
segunda-feira, julho 18, 2011
O Último Reino

quarta-feira, junho 29, 2011
Uma Paixão por Cultura

quarta-feira, junho 01, 2011
Thor

Para quem já foi durante muito tempo (ou o que para um adolescente pareceu ser muito tempo) um entusiasta de quadrinhos, mas já não os lê, a não ser ocasionalmente, há uns bons anos, não será tarefa das mais fáceis comentar este novo filme, mas já observei que os textos mais difíceis de começar costumam ser os que, depois que deslancham, acabam tendo os resultados mais interessantes. Então peço paciência a meus leitores se este post demorar um pouco a "decolar". ☺
Quando Stan Lee, fundador e, na época, principal argumentista da Marvel Comics Group, escreveu a primeira história tendo como protagonista o deus nórdico Thor (publicada na revista Journey Into Mystery n.º 83, de agosto de 1962), estava fazendo algo de inaudito para a época: buscar inspiração no passado da humanidade, em suas religiões antigas e lendas ancestrais, para contar histórias com uma roupagem moderna, que atraísse os jovens. Para aproximar mais o personagem de seus leitores e também poder fazê-lo interagir com os demais astros dos quadrinhos de seu selo, como o Hulk, Homem de Ferro, Capitão América e outros, Lee teria que trazer Thor para o século XX. Conseguiu isso criando para ele um alter ego, o Dr. Donald Blake, um cirurgião (americano, é óbvio) manco, que, durante uma viagem à Noruega, encontraria numa caverna um velho bastão de madeira e, ao batê-lo acidentalmente nas pedras, ver-se-ia transformado no poderoso Deus do Trovão, tendo o bastão virado o mítico martelo Mjolnir (o j pronuncia-se como i semivogal). Daí em diante, Blake levaria a vida dupla típica de quase todos os super-heróis, exercendo a medicina como rotina e ocasionalmente encarnando o deus para salvar o mundo daquelas boas e velhas ameaças cósmicas que todo argumentista do gênero é craque em tirar da manga.
As histórias de Thor seguiram nesse esquema durante anos, com os altos e baixos normais. Como não sou um especialista e, além disso, essas histórias foram publicadas muito antes do meu tempo, não sei dizer ao certo se foi ainda o próprio Lee ou um dos vários argumentistas por cujas mãos o herói passou quem teve a ideia de dar uma reviravolta em sua origem. Até então, Donald Blake acreditava ser apenas um mortal a quem os desígnios de alguma sabedoria superior teriam achado por bem conceder os poderes de um deus para que os usasse em defesa de causas justas. Aos poucos, eventos misteriosos que iam ocorrendo em sua vida, e imagens que surgiam inexplicavelmente em sua memória, acabaram por levá-lo a compreender a verdade: ele era o próprio deus Thor.
A explicação encontrada para isso foi bastante engenhosa e com um sabor realmente mitológico: calçado em sua condição de primogênito do deus supremo, Odin, e em sua reputação de grande guerreiro entre os habitantes de Asgard (o reino dos deuses), Thor ter-se-ia tornado um deus egoísta e arrogante. Para ensinar-lhe uma lição, Odin teria retirado seus poderes, apagado sua memória, e o colocado para viver na Terra sob uma identidade forjada, a do então estudante de medicina Blake. Como um jovem sem muitos recursos, e que sofria com as sequelas de uma paralisia, Thor aprenderia o valor da humildade e do trabalho duro, até estar pronto para receber de volta sua herança divina.
Foi já nos anos 80 que um sujeito chamado Walter Simonson assumiu a revista mensal de Thor nos Estados Unidos. Escritor e também desenhista, realizou uma reformulação geral no personagem e em seu ambiente, buscando reduzir ao mínimo possível as ligações com o universo super-heroístico da Marvel para investir pesado numa maior aproximação com a mitologia nórdica, que, afinal de contas, foi de onde o personagem veio. E é nítido que foi principalmente dessa fase que veio a inspiração para o primeiro filme da nova safra cinematográfica da Marvel a tratar do Deus do Trovão.
E vamos concordar, não se trata de um filme qualquer ― nenhum filme dirigido por Kenneth Branagh, responsável por nada menos que Henrique V, é um filme qualquer. Menos ainda se tiver Anthony Hopkins no papel de Odin e Natalie Portman ― rara combinação de beleza estonteante e talento admirável, capaz de se sair bem seja num filme ET (extra trash) como Marte Ataca (1996) ou num tenso thriller psicológico como o recente Cisne Negro ― como a "mocinha", no caso a cientista Jane Foster, com quem Thor, exilado na Terra, irá se envolver. O filme tem ainda Stellan Skarsgård (Rei Arthur, O Exorcista: o Início) como Dr. Erik Selvig, mentor de Jane; Tom Hiddleston como Loki; Jaimie Alexander como a deusa Sif (na mitologia, esposa de Thor, no filme aparentemente apenas uma "amiga", que nem chega a interferir na relação dele com Jane) e, curiosamente, Ray Stevenson (também de Rei Arthur e da série Roma), praticamente irreconhecível sob uma montanha de barba e cabelo, como o gordo e bonachão Volstagg, personagem criado para os quadrinhos.
O filme começa com uma cena em que Jane, Selvig e sua bolsista estão tentando observar e registrar um estranho fenômeno nos céus do deserto do Novo México, quando seu veículo de pesquisa atropela um homem que parece ter surgido do nada em meio à tempestade. Depois de o espectador ter apenas tido tempo de ver que o homem é Chris Hemsworth, que interpreta Thor, a narrativa recua para a Idade Média, nas terras do norte, e passa a ocupar-se de uma guerra entre os deuses de Asgard e os Jotun, ou gigantes de gelo ― é interessante notar que na mitologia nórdica, como na grega, os gigantes personificam forças da natureza, e que os deuses nórdicos, também como seus equivalentes gregos, têm com esses gigantes uma relação ambivalente: ao mesmo tempo em que são ligadas por estreitos laços de parentesco, as duas raças são inimigas mortais. Com os deuses saindo vitoriosos, Odin toma dos gigantes uma caixa misteriosa que dá origem aos poderes deles, e estabelece uma trégua ― que Thor, muitos anos depois, irá quebrar em busca de glória pessoal, levando Asgard à beira de uma nova guerra. No filme, é esse ato que leva o rei dos deuses a banir o filho para a Terra, tendo anulado a maior parte de seu poder, mas Thor não perde a memória, nem chega propriamente a ter um alter ego humano ― apenas usa falsamente e por um curto período de tempo o nome de Donald Blake, que, segundo Jane, é um "ex" seu. Em Asgard, Odin adormece (de acordo com a mitologia, ele precisava de longos períodos de sono para manter seus poderes) e, sem que ninguém saiba quando despertará, seu ardiloso filho adotivo, Loki, aproveita-se da ausência de Thor para fazer-se rei, o que precipitará o conflito que serve de combustível ao roteiro.
O filme toma diversas liberdades em relação à mitologia ― basicamente, as mesmas que os quadrinhos já tomavam, e mais algumas. Nas lendas nórdicas, por exemplo, Loki não era filho de Odin, nem mesmo por adoção, e, embora por nascimento pertencesse à raça dos gigantes, era admitido ao convívio dos deuses e geralmente considerado um deles. Tinha uma personalidade complicada, algumas vezes comportando-se como um fiel amigo dos deuses, outras como um trapaceiro compulsivo. Nos quadrinhos, essa complexidade havia sido abolida ― Loki era retratado sempre como mau-caráter ―, enquanto, no filme, ele é um personagem mais dramático, que sofre ao descobrir sua verdadeira origem, o que pode, em parte, justificar seus atos e ganhar para ele um pouco da simpatia do espectador. Loki era o deus do fogo e gerou muitos filhos, tanto humanos quanto feras, entre eles Sleipnir, o garanhão de oito patas que servia de montaria a Odin, bem como o monstruoso lobo Fenris, ou Fenrir, e a Serpente de Midgard. Midgard, aliás, era como os nórdicos chamavam o mundo onde vivemos nós, humanos. Esse nome, que significa literalmente terra média (alguém se lembra onde já vimos isso?), deve-se ao fato de que esse mundo fica no meio, abaixo do céu, onde vivem os deuses, e acima do mundo subterrâneo, habitado por trolls e outras criaturas do escuro.
Por falar em morte, alguns podem ter estranhado a cena em que, prestes a partir para Jotunheim, o reino dos gigantes de gelo, Thor diz a Heimdall, o guardião dos portões de Asgard, que não tem planos de morrer naquele dia, e Heimdall replica que ninguém tem. Pode-se pensar: "Fácil para eles dizerem isso: são deuses, imortais!" Beeeem... Mais ou menos. O fato é que os deuses nórdicos não eram imortais no sentido pleno do termo. Para evitar a velhice e as doenças, precisavam comer regularmente as maçãs mágicas cultivadas pela deusa Iduna, e podiam, sim, morrer em combate da mesma forma que os homens ― embora, claro, para isso fosse preciso um adversário realmente poderoso.
Falar em Heimdall me fez lembrar de um detalhe discutível (para dizer o mínimo) do filme: esse deus é interpretado pelo ator Idris Elba ― que é negro ―, enquanto Hogun, outro personagem oriundo dos quadrinhos, é representado pelo japonês Tadanobu Asano. Pergunto: qual a lógica de colocar negros e orientais no reino dos deuses nórdicos? Não seria isso um exemplo típico da obsessão do politicamente correto prevalecendo sobre o bom senso?
Em resumo: Thor vale a pena ser visto. Tem um enredo cativante, que consegue a difícil proeza de ser interessante tanto para o inveterado leitor de quadrinhos quanto para o espectador de ocasião que pouco ou nada sabe sobre o universo da Marvel, tem ótimas atuações (com o inevitável destaque para o "imortal" Anthony Hopkins e para a boa surpresa Tom Hiddleston), tem um visual de encher os olhos, e tem o grande mérito de contribuir para despertar nas novas gerações o interesse pelo mundo fascinante e cheio de significados da mitologia.
quinta-feira, maio 19, 2011
O Retrato de Dorian Gray


Uma coisa que achei curiosa foi a contextualização histórica, que extrapola o que havia no romance – e o faz de forma plausível e inteligente. Por exemplo, há referências a uma guerra, obviamente a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ora, Oscar Wilde, que morreu em 1900, talvez até pudesse ter previsto a iminência de um confronto na Europa num futuro próximo, levando em conta a situação política em seus dias, mas é claro que não teria como incluir datas ou detalhes, a menos que os inventasse – e futurologia não era bem a sua seara literária. Não há enunciação de ano no romance, mas é fácil perceber que a ambientação é contemporânea à da vida do autor. Ora, se a história se passasse na mesma época em que foi escrita, Dorian Gray, que tem 20 anos no início do romance, teria nascido por volta de 1870, e, como estaria com 40 e poucos no desfecho da narrativa, isso coincidiria exatamente com os dias da guerra. Automóveis e telefones, coisas quase desconhecidas durante a vida de Wilde, mas que já começavam a se tornar corriqueiras na segunda década do século XX, também aparecem.
Num apanhado geral, considerei o filme bastante satisfatório e, até certa altura da história, muito fiel à narrativa original, com detalhes variando, mas a essência do enredo sendo mantida. No último terço, aproximadamente, é que o roteiro degringola, com lorde Wotton decidindo assumir o papel de investigador implacável para descobrir o segredo de Dorian – o Wotton da história original jamais teria energia para realizar tal empreitada, nem caráter para considerá-la necessária – e a relação artificial de Dorian com Emily, filha de Wotton (personagem que, como disse acima, foi inventada para o filme) sendo usada como pivô para o desejo de regeneração e redenção experimentado pelo protagonista, desejo esse, por sinal, que o filme exagera muito. As atuações, em sua maioria, são acima da média, e a recriação da Londres do século XIX é perfeita: uma cidade cinzenta, suja, poluída, com sua magnífica arquitetura manchada pela onipresente fuligem de milhares de chaminés – enfim, uma cidade que pagava o preço da Revolução Industrial que fizera da Inglaterra o país mais rico do mundo –, e onde cenários de riqueza e ostentação e outros da mais sórdida miséria coexistiam separados por poucos passos de distância. Os espectadores que vierem a ler o livro levarão, no mínimo, uma boa amostra do clima que devem imaginar ao imergirem em suas páginas para algumas horas de leitura fascinante.
segunda-feira, abril 11, 2011
O Chamado de Cthulhu

quinta-feira, março 03, 2011
A Ilha do Dr. Moreau


sábado, fevereiro 12, 2011
O Imperador - Os Deuses da Guerra

César, à frente de cinco legiões que o idolatram, acaba de transformar a rica e rebelde Gália na mais nova província romana, quando recebe a notícia de que o velho Crasso, que costumava ser o fiel da balança no delicado equilíbrio de poder entre ele e Pompeu, acaba de morrer. Pompeu, algum tempo antes, foi investido pelo Senado com o poder de ditador, a fim de que pudesse combater o crime organizado e salvar Roma do caos que ameaçava tragá-la - o que, é preciso reconhecer, fez com muita competência. Só que, passado o perigo, recusou-se a largar o osso, e é ainda na qualidade de ditador que ele envia a César a ordem de deixar suas legiões na Gália e retornar a Roma sozinho. E César, é claro, sabe que fazer isso significaria morte certa, de modo que decide desafiar a autoridade de Pompeu e marchar para o sul com a maior parte de seu exército, deixando na Gália apenas um número suficiente de homens para que a paz seja mantida. Há um episódio que Iggulden não narra, mas é um dos mais famosos da trajetória de César: ao chegar às margens do riacho conhecido como Rubicão, e ciente de que atravessá-lo levando o exército será considerado por Pompeu como um ato de guerra civil, César atravessou, declarando: "Alea jacta est" ('A sorte está lançada').
Guerra civil. Eis uma coisa que vai contra tudo o que fez Roma grande. Os gregos poderiam ter-se antecipado aos romanos e se tornado os senhores de um império que dominaria o mundo conhecido durante séculos (Alexandre, ao morrer, deixou tudo pronto para isso), se não fosse pelo fato de gostarem tanto de lutar uns contra os outros e por sua incapacidade de se unirem em torno de objetivos comuns. Os romanos levaram a melhor justamente porque se mostraram capazes disso - e, com o tempo, também estenderiam o mesmo sentimento aos não-romanos, fazendo de vários outros povos parte tão vital do Império quanto eles próprios. César sabia muito bem da primeira parte, e provavelmente era um dos poucos homens de sua época que também anteviam a segunda, e mesmo assim encarou a guerra civil; pode tê-lo feito por ambição pessoal ou por acreditar sinceramente que podia dar a Roma um futuro que Pompeu não podia, mas o mais provável é que tenha sido por um misto das duas coisas. De todo modo, voltando ao livro, ele marcha sobre Roma com suas legiões; Pompeu, inferiorizado em número de homens, foge para a Grécia, acompanhado pela maioria dos senadores, e assume o comando das legiões lá estacionadas, o que o coloca em vantagem numérica. Feito isso, espera pelo ataque de César, que, sem a menor dúvida, virá.
César toma posse de Roma sem derramar uma gota de sangue - o povo o recebe alegremente e o elege cônsul pela segunda vez, além de eleger um novo Senado, o que automaticamente coloca fora da lei a ditadura de Pompeu: para a maioria do povo da capital, César é seu governante legítimo. Mas ocorre algo desagradável: quando César indica Marco Antônio para o segundo posto de cônsul (eram sempre dois), Brutus fica indignado, considerando que Júlio deveria partilhar o poder com ele. Na verdade, como César explica a Marco Antônio (um tanto tarde demais: deveria ter explicado a Brutus, antes de fazer a indicação), não se trata de chutar ninguém para escanteio, mas simplesmente de distribuir as funções de acordo com os talentos de cada um. Marco Antônio é o homem certo para governar Roma enquanto César vai à Grécia haver-se com Pompeu - e Brutus, como o general formidável que é, será uma peça essencial para alcançar a vitória. Ou melhor, seria.
Brutus, cansado de dedicar a vida a serviço de um líder que ele acha que nunca vai reconhecer seu verdadeiro valor, decide ir para a Grécia e colocar-se sob as ordens de Pompeu - mas, naturalmente, é recebido com desconfiança, pois todos conhecem sua fama e sabem que sempre foi um dos partidários mais leais de César; por tudo o que Pompeu e seu lugar-tenente, Labieno, sabem, poderia ser um espião. E aqui está mais uma liberdade do autor: Brutus torna-se amante de Júlia, filha de César e esposa de Pompeu, que está na Grécia com ele, já tem um filho crescido e acaba engravidando do segundo - que pode muito bem ser de Brutus. Na verdade, nessa época Pompeu já estava casado com outra mulher, pois Júlia morreu no parto do primeiro filho, quando César ainda estava na Gália. É mera licença artística e, de certa forma, justiça poética, como se Brutus tivesse pensado: "Júlio 'pegou' minha mãe, então por que não posso 'pegar' a filha dele?"
O quanto Brutus era estimado por César fica evidente no fato de que sua deserção para o lado de Pompeu é histórica, como também o é o perdão oferecido por seu antigo comandante. Certo, César deu anistia a todos os que lutaram contra ele na guerra civil, mas uma coisa é perdoar soldados que estavam do outro lado desde o início, cumprindo seu dever para com seu comandante legítimo, e outra bem diferente perdoar um traidor. Nas legiões, a pena para a traição sempre foi a morte, e César não era o tipo de homem que tivesse por costume abrir exceções para favorecer amigos. O autor desenha a personalidade de Brutus de uma maneira bastante complexa e, pode-se dizer, humana, e, como tal, cheia de contradições. Ele é essencialmente um homem decente, mas não consegue esconder de si mesmo que as motivações que o levam a participar do assassinato de seu velho amigo não são somente patrióticas: ao zelo pela manutenção da República soma-se, sim, uma boa dose de inveja.
Iggulden vai empilhando gradualmente os motivos que levariam à vitória final de César na guerra civil, apesar de estar enfrentando um general quase tão astuto quanto ele próprio, mais velho e experiente, e com a vantagem dos números (Pompeu comandava onze legiões, cerca de 55 mil soldados, contra as sete de César, 35 mil; praticamente dois terços de todo o exército romano estavam envolvidos). O que acaba ditando o resultado parece ser o fato de que, enquanto Pompeu hesita, César toma decisões rápidas. Também pesa o uso ardiloso da propaganda: muitos dos legionários sob o comando de Pompeu são de opinião que César é mesmo o legítimo governante de Roma e de que Pompeu deveria submeter-se a ele. Deserções ocorrem e são punidas com brutalidade exemplar, o que vai minando mais e mais a confiança e a lealdade dos soldados de Pompeu, já insatisfeitos por estarem lutando contra compatriotas.
A guerra civil tem seu lance final quando, derrotado em Farsália (outras fontes dão Farsalos), Pompeu foge para o litoral, de onde embarca para o Egito - e é ao partir em sua perseguição que César, sem saber, está rumando para a última grande aventura de sua vida, aquela sobre a qual mais livros foram escritos e mais filmes rodados. Talvez tenha sido justamente por isso que Conn Iggulden optou por narrar essa parte da história de uma maneira tão resumida: fiquei surpreso ao perceber que já lera dois terços do livro sem que César houvesse posto os pés no Egito ainda. E dou-lhe razão: a vida de César foi de tal modo intensa e atarefada, que, a menos que o autor quisesse chegar a um quinto e, quiçá, a um sexto volume, era necessário ser enxuto em alguma parte. Melhor que fosse essa parte, já que não faltam opções a quem quiser conhecê-la em mais detalhes: basta ler uma biografia de Cleópatra - existem várias, algumas delas muito boas. Pela mesma razão, embora eu mesmo pudesse tecer diversos comentários sobre a relação do grande general e cônsul romano com a jovem rainha do Egito - relação que foi um retrato fiel do papel que suas respectivas civilizações representavam no mundo da época -, prefiro deixar isso para outra ocasião, pois trata-se de tema que merece mais do que umas poucas palavras. Em vez disso, meus dedos estavam coçando para escrever sobre as consequências dramáticas da traição de Brutus (o que já fiz) e sobre o perfil de Otaviano. Vamos a isso...
Como citei de passagem no comentário de A Morte dos Reis, Iggulden optou por criar uma proximidade maior entre Júlio César e Otaviano - que, aliás, só passaria a ser chamado assim depois de sua adoção por César: seu nome original era Caio Otávio Turino; com a adoção, passou a chamar-se Caio Júlio César Otaviano, ou seja, o nome igual ao do pai adotivo, acrescido do "Otaviano" para distinguir os dois e lembrar que, por nascimento, ele pertencera à família dos Otávios. Porém, por comodidade, continuarei a chamá-lo de Otaviano.
Conn Iggulden quis que Otaviano fosse um dos companheiros de César durante seus longos anos de campanhas militares, e, para tanto, começou por alterar o grau de parentesco e a diferença de idade: o sobrinho-neto transformou-se em um primo apenas alguns anos mais jovem. Além disso, o perfil do personagem também mudou: na série, Otaviano é um perfeito guerreiro romano, um espadachim excepcional, treinado por Rênio e Brutus. Comanda uma legião e, a partir da deserção de Brutus, também se torna o líder dos extraordinarii, a cavalaria de César. O verdadeiro Otaviano não era guerreiro de forma alguma: apenas tangenciou o serviço militar e talvez nunca tenha participado diretamente de uma batalha - eis um ponto em que não puxou a seu destemido tio-avô, que nunca deixou de lutar ao lado de seus soldados. O que não quer dizer que fosse um covarde: como diz Cômodo no filme Gladiador, existem diferentes formas de coragem. E de passagem, é sempre bom lembrar que Otaviano não se notabilizou entre os imperadores apenas por ter sido o primeiro: esteve entre os quatro ou cinco melhores durante os 500 anos nos quais Roma teve imperadores.
Tive a impressão de que os últimos dias de César foram narrados de uma maneira simplificada, como se o autor não quisesse se estender muito mais - o que é compreensível, ao fim de uma história de mais de 1600 páginas. Depois de ajudar Cleópatra a tomar o poder, César vive um caso de amor com ela; tudo indica que ela o tenha seduzido por interesse, mas depois acabado apaixonada de verdade. É Cleópatra quem dá a César o único filho homem que ele terá. É histórico que César levou-a a Roma ao voltar, talvez pretendendo divorciar-se de sua esposa, Calpúrnia, e oficializar o enlace, o que uniria os dois impérios, mas não viveu o suficiente para isso. O episódio em que Marco Antônio tenta colocar uma coroa na cabeça de César aparece aqui de modo muito diferente do que eu conhecia, e as motivações por trás dele, muito diferentes das que eu imaginava. Na narrativa de Iggulden, o próprio César pede a Antônio que venha com a coroa no momento de seu triunfo, e tira-a da cabeça desapontado quando percebe que o povo não gostou nem um pouco da ideia (sempre a velha prevenção contra reis e realezas, passada de pai para filho entre os romanos desde os tempos do domínio etrusco). Sempre acreditei, e ainda acho mais provável, que a ideia tivesse sido de Marco Antônio e outros, e que César houvesse se recusado a ser coroado justamente porque sabia que isso criaria antipatia entre a população e daria munição a seus opositores, que já adoravam compará-lo aos antigos e tirânicos reis etruscos, derrubados pela rebelião que instaurou a República.
Quanto ao assassinato, esse narra-se em poucas páginas, chegando a parecer estranho que seja uma passagem tão breve a pôr fim a uma história tão longa, o que imagino que esteja certo: quem ouviu a notícia deve ter experimentado uma sensação de absurdo. Como podia um homem que fizera tantas coisas grandiosas, durante tanto tempo, desaparecer assim, de uma hora para outra? Quando generais romanos eram homenageados com triunfos, um sacerdote os acompanhava na carruagem que os levava, com a tarefa de dizer-lhe a intervalos regulares: "Lembra-te de que és mortal". César foi lembrado desse fato da maneira mais implacável possível: apesar de tudo o que fora e fizera, não podia haver dúvida de que continuava a ser mortal, pois não escapou à ação do caos inerente que rege a existência humana - depois de sobreviver a tantas batalhas, foi morto por pessoas em quem confiava, num lugar que deveria ser seguro.
Sei que já disse ou dei a entender isso várias vezes durante os últimos meses, mas não é possível concluir sem dizê-lo de novo: O Imperador é uma grande e maravilhosa série, que recomendo sem restrições a quem, como eu, ama o mundo antigo greco-romano, ou simplesmente gosta de biografias bem escritas... além de não se intimidar com leituras extensas! Conn Iggulden finaliza a nota histórica deste último volume dizendo que "nos próximos anos posso ter de escrever uma história do que ocorreu depois do assassinato". E sem dúvida deveria fazê-lo: a vida de César deu início a um grande ciclo, que sua morte não encerrou. Personagens como Otaviano, Brutus, Marco Antônio, Cleópatra e muitos outros ainda realizariam muitos feitos dignos de serem narrados e teriam papéis fundamentais no nascimento do mais duradouro e influente império que o mundo ocidental já viu.