa, Rachel, adquirirem o hábito de manter sempre um olho nos filhos, Ellie, de cinco anos, e Gage, um bebê que há pouco começou a andar. O quinto membro da família é o gato de Ellie, de nome Winston Churchill, mas que, no dia a dia, é chamado de "Church" – uma abreviação de Churchill e que, convenientemente, também significa 'igreja', assim como não terá escapado ao leitor atento e conhecedor da língua inglesa que o sobrenome da família pode ser traduzido por 'credo', com o sentido de fé ou sistema de crenças. King não escolheu esses nomes por acaso. Na época em que O Cemitério teve origem, o escritor atravessava uma crise em sua vida pessoal por conta de sua dependência do álcool (e, segundo certas fontes, de outras drogas também), correndo o risco de a esposa deixá-lo e levar os filhos consigo. O medo da perda o levou a refletir sobre outras maneiras pelas quais uma pessoa pode perder seus entes queridos, sendo a morte, é claro, a maneira mais comum e também a mais dolorosa, por representar uma perda definitiva e irreversível. Qual seria (ele deve ter-se perguntado) a verdadeira relação da fé e da religião com tudo isso? Elas oferecem conforto diante da perda, mas aquilo tudo que ensinam sobre Deus e sobre a morte não ser o fim, seria real, ou apenas algo que a humanidade criou para suavizar a própria dor? E, em crise ou não, King continuava a ser um escritor, que é um tipo de criatura que nunca realmente para: esses questionamentos se misturaram com algumas outras ideias e, a partir disso, uma nova história começou a tomar forma. O resultado está nestas páginas, que estão, sem dúvida, entre as mais poderosas, sombrias e angustiantes já escritas pelo cara.

Em sua nova residência, os Creed têm como vizinhos mais próximos um homem de nome Judson Crandall ("Jud" para os amigos) e sua esposa, Norma, um casal idoso que morou toda a vida naquela região. É Jud, profundo conhecedor dos caminhos e das histórias locais, quem mostra a Louis e sua família o "simitério de bichos" (no original, pet sematary), como diz a placa toscamente pintada por alguma das crianças que têm usado o local já há décadas para sepultar seus animais de estimação, muitos deles vítimas do tráfego na estrada. O próprio Jud, em criança, enterrou um cachorro ali… Ou essa é a versão que ele conta, um pouco diferente da realidade, como o leitor descobrirá depois.

A visita ao local acaba por causar na cabecinha da pequena Ellie sua primeira reflexão para valer a respeito da morte. Ela fica angustiada ante a ideia de um dia ter que dar adeus a seu querido Church, o que obriga Louis a ter com ela aquela conversa, sempre complicada, que todos os pais, mais dia, menos dia, precisam ter com as crianças sobre esse assunto. O médico lida com o problema de maneira bastante sensata, na minha opinião, mas sua esposa não parece pensar o mesmo… Na verdade, para ela, não há uma maneira sensata de encarar essa questão. Rachel tem uma fobia anormal à simples ideia da morte, e, se dependesse só dela, seus filhos cresceriam ignorando tudo a respeito. Mais adiante, descobriremos que esse medo irracional teve origem num episódio de sua infância – um episódio terrível.


Outro episódio terrível é o que tem lugar na universidade, bem no primeiro dia de Louis no novo emprego: um jovem estudante sofre um acidente de moto e tem a cabeça praticamente destruída ao colidir com o tronco de uma árvore. Quando o levam ao ambulatório chefiado por Louis, o médico percebe na hora que não há nada que possa ser feito para salvar a vida do rapaz, mas, ainda assim, ele e sua equipe se esforçam o quanto podem. Antes de exalar sua última respiração, o jovem, de nome Victor Pascow, sussurra para Louis algumas frases perturbadoras a respeito do simitério de bichos, em especial sobre ele "não ser o verdadeiro cemitério". Mais ainda: de alguma forma, Victor chama Louis pelo nome, embora os dois nunca se tivessem visto antes. O médico racionaliza tentando convencer-se de que Pascow apenas emitiu gemidos desconexos, e de que sua própria mente, perturbada pelo estresse extremo daquela situação, fez o resto, levando-o a acreditar ter ouvido palavras que na verdade não existiam. Naquela noite, ele tem um sonho (pelo menos, tenta acreditar que foi um sonho) no qual o fantasma de Victor aparece e o guia até o simitério, onde lhe mostra uma barreira de troncos que delimita o lugar e o adverte de que ela nunca, jamais deve ser transposta, por maior vontade que ele tenha de fazê-lo. Na hora, mesmo em meio à lógica toda peculiar dos sonhos, Louis pergunta-se qual o sentido de tal aviso: por que cargas d'água haveria ele de querer transpor a barreira? A resposta virá mais tarde, e não o deixará feliz.

Todo aquele território pertenceu, em tempos, aos índios Micmac, tribo que ocupava partes do que são hoje a Nova Inglaterra (região nordeste dos Estados Unidos) e o sudeste do Canadá. Não se enganem com o nome "engraçadinho": os Micmac eram guerreiros violentos, temidos pelos colonizadores e por outras tribos. Contudo, por mais ferozes que fossem, não eram adeptos do canibalismo – pelo menos, não sob condições normais. Quando, durante invernos especialmente longos e penosos (e os invernos daquela região não são brincadeira), eram forçados a isso, também eles recorriam a racionalizações: diziam que o wendigo, uma entidade maligna de seu folclore, os havia tocado, despertando um apetite incontrolável por carne humana. Os restos das vítimas dessas refeições macabras eram enterrados no alto de uma colina rochosa que – adivinhem – fica poucos quilômetros além do que é agora o simitério de bichos, em terra selvagem e onde só se pode chegar transpondo a tal barreira de troncos. Ao longo do tempo, os Micmac deixaram de usar o cemitério e passaram a evitá-lo, dizendo que o wendigo tinha azedado a terra e tornado aquele um lugar ruim. Porém, o velho cemitério indígena parece ter ganho um poder que não tinha nos tempos antigos. Louis descobre isso quando Church, no que pode ser considerado uma espécie de tragédia anunciada, morre atropelado na estrada. Por sorte (bem, pelo menos é o que parece), Rachel e as crianças estão viajando, o que lhe deixa algum tempo para pensar sobre como dar a notícia a Ellie. Mas Jud tem outra ideia. Ele guia Louis numa exaustiva jornada noturna até o cemitério Micmac, e é ali que, por razões que se recusa a explicar, ele insiste para que o médico enterre o gato da filha.

Louis, homem sem qualquer inclinação para o misticismo, sente com toda a clareza alguma coisa diferente e sinistra naquele lugar e na mata que o rodeia, e, uma ou duas vezes, a coisa não fica só no nível das sensações: desafio qualquer um a não ter calafrios ao ler o trecho em que ele e Jud ouvem "alguma coisa grande" se movimentando bem perto deles, sem que cheguem a ver seja o que for… Mas ouvem uma gargalhada louca, carregada de um triunfo maligno, soar ensurdecedora pela floresta escura. Palavra de honra, essa parte é assustadora até para quem está acostumado a ler Stephen King!… Naturalmente, na manhã seguinte, Louis terá se convencido de que o que ouviu se mover no mato era apenas um alce ou talvez um urso, animais que por vezes ainda aparecem nos bosques da região. E quanto à gargalhada? O grito de algum pássaro noturno, na certa. São mesmo incríveis os contorcionismos lógicos que as pessoas "racionais" são capazes de fazer para não enxergar os fatos, quando estes não se encaixam na maneira como elas acreditam que a realidade deva se comportar.


Mais difícil é achar uma explicação "racional" quando Church reaparece em casa – vivo, ou assim parece – no dia seguinte. Porém, o gato está mudado: seu comportamento, seu jeito de mover-se, seu olhar, tudo está diferente e um tanto desagradável. Inquirido por Louis, Jud revela o segredo do velho cemitério Micmac: ele realmente tem o poder de trazer de volta à vida as criaturas que são enterradas ali, mas elas voltam mudadas, e não para melhor. Jud nem tem certeza se fez a coisa certa ao levar Louis lá, pois, como ele diz, às vezes é melhor estar morto. Conhecer uma maneira de (tentar) enganar a morte faz, inevitavelmente, com que as pessoas pensem em coisas que não devem ser pensadas… E, em momentos de grande sofrimento, um homem pode cometer grandes erros. Parece haver algum tipo de consciência maligna, sem forma, envolvendo o antigo cemitério, uma consciência que, segundo Jud, já teve grande poder, e ele receia que esteja refazendo suas forças, explorando as fraquezas dos seres humanos, que, tendo visitado o lugar uma vez, acabam achando razões para voltar… E para levar outros até lá.

O Cemitério, na minha opinião, pertence ao tipo de terror mais aflitivo. Envolve elementos sobrenaturais, sim, mas também nos coloca cara a cara com o que há de tenebroso e aterrador dentro de nós mesmos. Seja lá o que for a mente sem corpo que habita o cemitério Micmac, ela não teria poder se não encontrasse nas mentes das pessoas o material de que precisa para trabalhar: o medo da morte e o impulso irracional de fazer tudo, qualquer coisa, para escapar da dor – e, para seres como nós, capazes de amar, poucas dores podem ser maiores que a da perda de um ente querido. A "coisa" sabe disso muito bem.

Os Filmes

Até aqui, eu estava falando sobre o livro. Agora, quando me preparo para entrar no assunto dos filmes, percebo que será inevitável dar alguns spoilers. Portanto, se vocês estiverem lendo isto antes de terem lido e/ou assistido, sugiro que parem aqui mesmo, leiam, assistam, e depois voltem (voltem mesmo!) para ler o restante do post (deixar um comentário também não dói nada!). Ou continuem por sua conta e risco, como preferirem. Vocês foram avisados! Vamos em frente.

A primeira versão de Pet Sematary para o cinema não é nenhum portento, mas tem o grande ponto positivo de ser bem mais fiel ao livro que essa nova – e tem excelentes razões para ser, já que o próprio Stephen King adaptou o romance para a tela e acompanhou de perto toda a produção, além de, como era seu costume em filmes baseados em obras suas, fazer uma ponta: aqui, ele interpreta o ministro religioso (metodista, provavelmente) que aparece oficiando um funeral. Por outro lado, não é um filme de atuações brilhantes. A melhor é provavelmente a do veterano Fred Gwynne como Jud Crandall; o restante do elenco exibe variados graus de canastrice, embora seja um tanto penoso para um fã de longa data de Jornada nas Estrelas dizer isso: no papel de Rachel está ninguém menos que Denise Crosby, crush de nove entre dez trekkers quando interpretava a tenente Tasha Yar, oficial de segurança da Enterprise em Jornada nas Estrelas: a Nova Geração (e só não o era de todos os dez porque a tripulação também incluía a conselheira Deanna Troi, interpretada por Marina Sirtis). Caramba… Isso já faz cerca de 30 anos e Denise é hoje uma senhora de 61!… Mais uma coisa para acrescentar às reflexões sombrias de Louis Creed sobre a passagem implacável do tempo e a brevidade da vida humana.


Isso, por sinal, já é um exemplo do quanto literatura e cinema são mesmo linguagens diferentes: nenhum dos dois filmes inclui as reflexões de Louis, nem poderia, já que a única maneira de fazê-lo no cinema seria por meio de longos trechos discursivos, o que afetaria o ritmo e seria tedioso. No livro, as numerosas passagens que reproduzem os pensamentos do protagonista são essenciais para entrarmos no clima e adquirirmos a compreensão dos problemas que vão ser tratados – e, pelo menos para mim, essas passagens não se tornam entediantes em momento algum. Entediantes, não… Já quanto a deixarem o leitor um tanto down, é outra conversa. Quando Louis percebe que seu filho de um ano e pouco está finalmente começando a ter cabelo de verdade, deixando para trás aquela fase de penugem que a maioria dos bebês tem no início da vida, isso, claro, é motivo de comemoração… mas, nas profundezas de seu íntimo, uma parte sua chora, porque o cabelo de Gage é mais um dentre tantos lembretes de que a areia na ampulheta está correndo para Louis tal como para o garoto… Com a diferença de que Gage está crescendo, indo rumo ao auge de sua vida, enquanto Louis, nos seus 30 e poucos anos, já entrou na espiral de decadência que, mais dia, menos dia, terminará num túmulo.

Outra coisa que os espectadores de qualquer um dos filmes jamais saberão até que leiam o livro é que, ao contrário de sua esposa, Louis tem um background que deveria (ou, ao menos, isso seria de se esperar) torná-lo mais apto a encarar a ideia da morte de uma maneira serena e natural: seu tio, Carl Creed, era agente funerário, e Louis passou alguns períodos trabalhando com ele, durante suas férias do colegial e início da faculdade (o famoso "emprego de verão" dos estudantes americanos). Carl era, antes de tudo, um homem prático, o que deve ser imprescindível nesse ramo de trabalho, e Louis, como seu aprendiz, assimilou um pouco do feeling da coisa: é preciso ter sensibilidade para lidar com uma família enlutada, mas, ao mesmo tempo, suficiente frieza para não se deixar abalar – duas capacidades tão úteis a um médico quanto a um agente funerário. Não que isso tudo deixe alguém preparado para sentir a perda na própria carne, como Carl e Louis perceberam quando Ruthie, filha do primeiro e prima favorita do segundo, morreu num acidente em plena adolescência. Tudo isso nos é revelado por meio dos pensamentos e lembranças de Louis. Mas já chega de falar do que os filmes não têm: vamos ver o que cada um deles tem.

Spoiler número um: no primeiro filme, tal como acontecia no livro, Gage, pouco tempo depois de seu segundo aniversário, morre atropelado na estrada, e Louis, transtornado pelo sofrimento, decide violar seu túmulo e enterrar o menino no cemitério Micmac, na esperança de "tê-lo de volta". Mais uma vez, o livre acesso à cabeça do protagonista, que temos no livro e não nos filmes, faz uma falta incrível. Um dos pontos-chave da história, talvez até o mais importante de todos, é a maneira como a influência daquela presença sombria no cemitério afeta a mente das pessoas, e, por consequência, a lenta, gradual e inexorável transição da sanidade para a loucura. Louis já fora severamente advertido por Jud de que não deveria nem pensar nessa possibilidade, e ouvira dele a história da única vez (pelo menos, até onde ele sabe) em que um ser humano foi enterrado no local: um jovem da cidade que morreu na França durante a Segunda Guerra Mundial, e cujo pai, incapaz de aceitar a perda, foi em frente e realizou o ato blasfemo. O morto, que em vida fora um bom rapaz, normal sob todos os aspectos, voltou transformado numa coisa maligna e odiosa, que o próprio pai, arrependido, acabou por matar de novo. O filme de Mary Lambert, aliás, estraga completamente o efeito dessa história ao pintar o soldado ressuscitado como um zumbi sem inteligência, perigoso, sem dúvida, mas da mesma forma como um animal irracional é perigoso: sem dolo, sem intenção maligna, apenas agindo de acordo com sua "natureza", se é que algo nisso pode ser considerado natural. No livro, ele era muito racional, e demoníaco, cruel. Há também o caso de Church, agora um bicho estranho cujo simples olhar causa calafrios, e que seus donos sentem repugnância de tocar. Em resumo, ninguém pode dizer que Louis não foi avisado, mas ele encontra mil e uma desculpas e racionaliza o impulso insano que está sentindo, convence-se de que, mesmo que Gage volte "um pouco diferente", ainda será seu filho, e assim por diante. Fica no ar a mórbida sugestão de que Louis, que, por tudo o que sabemos sobre ele, é e sempre foi um homem sensato, nunca faria o que acaba fazendo se não fosse pela influência daquilo que habita o antigo cemitério indígena – mas, ao mesmo tempo, a entidade sombria não poderia manipulá-lo se já não houvesse uma brecha por onde conseguisse entrar. Tudo isso é perdido nos filmes, assim como as visões fugidias e apavorantes de uma coisa inominável que habita os pântanos entre o simitério de bichos e o cemitério Micmac. Inominável?… Não para os índios, que tinham, sim, um nome para ela: wendigo.


Se eu for considerar apenas o apuro técnico e a qualidade geral da produção, terei que dizer que o filme de Kölsch e Widmyer é superior, pois demonstra mais senso de cena e de ritmo, a narrativa na tela flui melhor, e os atores manjam bem mais da arte de representar que os do filme anterior, além, é claro, de tudo o que se pode fazer com toda a tecnologia de que o cinema não dispunha em 1989 e da qual dispõe hoje… Também gostei muito da ideia de fazer com que o ronco do motor dos caminhões na estrada pareça o rugido de alguma enorme fera, pois cai muito bem no papel que eles terão a desempenhar. Por outro lado, confesso que me irritam esses cineastas que fazem mudanças absurdas nas histórias, não aquelas mudanças necessárias e inevitáveis quando se está adaptando um livro para a tela, mas mudanças sem qualquer justificativa possível, parecendo motivadas tão somente pela vontade de ser diferente, de "imprimir uma marca autoral" e outras estultices desse gênero. O que nos leva ao spoiler número dois: no filme novo, é Ellie (que, por sinal, virou uma garota bem mais velha, de nove anos) quem é atropelada, e não Gage. Agora me digam: o que essa mudança acrescenta? Trabalhar com criança em filme de terror deve ser extremamente difícil, mas, quando é bem feito, o resultado é horripilante, e, quanto menor a criança, maior o impacto. Uma menina de nove anos agindo de forma demoníaca não tem o mesmo efeito que um bebê de dois anos fazendo o mesmo, isso para não mencionar o fato irritante de terem mexido na história sem a menor necessidade. É verdade que o novo filme tem vários acertos, um deles a cena em que Louis, interpretado pelo ator Jason Clarke, deita-se ao lado da filha (ou da coisa que parece ela) para "fazer companhia até que adormeça". Nesse momento, ele já começou a perceber o tamanho do erro que cometeu, e ver um homem adulto morrendo de medo da garotinha cujas fraldas trocou é, sem dúvida, bastante perturbador. O final também não me agradou, pois o filme termina com a família novamente reunida – de uma forma grotesca e macabra, é verdade, mas, ainda assim, reunida, o que põe a perder a mensagem mais pungente que havia na obra original, a de que a separação imposta pela morte é dolorosa, mas é algo com que precisamos aprender a conviver, pois nada de bom pode vir da sua não aceitação.

Enfim, não tenho como dizer que nenhum dos dois filmes é excelente, mas as broncas que tenho do de Mary Lambert são de relevância muito menor: basicamente deficiências técnicas e coisas do tipo, como o fato de pelo menos duas cenas importantes, que, no livro, aconteciam à noite, se passarem em plena luz do dia – obviamente porque filmá-las à noite seria muito mais trabalhoso e caro. Já meu descontentamento com o filme de Kölsch e Widmyer é mais profundo, ligado a questões da própria estrutura da história. Por isso, se vocês só quiserem ver um filme baseado em Pet Sematary, minha sugestão é que escolham o primeiro, que, com todos os problemas que possa ter, ao menos tem o mérito de tentar ser fiel à história que lhe deu origem. E, independentemente do que decidam em relação aos filmes, não deixem de ler o livro, que é nada mais nada menos que Stephen King em sua melhor forma.

segunda-feira, abril 29, 2019

A Noite dos Tempos

René Barjavel (1911-1985) é um autor pouco conhecido entre nós, embora seja considerado um nome-chave da ficção científica não só em seu país de origem, a França, mas em toda a Europa continental, onde esse gênero nunca chegou a ter a mesma força que nos países de língua inglesa. Foi provavelmente o primeiro a formular o célebre "problema do avô", que ilustra bem o paradoxo envolvido na teoria das viagens no tempo: se um homem viajar para o passado e matar o próprio avô (ou outro ancestral) antes que ele gere uma descendência, esse homem nunca existirá – mas então, quem foi que matou o tal avô? A questão aparece no livro Le Voyageur Imprudent ('O Viajante Imprudente', de 1944). Algumas das obras de Barjavel foram publicadas no Brasil durante os anos 70 pela editora Artenova, e foi por meio de uma dessas edições que, já no início dos 90, eu travei conhecimento com A Noite dos Tempos, isso na biblioteca do SESI, a mesma à qual já prestei tributo aqui antes. O exemplar que tenho hoje, e no qual acabo de reler a história, foi adquirido numa daquelas caixas de saldos, na última ou penúltima Feira do Livro de Porto Alegre a que compareci, e é da edição do Círculo do Livro (que, curiosamente, não datava suas publicações), aproveitando a mesma tradução, com algumas adaptações. A capa que aqui reproduzo é a dessa edição.

Embora parte de seus primeiros anos tenham coincidido com a Primeira Guerra Mundial, parece que a infância de Barjavel foi relativamente tranquila, vivida em sua cidade natal, a pequena Nyons, perto de Marselha. Era filho de um padeiro, e sua admiração pela maestria do pai em seu ofício o influenciaria para sempre: em diferentes trechos de suas obras, o escritor demonstra a convicção de que mesmo as profissões mais humildes são motivo de orgulho, se exercidas com dedicação e excelência. Apesar disso, nunca quis seguir os passos do pai: leitor voraz que era, desde muito cedo almejou fazer carreira no jornalismo e na literatura, como de fato aconteceria. Durante o início da Segunda Guerra Mundial, serviu como despenseiro do exército, sendo desmobilizado em 1942. Publicou seus primeiros trabalhos durante os anos seguintes, enquanto a França ainda estava ocupada pelos alemães; depois do fim da guerra, chegou a ser apontado como colaboracionista, por ter tido textos publicados num jornal pró-nazista que tinha o sugestivo e vagamente ameaçador nome de Je Suis Partout (literalmente, 'Eu Estou em Toda Parte'), mas acabou inocentado, e vamos concordar que o escritor não tinha muita opção, se é que tinha alguma: durante aquele período, era muito difícil publicar o que quer que fosse na França sem passar pelo crivo dos nazistas. Durante os 40 anos seguintes, Barjavel publicou 16 romances, além de contos, crônicas e ensaios, tudo paralelamente a sua atividade como jornalista. Também teve envolvimento com o cinema, tendo sido amigo do famoso diretor André Cayatte, cujo filme Les Chemins de Katmandou ('Os Caminhos de Katmandu', de 1969) teve por base o romance homônimo de Barjavel. Aliás, A Noite dos Tempos, publicado originalmente em 1968, é dedicado a Cayatte, e lembro que, na edição que li primeiro, o texto da orelha referia, de passagem, que, ao tempo em que saiu essa edição (1975), o escritor e o diretor estavam trabalhando juntos em sua adaptação para o cinema. Pelo visto, o projeto não foi para a frente: não há nenhum filme que pareça corresponder ao livro, seja na filmografia de Cayatte ou no extenso rol dos trabalhos de Barjavel para o cinema.

A Noite dos Tempos tem um enredo fascinante, que evoca mistérios de um passado desconhecido, perdido para a memória humana há centenas de milhares de anos, que, inopinadamente, vem à tona. Tudo começa quando a base francesa de pesquisa científica na Antártida recebe um novo tipo de sonda destinada a fazer levantamentos do relevo subglacial, ou seja, descobrir como é o solo do continente antártico, sepultado há milênios debaixo de centenas de metros de gelo e neve. O novo aparelho, bem mais sensível que seus congêneres tradicionais, detecta algo de inacreditável: sob quase mil metros de gelo, ele encontra estruturas que não podem ser naturais, pois possuem formas regulares, geométricas. São colunas, escadas, cúpulas, em sua maioria quebradas e desmoronadas, mas ainda reconhecíveis. Numa palavra, ruínas. Ruínas de construções que só podem ser obra de homens (ou de algum tipo de criatura inteligente e habilidosa), mas que, pela profundidade onde se encontram, devem datar de pelo menos 900 mil anos, época em que, por tudo o que se sabe, o hominídeo mais sofisticado existente era o Homo erectus, cuja tecnologia não ia além de algumas ferramentas e armas simples de pedra, osso e madeira. A sonda descobre também outra coisa: um sinal de rádio cuja origem parece estar em algum lugar em meio às tais ruínas.

A descoberta, que revoluciona tudo o que se sabia sobre o passado da espécie humana e do próprio planeta, causa o alvoroço que seria de se esperar. A França, sozinha, não dispõe dos recursos e da tecnologia que serão necessários para uma escavação desse porte e a exploração do que quer que venha a ser encontrado, então a UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) convoca uma Expedição Polar Internacional (EPI) reunindo, além dos franceses, delegações dos Estados Unidos, União Soviética, Japão e demais potências, de modo que o empreendimento passa a contar com a última palavra em equipamento, maquinário e pessoal especializado, oriundos de todas as partes do mundo.

(Uma pessoa fica pensativa e um tanto melancólica ao dar-se conta de que, no tempo em que Barjavel escrevia, a UNESCO ainda devia ser de fato uma instituição que trabalhava seriamente pela ciência e pela cultura, em vez de pôr-se a serviço de estranhos projetos de engenharia social idealizados por grandes fundações internacionais, sabe-se lá com que objetivos tenebrosos.)

Conforme as escavações progridem, o que vai sendo encontrado (construções, artefatos, máquinas) é de uma estranheza quase alienígena. A civilização que criou tais coisas era, indubitavelmente, humana, mas não parece ter vínculo algum com nada que a História ou a arqueologia conheçam. Aquele povo antigo parece ter alcançado conquistas tecnológicas com as quais a civilização contemporânea apenas sonha, ou nem isso. Seguindo o sinal de rádio, os exploradores da EPI descobrem uma gigantesca esfera feita de ouro maciço, que parece ser uma espécie de cápsula e apresenta um novo desafio, pois, embora o metal amarelo nunca tenha sido notório por sua resistência, aquele parece quase indestrutível. Quando finalmente conseguem abrir a esfera (usando uma nova e revolucionária ferramenta que utiliza laser e plasma ao mesmo tempo), o que encontram supera a imaginação mais extravagante: um homem e uma mulher, congelados em hélio sólido à temperatura do zero absoluto (273 graus centígrados negativos, a temperatura mais baixa possível segundo as leis da física, e que a tecnologia moderna nunca conseguiu atingir). E, por tudo o que se sabe, podem estar vivos e talvez seja possível reanimá-los.

Tanto na época em que A Noite dos Tempos foi escrito quanto hoje, o congelamento de um ser humano vivo e sua posterior reanimação eram, e são, meras possibilidades teóricas; nada do tipo jamais foi efetivamente feito. Sendo assim, os médicos responsáveis pelo ousado procedimento decidem começar pela mulher, porque ela parece estar em perfeitas condições de saúde, enquanto o homem apresenta diversas lesões semelhantes a escoriações e queimaduras; logo, a mulher, provavelmente, suportará melhor o processo. Mais tarde, com a experiência ganha na primeira reanimação, eles esperam poder acordar o homem com maior segurança.

E a mulher desperta. A primeira e óbvia coisa a impressionar a todos é sua beleza, uma beleza na qual existe mais que a simples perfeição de formas: há nela algum tipo de viço indefinível que parece remeter ao fato de ela ser uma reminiscência de um tempo em que a própria espécie humana era jovem, o que traz aos seres humanos de hoje a compreensão do quanto a humanidade atual está velha e cansada. Quando ela fala, é numa língua que não tem qualquer semelhança, por longínqua que seja, com nenhuma outra, viva ou extinta, que se conheça. Isso, é claro, não é surpresa, dadas as circunstâncias, mas acaba por causar um grave e imprevisto problema: a mulher vinda do passado não consegue alimentar-se de nada do que lhe é oferecido, seu organismo não parece capaz de processar nutriente algum, e, por causa do abismo linguístico, é impossível perguntar a ela o que se pode fazer a respeito. Para tentar salvá-la antes que morra de inanição, a EPI pede ajuda a todas as empresas, universidades e governos que possuem grandes computadores (lembrem-se, isso foi escrito nos anos 60, quando computadores eram coisas enormes, intimidadoras e de custo proibitivo, de cuja existência as pessoas comuns tinham, no máximo, uma vaga noção) para decifrar a língua do passado. O esforço é bem-sucedido, o que, além de salvar a vida de Elea (pois é assim que a mulher se apresenta), permite, daí em diante, que ela se comunique. Depois de se recuperar, pelo menos tanto quanto possível, do choque terrível de descobrir durante quanto tempo dormiu, e de dar-se conta de que não sobrou absolutamente nada do mundo que conhecia, ela, por fim, consegue contar sua história e tentar satisfazer a enorme curiosidade que sua civilização agora desaparecida desperta entre os que a resgataram.

A Noite dos Tempos é narrado, mais ou menos, sob o ponto de vista de Simon (não é "Sáimon", é Simon mesmo: o personagem é francês como o autor), um jovem médico que fazia parte da equipe original da base francesa e estava com o grupo que fez a descoberta. Quando digo mais ou menos, é porque a maior parte do livro não é na primeira pessoa, apenas alguns trechos o são; esses trechos, impressos em itálico, são intercalados entre as partes narrativas, como se fossem comentários a elas, e parecem ter sido escritos, ou talvez apenas pensados, por Simon depois que a aventura já teve seu desfecho, como se o que lemos fosse ele recordando como tudo aconteceu. À parte o natural fascínio que aquela descoberta desperta em todos, o médico toma-se de um interesse muito pessoal e particular por Elea – um interesse que, como até mesmo o leitor menos perspicaz não teria dificuldade em prever, rapidamente se converte em paixão. Elea, mesmo sem nenhuma intenção, perturba a todos os homens, por causa da combinação intoxicante de beleza e mistério, mas a preocupação constante de Simon com seu bem-estar ultrapassa em muito o mero zelo do médico para com a paciente, e não esconde seus verdadeiros sentimentos.


Entre muitas outras coisas, Elea revela a identidade do homem na esfera de ouro: ele é Coban, o mais renomado cientista da poderosa nação de Gondawa – nome claramente inspirado em Gondwana, o supercontinente que reunia as atuais massas de terra do hemisfério sul, inclusive a Antártida, centenas de milhões de anos atrás; em todo caso, como o tempo de Elea e Coban foi há "apenas" 900 mil anos, os continentes já tinham uma configuração semelhante, em linhas gerais, à de hoje, e, pela descrição feita por Elea, Gondawa ocupava somente a Antártida, que, na época, estava em outra latitude e tinha um clima de temperado a tropical. E Gondawa era uma das duas grandes potências de então, sendo a outra Enisorai, que ocupava as atuais Américas do Norte e do Sul.

Embora os gondas tivessem alcançado progressos notáveis nos campos científico e social, e sua população desfrutasse de uma vida confortável, seria um grande erro pensar que aquele era um mundo paradisíaco. Algum tempo antes do nascimento de Elea (não é dito ao certo quanto tempo), as duas potências travaram uma série de guerras de grandes proporções, nas quais usaram armas terríveis criadas pela mesma tecnologia que tornara possível a tal vida confortável. Como resultado, a superfície de Gondawa tinha-se tornado inabitável, e, por isso, seu povo vivia em cidades subterrâneas.

O drama pessoal da heroína vem agora: ela havia atingido sua plenitude adulta e levava uma vida feliz com seu companheiro, Paikan, quando uma nova guerra sobreveio – a pior de todas. Coban, sabendo que a destruição que estava por vir seria numa escala nunca vista, podendo acarretar até mesmo o fim de sua civilização, pensou num meio de evitar que a ruína fosse completa. Projetou e fez construir um abrigo subterrâneo – a esfera de ouro – onde ele próprio, que, como bem sabia, era o mais importante cérebro de seu tempo, ficaria em animação suspensa, protegido da radiação e dos demais efeitos danosos da guerra, pelo tempo que fosse necessário. Quando as condições no exterior o permitissem, sairia e, com seu conhecimento, trabalharia para reconstruir o mundo. Algumas das maravilhosas máquinas criadas pela ciência gonda, capazes de funcionar pela eternidade afora sem precisar de manutenção ou reparo, conservariam as condições controladas dentro do abrigo e monitorariam as coisas do lado de fora, prontas para reanimar o cientista quando concluíssem que a sobrevivência já era possível… O que, de acordo com as previsões mais cautelosas de Coban, poderia demorar desde alguns anos até um século ou dois. O que nem mesmo ele poderia prever era que os efeitos das armas seriam tão tremendos, que tirariam o próprio planeta do prumo, alterando seu eixo e deslocando os pólos, o que mergulhou Gondawa num inverno eterno. As pobres máquinas, fiéis às instruções recebidas, só podiam concluir que as condições na superfície continuavam inóspitas… E assim continuaram durante 900 mil anos.

Porém, eu ia falar sobre o drama de Elea; tudo está interligado. Para sua missão de reconstruir a civilização, Coban precisaria de uma companheira, uma mulher que sobressaísse pela inteligência, capacidade, e também por uma genética privilegiada, traduzida nos quesitos saúde e beleza, pois não se podia excluir a possibilidade de que os dois tivessem que repovoar Gondawa sozinhos. Dentre milhões de mulheres em todo o continente, a escolha recaiu em Elea, que foi chamada a abandonar Paikan, a quem amava de uma forma que as línguas modernas não possuem palavras capazes de expressar, para cumprir seu "dever patriótico". Acho que já cheguei até onde podia sem prejudicar a experiência de quem for ler o livro (na verdade, meu objetivo foi atiçar a vontade de fazê-lo!), mas saibam, por último, que Elea não atendeu pacificamente a esse chamado, e que, desse momento em diante, é impossível não ficarmos penalizados com a avalanche de desventuras que se abatem uma após outra sobre a pobre moça. No final, uma reviravolta para ninguém botar defeito espera pelo fascinado leitor.

O que mais posso dizer sobre este livro extraordinário? Barjavel não acreditava na teoria da evolução; tal fato, apenas sinalizado em A Noite dos Tempos, é declarado com todas as letras no ensaio A Fome do Tigre (1966), que não é só sobre esse assunto: trata-se de um apanhado das reflexões do autor a  respeito de diversas grandes questões que, levantadas na adolescência, ainda o inquietavam aos 55 anos, questões sobre a vida, a morte, o destino, Deus e assim por diante. Muitas dessas reflexões são intrigantes e dão o que pensar, mas, no trecho em que o autor tenta expor as razões de sua descrença em relação aos postulados de Darwin, dá para perceber, pelos argumentos usados, que, como noventa e nove por cento dos que dizem não acreditar na teoria da evolução, ele nunca chegou a entendê-la, embora provavelmente pensasse que sim. A Noite dos Tempos, portanto, é um exercício de imaginação no qual o autor explora uma possível versão não-darwiniana para a origem da espécie humana – ou, pensando melhor, não é assim, pois tudo o que o romance nos mostra é o mundo de 900 mil anos atrás já ocupado por civilizações avançadas e poderosas, sem se aprofundar em explicar como elas surgiram ou como foi a gênese dos homens que as criaram. O importante é notar que, na visão de Barjavel, não é plausível que o homem tenha gradualmente emergido da animalidade: ele já teria surgido (como quer que isso tenha acontecido) plenamente inteligente, autoconsciente, capaz e belo.

Mesmo assim, o autor não se alinha com a visão que encontramos na maioria dos mitos de criação contados pelos mais diferentes povos, nos quais, quase sempre, o mundo, ao ser criado, era perfeito, livre do mal e da morte, mas decaiu, fosse gradualmente ou de uma só vez, por culpa do homem ou de algum outro ser autoconsciente. O mundo antigo de Barjavel até corresponde a alguns sonhos do homem moderno, mas não é perfeito de forma alguma: nele já existiam ganância, violência e ambição pelo poder, o que acabou causando seu colapso. O conflito entre Gondawa e Enisorai, que, pelo que nos é contado, alternava períodos de guerra declarada com outros de paz tensa, é um paralelo da situação do nosso próprio mundo na época em que o livro foi escrito, em plena Guerra Fria, e do desastre de proporções globais no qual ela poderia facilmente desembocar. E, já que falamos sobre poder e ganância, não deixem que o estilo poético e sonhador que a escrita de Barjavel não raro assume os engane: ele era também um experiente jornalista, e não era nada ingênuo. Sendo assim, não poderia deixar de abordar no livro um aspecto da realidade que fatalmente estaria presente, caso uma descoberta do porte da que ele imaginou realmente acontecesse: a cobiça que os valiosíssimos conhecimentos guardados no cérebro de Coban despertariam no mundo moderno. Assim, A Noite dos Tempos tem também o seu quantum satis de maquinações e intrigas.

Entre várias outras coisas, A Noite dos Tempos é uma história sobre amor, reunindo as características de um bom romance de ficção científica com uma parábola poética e bela sobre a convicção de que o amor, quando verdadeiro, resiste ao tempo, assim como a tudo o mais. E por ser, no fim das contas, sobre o amor entre um homem e uma mulher, bem… Barjavel era francês, lembram? Tem partes eróticas, sim – nada que vá sequer ruborizar um leitor do século XXI, mas esses trechos bem que mexeram com os hormônios do adolescente que eu era no distante 1990, época em que não havia esse negócio de qualquer criança poder ver todo tipo de cena de sexo imaginável ou inimaginável, tendo apenas que digitar duas ou três palavras num mecanismo de busca. E, a meu ver, era melhor assim: o sexo era muito mais excitante quando vinha envolto num certo mistério.

Foi especial ter um novo encontro com este livro tanto tempo depois de nosso primeiro contato, e, por mais que eu tenha mudado nesse intervalo, o efeito dele sobre mim permaneceu quase o mesmo, o que é uma proeza e tanto para qualquer livro: tenho certeza de que muitos de vocês, como eu, já passaram pela experiência de reler na idade adulta alguma obra que marcou sua infância ou adolescência e achar difícil compreender o que nela pareceu tão extraordinário naquela primeira leitura. Não foi o caso aqui. A Noite dos Tempos me fascinou quando eu tinha 15 anos e continua a fascinar agora. Bem que mereceria uma nova edição, mas, como isso é muito pouco provável, recomendo que, se tiverem a escolha, leiam a versão da Artenova, pois esta do Círculo do Livro, como observei no início, teve o texto revisado, e algumas das "mexidas" feitas não foram felizes. Porém, em se tratando de um livro que só existe em edições tão antigas, já vai ser muita sorte conseguir um exemplar, de qualquer edição que seja. Então, leiam do jeito que puderem, e conheçam a capacidade que René Barjavel tinha de tornar impossível ao leitor largar o livro depois de ter começado a lê-lo.

quinta-feira, fevereiro 21, 2019

O Futuro Começou

Existem títulos que funcionam bem numa tradução direta do original, e outros, definitivamente, não. Isso pode acontecer por diferentes motivos, e às vezes não é fácil explicar o porquê. Cada língua parece possuir uma "alquimia" que é só dela, o que faz com que um mesmo título, dizendo precisamente a mesma coisa, perca (ou ganhe) muita força, pelo simples fato de ser transposto de uma língua para outra. O melhor exemplo que me vem à cabeça agora é o conto Sometimes They Come Back, de Stephen King, que pode ser encontrado na coletânea Sombras da Noite. O título original já é OK, mas alguém aí consegue explicar por que é que Às Vezes Eles Voltam soa tão mais forte, mais sinistro, mais cheio de sugestões sombrias? Eu também não: é a tal alquimia da língua.

Porém, a sonoridade muitas vezes não é o único critério que uma editora brasileira precisa levar em consideração na hora de definir o título de um livro traduzido. É o caso deste aqui. Quando, em 1972, Isaac Asimov e seu editor da época na Doubleday decidiram que seria uma boa ideia reunir num livro os primeiros contos do escritor (cujas publicações originais ocorreram durante a chamada era de ouro da ficção científica, entre o fim dos anos 30 e o fim dos 40), eles não precisaram pensar muito a respeito do título. O livro destinava-se a uma base já formada de leitores fiéis, e eles, que há tanto tempo pediam por uma edição assim, saberiam reconhecê-la só de bater o olho nela nas livrarias. Assim, o óbvio título The Early Asimov (algo como 'o Asimov do início') já servia. Aqui no Brasil, onde o livro foi publicado seis anos depois, a situação era bem diferente. Esta edição da Hemus precisava vender-se num país onde o mercado editorial em geral, e principalmente o de ficção científica, era muito mais tímido que nos Estados Unidos. Muitos leitores estariam tendo seu primeiro contato com Asimov, outros poderiam já ter lido um ou alguns de seus livros, mas poucos teriam tanta intimidade com a carreira e a obra do autor a ponto de compreenderem a importância de conhecer seus trabalhos iniciais. Por isso, a versão nacional acabou chamando-se O Futuro Começou. Levando em conta toda essa situação, não culpo a Hemus por esse título absolutamente genérico e que não informa realmente nada sobre o conteúdo do volume. Era apenas para chamar a atenção de leitores que já tivessem algum interesse em ficção científica, e deve ter funcionado.

O livro é, portanto, uma coletânea de contos dos primeiros anos da carreira de Asimov como escritor, mas não é só isso. Os contos estão inseridos entre trechos mais ou menos autobiográficos, tão interessantes quanto eles – e ocasionalmente, até mais. Vocês devem estar se perguntando como é que algo pode ser "mais ou menos autobiográfico", e a resposta é que o livro oferece vislumbres do dia a dia do adolescente e depois jovem adulto Isaac, mas sempre através do prisma da atividade de escritor. Talvez o fato de já estar acostumado a raramente obter alguma coisa com facilidade tenha enrijecido o couro do rapaz, levando-o a persistir a despeito de ter colecionado várias recusas de diferentes revistas até finalmente conseguir de fato vender sua primeira história para publicação. Seus pais, imigrantes judeus russos, tinham uma loja de doces de onde vinha todo o sustento da família, um sustento pelo qual eles e os filhos precisavam trabalhar constantemente. Isaac, o mais velho, revelou cedo tanto o interesse pela ciência quanto a paixão por ler e escrever. A combinação das duas coisas levou-o naturalmente à ficção científica, e ele gostava de contar que seu primeiro contato com o gênero foi aos nove anos de idade, na loja de doces mesmo, pois ela também incluía uma banca de jornais e revistas, e foi ali que ele travou conhecimento com algumas das várias revistas dedicadas à ficção científica que circulavam naquelas primeiras décadas do século XX. Aquela que viria a ser sua favorita e também a mais influente delas (em grande parte, graças a sua participação) intitulava-se Astounding Stories, mais tarde Astounding Science-fiction, e foi fundada em 1930, pouco depois de Isaac ter sido apresentado à ficção científica, então é provável que ele a tenha lido desde o primeiro número, mas seria somente uns oito anos depois, aos 18 anos de idade, que ele pela primeira vez apresentaria um de seus trabalhos ao editor da revista, John W. Campbell Jr. O trecho em que ele conta como se sentia logo antes dessa ousada empreitada é hilário:

Eu estava convencido de que, por ousar pedir para ver o editor de Astounding Science-fiction, eu seria atirado fora do edifício, e meu manuscrito seria picotado e jogado atrás de mim como confete. Meu pai, porém (que tinha ideais nobres) estava convencido de que um escritor – com o que ele significava qualquer um com um manuscrito – seria tratado com o respeito devido a um intelectual. Não tinha receios nenhuns – mas era eu quem ia entrar naquele edifício.

Mas esse temor não se concretizou: Campbell o recebeu muito bem. Asimov descobriu nessa ocasião que era costume do legendário editor (certo, ele ainda não era legendário na época) tratar todo escritor com o mesmo grau de deferência, fosse ele um veterano com o nome já firmado, aclamado pelos leitores, ou um jovem iniciante tímido. Pode ter ajudado o fato de que Asimov mandava cartas à revista com tanta regularidade, que Campbell lembrava dele, e talvez tenha achado curioso ter a oportunidade de conhecer pessoalmente aquele leitor tão entusiasta. Campbell era um excelente editor ainda por outros motivos, segundo Asimov: quando rejeitava uma história, ele tomava o tempo de escrever ao autor uma carta de considerável extensão, na qual discutia o texto em pormenores, apontando seus defeitos e qualidades e oferecendo dicas para que o escritor, ou aspirante a tal, pudesse aprimorar seu trabalho. Como diz Asimov: "A agradável carta de rejeição – duas páginas inteiras – em que discutia minha história seriamente e sem traços de paternalismo ou desprezo, reforçou minha alegria. (…) Realmente, a melhor coisa depois de [a história] ser aceita."

Atuando dessa forma, Campbell (que também era escritor) foi uma espécie de mentor para um punhado de jovens escritores que estavam em ascensão durante aqueles anos, e hoje é apontado por muitos como o principal responsável por tornar possível a era de ouro. A grande tríade de jovens autores da época, que, com o tempo, viriam a ser considerados titãs da ficção científica, era composta por A. E. Van Vogt, Robert A. Heinlein e pelo próprio Asimov, o mais jovem dos três e, segundo ele mesmo, o que mais demorou a construir reputação. Heinlein, autor de Estranho Numa Terra Estranha e Tropas Estelares, é razoavelmente conhecido entre nós; já quanto a Van Vogt, parece que chegou a ser publicado no Brasil, mas deve fazer muito tempo, pois os únicos livros dele em que consegui pôr as mãos até hoje eram edições portuguesas, das coleções Argonauta e FC Europa-América.

Para quem, como eu (e acredito que a vasta maioria dos fãs), conheceu Asimov já com seu status de monstro sagrado e por meio de uma de suas obras mais aclamadas, como Eu, Robô ou Fundação, será uma experiência bem estranha ler as histórias aqui apresentadas e constatar que: 01) sim, elas são, em tudo e por tudo, histórias "asimovianas"; 02) não, várias delas não são grande coisa. Mas a estranheza diminui ao lembrarmos que foram escritas por um jovem de seus 18 a 20 e poucos anos, talentoso, sem dúvida, mas ainda com muita coisa por lapidar. É preciso também não esquecer que as histórias que estão aqui são somente as que foram publicadas; houve várias, inclusive a primeira de todas, que, depois de terem sido rejeitadas mais de uma vez, o jovem Asimov deixou de lado e acabou, como ele diz, "perdendo de vista" ao longo dos anos, o que significa que os originais foram perdidos e essas histórias não existem mais. Asimov relata que certos leitores parecem contrariados com o fato, e acham que, por piores que fossem, essas histórias deveriam ter sido preservadas por seu valor histórico – afinal, foram as primeiras tentativas de Isaac Asimov, não menos que isso! Sobre esse ponto, o autor comenta com seu sutil e infalível senso de humor: "Tudo o que posso dizer, amigos, é que sinto muito, mas não havia modo de saber, em 1938, que minha primeira tentativa pudesse ter interesse histórico algum dia. Posso ser um monstro de vaidade e arrogância, mas não sou tão monstruosamente vaidoso e arrogante." Sim, ele tinha um ego e tanto (e sabia disso), mas o fato era frequentemente suavizado por um saudável humor autogozador.

Quanto às histórias em si, parece que nos primeiros tempos Asimov cobria um espectro bastante amplo dentro da ficção científica – talvez uma questão de necessidade prática: quanto mais versátil ele fosse ao escrever, melhores suas chances de conseguir vender histórias para diferentes revistas, já que cada uma tinha um perfil próprio. A Astounding queria histórias mais sérias e com alguma base científica factual, já a Planet Stories privilegiava ação e aventura, enquanto a Amazing era, digamos, mais eclética, e ainda havia outras menores, que tiveram vida mais curta. Como sempre acontece em qualquer assunto, quem não entende nada de ficção científica tende a pensar que é tudo a mesma coisa – um grande erro, o que não quer dizer que não houvesse gente que lia todas essas revistas, assim como não há nada de errado em gostar de Shakespeare e também de Harry Potter. De qualquer modo, quando se firmou o suficiente como escritor para poder, ao menos na maioria das vezes, escrever da forma que melhor lhe parecesse, Asimov passou a dedicar-se quase exclusivamente ao que hoje chamamos de hard science-fiction, histórias solidamente ancoradas na ciência, que lidam com ideias complexas e são voltadas para um público maduro.

A primeira história que encontramos em O Futuro Começou é uma que Asimov havia batizado de Clandestino, mas teve o título trocado para A Ameaça de Calisto por seu editor, Frederik Pohl, que também viria a tornar-se um grande nome da ficção científica, embora menos famoso. Pohl era amigo de Asimov e tinha praticamente a mesma idade, mas já tinha obtido mais sucesso como escritor, e acabava de fundar sua própria revista, a Astonishing Stories. Lendo essa história, dá para entender porque ela havia sido recusada tanto pela Astounding quanto pela Amazing, e só pôde ser publicada graças ao nível de exigência mais modesto da Astonishing, o que não quer dizer que seja de todo má. Como outras histórias presentes neste livro, é uma aventura espacial, feita para entreter e que, durante a maior parte do tempo, consegue, mas nota-se que já aí Asimov gostava de dar ao que escrevia um fundamento científico rigoroso, ou, ao menos, tão rigoroso quanto possível; aqui, a ciência que mais se destaca é a física, para ser mais exato o magnetismo. Uma nave de exploração, com uma tripulação de veteranos, está rumando para Calisto, uma lua de Júpiter onde várias outras naves já desapareceram, sem que ninguém saiba o que lhes aconteceu. Durante a viagem, descobre-se que Stanley, um garoto de cerca de 13 anos, embarcou clandestinamente, ansioso por aventuras – ele declara que "fugiu para o espaço, como fazem nos livros", o que é um claro paralelo com todos aqueles maravilhosos livros de aventuras nos quais os garotos "fugiam para o mar". Como voltar é impossível, a missão prossegue com o pequeno intruso a bordo, e ninguém imagina como sua presença acabará sendo providencial.

(De fato, ser um jovem escritor de ficção científica naqueles tempos exigia muita garra. Pagava-se pouco, o que não afetava as exigências de qualidade para que uma história fosse aceita; por vezes o editor até se interessava por determinada história, mas pedia ao autor que a remodelasse – o que, fora o volume extra de trabalho, envolvia a frustração de ter que mexer num texto do qual o autor provavelmente gostava e se orgulhava; e, quando tudo isso era superado e chegava-se à publicação, não raras vezes o título era trocado e o escritor só ficava sabendo ao ver a revista na banca. A respeito do pagamento escasso, uma curiosidade: o valor de uma história era calculado não com base no número de páginas, mas de palavras. A Astounding, sendo a revista de maior gabarito, era também a que pagava melhor: um centavo [de dólar, naturalmente] por palavra, enquanto o valor praticado pelas outras era, em geral, de meio centavo. Hoje em dia, em tempos de Microsoft Word e assemelhados, é fácil saber quantas palavras tem um texto, mas me pergunto como isso era feito naquela época de máquinas de escrever manuais.)

A segunda história, Anel em Torno do Sol, também é uma aventura no espaço e também tem a física como pano de fundo, com duas curiosidades: apresenta uma forte veia humorística e tem como protagonistas Jimmy Turner e Roy Snead, dois pilotos da United Space Mail, que é exatamente o que o nome sugere: uma companhia de serviços postais espaciais. Asimov nos conta que pretendia usar a dupla em outras histórias, criando sua própria série, como alguns escritores da época faziam, mas, por motivos diversos, nunca o fez; conseguiria isso mais tarde com Gregory Powell e Michael Donovan, cujas aventuras podem ser lidas em Eu, Robô. Ainda não foi aqui que Asimov conseguiu criar sua primeira história realmente notável, mas a verdade é que a trama de aventura funciona e o humor também, o que é mais do que dá para dizer da terceira história, A Posse Magnífica, que é calcada na química e não consegue nem empolgar, nem causar um sorriso amarelo que seja. Para compensar, segue-se Tendências, que foi a primeira que Asimov conseguiu vender para a Astounding (as três primeiras foram publicadas em revistas menores), realizando seu sonho de anos e arrecadando alguns dólares a mais do que conseguira até então. A história trata da primeira tentativa humana de voo espacial e, mais especificamente, da resistência social que o pioneiro da cosmonáutica John Harman precisa enfrentar. A história se passa em 1973-74, durante um período de revivescência religiosa que teria se seguido aos horrores da Segunda Guerra Mundial – é bom lembrar que a história foi escrita entre o fim de 1938 e o início de 1939. Como toda pessoa bem informada da época, o jovem Asimov via que as crescentes tensões políticas na Europa levariam inevitavelmente a uma guerra que acabaria envolvendo também os Estados Unidos e outros países, mas ele arriscou o palpite de que ela começaria em 1940; começou em '39 mesmo, meses depois de a história ter sido publicada. Um dos resultados da guerra (na ficção de Asimov) foi que a população em geral pegou um trauma da ciência e da tecnologia, considerando-as responsáveis pelas catástrofes da guerra, e, por consequência, voltou-se para a fé e o misticismo, enquanto a pesquisa científica era de todas as formas desencorajada. A maneira como pessoas religiosas são retratadas na história sugere que, apesar de vir de uma família judia ortodoxa, Asimov nunca teve grande simpatia pela religião de modo geral (na maturidade, ele parece ter sido um agnóstico), talvez porque, como muita gente, enxergasse fé e ciência como adversárias irreconciliáveis – uma noção, no mínimo, altamente discutível, como comento num outro post. Seja como for, Tendências é, sem dúvida, superior às histórias anteriores. Nos comentários temos a confirmação de algo que eu já imaginava enquanto lia a história: o fato de o personagem-narrador, um ajudante direto de Harman, chamar-se Clifford, não é coincidência, e sim uma homenagem ao escritor Clifford D. Simak, um dos ídolos de Asimov desde seus tempos de simples leitor.

A Arma Terrível Demais Para Ser Usada (título comprido, deselegante e inexato, já que a tal arma é usada) é provavelmente inferior a Tendências, mas, pessoalmente, me agradou mais. Nela, a mesma história que aconteceu tantas vezes na Terra repete-se durante a exploração do sistema solar: os terráqueos invadem e colonizam Vênus, transformando os nativos em cidadãos de segunda categoria em seu próprio mundo. Os venusianos já foram uma raça poderosa, mas, na época retratada, estão reduzidos em número, e muito da herança cultural e científica de seus antepassados se perdeu, de modo que não possuem a mínima condição de oferecer qualquer resistência à tirania da Terra. Naturalmente, muitos terráqueos são contra o modo como os venusianos têm sido tratados, mas, até aquele momento, foram voto vencido. Até que dois amigos – um venusiano e um terráqueo –, explorando as ruínas de uma cidade sagrada em Vênus, descobrem um artefato dos antigos venusianos que pode mudar tudo. Concordo que a resolução da trama é extremamente ingênua, como observa Asimov depois que a história termina, mas não faz mal: ainda assim é boa ficção científica, e muito agradável de ler.

Mais curiosidades vão pipocando: O Futuro Começou inclui O Frei Negro da Chama, que Asimov havia intitulado originalmente Cruzada Galática, mas também esse título foi trocado à sua revelia. É uma história ambiciosa (talvez um tanto ambiciosa demais para o escritor naquela altura da carreira) sobre uma rebelião da espécie humana contra os lhasinu, uma raça reptiliana originária de Vega, que a havia dominado. Essa rebelião é guiada pelos "loaras", sacerdotes de uma religião influente naqueles dias. Além da inspiração óbvia, e que estava explícita no título original, outras passagens da História antiga e medieval parecem ter servido como referências. Embora a ideia seja boa, a história é bastante confusa e tem problemas de ritmo; na parte autobiográfica Asimov conta que foi a campeã de revisões em toda a sua carreira, tendo sido reescrita cinco ou seis vezes, e o leitor fica inclinado a concordar com sua conclusão de que submeter uma história a muitas revisões tem maiores probabilidades de piorá-la que de melhorá-la. Vale mais pela curiosidade de que é nela que são citados pela primeira vez os planetas Trantor e Santanni, que teriam papéis importantes na saga Fundação.

Conforme vamos lendo, percebemos que Campbell, por mais acessível e colaborativo que se mostrasse para com jovens escritores, tinha um nível de exigência que ele não afrouxava: em 1940, com dois anos de atividade e quase 20 histórias produzidas, Asimov só podia gabar-se de ter publicado uma única em Astounding. Em geral ele apresentava seus trabalhos primeiro a Campbell, e, quando eram rejeitados, tentava outras revistas, eventualmente com sucesso, mas também houve contos que ele já previa que Campbell rejeitaria e por isso nem submeteu a ele. Há histórias que dá para entender por que o editor recusou publicar – histórias agradáveis e interessantes, mas um tanto ingênuas para o padrão da Astounding, como Mestiço, que fala sobre os tweenies, nome dado aos mestiços de terráqueo e marciano, marginalizados e perseguidos (Asimov estava bem ciente da sorte que ele, sendo judeu, tinha de viver nos Estados Unidos, e não na Europa, naqueles dias), mas foi um choque para mim descobrir que Campbell também recusou Robbie, a primeira história daquilo que viria a ser conhecido como o ciclo dos robôs positrônicos, e a primeira que encontramos em Eu, Robô, talvez o livro mais famoso de Asimov. Uma coisa, aliás, não dá para deixar passar em branco: na mesma visita em que comunicou a Asimov a rejeição de Robbie, Campbell também lhe apresentou L. Sprague de Camp, então com pouco mais de 30 anos e já com uma carreira consolidada como escritor – o tipo de sujeito que, naqueles dias, o jovem Isaac encarava com um misto de admiração e inveja. Eventualmente, os dois se tornariam grandes amigos. Asimov relata o encontro de forma um pouco mais detalhada em sua introdução ao livro Construtores de Continentes, de De Camp, embora, nessa introdução, não explicite que a história que Campbell rejeitou na ocasião era Robbie. Essa história, por sinal, seria publicada por Frederik Pohl em sua Astonishing, sendo que, para manter-se fiel ao seu hábito, ele trocou o título, chamando-a de Strange Playfellow (algo como 'Estranho Companheiro de Brincadeiras'), título que Asimov, compreensivelmente, detestou. Em Eu, Robô, e em todas as demais coletâneas em que apareceu ao longo dos anos, o conto saiu sob o título original.

(Espero que haja alguns fãs hardcore de ficção científica me lendo, pois creio que seja o único tipo de leitor capaz de se divertir com essa espécie de curiosidade! – risos. Todos os outros já devem ter desistido deste post.)

Como um jovem autor que ainda estava afiando seus instrumentos, Asimov por vezes errava a mão ao superestimar o conhecimento científico médio de seus leitores em potencial, como nas histórias Homo Sol e Imaginário, que, juntas, são como que um esboço de série, já que o ambiente e alguns personagens são os mesmos em ambas. Campbell aceitou a primeira e rejeitou a outra (que seria, mais tarde, publicada em outra revista), a despeito da justificável crença de Asimov de que um conto com "antecedentes" seria olhado com mais interesse pelo editor. Nessas histórias se delineia, de forma ainda nebulosa (e, para falar sem rodeios, tosca) um universo que lembra o de Fundação: há muitas civilizações, mas são todas humanoides, e já desponta a ideia de que seria possível prever as reações de grupos humanos a determinadas situações por meio de cálculos matemáticos. Curiosamente, nesse universo os humanos da Terra são exceção num ponto-chave: são a única raça humanoide conhecida que, quando em grandes grupos, fica mais suscetível a emoções como raiva ou pânico; todas as outras raças tendem a ter um comportamento tanto mais estável quanto mais numerosa for a multidão. Essa e outras características peculiares fazem dos terráqueos um povo imprevisível, com o qual é preciso tomar cuidado. O mesmo universo descrito em Homo Sol e Imaginário aparece, ainda, na divertida O Trote, que se passa numa universidade frequentada por estudantes de vários planetas e raças. Nessa, entretanto, só a ambientação é a mesma, pois os personagens das outras duas não aparecem.

Mais uma curiosidade se junta a tantas outras que descobrimos neste livro: em seus primeiros tempos como escritor, Asimov teve a constante ambição de colocar histórias suas na revista Unknown, uma espécie de irmã da Astounding, publicada pela mesma editora e também coordenada por Campbell, só que voltada para a fantasia. Fez várias tentativas ao longo de anos, sendo sempre rejeitado; parece que Campbell mantinha a mesma linha dura ao selecionar o material que iria publicar, fosse qual fosse a revista ou o gênero. Quando, já em 1943, Asimov finalmente conseguiu ter uma história aceita para a Unknown, a revista acabou sendo cancelada antes que ela fosse publicada: estava-se em plena Segunda Guerra Mundial e os recursos andavam escassos, até mesmo o papel, o que forçou Campbell a escolher entre extinguir a Unknown ou reduzir a periodicidade da Astounding para bimestral. E a decisão que ele tomou, ainda que dolorosa, foi correta: Astounding ganharia mais e mais relevância durante os anos seguintes, e existe até hoje, embora seu nome tenha mudado para Analog Science-fiction and Fact, geralmente chamada apenas de Analog. A história vendida e não publicada apareceu, anos depois, como bônus numa coletânea dedicada às melhores histórias da Unknown, e também está incluída em O Futuro Começou; trata-se de Autor! Autor!, na qual, sinceramente, não vi nada de mais. Se Campbell a considerou uma evolução em relação às tentativas anteriores de Asimov no campo da fantasia, respeito sua expertise de editor, mas a história realmente não me empolgou.

Um dos raros exemplos que sobreviveram dentre as histórias de Asimov rejeitadas pela Unknown é O Homenzinho no Metrô, também presente em O Futuro Começou, e que não depõe muito a favor da qualidade geral desses trabalhos; é uma história com pouquíssimo pé ou cabeça, cujo principal objetivo parece ser o de satirizar a religião, e séria candidata a pior conto do livro. Para deixar tudo ainda mais curioso, é produto de uma parceria entre Asimov e Frederik Pohl, e só foi preservada porque, depois que Campbell a recusou, Asimov devolveu o original a Pohl, que, vários anos mais tarde, conseguiu vendê-la para uma revista obscura, provavelmente graças ao renome que tanto ele quanto Asimov haviam ganho durante esse intervalo. Pohl e Asimov ainda voltariam a escrever em dupla, e O Futuro Começou nos oferece outro exemplo, Ritos Legais, uma história de fantasma (as surpresas parecem não ter fim: Isaac Asimov escrevendo sobre fantasmas??), também destinada à Unknown e também rejeitada e mais tarde vendida para outra revista – e não uma revista qualquer: simplesmente a Weird Tales! (ver aqui e aqui) Foi a única vez que um trabalho de Asimov foi impresso na WT – e ganhou a capa. Pohl assinou com um de seus vários pseudônimos, "James McCreigh", que acabou sendo grafado errado. Essa história é melhorzinha que a outra, mas não criem muita expectativa.

(Muito mais tarde, já nos anos 80, Asimov viria a dedicar-se à fantasia com regularidade e certo sucesso, com as histórias de Azazel, um minúsculo demônio [ou talvez extraterrestre, não se sabe ao certo] que faz amizade com um sujeito chamado George, e, a partir daí, os dois, utilizando os poderes de Azazel, tentam ajudar diversas pessoas a resolver variados tipos de problemas – o que sempre dá errado da maneira mais engraçada possível. Nessa altura, já maduro e experiente, Asimov havia aumentado muito sua versatilidade enquanto escritor, mas também é bom levar em consideração que não mais precisava preocupar-se se suas histórias seriam aceitas ou rejeitadas, primeiro porque já era um autor consagrado, cujo nome na capa de uma revista era garantia de boas vendas, e, segundo, porque a maior parte das histórias de Azazel foi publicada na revista que levava seu nome e que ele próprio editava [e que teve versão brasileira, embora com vida curta]. Na minha opinião de leitor, essas histórias são divertidas, mas não estão nem de longe entre as melhores do autor. O grande combustível das aventuras de George e Azazel é o humor, e, falando francamente, as habilidades de Asimov para a comédia não eram tão notáveis quanto ele parecia acreditar que fossem. Suas piadas às vezes funcionam, às vezes nem tanto.)

O Futuro Começou não inclui a história Nightfall ('O Cair da Noite'), porque isso fugiria ao seu objetivo, que era disponibilizar aos leitores os contos menos conhecidos do começo da carreira de Asimov, que não estivessem presentes em coletâneas anteriores. Ainda assim, o autor não pôde furtar-se a um breve comentário sobre essa história, que foi um marco em sua carreira – afinal, como ele diz com palavras ligeiramente diferentes, qual era a probabilidade de que um rapazote de 21 anos, escrevendo profissionalmente há menos de três e tendo produzido apenas umas 30 histórias (várias delas rejeitadas pelos editores), de repente, não mais que de repente, escrevesse o que viria a ser um dos contos mais aclamados da história da ficção científica? Nightfall colocou Asimov, pela primeira vez, na capa da Astounding, e é sem dúvida uma história extraordinária de diversas maneiras. Eu a li pela primeira vez na adolescência e, desde então, creio que reli mais uma vez. Como estou passando por uma fase de reencontro com as obras de Asimov, é provável que acabe lendo de novo, e, nesse caso, vai figurar aqui no blog de forma mais detalhada.

Há ainda várias outras histórias, boas e nem tanto, e não acho necessário falar sobre uma por uma; algumas eu já havia lido em outros livros, como Não é Definitivo!, que aparece na antologia A Sonda do Tempo, editada por Arthur C. Clarke, só que com o título Não é a Última Palavra!, ou Natal em Ganimedes (outra das tentativas de Asimov de fazer humor; esta, em minha opinião, com sucesso mediano), que sei que também já havia lido antes, mas não consigo lembrar onde. Só há mais um conto que quero destacar, e esse por razões absolutamente pessoais. Refiro-me a Nenhuma Ligação! (No Connection!), publicada originalmente na Astounding em junho de 1948. No começo temos a impressão de que os personagens que aparecem em ação são humanos, mas depois nos damos conta de que isso é mera suposição e, por um indício encontrado aqui e outro ali, começamos a desconfiar que não é bem assim, até a coisa ser explicitada: a civilização que ali vemos retratada pertence a seres que se autodenominam gurrows (o nome científico é Gurrow sapiens), fisicamente semelhantes a ursos, e provavelmente descendentes deles – ou seja, tudo leva a crer que estejamos vendo a Terra num futuro extremamente distante, quando o homem já não existe há muito tempo, o que abriu espaço para a ascensão de outra espécie inteligente, e os ursos, ao que podemos supor, evoluíram nessa direção. A sociedade deles é muito pacífica e verdadeiramente igualitária, sem as mazelas que sempre apareceram ao longo da História humana quando se tentou estabelecer uma "igualdade". Cada gurrow ocupa-se do tipo de trabalho que mais lhe agrade, desde que este seja útil à sociedade, e, se há uma tarefa da qual ninguém gosta, mas que é necessária, equipes são formadas para realizá-la por turnos, em sistema de revezamento. Por exemplo, um deles pode gostar de cultivar jardins e ter isso como profissão, mas, uma ou duas vezes por mês, tem que juntar-se a um grupo que vai fazer a limpeza das fossas sépticas, e dedicar-se a essa tarefa durante algumas horas. E, se aparecer alguém que goste de limpar as fossas sépticas, bem, esse gurrow irá trabalhar com isso, liberando outros de uma ocupação que, para eles, não é agradável. E o mais interessante: para os gurrows, a noção de profissões prestigiosas ou desprezadas é completamente desconhecida. Um limpador de fossas sépticas e um reitor de universidade, por exemplo, ganham a mesma coisa e estão em completa igualdade social, tendo, aos olhos de todos os outros, o mesmo status. A história dá a entender que esse estado de coisas não é resultado de nenhum tipo de política: são apenas os "gurrows sendo gurrows". O conceito é fascinante, não só a descrição de uma sociedade assim, mas a própria ideia de outra espécie inteligente evoluindo na Terra; porém, se eu fosse escrever essa história, acho que escolheria como base algum outro tipo de animal (não sei ao certo qual), já que os ursos são seres essencialmente solitários, que praticamente só convivem com outros de sua espécie para fins reprodutivos e durante curtos períodos, de modo que dificilmente desenvolveriam inteligência (a vida em grupo parece ser requisito para isso), e, ainda que a desenvolvessem, não acho provável que criassem uma sociedade complexa. Mas isso ainda não é tudo: parece que o impulso exploratório não é uma característica dos gurrows, pois faz poucos anos que eles descobriram que existem outros continentes além daquele em que habitam – e, surpresa, num deles existe outra espécie inteligente, essa derivada dos chimpanzés. Um grupo desses estranhos acaba de chegar à terra dos gurrows numa aeronave, e eles se dizem "refugiados políticos" – outra noção que a mente dos "ursos" não é capaz de conceber, mas que parece familiar aos recém-chegados, que chamam a si mesmos de ikas. Pelo visto, mesmo com a humanidade extinta, primatas serão sempre primatas.

Creio que é chegada a hora do apanhado geral, então vamos a ele. No que se refere às histórias, O Futuro Começou é irregular como noventa e nove por cento das coletâneas, com momentos excelentes e outros que testam nossa paciência, e, como já observei antes, isso não causa surpresa, já que, até aproximadamente a metade do volume, o que estamos lendo são os trabalhos de um autor inexperiente, ainda em busca de sua verdadeira "cara" como escritor; já os trechos autobiográficos ampliaram bastante o meu conhecimento a respeito da trajetória desse que foi um dos mais importantes autores de ficção científica, esclarecendo, inclusive, os motivos de algumas características conhecidas de certas obras suas. Portanto, em resumo, é um livro que deve ser recomendado a todos os que gostam de Asimov. Quanto à qualidade desta edição em particular, bem… Todo leitor brasileiro de ficção científica tem uma relação de carinho e gratidão com a editora Hemus, que durante muitos anos colocou ao nosso alcance muito do melhor que existe no gênero mundo afora; esse design inconfundível de seus volumes de capa branca, com o nome do autor em vermelho e preto no alto, sempre nos trará recordações agradáveis. Porém, nem mesmo tudo isso foi suficiente para me fazer fechar os olhos a todas as falhas que encontrei aqui. São creditados os nomes de três tradutores diferentes, sem que haja indicação de quais histórias cada um traduziu, e, em muitas delas, qualquer leitor que conheça a língua inglesa detectará erros ingênuos, que, a meu ver, seriam admissíveis se cometidos por um estudante de nível básico a intermediário, nunca por um tradutor habilitado. E, igualmente incrível, o revisor também os deixou passar… Talvez a editora Aleph, que anda relançando muitos livros de Asimov que há muito tempo estavam fora de ca-tálogo no Brasil, se anime a fazer uma nova edição de The Early Asimov, mais bem cuidada desta vez.

quinta-feira, janeiro 17, 2019

O Mundo Perdido

O mundo da literatura tem seus paradoxos. Um deles é o que acontece quando um autor consegue o raríssimo feito de criar um personagem que se torna tão famoso que, de certa forma, acaba por ganhar vida própria: nesses casos, a fama da criação costuma ofuscar a do criador. Foi assim com Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e seu personagem mais conhecido, o detetive Sherlock Holmes. Todo mundo sabe quem é Holmes, mesmo que a vasta maioria das pessoas nunca tenha lido uma linha da obra de Conan Doyle, mas apenas os poucos que têm alguma intimidade com literatura conseguirão, se perguntados, dizer o nome do escritor que o criou, e receio que ainda menos serão capazes de citar algum trabalho seu que não sejam as aventuras do grande detetive. O que é bem injusto, já que, mesmo que ele nunca houvesse criado Sherlock Holmes, ainda restariam no currículo de Doyle obras em quantidade e qualidade mais que suficientes para fazer dele um escritor de respeito. Para completar, alguns elementos que estão ou já estiveram largamente presentes na ficção moderna devem a Doyle o pontapé inicial: foi dele a ideia de usar uma múmia reanimada como personagem num conto de terror (Lote 249, de 1892), fonte na qual o cinema viria a beber dezenas de vezes; e também foi ele o responsável por trazer os dinossauros para a ficção, com O Mundo Perdido (1912), que acaba de ganhar esta nova e caprichada edição nacional pela editora Todavia (eita… A portuguesa Saída de Emergência tem uma competidora no ranking das editoras com nomes estranhos).

Garimpando, tempos atrás, num dos diversos sebos da rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre, adquiri um exemplar da velha edição de O Mundo Perdido da Francisco Alves, editora que durante décadas fez por merecer a gratidão de todos os fãs brasileiros da literatura de imaginação; porém, o livro ainda aguardava na minha estante a sua vez de ser lido quando encontrei numa livraria esta nova edição, e, ao ver que incluía uma ampla seção de notas explicativas do tradutor Samir Machado, concluí que valia a pena: Conan Doyle tinha uma tendência a salpicar seu texto com referências a personalidades, instituições e costumes da Inglaterra vitoriana que podem soar bastante misteriosas para quem vive em outra época e outro país (e digo da Inglaterra porque, embora fosse escocês de nascimento e descendente de irlandeses, ele parecia ter em Londres seu habitat literário por excelência). E, de fato, as notas não apenas esclarecem sobre esses detalhes da realidade britânica da época, como corrigem e atualizam vários pontos nos quais as observações do autor sobre características e comportamento dos animais pré-históricos estão hoje ultrapassadas graças aos vastos progressos da paleontologia ao longo do último século. Contando com esse reforço, mergulhei na minha primeira leitura desse clássico.

Não foi pouca a minha surpresa ao perceber na estrutura de O Mundo Perdido uma série de semelhanças com Viagem ao Centro da Terra (1864), de Júlio Verne! É claro que o formato de ambas as histórias é comum a um sem-número de obras que tratam da descoberta de "mundos perdidos", o que alguns teóricos chegam a classificar como um subgênero específico dentro da literatura de aventura – a saber, uma expedição de intrépidos exploradores penetrando em alguma região isolada, desconhecida pelo resto da humanidade, e lá descobrindo todo tipo de maravilhas e surpresas – mas, mesmo assim, chamou-me a atenção que ambos os livros sejam narrados na primeira pessoa por jovens corajosos que deixam para trás suas respectivas amadas, cada um deles na esperança de retornar de sua aventura coberto de glória e assim merecer casar-se com sua musa. Ambos, também, seguem a liderança de um brilhante e excêntrico cientista. No livro de Verne, o jovem Áxel é sobrinho e discípulo do Prof. Otto Lidenbrock, e espera ganhar a mão de Grauben, afilhada do cientista; no de Conan Doyle, o protagonista Edward Malone é um jornalista jovem, mas que já granjeou certa reputação, e está irremediavelmente apaixonado por Gladys, uma moça que parece satisfeita de manter com ele uma relação de cordial amizade, situação sobre a qual o jovem repórter tem opiniões categóricas:

Éramos amigos, bons amigos, mas nunca consegui ir além do mesmo tipo de camaradagem que eu poderia ter com algum colega jornalista da Gazette – perfeitamente sincera, perfeitamente gentil e perfeitamente assexuada. Meus instintos iam contra a ideia de que uma mulher pudesse ser sincera e ficar à vontade comigo; para um homem, isso não é elogioso. Onde a verdadeira atração sexual começa, a timidez e a desconfiança são suas companheiras. (…) A cabeça baixa, o olhar arisco, a voz vacilante, os estremecimentos – esses são os verdadeiros sinais da paixão, não o olhar direto e a resposta franca. Mesmo em minha curta vida, esse tanto eu havia aprendido – ou herdado daquela memória que nossa raça chama de instinto. (…) Houvesse o que houvesse, essa noite eu precisava acabar com o suspense e levar o assunto adiante. Ela poderia até me rejeitar, mas era melhor ser repelido como amante que aceito como irmão.

Tudo pura verdade! Malone demonstra ser sábio para seus parcos 23 anos.

Ocorre que Gladys é uma jovem sonhadora, que tem absoluta certeza de que somente poderá amar um homem que tenha se destacado por algum feito grandioso. Diante disso, Malone pede a seu editor que lhe dê a pauta mais difícil e arriscada que tiver – e é assim que vem a conhecer seu próprio "Lidenbrock" na pessoa do Prof. George Challenger (sobrenome que significa literalmente 'desafiante'), cientista de renome, mas dotado de um gênio terrível. Dois anos antes, Challenger retornou de uma expedição à América do Sul com ideias estranhas, aparentemente convencido de que, em algum lugar isolado na selva amazônica, dinossauros e outras criaturas que deveriam estar extintas há eras continuam vivas e ativas. Suas afirmações são recebidas com compreensível ceticismo, e Challenger fica possesso sempre que é posto em dúvida, já tendo chegado a agredir fisicamente mais de uma pessoa por tal motivo – o que não é um risco a se desprezar, já que trata-se de um homem de força considerável. Malone encara o "desafio" e, depois de passar maus pedaços, acaba ganhando a confiança e até um pouco da simpatia do cientista, apesar da completa ojeriza que este dedica à imprensa e a todos os seus representantes diretos e indiretos. E assim o rapaz obtém o passe para a aventura heroica que procurava: torna-se membro da expedição que acompanhará Challenger à bacia do Amazonas em busca de provas concretas de tudo o que ele afirma. Também fazem parte do grupo Lorde John Roxton, experiente caçador e aventureiro, e o Prof. Summerlee, rival de Challenger no meio acadêmico britânico, que não esconde de ninguém que seu único objetivo naquela empreitada é desmascarar o que considera uma grande farsa.

O lugar onde o tempo parece ter parado (depois se descobrirá que não é bem assim) é um platô isolado, cercado em todas as direções por milhares de quilômetros quadrados de selva fechada e pouquíssimo explorada. A teoria de Challenger é a de que, durante alguma era antiga do planeta, atividade vulcânica violenta tenha erguido esse platô, rodeando-o de rochedos intransponíveis que cortaram completamente seu acesso ao resto do mundo. A não ser pelas criaturas aladas, nada entra e nada sai. Esse isolamento teria feito com que a fauna desse pedaço da selva não acompanhasse o processo de extinções e evolução pelo qual a vida na Terra passou desde então. Uma "terra que o tempo esqueceu" – por sinal, título de um livro de Edgar Rice Burroughs, publicado em 1924 e sobre o qual suspeito fortemente de que as semelhanças não sejam mera coincidência.

O platô onde se localiza a Terra de Maple White – assim nomeada em homenagem ao desafortunado explorador norte-americano que foi seu descobridor original – não tem uma extensão muito grande: é descrito como uma área em forma de elipse, com aproximadamente 50 quilômetros de comprimento por 30 de largura máxima. A população animal que uma região desse tamanho poderia sustentar seria pouco numerosa, ainda mais em se tratando de animais de grande porte como era o caso de muitas espécies de dinossauros, mas o leitor com algum conhecimento de paleontologia (mesmo que seja apenas um conhecimento nascido da curiosidade, como no meu caso) perceberá logo que não se deve esperar muito apuro científico nas descrições que Doyle faz da fauna do lugar. A ideia em si do motivo para que os dinossauros tenham sobrevivido ali é até plausível, ainda que improvável, mas é difícil explicar que, além deles, também sejam encontrados exemplos do que hoje chamamos de megafauna, mamíferos de grande porte que dominaram a Terra durante o período Pleistoceno, entre 1,8 milhão e cerca de 12 mil anos atrás – dezenas de milhões de anos depois da extinção dos dinossauros e preenchendo os nichos ecológicos outrora ocupados por eles (é importante lembrar que foi durante o Pleistoceno que se deu o surgimento do homem, cuja atividade como caçador pode ter contribuído para a extinção de certas espécies da megafauna). O autor chega a mencionar o toxodonte, o gliptodonte (este sem citar o nome, falando apenas em “seres semelhantes a tatus”), e, com destaque, o alce-gigante, também conhecido como alce-irlandês, cervo-gigante ou megalocero, talvez o maior cervídeo de que se tem notícia. Não se tratava realmente de um alce, estando geneticamente muito mais próximo do wapiti, ou cervo-canadense (que às vezes é equivocadamente chamado de alce, o que causa confusão) e do veado-vermelho do hemisfério norte, embora seus formidáveis chifres espalmados lembrassem, de fato, os do alce que conhecemos. Era um bicho enorme, que chegava a pesar 700 quilos. O registro fóssil indica que viveu na Europa e na Ásia; sua presença na Amazônia é mera licença poética. A espécie extinguiu-se há uns sete mil anos.

(Na verdade, o uso do nome alce é problemático. Em português, essa palavra refere-se à espécie cujo nome científico é Alces alces, o maior cervídeo vivo nos dias de hoje, encontrado na América, Europa e Ásia, mas somente em latitudes bem ao norte. Quando os romanos, que nunca tinham visto semelhante animal, travaram conhecimento com ele na Germânia, adotaram [numa forma latinizada] o nome que as tribos locais lhe davam, o que veio dar na palavra latina alces, origem tanto do nome científico quanto do nome em português. Na Europa, essa espécie é chamada em inglês de elk, em alemão de Elch, em norueguês e dinamarquês de elg – todas com origem na antiga palavra elgr, que era igual em protogermânico e em nórdico antigo. Na América do Norte, os colonizadores ingleses encontraram alces iguais aos que já conheciam, mas também outra espécie de cervo de grande porte, que os índios chamavam de wapiti e era ligeiramente menor; começaram por chamar ambas, indistintamente, de elk, mas acabaram adotando moose [também de origem indígena] para a espécie maior, deixando elk para a outra, uso que se manteve nos Estados Unidos e Canadá. Na Europa, onde o wapiti não é encontrado, elk continua designando o Alces alces.)

A pergunta inevitável é: se a Terra de Maple White foi isolada do resto do mundo devido à atividade sísmica ou vulcânica na época em que os dinossauros reinavam, como foi que esses grandes mamíferos, que só surgiram em estágios muito posteriores da história da vida na Terra, foram parar lá? O Prof. Challenger tem uma teoria:

Minha própria leitura da situação (…) é que a evolução tem avançado sob as condições peculiares desta terra até o estágio vertebrado, e os tipos antigos sobrevivem e vivem em companhia dos mais novos. Por isso encontramos criaturas modernas como a anta, um animal com uma linhagem e tanto, o grande veado e o tamanduá, em companhia de formas reptilianas do tipo jurássico.

Sim, eu sei: isso não é apenas superficial – é vago demais para podermos dizer que explica alguma coisa. É claro que, num simples livro de aventuras que fala de um lugar totalmente fictício, explicar cientificamente as características de tal lugar não seria uma prioridade nos planos do autor, nem há motivo para que o fosse, mas, como estou escrevendo por prazer, eu também vou me "aventurar" e alongar um pouco mais o assunto.

Quando O Mundo Perdido foi publicado, fazia pouco mais de 50 anos que Charles Darwin havia apresentado a teoria da evolução, e, embora ela já fosse aceita pela maior parte do meio científico e acadêmico, não sei o suficiente sobre história da ciência para poder dizer até onde haviam progredido os estudos sobre o assunto, ou qual a compreensão que se tinha do funcionamento da evolução na prática, então não sei se o esboço de teoria do Prof. Challenger está de acordo com o que se pensava ou o que se sabia na época, mas, à luz da biologia atual, pode-se apontar pelo menos um grande problema: sabe-se hoje que é muito improvável (para dizer o mínimo) que populações de uma mesma espécie, isoladas umas das outras, evoluam exatamente da mesma maneira – ainda que expostas a idênticas condições ambientais. Em outras palavras, vamos admitir que, quando a Terra de Maple White se formou, tenham ficado presos lá, junto com os dinossauros, alguns dos pequenos mamíferos primitivos que já existiam nos períodos Jurássico e/ou Cretáceo: a probabilidade de que esses animais dessem origem, milhões de anos depois, a antas ou alces-gigantes iguais aos do mundo exterior seria, a bem dizer, inexistente. Teriam, certamente, evoluído para novas espécies, mas estas seriam únicas, endêmicas do platô e diferentes das encontradas em qualquer outro lugar – e é provável que fossem todas pequenas, já que os nichos ecológicos disponíveis para espécies de grande porte estariam ocupados pelos dinossauros. E tem mais: por que os mamíferos teriam evoluído, enquanto os dinossauros permaneciam tal como eram? Mas não vamos julgar Doyle: premissas mais esdrúxulas que a de O Mundo Perdido já renderam boas histórias. O livro foi escrito para divertir, e não há dúvida de que o faz muito bem.

Esta edição termina com Grandes, Assustadores e Extintos, artigo de autoria de Samir Machado, tradutor e responsável pelas notas, como dito no início. Mesmo com um perceptível ranço politicamente correto, é um texto interessante, cheio de curiosidades sobre a longa e profícua carreira dos dinossauros no imaginário e na cultura popular, com ênfase em suas aparições no cinema, desde a primeira filmagem do próprio O Mundo Perdido, em 1925 (ainda nos tempos do cinema mudo), até a franquia Jurassic Park, criada por Steven Spielberg com base em um livro de Michael Crichton e cujo mais recente episódio foi lançado em 2018. Entretanto, a influência dos dinossauros sobre a imaginação humana não começou no cinema e nem mesmo na literatura escrita (lembrem-se de que narrativas orais também são uma forma de literatura): é fascinante pensar que fósseis de dinossauros, encontrados por acaso séculos antes que esses animais fossem conhecidos pela ciência, foram a provável origem dos mitos não só sobre dragões, mas também sobre outros seres fantásticos. Esqueletos de protocerátops – um ancestral da linhagem dos famosos tricerátops e estiracossauro –, que eram achados em quantidade na Ásia central, podem ter dado origem à lenda do grifo, um animal com quatro patas e bico de ave!… Voltando por um instante à primeira adaptação cinematográfica de O Mundo Perdido, descobri no artigo de Machado que os dinossauros desse filme foram criados por um cidadão chamado Willis O'Brien, um dos pioneiros da animação stop motion e, mais tarde, mentor do jovem Ray Harryhausen, por sua vez responsável por dar vida a tantas criaturas extintas ou fantásticas, em filmes inesquecíveis inspirados na mitologia grega e em As 1001 Noites, tais como Fúria de Titãs, Jasão e os Argonautas, Sinbad e o Olho do Tigre e tantos outros… Para mim e outros da minha geração, a menção desses títulos é suficiente para fazer bater aquela nostalgia. Harryhausen teve o privilégio de ser amigo de infância de outro Ray – Ray Bradbury, e os fãs de ficção científica conhecem bem o peso desse nome. Os dois Rays uniram forças num filme lançado em 1953, com o título The Beast from 20000 Fathoms; uma tentativa de tradução direta resultaria em algo tão horroroso quanto A Fera que Veio de 20000 Braças de Profundidade (arre!), motivo pelo qual, ao chegar ao Brasil, o filme foi rebatizado como O Monstro do Mar. Há mais curiosidades desse tipo esperando pelos leitores nesse artigo.

Para concluir, quero prestar o devido reconhecimento à editora Todavia, já que O Mundo Perdido há muito andava ausente das livrarias nacionais, e o retorno deu-se de maneira digna, com esta edição agradável e bem cuidada. O único senão é o mesmo do qual já me queixei uma vez aqui no blog, a coisa de terem decidido colocar as notas no final em vez de no rodapé das páginas, o que compromete o dinamismo da leitura. Sugiro rever isso nas próximas edições.