segunda-feira, agosto 08, 2011

Uma Princesa de Marte

Ando me surpreendendo ao perambular pelas livrarias e ver que vários livros antigos, de diferentes gêneros, que o público brasileiro nunca havia tido a chance de ter em mãos, e que eu próprio só conhecia, na maioria dos casos, por menções indiretas e comentários de outros autores, estão sendo lançados agora, pela primeira vez, no país  bons exemplos são A Águia da Nona e este Uma Princesa de Marte, publicado originalmente em 1917 e que só agora ganha versão nacional. Claro, costuma haver boas razões comerciais para esses lançamentos inauditos, geralmente razões ligadas ao cinema. Com efeito, quando estava exposto na livraria onde o comprei, o meu exemplar de Uma Princesa de Marte exibia atravessada na capa uma banda de papel em que se lia: "O clássico que inspirou James Cameron na criação de Avatar". Pessoalmente, considero um exemplo do tipo mais óbvio de oportunismo usar o sucesso de uma obra recente para tentar vender uma antiga, e a questão torna-se ainda mais espinhosa no caso de haver uma disparidade gritante entre o valor artístico de uma e de outra – o que não afirmo que seja o caso aqui: Uma Princesa de Marte não é um grande livro, e, quanto a Avatar, não vi o filme, e, portanto não me atrevo a julgá-lo. Mas suponho que já deva dar-me por feliz de, até este momento, nunca ter visto uma nova edição da Ilíada sendo apregoada como o "livro que inspirou o filme Troia, com Brad Pitt". Ainda bem, pois no dia em que isso acontecer, vai haver mortes.

Obs.: A espinafração destina-se a quem teve a ideia de colocar a tal banda de papel na capa do livro, não a quem tomou a louvável decisão de mandar traduzi-lo e publicá-lo. Desde que, é claro, ambos não sejam a mesma pessoa.

Todo mundo sabe quem foi Edgar Rice Burroughs (1875-1950), o criador do megafamoso homem-macaco Tarzan. O que nem todo mundo sabe é que ele também escrevia ficção científica, se é que é adequado chamar assim histórias como as de sua série Barsoom, também conhecida como John Carter of Mars – o primeiro nome, segundo o autor, é como o planeta Marte é chamado por seus habitantes, e o segundo é o de seu principal herói. Trata-se muito mais de narrativas de fantasia, nas quais o ambiente interplanetário é usado apenas como recurso para situar o mundo imaginário que serve de palco às aventuras; pouca diferença faria se, em vez de ficar em Marte, o mundo de Barsoom tivesse existido num período esquecido da história da própria Terra, como a Terra-média de J. R. R. Tolkien ou a Era Hiboriana de Robert E. Howard – salientando que o fato de eu citar esses exemplos não deve levar ninguém a entender que eu esteja colocando Barsoom no mesmo nível das criações desses mestres.

O protagonista da saga marciana da qual este livro é o primeiro episódio é o capitão John Carter, soldado do exército confederado durante a Guerra Civil Americana. Ao ver-se ocioso e sem recursos depois da derrota de seu lado na guerra, Carter decide unir forças com James Powell, um ex-companheiro de armas, para tomarem parte na Corrida do Ouro, que na época levava milhares de aventureiros a deixarem os estados do leste, já razoavelmente civilizados e seguros, em direção ao oeste, ainda em sua maior parte uma terra selvagem e pouco explorada, sonhando encontrar um veio do precioso metal. Sonho esse que Carter e seu amigo realizam – mas não têm a chance de desfrutar sua nova riqueza, pois logo depois Powell é morto numa emboscada por índios apaches (em 1917, ainda era liberado usar personagens índios em papéis de "bandido"). Depois de uma inútil tentativa de salvar a vida do companheiro, Carter, perseguido pelos selvagens, acaba refugiando-se numa caverna onde coisas estranhas acontecem. Tão estranhas que, sem saber como, o herói se vê transportado ao planeta Marte.

E Marte, como descrito por Burroughs, é um mundo selvagem e inóspito, assolado pela escassez de água (ainda exibe os leitos secos de mares desaparecidos), onde as formas de vida precisam conviver com a rápida alternância de dias tórridos e noites geladas. Os marcianos, com os quais Carter logo trava contato, são seres imensos, com mais de quatro metros de altura, pele esverdeada e seis membros, que preferem ocupar seu tempo caçando e guerreando uns contra os outros ao invés de dedicar-se às ciências ou a trabalhos mais técnicos, razão pela qual, em matéria de tecnologia, sua civilização parece ter estacionado há milênios: o máximo que os marcianos têm nesse campo são armas de fogo, que usam em conjunto com lanças, espadas e outras armas brancas.

O terráqueo logo descobre que, devido à diferença de gravidade entre os dois planetas, ele agora possui uma força e agilidade capazes de impressionar os marcianos e impor-lhes respeito, apesar de seu pequeno tamanho se comparado a eles. Descobre, além disso, que, como na Terra, também naquele mundo as pessoas variam em caráter: conhece tipos que vão desde o valente e justo líder guerreiro Tars Tarkas e a bondosa Sola, até o tirânico Tal Hajus, chefe da tribo. Existem outras tribos de marcianos verdes, e a convivência de uma tribo com as outras quase nunca é pacífica. Mais ainda: o planeta também é o lar de outra raça inteligente, esta formada por seres humanos fisicamente idênticos aos terráqueos, com a diferença de que sua pele tem um tom de cobre avermelhado. É a essa raça que pertence a princesa do título, a bela Dejah Thoris, que cai prisioneira dos marcianos verdes e por quem Carter, mui previsivelmente, acaba apaixonado.

Francamente, eu estaria sendo generoso demais se dissesse que Uma Princesa de Marte é um ótimo livro: como já sabe quem leu algum livro de Tarzan (eu li dois, em edições antigas que encontrei na biblioteca pública quando era garoto), os personagens de Burroughs carecem de profundidade e complexidade, são em sua maioria estereotipados – embora nesse ponto seja preciso admitir que a princesa Dejah Thoris mostra-se corajosa e com uma certa sabedoria, bem diferente das heroínas que infestavam muitas histórias de ficção científica da época e cuja função de existir ia pouco além de serem carregadas aos gritos por algum monstro gelatinoso de olhos saltados... – e a narrativa, durante a maior parte do tempo, é tosca, chegando a tornar entediantes até mesmo passagens repletas de ação vertiginosa. Mesmo assim, há uma certa sedução na exótica paisagem marciana e no jeitão de paladino medieval do herói John Carter. Se quiserem encarar, leiam como curiosidade, mas não esperem encontrar uma história que vá mudar seu modo de ver a literatura.

segunda-feira, julho 18, 2011

O Último Reino

Gênero popular no exterior há muito tempo, a ficção histórica só começou a receber investimento digno de nota das editoras nacionais há alguns anos. Por menos que o hábito de ler seja difundido no Brasil, ao olho do "consumidor" tudo indica que o setor editorial viveu uma evolução: os editores parecem ter parado de publicar só o que eles "achavam" que venderia, e procurado saber o que o público queria ler. O preconceito (que eu já ouvi ser expresso até mesmo por pessoas de quem, considerando a cultura que obviamente possuíam, eu não esperaria isso) de que o brasileiro só quereria narrativas que tivessem a ver com seu próprio cotidiano, e não teria o menor interesse por histórias sobre a Antiguidade ou a Idade Média – períodos históricos que nosso país não viveu – parece estar, felizmente, acabando.

E nessa "fase de transição", nada melhor que apostar no mais seguro: publicar primeiro as obras dos monstros sagrados do gênero, os que já tiveram seu desempenho testado e aprovado nas livrarias gringas. Um destes é o britânico Bernard Cornwell, autor de uma celebrada trilogia sobre o rei Artur e também desta "pentalogia" (essa palavra existe?) intitulada As Crônicas Saxônicas, da qual O Último Reino é o primeiro volume, sobre mais uma invasão nas Ilhas Britânicas: desta vez, a dos vikings.

Talvez meus leitores já saibam isso, mas a história dessas ilhas foi feita de invasões. Não há registro de quando seus primeiros habitantes chegaram lá (na verdade, nem sequer é conhecida a identidade exata desses primeiros habitantes), mas depois, onda sobre onda, vieram pictos, celtas, romanos, saxões, vikings e normandos. Cada povo subjugou (ou tentou subjugar) seus antecessores e controlou as ilhas à sua própria maneira enquanto pôde. Em seu tempo, o rei Artur, ou quem quer que tenha sido a figura histórica que deu origem à sua lenda, tentou defender a Bretanha de modo a preservar o modo de vida que então existia nela, oriundo da miscigenação das culturas celta e romana. Os invasores que ele teve que enfrentar eram diversas tribos germânicas que costumavam ser designadas, de forma genérica, pelo nome da mais poderosa e numerosa delas: os saxões, originários da região nordeste da atual Alemanha.

Esses bárbaros já cobiçavam as terras da Bretanha há muito tempo, mas, enquanto ela foi uma província do Império Romano, de um modo geral o poderio militar deste último a manteve a salvo. Quando, em 410, Roma oficialmente retirou-se da Bretanha, a oportunidade há tanto aguardada pelos saxões parecia finalmente ter chegado. O interessante é que, apesar disso, uma invasão em grande escala só foi acontecer cerca de um século depois!... O porquê desse fato não é claro, já que uma das consequências da saída dos romanos foi a interrupção de qualquer registro histórico confiável, mas é inevitável concluir que, para terem conseguido defender-se sozinhos por todo esse tempo, os bretões devem ter tido uma liderança forte, capaz de pacificar os conflitos internos e unir o país contra o inimigo comum. É aí que entra Artur, tenha ele sido um homem ou vários, que a lenda aglutinou numa única figura.

Seja como for, quem quer que Artur tenha sido, o que quer que ele tenha feito, o dia dos saxões tardou, mas chegou. Entre os séculos VI e VII, eles ocuparam toda a atual Inglaterra; como os romanos antes deles, os saxões pouparam a maior parte da Escócia e da Irlanda, por serem de acesso difícil e aparentemente não oferecerem recursos naturais ou terras férteis em quantidade suficiente para recompensar o esforço da conquista – motivo pelo qual, ainda hoje, grande parte das populações desses países continua a falar línguas de origem celta e a cultivar tradições culturais desse povo.

Ao chegarem à Bretanha, os saxões já encontraram grande parte da ilha cristianizada devido à influência romana – um fato que rapidamente trataram de "corrigir" a fio de espada. Em poucas décadas, o paganismo germânico predominava de modo absoluto na ilha, ainda que por pouco tempo: o esforço conjunto de monges irlandeses e de novos missionários enviados de Roma foi gradualmente fazendo com que os saxões fossem abraçando o cristianismo. De modo que é num país basicamente cristão, na segunda metade do século IX, que vive o herói de O Último Reino: Uhtred, filho de Uhtred, um ealdorman (chefe) saxão.


E é esse país que hordas de vikings invasores, a maioria oriundos da Dinamarca, estão atacando. Por muito tempo a costa inglesa, assim como a de boa parte da Europa, já havia sofrido com as incursões piratas desse povo do norte, que combinava um gosto selvagem pela luta e pela carnificina com uma paixão pelo desbravamento – e, durante os últimos tempos, uma necessidade premente de expansão, já que a pouca terra fértil disponível em seus países gelados e montanhosos já não era capaz de sustentar sua população em crescimento. A diferença é que desta vez os homens do norte não iriam contentar-se em encher seus navios com o produto da pilhagem e ir embora: vinham para ficar, para tomar a terra e transformá-la em colônia sua. Era o ciclo se repetindo mais uma vez: os saxões, outrora invasores temidos, eram agora os habitantes estabelecidos na Inglaterra (nome esse, aliás, que o país havia ganho recentemente: vem dos anglos, outra tribo germânica que a invadira ao lado dos saxões) e precisavam defender-se contra novos invasores, tão brutais e sanguinários quanto eles próprios já tinham tido a fama de serem. E, embora os saxões, ao tempo em que invadiram a Bretanha romana, tivessem também outra fama, a de hábeis marinheiros (tradição que se perdeu com o tempo), os vikings os superavam de longe nessa parte: o mar era praticamente a vida deles. Seu tipo característico de navio, o drakkar ('dragão') era uma pequena maravilha de engenharia náutica: menor que os navios de outros povos da época, extremamente ágil e manobrável, capaz de navegar para a frente ou para trás, tinha no fundo achatado seu principal segredo, pois graças a ele gozava de extrema estabilidade (leia-se: era quase impossível virar um drakkar) e podia navegar até mesmo em águas muito rasas, o que permitia aos vikings subir rios com facilidade e desembarcar direto do navio para terra firme, sem necessidade de botes.

Quando a cidade inglesa de Eoferwic (que os romanos haviam antes chamado de Eboracum, e hoje tem o nome de York) é sitiada e invadida pelos dinamarqueses, Uhtred, o pai, tomba durante a batalha, e Uhtred, o filho, então com cerca de dez anos de idade, cai prisioneiro dos invasores. Um dos chefes vikings, Ragnar, simpatiza com ele e toma-o sob seus cuidados. Uhtred, que nunca recebeu muita atenção de seu pai verdadeiro, e não é, por natureza, muito propenso a qualquer tipo de lealdade, rapidamente toma gosto pelo modo de vida viking, afeiçoa-se ao pai adotivo e aos novos amigos que faz. E, acompanhando os nórdicos, é testemunha ocular da queda de três dos quatro reinos ingleses diante deles: Nortúmbria, Mércia e Ânglia do Leste, todas se rendem, entregando seus campos para serem tomados, as cidades para serem pilhadas, e o povo para ser trucidado ou escravizado. Até que só resta um reino que ainda resiste à sanha dinamarquesa: Wessex, governado primeiro pelo rei Æthelred e depois por seu irmão mais novo, Ælfred – que passaria à História como Alfredo, o Grande.

A região de Wessex, embora não mais seja um reino, ainda hoje conserva o mesmo nome, uma contração de West Saxons – os Saxões do Oeste. Parecia muito improvável que Alfredo algum dia chegasse ao trono, já que era o mais novo de seis irmãos, mas isso acaba acontecendo, e não pouca gente considera o fato um desígnio de Deus – o Deus cristão, que Alfredo cultua e que os dinamarqueses desprezam porque Seus mandamentos estimulam a piedade e a compaixão, que, para eles, são sinônimo de fraqueza. O primeiro contato que Uhtred tem com Alfredo não o impressiona muito: o então jovem príncipe parece ser um pateta que vive cedendo às tentações da carne para logo em seguida choramingar arrependido do pecado. Entretanto, o desígnio de Deus, se foi um desígnio, mostra-se acertado, pois, ao longo dos anos seguintes à sua coroação, Alfredo prova ser um líder sagaz, provavelmente o único dentre os reis possíveis que realmente tinha condições de frustrar o plano dos vikings de transformar a Inglaterra numa grande Dinamarca. Por esse tempo, Uhtred, já um jovem guerreiro, perdeu o pai adotivo dinamarquês, assassinado por um rival também dinamarquês, e acalenta o plano de vingá-lo e de recuperar o antigo domínio de seu pai verdadeiro, na Nortúmbria, agora nas mãos de um tio usurpador. Como um passo nessa direção, acaba pondo-se a serviço de Alfredo na luta contra os dinamarqueses (realmente, lealdade não é o forte desse sujeito), o que, embora ele não saiba, é apenas o começo de uma longa saga na qual não faltarão intriga, aventura e batalhas sangrentas.

Bernard Cornwell escreve magnificamente! Não deve nada a um Conn Iggulden, a um Steven Pressfield ou mesmo a uma Mary Renault, figuras coroadas da ficção histórica de língua inglesa. As Crônicas Saxônicas caíram do céu para quem tem curiosidade sobre a formação da Inglaterra moderna, mas ficava intimidado com o volume da informação, com a dificuldade de separar o essencial do secundário nos textos de História tradicionais, e com o conhecimento prévio que eles muitas vezes pressupõem – para não falar na necessidade de saber inglês. Apresentar fatos históricos usando-os como pano de fundo para a trajetória de um ou mais personagens fictícios é uma fórmula antiga, mas sempre foi e continua sendo eficiente, desde que o autor tenha duas habilidades em grau alto: a de um bom forjador de narrativas e a de um pesquisador, além do condão de fundir as duas coisas de forma convincente. E Cornwell passa no teste em todos os quesitos. Não acho que eu vá escrever um post sobre cada volume das Crônicas como fiz com O Imperador de Iggulden, mas que elas mereceriam isso, não há dúvida. Também há pouca dúvida de que terei coisas a dizer sobre outras obras do autor num futuro não muito distante. Por ora, adianto que As Crônicas Saxônicas pode ser amplamente recomendado a todos os leitores que se interessam pela cultura viking, pela história da Inglaterra e pelo mundo medieval de forma geral.

quarta-feira, junho 29, 2011

Uma Paixão por Cultura

Como é a trajetória de uma pessoa que "acorda" para o mundo da cultura? Que um belo dia (ou gradualmente, ao longo do tempo) percebe que há mais na vida que cerveja, futebol e música pop de FM? Essa é uma metamorfose, infelizmente, rara, mas, sim, é possível: já testemunhei um caso ou dois. E é um testemunho desse tipo que Carlos Eduardo Paletta Guedes nos oferece neste livro extremamente interessante e (não muito) disfarçadamente autobiográfico.

O protagonista Fábio é um jovem comum no sentido mais comum do termo, do tipo que cada um de vocês deve conhecer pelo menos uma dúzia: com cerca de 30 anos, carreira profissional começando a decolar, vai levando sua vida do modo óbvio. Torce por seu time, trabalha, namora, sai, e ignora a existência de coisas como poesia, filosofia, artes plásticas, teatro ou música clássica. Livros, só os de Direito, sua área profissional, e nada mais. E, como a dúzia de caras parecidos que todos nós conhecemos, sente-se cômodo e satisfeito dessa forma. Embora seu melhor amigo, Felipe Marco, o "Turco", seja um professor universitário e muito culto, a amizade dos dois parece ser do tipo "cada um no seu quadrado": nada que agite a superfície do lago plácido (um lago que só tem mesmo superfície...) que é a vida de Fábio.

Nosso herói começa a sentir que algo está faltando quando sua namorada de três anos, Maria Lúcia, larga-o, sob a alegação de que ele não preenche os anseios intelectuais dela - aliás, tive que rir ao ler o trecho onde Fábio diz que M.L., como ele a chama, decidiu começar a tratá-lo como intelectualmente inferior depois de ler um livro de filosofia para adolescentes: não consegui deixar de ter a forte impressão de que ele só não citou o título (O Mundo de Sofia, é claro) para não ferir suscetibilidades. É então que, vendo como o amigo anda "pra baixo" desde o fim da relação, Turco, na intenção de distraí-lo um pouco, convida-o para uma festa que dará em sua casa, apenas para alguns alunos que são membros de um grupo de estudos que ele dirige. Fábio não se anima muito, imaginando, com alguma razão, que sua pouca bagagem e quase nenhum interesse cultural fará dele um peixe fora d'água nessa reunião, mas, mesmo assim, acaba indo. E é lá que, numa dessas surpresas que o destino nos arma, ele conhece a mulher de sua vida: uma estudante de Jornalismo, a linda e inteligentíssima Thaís.

Apaixonado e determinado a ganhar a gata de qualquer maneira, Fábio começa imediatamente a representar para ela o papel de um homem culto, sensível, conhecedor e admirador da arte em todas as suas manifestações - algo muito distante de seu verdadeiro perfil. E, como Thaís é uma dessas mulheres uma-em-um-milhão que não vão adiante com um homem se ele não demonstrar inteligência (pois, verdade seja dita, a imensa maioria não liga a mínima para isso - como a maioria dos homens também não, sejamos justos), Fábio tem pela frente um verdadeiro trabalho de Hércules... Ou melhor, os doze de uma vez. Sob a orientação do amigo Turco, começa a toque de caixa a tentar assimilar conhecimentos sobre música (não o pop-rock a que estava acostumado, e sim figuras como Bach, Mozart e companhia), cinema (nada de Duro de Matar e congêneres: aqui o papo é filme de arte europeu) e outras formas de expressão que não tinha o costume de prestigiar nem sequer em suas manifestações mais triviais, como literatura e pintura. E, para sua própria surpresa, começa a perceber-se envolvido e fascinado pelo universo da arte e da beleza, a sentir um interesse genuíno por tudo de grandioso que o gênio humano já produziu. De tal forma que, mesmo quando suas chances de ficar ao lado de Thaís parecem ter-se reduzido a zero, ele não abandona seus esforços para adquirir cultura: sem perceber, Fábio aprendeu a lição mais importante de todas, a de que cultivar o próprio intelecto e sensibilidade é algo que deve fazer por si mesmo, e não para agradar seja a quem for. Aos poucos, ele se dá conta de que não está mais fingindo.

A história de amor de Fábio e Thaís é um fio condutor criativo para introduzir o leitor ao universo da alta cultura: entremeadas na história há ótimas listas de sugestões para quem deseja se iniciar na música clássica, no cinema "cabeça" e na literatura (se bem que nesse último campo eu apontaria uma lacuna: a lista dos livros essenciais não inclui nenhum clássico da Antiguidade), e também instigantes discussões sobre o papel da cultura na sociedade e na vida do indivíduo. Há pontos onde concordo e outros onde não concordo - o que é ótimo: que valor teria um debate onde todo mundo pensasse igual? Por exemplo, não concordo com o personagem (um professor palestrante) que, embora fazendo apologia à cultura e ao conhecimento, reconhece que "ler não faz de ninguém um ser humano melhor. O filósofo Francis Bacon, por exemplo, casou por interesse e morreu com 65 anos, devendo mais de 20 mil libras esterlinas (...). Tenho certeza que (sic) ele leu tudo o que havia de mais profundo e sábio". Eu digo que sim, ler faz de nós pessoas melhores; talvez não no aspecto moral ou ético, mas nos enriquece, abre nossa mente, faz-nos capazes de ter visões diferentes, livres dos antolhos que limitam o olhar das pessoas comuns, torna-nos mais sábios, mais capazes de conviver com as diferenças e com situações de incerteza. Leonardo da Vinci falava do sfumato (literalmente, "enfumaçado"), nome de uma técnica usada em pintura para dar aos objetos contornos imprecisos, como se vistos através de uma névoa; Leonardo e seus seguidores (incluo-me, ainda que correndo o risco de parecer pretensioso) também usavam, usam isso como uma metáfora para a capacidade de lidar com ideias e situações onde não são possíveis regras rígidas, onde nada é muito claro, onde a incerteza faz parte da própria essência das coisas. E, a menos que me engane, pessoas que leem mais e, por consequência, sabem mais, estão bem mais preparadas para isso. Pessoas incultas tendem a ver o mundo em apenas duas cores.

O cientista espanhol Santiago Ramon y Cajal dizia que cada pessoa pode ser escultora do próprio cérebro, caso realmente se proponha a isso, e essa frase seria um excelente resumo para a temática de Uma Paixão por Cultura, mas, como Turco não deixa de alertar Fábio, quem opta por se tornar culto está, ao mesmo tempo, abraçando uma existência essencialmente solitária. Por mais democrático que seja (e por mais conflitos que evite) dizer que "gosto não se discute", fica bem mais difícil continuar concordando com essa velha máxima quando se está andando pela rua e passa ao nosso lado um carro repleto de alto-falantes berrando o último sucesso do funk carioca a 240 decibéis... O fato é que a vasta maioria das pessoas nunca vai compreender o que existe de fascinante numa boa peça de teatro, nem experimentar aquela sensação de ter um balão inflando no peito ao ouvir um concerto de Bach, nem se maravilhar diante de uma pintura ou de um desenho de Da Vinci... Aliás, a maioria nem mesmo compreende qual o sentido de abrir um livro se o conhecimento que ele oferece não puder ser usado em seu trabalho. Sempre viveremos no meio dessa maioria rasa e enfadonha, que, por sua vez, sempre irá encarar os poucos que dão valor à cultura como chatos, esnobes ou simplesmente esquisitos. Optar pela cultura é uma decisão pessoal, que garante a quem a toma uma vida inimaginavelmente mais cheia, rica, bela, interessante, instigante que a dos que se contentam em habitar o espaço do óbvio - mas, ao mesmo tempo, uma vida bem menos confortável, repleta de inquietações e dúvidas que os "outros" não conhecem. E isso não é coisa para gente fraca. Para levar uma vida assim, a pessoa precisa ter fé verdadeira de que as recompensas oferecidas fazem tudo valer a pena: a escassez de interlocutores, a necessidade de procurar por seus prazeres, por vezes com esforço, enquanto os outros encontram os deles a toda hora e em toda parte, e a ocasional marginalização que irá sofrer. E, na minha opinião pessoal, ter acesso a cinco mil anos de história, conhecimento e arte vale muito mais do que ficar à vontade no meio da "galera" que só conhece futebol, cerveja e música pop de FM.

quarta-feira, junho 01, 2011

Thor


Para quem já foi durante muito tempo (ou o que para um adolescente pareceu ser muito tempo) um entusiasta de quadrinhos, mas já não os lê, a não ser ocasionalmente, há uns bons anos, não será tarefa das mais fáceis comentar este novo filme, mas já observei que os textos mais difíceis de começar costumam ser os que, depois que deslancham, acabam tendo os resultados mais interessantes. Então peço paciência a meus leitores se este post demorar um pouco a "decolar". ☺

Quando Stan Lee, fundador e, na época, principal argumentista da Marvel Comics Group, escreveu a primeira história tendo como protagonista o deus nórdico Thor (publicada na revista Journey Into Mystery n.º 83, de agosto de 1962), estava fazendo algo de inaudito para a época: buscar inspiração no passado da humanidade, em suas religiões antigas e lendas ancestrais, para contar histórias com uma roupagem moderna, que atraísse os jovens. Para aproximar mais o personagem de seus leitores e também poder fazê-lo interagir com os demais astros dos quadrinhos de seu selo, como o Hulk, Homem de Ferro, Capitão América e outros, Lee teria que trazer Thor para o século XX. Conseguiu isso criando para ele um alter ego, o Dr. Donald Blake, um cirurgião (americano, é óbvio) manco, que, durante uma viagem à Noruega, encontraria numa caverna um velho bastão de madeira e, ao batê-lo acidentalmente nas pedras, ver-se-ia transformado no poderoso Deus do Trovão, tendo o bastão virado o mítico martelo Mjolnir (o j pronuncia-se como i semivogal). Daí em diante, Blake levaria a vida dupla típica de quase todos os super-heróis, exercendo a medicina como rotina e ocasionalmente encarnando o deus para salvar o mundo daquelas boas e velhas ameaças cósmicas que todo argumentista do gênero é craque em tirar da manga.

As histórias de Thor seguiram nesse esquema durante anos, com os altos e baixos normais. Como não sou um especialista e, além disso, essas histórias foram publicadas muito antes do meu tempo, não sei dizer ao certo se foi ainda o próprio Lee ou um dos vários argumentistas por cujas mãos o herói passou quem teve a ideia de dar uma reviravolta em sua origem. Até então, Donald Blake acreditava ser apenas um mortal a quem os desígnios de alguma sabedoria superior teriam achado por bem conceder os poderes de um deus para que os usasse em defesa de causas justas. Aos poucos, eventos misteriosos que iam ocorrendo em sua vida, e imagens que surgiam inexplicavelmente em sua memória, acabaram por levá-lo a compreender a verdade: ele era o próprio deus Thor.

A explicação encontrada para isso foi bastante engenhosa e com um sabor realm
ente mitológico: calçado em sua condição de primogênito do deus supremo, Odin, e em sua reputação de grande guerreiro entre os habitantes de Asgard (o reino dos deuses), Thor ter-se-ia tornado um deus egoísta e arrogante. Para ensinar-lhe uma lição, Odin teria retirado seus poderes, apagado sua memória, e o colocado para viver na Terra sob uma identidade forjada, a do então estudante de medicina Blake. Como um jovem sem muitos recursos, e que sofria com as sequelas de uma paralisia, Thor aprenderia o valor da humildade e do trabalho duro, até estar pronto para receber de volta sua herança divina.

Foi já nos anos 80 que um sujeito chamado Walter Simonson assumiu a revista mensal de Thor nos Estados Unidos. Escritor e também desenhista, realizou uma reformulação geral no personagem e em seu ambiente, buscando reduzir ao mínimo possível as ligações com o universo super-heroístico da Marvel para investir pesado numa maior aproximação com a mitologia nórdica, que, afinal de contas, foi de onde o personagem veio. E é nítido que foi principalmente dessa fase que veio a inspiração para o primeiro filme da nova safra cinematográfica da Marvel a tratar do Deus do Trovão.

E vamos concordar, não se trata de um filme qualquer ― nenhum filme dirigido por Kenneth Branagh, responsável por nada menos que Henrique V, é um filme qualquer. Menos ainda se tiver Anthony Hopkins no papel de Odin e Natalie Portman ― rara combinação de beleza estonteante e talento admirável, capaz de se sair bem seja num filme ET (extra trash) como Marte Ataca (1996) ou num tenso thriller psicológico como o recente Cisne Negro ― como a "mocinha", no caso a cientista Jane Foster, com quem Thor, exilado na Terra, irá se envolver. O filme tem ainda Stellan Skarsgård (Rei Arthur, O Exorcista: o Início) como Dr. Erik Selvig, mentor de Jane; Tom Hiddleston como Loki; Jaimie Alexander como a deusa Sif (na mitologia, esposa de Thor, no filme aparentemente apenas uma "amiga", que nem chega a interferir na relação dele com Jane) e, curiosamente, Ray Stevenson (também de Rei Arthur e da série Roma), praticamente irreconhecível sob uma montanha de barba e cabelo, como o gordo e bonachão Volstagg, personagem criado para os quadrinhos.




O filme começa com uma cena em que Jane, Selvig e sua bolsista estão tentando observar e registrar um estranho fenômeno nos céus do deserto do Novo México, quando seu veículo de pesquisa atropela um homem que parece ter surgido do nada em meio à tempestade. Depois de o espectador ter apenas tido tempo de ver que o homem é Chris Hemsworth, que interpreta Thor, a narrativa recua para a Idade Média, nas terras do norte, e passa a ocupar-se de uma guerra entre os deuses de Asgard e os Jotun, ou gigantes de gelo ― é interessante notar que na mitologia nórdica, como na grega, os gigantes personificam forças da natureza, e que os deuses nórdicos, também como seus equivalentes gregos, têm com esses gigantes uma relação ambivalente: ao mesmo tempo em que são ligadas por estreitos laços de parentesco, as duas raças são inimigas mortais. Com os deuses saindo vitoriosos, Odin toma dos gigantes uma caixa misteriosa que dá origem aos poderes deles, e estabelece uma trégua ― que Thor, muitos anos depois, irá quebrar em busca de glória pessoal, levando Asgard à beira de uma nova guerra. No filme, é esse ato que leva o rei dos deuses a banir o filho para a Terra, tendo anulado a maior parte de seu poder, mas Thor não perde a memória, nem chega propriamente a ter um alter ego humano ― apenas usa falsamente e por um curto período de tempo o nome de Donald Blake, que, segundo Jane, é um "ex" seu. Em Asgard, Odin adormece (de acordo com a mitologia, ele precisava de longos períodos de sono para manter seus poderes) e, sem que ninguém saiba quando despertará, seu ardiloso filho adotivo, Loki, aproveita-se da ausência de Thor para fazer-se rei, o que precipitará o conflito que serve de combustível ao roteiro.


O filme toma diversas liberdades em relação à mitologia ― basicamente, as mesmas que os quadrinhos já tomavam, e mais algumas. Nas lendas nórdicas, por exemplo, Loki não era filho de Odin, nem mesmo por adoção, e, embora por nascimento pertencesse à raça dos gigantes, era admitido ao convívio dos deuses e geralmente considerado um deles. Tinha uma personalidade complicada, algumas vezes comportando-se como um fiel amigo dos deuses, outras como um trapaceiro compulsivo. Nos quadrinhos, essa complexidade havia sido abolida ― Loki era retratado sempre como mau-caráter ―, enquanto, no filme, ele é um personagem mais dramático, que sofre ao descobrir sua verdadeira origem, o que pode, em parte, justificar seus atos e ganhar para ele um pouco da simpatia do espectador. Loki era o deus do fogo e gerou muitos filhos, tanto humanos quanto feras, entre eles Sleipnir, o garanhão de oito patas que servia de montaria a Odin, bem como o monstruoso lobo Fenris, ou Fenrir, e a Serpente de Midgard. Midgard, aliás, era como os nórdicos chamavam o mundo onde vivemos nós, humanos. Esse nome, que significa literalmente terra média (alguém se lembra onde já vimos isso?), deve-se ao fato de que esse mundo fica no meio, abaixo do céu, onde vivem os deuses, e acima do mundo subterrâneo, habitado por trolls e outras criaturas do escuro.

O próprio Thor era uma figura à parte. Diferente do que o filme sugere, a deusa Friga, embora fosse esposa de Odin, não era a mãe de Thor, que nasceu da relação dele com uma giganta de nome Jord (que significa Terra), provavelmente antes de seu casamento com Friga. Embora Odin fosse o deus supremo, Thor era, de longe, muito mais popular e cultuado, principalmente entre os homens: era um deus-herói, guerreiro, aventureiro, exatamente a divindade adequada aos seguidores da filosofia viking de vida, que tinham no sangue a febre do desbravamento e acreditavam que a única morte digna de um homem era no campo de batalha. Em homenagem a Thor, quase todos os vikings usavam no pescoço um pingente em forma de martelo.

Por falar em morte, alguns podem ter estranhado a cena em que, prestes a partir para Jotunheim, o reino dos gigantes de gelo, Thor diz a Heimdall, o guardião dos portões de Asgard, que não tem planos de morrer naquele dia, e Heimdall replica que ninguém tem. Pode-se pensar: "Fácil para eles dizerem isso: são deuses, imortais!" Beeeem... Mais ou menos. O fato é que os deuses nórdicos não eram imortais no sentido pleno do termo. Para evitar a velhice e as doenças, precisavam comer regularmente as maçãs mágicas cultivadas pela deusa Iduna, e podiam, sim, morrer em combate da mesma forma que os homens ― embora, claro, para isso fosse preciso um adversário realmente poderoso.

Falar em Heimdall me fez lembrar de um detalhe discutível (para dizer o mínimo) do filme: esse deus é interpretado pelo ator Idris Elba ― que é negro ―, enquanto Hogun, outro personagem oriundo dos quadrinhos, é representado pelo japonês Tadanobu Asano. Pergunto: qual a lógica de colocar negros e orientais no reino dos deuses nórdicos? Não seria isso um exemplo típico da obsessão do politicamente correto prevalecendo sobre o bom senso?

Em resumo: Thor vale a pena ser visto. Tem um enredo cativante, que consegue a difícil proeza de ser interessante tanto para o inveterado leitor de quadrinhos quanto para o espectador de ocasião que pouco ou nada sabe sobre o universo da Marvel, tem ótimas atuações (com o inevitável destaque para o "imortal" Anthony Hopkins e para a boa surpresa Tom Hiddleston), tem um visual de encher os olhos, e tem o grande mérito de contribuir para despertar nas novas gerações o interesse pelo mundo fascinante e cheio de significados da mitologia.

quinta-feira, maio 19, 2011

O Retrato de Dorian Gray

Traçar um paralelo entre um novo filme e uma história consagrada na literatura é sempre um exercício empolgante e, ao mesmo tempo, complicado. Por um lado, nunca tive paciência com gente que pensa que achar tudo ruim é ter "gosto refinado", e a última coisa que quero é me parecer com esse tipo. Por outro, quanto mais importante, por uma ou outra razão, for um livro, maior obrigação tem o seu leitor de ser crítico com qualquer recriação que apareça... Obrigação essa que fica ainda mais pesada se o leitor em questão for um estudioso de literatura por formação e gosto. Não obstante, tentarei assim mesmo.

Esta nova versão cinematográfica do clássico da literatura gótica de Oscar Wilde já não chega tão "nova" aos cinemas nacionais, já que a produção (inglesa) é de 2009. Ben Barnes, já celebrizado como o príncipe Caspian na série As Crônicas de Nárnia (baseada nos não menos clássicos livros de C. S. Lewis) foi escolhido para encarnar o jovem burguês londrino que vende a alma em troca da juventude perpétua – note-se, de passagem, que Barnes não se parece com a visão que Wilde tinha do personagem, que é descrito no livro como sendo loiro. Ben Chaplin faz o papel do pintor Basil Hallward, responsável pelo famigerado retrato, enquanto Colin Firth, atualmente sob os holofotes por causa do oscarizado (epa!) O Discurso do Rei, é o insuportável lorde Wotton. Na ala feminina do elenco, Rachel Hurd-Wood empresta sua beleza a Sibyl Vane, a atriz adolescente que Dorian seduz e depois abandona, enquanto Rebecca Hall interpreta a "avançada" Emily, personagem inexistente no livro. Oliver Parker assina a direção.

O Retrato de Dorian Gray, publicado em 1890, foi o único romance escrito por Oscar Wilde (1854-1900), que, durante sua carreira literária, devotou a maior parte de sua energia ao conto, à poesia e ao teatro. Se não fosse pelo poderoso molho de terror sobrenatural que tempera suas páginas, é possível que o livro fosse hoje tão pouco lembrado quanto toneladas de outros romances da mesma época e cuja massa tinha a mesma composição – a crítica de costumes. Não que a crítica de costumes, em si mesma, não possa gerar boa literatura (alguém disse Machado de Assis?): o problema é que, quando o modelo é muito sem-graça, o retrato (ops!) dificilmente sairá espetacular, de modo que era preciso ser muito escritor para conseguir produzir algo interessante tendo como assunto a fútil e afetada alta sociedade inglesa da época – uma sociedade que Wilde, embora irlandês de nascimento, sem dúvida conheceu a fundo.

Ainda que não haja no livro nada tão explícito quanto o beijo trocado entre Barnes e Chaplin numa cena do filme, a sabida homossexualidade do autor é perceptível, de forma sutil mas ao mesmo tempo inequívoca, na interação entre o trio central da trama: Dorian, Hallward e lorde Henry Wotton – Harry para os íntimos (entendam esse "íntimos" como quiserem). Por sinal, se já houve um personagem de ficção que eu desejei que tivesse uma cara de carne e osso para que eu pudesse parti-la, foi esse lorde Wotton. O que essa figura faz é cultivar o cinismo no grau mais extremo e em sua forma mais repulsiva, aparentemente devotando cada minuto de vigília a forjar frases "chocantes" reduzindo amor, família, religião, qualquer espécie de decência, honestidade, honra e todos os demais valores morais e humanos imagináveis a convenções ridículas e ultrapassadas, que deveriam ser postas de lado como uma gravata fora de moda.

Dorian, Hallward e Wotton, estava eu dizendo, formam o núcleo da história, e as atenções que ambos os mais velhos dirigem ao jovem protagonista não disfarçam uma admir
ação que nada tem de inocente – na verdade, há nos diálogos um tipo de jogo erótico que só mesmo um escritor do calibre de Wilde poderia ter forjado: é quase impossível dizer exatament
e onde está o erotismo, mas não há dúvida de que ele existe, embora em nenhum ponto do livro haja a sugestão de alguma aproximação física maior entre os personagens. Uma piada velha, mas que não perde o poder de causar alguns risinhos amarelos entre o pessoal da literatura, é referir-se ao livro como O Retrato de Dorian Gay. Já que falei no assunto, não se deve pensar que tenha sido devido a qualquer tipo de escrúpulo moral que Wilde optou por não ser mais explícito em seu romance (fato que a nova versão cinematográfica tenta "corrigir", aproveitando os tempos mais relax que vivemos hoje). Se ele não o fez, foi porque sabia que tal coisa poderia render-lhe sérios problemas. Na época, atos homossexuais eram previstos em lei como delito de "conduta imoral", e podiam ser punidos com prisão. Foi exatamente o que aconteceu ao próprio Wilde, que, tempos depois da publicação de O Retrato..., amargou uma temporada de dois anos atrás das grades, por conta de seu relacionamento com o jovem filho de um lorde influente. De volta ao livro, o Dorian Gray do título é um típico jovem da alta sociedade britânica da segunda metade do século XIX. Ou melhor, seria típico se não fosse por sua extraordinária beleza, que o faz sobressair onde quer que esteja e atrai a atenção de Basil Hallward, um pintor de inegável talento e um dos favoritos dos aristocratas e da burguesia de Londres – não que, para fazer renome entre essa gente, o talento fosse uma condição indispensável: muitos cavalheiros e damas gostavam de fingir que entendiam de arte. Sendo Hallward um pintor renomado, e Dorian o modelo dos sonhos, o início da amizade entre os dois leva ao desfecho óbvio: o rapaz posa para um retrato. Durante a última sessão de trabalho no atelier de Hallward, Dorian fica conhecendo lorde Wotton, amigo do pintor. De certa forma, Wotton tem de Dorian uma visão inversa à que tem Hallward. Enquanto o pintor vê no jovem uma forma sublime que ele se esforça por reproduzir em tela e tinta, o lorde o vê como uma argila virgem que, com a necessária habilidade, poderia ser moldada na forma de... algo. Primeiramente, é Wotton quem incute em Dorian o pavor de envelhecer:

Para o senhor, Gray, tudo deveria ser importante (...), porque possui uma maravilhosa juventude, e a juventude é a única coisa que vale a pena. (...) Quando for velho, enrugado, feio, quando a meditação lhe tiver murchado a fronte com suas rugas e a paixão marcado seus lábios com horríveis estigmas, sentirá isso terrivelmente. Agora, aonde quer que vá, cativa todo mundo. Mas será sempre assim? (...) Sim, Sr. Gray, os deuses foram generosos com o senhor. Mas o que os deuses dão, tomam logo em seguida. O senhor só tem alguns poucos anos para viver verdadeiramente, perfeitamente, plenamente. (...) O tempo tem ciúme do senhor e luta contra os seus lírios e as suas rosas. O senhor empalidecerá, suas faces ficarão vincadas e seus olhos se apagarão. Sofrerá terrivelmente... Ah! Aproveite a sua juventude enquanto a possui. (...) Juventude! Juventude! Não há absolutamente nada no mundo, senão a juventude!

E Dorian, juvenilmente impressionado por tal discurso, desabafa:

Como é triste! Eu me tornarei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho... Se acontecesse o contrário! Se eu ficasse sempre jovem, e se este retrato envelhecesse! Por isso... por isso eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse! Daria até a minha própria alma!


Aparentemente, Satã estava ouvindo com interesse esse diálogo, e, quando o jovem declara sua disposição para tal barganha, deve ter dito simplesmente "Topo!", ou o equivalente a isso. O trato está feito, assim, de boca, sem necessidade de missa negra, pentagramas, livros profanos, mulher nua servindo de altar e essa presepada toda. Desse momento em diante, Dorian nunca mais envelhece um só dia: as marcas que, pelas leis da natureza, o tempo deveria deixar em seu rosto vão, ao invés, sendo transferidas para o retrato. E não só as marcas do tempo: cada maldade que ele pratica, cada desvio moral ao qual se entrega em busca de prazeres novos (tudo seguindo os conselhos de lorde Wotton e os seus desdobramentos inevitáveis) também provoca mudanças horripilantes na efígie, que passa a ser o segredo mais bem guardado de Dorian, trancado a sete chaves, longe dos olhos de todos. Com o tempo, como não poderia deixar de acontecer, sua aparência inalterada começa a chamar atenção, e, combinada com a fama proporcionada por suas inúmeras depravações e vícios, faz com que passe a ser encarado, pelos que o conhecem, com algo que beira o horror supersticioso. A relação entre Dorian e o retrato vai-se tornando progressivamente mais macabra e obsessiva, e seu final não poderia ser agradável – é claro que não vou contar o final, mas adianto a quem viu o filme e pretende ler o livro que o final de um tem pouco a ver com o do outro. Depois me contem qual dos dois acharam melhor – ou, dependendo do ponto de vista, pior.

Uma coisa que achei curiosa foi a contextualização histórica, que extrapola o que havia no romance – e o faz de forma plausível e inteligente. Por exemplo, há referências a uma guerra, obviamente a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ora, Oscar Wilde, que morreu em 1900, talvez até pudesse ter previsto a iminência de um confronto na Europa num futuro próximo, levando em conta a situação política em seus dias, mas é claro que não teria como incluir datas ou detalhes, a menos que os inventasse – e futurologia não era bem a sua seara literária. Não há enunciação de ano no romance, mas é fácil perceber que a ambientação é contemporânea à da vida do autor. Ora, se a história se passasse na mesma época em que foi escrita, Dorian Gray, que tem 20 anos no início do romance, teria nascido por volta de 1870, e, como estaria com 40 e poucos no desfecho da narrativa, isso coincidiria exatamente com os dias da guerra. Automóveis e telefones, coisas quase desconhecidas durante a vida de Wilde, mas que já começavam a se tornar corriqueiras na segunda década do século XX, também aparecem.

Num apanhado geral, considerei o filme bastante satisfatório e, até certa altura da história, muito fiel à narrativa original, com detalhes variando, mas a essência do enredo sendo mantida. No último terço, aproximadamente, é que o roteiro degringola, com lorde Wotton decidindo assumir o papel de investigador implacável para descobrir o segredo de Dorian – o Wotton da história original jamais teria energia para realizar tal empreitada, nem caráter para considerá-la necessária – e a relação artificial de Dorian com Emily, filha de Wotton (personagem que, como disse acima, foi inventada para o filme) sendo usada como pivô para o desejo de regeneração e redenção experimentado pelo protagonista, desejo esse, por sinal, que o filme exagera muito. As atuações, em sua maioria, são acima da média, e a recriação da Londres do século XIX é perfeita: uma cidade cinzenta, suja, poluída, com sua magnífica arquitetura manchada pela onipresente fuligem de milhares de chaminés – enfim, uma cidade que pagava o preço da Revolução Industrial que fizera da Inglaterra o país mais rico do mundo –, e onde cenários de riqueza e ostentação e outros da mais sórdida miséria coexistiam separados por poucos passos de distância. Os espectadores que vierem a ler o livro levarão, no mínimo, uma boa amostra do clima que devem imaginar ao imergirem em suas páginas para algumas horas de leitura fascinante.

segunda-feira, abril 11, 2011

O Chamado de Cthulhu

O poeta português Fernando Pessoa costumava dizer de si próprio que, sozinho, era uma inteira literatura, declaração imodesta, talvez, mas, sem dúvida, verdadeira. Há outros poucos autores (de diferentes lugares, épocas e gêneros) aos quais essa sentença também se aplica. São autores cujo conjunto da obra forma algo tão grandioso, impressionante e complexo, que acaba por influenciar gerações inteiras de outros escritores e, de certa forma, construir lendas.

Um desses autores foi o norte-americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), criador do ciclo de horror e fantasia que hoje milhares de fãs espalhados pelo mundo conhecem como "os Mitos de Cthulhu". Pouco dado ao convívio social e com a saúde sempre frágil, Lovecraft teve uma vida reclusa e uma história familiar bastante tumultuada, fato que se estendeu para seu casamento, que durou apenas dois anos. Ao separar-se, retornou a sua cidade natal, Providence, no estado americano de Rhode Island, e foi morar com duas velhas tias. Foi a partir dessa época (aproximadamente 1926) que Lovecraft começou a produzir as obras que lhe dariam fama – fama essa que chegou tarde demais para o escritor: ao morrer, embora tivesse tido muitos contos e artigos impressos em revistas, só tivera um único livro publicado (numa edição tosca e de tiragem minúscula) e alcançara pouca coisa em matéria de retorno financeiro ou fama. Em resumo, Lovecraft morreu achando-se um fracasso, sem ter ideia do grau de importância que sua obra chegaria a ter.

Este pequeno livro que acabo de ler é o primeiro volume da série Os Mitos de Cthulhu, publicada alguns anos atrás pela editora Campanário e dedicada exclusivamente a reunir os contos que fazem parte desse ciclo, deixando de fora outros trabalhos com focos diferentes. O curioso é que nem sempre é fácil separar, dentro da obra de Lovecraft, o que faz e o que não faz parte dos Mitos: o livro O Chamado de Cthulhu, por exemplo, traz o conto que lhe dá título e é considerado por estudiosos e fãs como a pedra angular dos Mitos de Cthulhu, e também A Cor que Veio do Espaço, que não parece ter qualquer ligação direta com o ciclo, pois fala da queda de um meteoro com propriedades estranhas numa pequena fazenda da Nova Inglaterra, trazendo pavorosas mutações às plantas e aos animais, e causando loucura nos seres humanos.

Os Mitos de Cthulhu estão baseados numa concepção profundamente pessimista do universo, que vê a espécie humana como uma criação insignificante, acidental e transitória, numa esfera de existência cuja vastidão e antiguidade são suficientes para destruir a sanidade de uma pessoa que delas tome conhecimento. Os Mitos são estruturados em torno dos assim chamados Grandes Antigos, gigantescos deuses-monstros alienígenas que teriam chegado à Terra, vindos de constelações distantes, milhões de anos atrás. Quando Lovecraft dizia que os Grandes Antigos eram gigantescos, queria dizer gigantescos mesmo, com quilômetros de altura, para não mencionar poderes de diversos tipos, que pareceriam mágicos  ou divinos – aos olhos humanos. O rei deles era o Grande Cthulhu, figura central de um culto sinistro que existiria secretamente há milhares de anos, e cujos integrantes acreditam que Cthulhu e seus súditos jazem adormecidos  de certa forma, mortos, mas não permanentemente  em suas fabulosas cidades de pedra, erigidas em eras desconhecidas pela humanidade e hoje ocultas nas profundezas da terra ou dos mares. A explicação disso é que, apesar de todo o seu poder, os Grandes Antigos também teriam seus limites e estariam submetidos a certas leis; por exemplo, só poderiam viver e mover-se quando a configuração das estrelas fosse propícia a isso. Quando assim não fosse, teriam de permanecer "mortos" durante eras inteiras, aguardando que os astros novamente se posicionassem da forma correta, para então ressurgirem. Toda a história da humanidade  aliás, quase toda a história da vida na Terra  estaria compreendida num desses períodos de latência dos Grandes Antigos. Período esse que estaria agora se aproximando do fim...



Apesar da dificuldade que tinha em se relacionar com as pessoas comuns à sua volta, Lovecraft tinha seus amigos, muitos dos quais nunca viu pessoalmente, mantendo contato somente por cartas. Amigos de peso, é bom que se diga: entre eles estavam escritores do calibre de Robert E. Howard (o criador de Conan), Clark Ashton Smith, August Derleth, Frank Belknap Long, entre outros. Como seria de se esperar, o assunto forte na extensa correspondência mantida entre esse grupo era a literatura, quase sempre a literatura fantástica da qual, cada um no seu estilo, todos se ocupavam. E, talvez por sugestão do próprio Lovecraft, vários deles passaram a incluir em suas histórias algumas sutis menções a elementos da obra dos outros, o que criava nos leitores uma sensação de realidade. Afinal, se vários autores falam de uma coisa, ela deve ter alguma base em fatos... não? O caso mais extremo disso foi o Necronomicon, o "Livro dos Nomes Mortos", um grimório fictício, inventado por Lovecraft e que, segundo ele, conteria a maior parte da informação conhecida sobre os Grandes Antigos, além de outros conhecimentos ocultos, rituais sinistros e por aí afora. O livro teria sido escrito na Idade Média por Abdul Al-Hazred, um poeta árabe louco, passando de mão em mão entre estudiosos de ocultismo durante os séculos seguintes; no século XX, restariam pouquíssimos exemplares. Mais de um dos amigos escritores de Lovecraft também mencionou o Necronomicon em seus contos, e escritores posteriores continuaram e continuam a fazê-lo como uma forma de homenagem ao autor (Stephen King cita-o no conto Sei do que Você Precisa, que pode ser lido na coletânea Sombras da Noite). A coisa alcançou tais proporções, que hoje em dia não é difícil encontrar quem acredite que o Necronomicon realmente exista!...


Em O Chamado de Cthulhu, Lovecraft escreveu que os Grandes Antigos comunicam-se com a humanidade através de emanações telepáticas e principalmente de sonhos, e dessa forma instituíram seu culto, fonte direta ou indireta de todo o conhecimento que temos sobre eles. E as pessoas mais sensíveis ao chamado de Cthulhu seriam os artistas e os loucos  não foi à toa que Al-Hazred, que era as duas coisas, acabou tornando-se o profeta involuntário desse culto grotesco. Por acaso ou não, também no mundo real parece que artistas de diferentes campos têm uma particular facilidade em "ouvir o chamado", pois sentem uma atração toda especial pelo universo bizarro e aterrador de Lovecraft, o que resulta na existência de uma atordoante fartura de interpretações visuais de sua obra. Tirem a prova: basta ir ao Google, selecionar Busca Avançada de Imagens, e digitar "Cthulhu". Tem de tudo, até (acreditem!) fotos de Cthulhus de pelúcia. Só da "estatueta obscena" reverenciada pelos cultistas e descrita em O Chamado de Cthulhu, existem cinco ou seis versões. Quando fui procurar ilustrações para este post, a dificuldade foi escolher, e tanto foi assim que acabei colocando três, sem contar a imagem da capa do livro  muito mais do que costumo.

Por enquanto, minha intimidade com o universo de Lovecraft não é grande: além deste livrinho, li apenas o volume de contos Nas Montanhas da Loucura, que faz parte da coleção das obras do autor publicada pela editora Iluminuras, bem mais fácil de achar em livrarias que as edições da Campanário, e com a vantagem de que cada livro traz uma quantidade bem maior de material. A história que dá nome a esse livro é uma das mais longas escritas por Lovecraft e trata da aventura de um grupo de cientistas que descobrem nos confins da Antártica uma cidade construída em priscas eras por seres não-humanos  estes são chamados apenas de "os Antigos", sem o "Grandes", e eram criaturas de um nível mais prosaico, o que, em se tratando de Lovecraft, significa apenas que não eram divindades monstruosas, pois, de resto, nada tinham de convencional, qualquer que seja o prisma por onde se olhe: eram seres indefiníveis, com características de animal e de vegetal ao mesmo tempo, que se reproduziam por meio de esporos e podiam viver tanto em terra firme como no fundo do mar. De qualquer forma, o personagem-narrador chega a ter um momento de simpatia para com eles ao admitir que, qualquer coisa que fossem, eram os seres sencientes que existiam na época, e, portanto, eram os "homens" de então. Esse conto, embora provoque lá os seus calafrios, tem como principal atrativo a descrição pormenorizada e incrivelmente imaginosa da civilização dos Antigos.

Quem já leu Lovecraft deve ter notado que, em que pese sua vasta erudição e consideráveis conhecimentos científicos, ele tinha certas ideias, para dizer o mínimo, "discutíveis", era misantropo e racista, mas é preciso dar um desconto lembrando a época e o lugar onde ele viveu, a educação que teve e as experiências amargas que pautaram a maior parte de sua vida. Não é preciso admirá-lo como pessoa para desfrutar a experiência única de mergulhar em seu espantoso universo, imaginado com fabulosa criatividade e descrito com um talento literário inegável.

Para terminar, acho uma boa ideia sublinhar que a coleção de Lovecraft publicada pela Iluminuras inclui, além de sua produção de ficção, uma caprichada edição do ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, obra de referência sobre a qual já falei mais de uma vez aqui no blog (confiram aqui e aqui).

quinta-feira, março 03, 2011

A Ilha do Dr. Moreau

Passei os últimos quatro meses lendo a série O Imperador e escrevendo sobre ela, o que é suficiente para me deixar farto da temática romana durante umas... 24 horas, talvez. Entretanto, como alguma variedade é saudável, e o mundo está cheio de assuntos interessantes, decidi comentar este livro, que comecei a reler numa decisão repentina ao acidentalmente bater o olho nele na minha estante.

Li pela primeira vez A Ilha do Dr. Moreau na pré-adolescência, talvez com uns 12 anos de idade, quando estava começando a prestar atenção aos nomes dos autores dos livros que lia (vocês se surpreenderiam com o número de livros que li na infância e adoraria reencontrar hoje, mas não tenho como procurá-los porque o Marcos garoto simplesmente não se preocupava com quem era o autor). Meus irmãos andavam comentando entusiasmados o livro O Homem Invisível - que, por algum capricho do destino, não li até hoje! - e, quando topei na biblioteca com outro livro do mesmo autor, decidi conferir. Não era a mesma edição do exemplar que tenho hoje, esse comprei num sebo anos depois: se não me engano, a edição que li primeiro tinha tradução de ninguém menos que Monteiro Lobato. Foi meu primeiro contato com a obra de Herbert George Wells (1866-1946).

Esse autor britânico, como vim a saber, divide com o francês Júlio Verne o mérito do pioneirismo no gênero que mais tarde ganharia o nome de ficção científica. Verne e Wells não foram realmente os primeiros a escrever coisas do tipo (o famosíssimo Frankenstein, de Mary W. Shelley, em tudo e por tudo uma história de ficção científica, é de 1817), mas foram os primeiros escritores que se dedicaram de forma consistente ao gênero e conquistaram para ele um público fiel. Suas semelhanças, porém, terminam aí, pois os dois tinham estilos muito diferentes. As obras de Verne costumam ser mais leves, com um sentido de aventura e descoberta que as torna atraentes tanto para o leitor adolescente quanto para o adulto, além de, não raro, terem um toque de humor (Da Terra à Lua tem trechos realmente hilários!). Ao mesmo tempo, Verne revelava uma preocupação maior com o aspecto "técnico" do que escrevia, procurava fornecer explicações plausíveis para a forma como as coisas de que falava eram ou viriam a ser possíveis. Wells, por sua vez, visava claramente um público mais maduro, e pensava mais no lado humano das situações. Para ele, não importava tanto como um homem pode ficar invisível ou qual a tecnologia usada pelos marcianos nas naves com que invadiram a Terra: interessava-lhe muito mais saber quais seriam as consequências disso tudo para a cultura e a sociedade.

A Ilha do Dr. Moreau, de 1896, ocupa um lugar à parte na obra de H.G. Wells. Mencionei há pouco o Frankenstein como sendo obra de ficção científica, e não há dúvida de que o é, embora seja lembrado com muito mais frequência como um clássico da literatura de terror. O fato é que o danado do livro pertence a ambos os gêneros, e A Ilha... também não está muito longe disso. Ao mesmo tempo em que levanta questões importantes sobre ciência e a ética dos cientistas, o livro está recheado de passagens sombrias e tensas, onde o horror ora é sutil, alimentado pela sensação indefinida de realidades desconhecidas e possivelmente hostis, ora explícito, por meio de presenças bizarras e assustadoras.

O livro trata das aventuras de um inglês do século XIX, Edward Prendick, que, após sobreviver a um naufrágio e penar miseravelmente durante dias num escaler à deriva no sul do Pacífico, acaba sendo resgatado por uma escuna que leva a bordo um sujeito misterioso de nome Montgomery, que diz viver numa pequena ilha sem nome, onde a embarcação o deixará antes de seguir para seu destino. Nos arredores da ilha, como o capitão bêbado e rabugento recusa-se a levar Prendick mais adiante, ele acaba sendo obrigado a desembarcar, e se vê jogado num pequeno mundo habitado apenas por Montgomery, por um velho cientista a quem ele parece servir de assistente, e por um grupo de homens de aparência estranha, parecendo fisicamente mal acabados, com inteligência subumana e certos inconfundíveis traços animais na fisionomia e no comportamento.

O nome do velho cientista, Moreau, não é estranho a Prendick, que acaba por se lembrar de onde o ouviu: Moreau foi em tempos um médico eminente na Inglaterra, famoso tanto por seu conhecimento quanto pelas ideias pouco ortodoxas e pela crença de que, em prol da ciência, os fins justificam quaisquer meios. Juntando as terríveis histórias que ouviu quando garoto com as coisas que vê na ilha, Prendick chega à horrenda conclusão de que os seres disformes que perambulam por ela já foram homens, ficando reduzidos àquela condição degradante como resultado de algum tipo de atroz experimento levado a cabo pelo médico ensandecido. Dou uma pista: as coisas não são como Prendick pensa - e mais que isso não digo, pois seria estragar o arrepiante mistério que serve de fio condutor à história.

Entre outras influências oriundas de sua sólida formação científica, H.G. Wells pautava suas ideias na teoria da evolução de Darwin, e, dessa forma, sua mente especulativa inevitavelmente levantaria a questão de em que momento o homem separou-se dos animais, e se a linha que os distingue é mesmo tão nítida quanto geralmente se acredita. Que diferença haveria entre um animal humanizado e um homem animalizado? Até onde é preciso ir para que o ser humano reverta à selvageria, que, afinal de contas, é seu estado natural? A Ilha... é também mais um exemplo do gosto de Wells por pequenos universos fechados utilizados como alegoria para a sociedade humana como um todo: em seu conto Em Terra de Cego, o vale isolado nos Andes, habitado apenas por cegos, é uma metáfora dos absurdos a que pode levar a construção do conhecimento por meio de uma filosofia materialista que não aceita a possibilidade de realidades fora do alcance dos sentidos físicos e da experiência direta; em A Ilha do Dr. Moreau, o comportamento por vezes insano dos habitantes da ilha é uma crítica aos dogmas religiosos e às convenções sociais - mas, paradoxalmente, a conclusão à qual a história leva é a de que, com os defeitos que possam ter, esses dogmas e convenções são indispensáveis para que a civilização seja viável.

Em tempo: sei da existência de três versões filmadas de A Ilha do Dr. Moreau. Nunca vi a mais antiga, de 1932, mas, pelo que pude descobrir sobre ela na internet, não deve ser grande coisa: o maior destaque parece ser uma sexy (para os padrões da época) "mulher-pantera", enxertada no roteiro para tentar aumentar a bilheteria. Os dois filmes mais recentes eu vi, e tudo o que posso dizer é que é difícil escolher qual o pior, se o de 1977, com Burt Lancaster, ou o de 1996, com Marlon Brando e Val Kilmer. Ambos jogaram fora a tensão e as ideias perturbadoras do livro em prol de cenas ordinárias de ação e de um horror canhestro que lembra aqueles filmes pastelão sobre lobisomens, mas sem a veia de humor autogozador que torna esses filmes divertidos. Num deles, os temores de Prendick (ou como quer que tenham rebatizado o personagem) se concretizam e o Dr. Moreau realmente tenta usá-lo como cobaia em suas experiências - coisa que o Moreau do livro jamais faria. Resumindo: 115 anos depois de sua publicação, uma das melhores obras do mestre H.G. Wells ainda está à espera de uma adaptação cinematográfica decente. Deixem o DVD desligado e leiam o livro.

sábado, fevereiro 12, 2011

O Imperador - Os Deuses da Guerra

E eis, finalmente, a conclusão da grandiosa série O Imperador! Mais uma vez, Conn Iggulden tomou certas liberdades em prol de seus objetivos literários, o que não tira o valor de sua obra como uma maneira envolvente e agradável de adquirir conhecimento histórico: bastará uma consulta a qualquer biografia resumida de Júlio César para que um leitor de habilidade mediana consiga acertar as coisas e ficar com uma noção muito boa de como foi a vida de um dos homens mais extraordinários que já pisaram neste planeta.

César, à frente de cinco legiões que o idolatram, acaba de transformar a rica e rebelde Gália na mais nova província romana, quando recebe a notícia de que o velho Crasso, que costumava ser o fiel da balança no delicado equilíbrio de poder entre ele e Pompeu, acaba de morrer. Pompeu, algum tempo antes, foi investido pelo Senado com o poder de ditador, a fim de que pudesse combater o crime organizado e salvar Roma do caos que ameaçava tragá-la - o que, é preciso reconhecer, fez com muita competência. Só que, passado o perigo, recusou-se a largar o osso, e é ainda na qualidade de ditador que ele envia a César a ordem de deixar suas legiões na Gália e retornar a Roma sozinho. E César, é claro, sabe que fazer isso significaria morte certa, de modo que decide desafiar a autoridade de Pompeu e marchar para o sul com a maior parte de seu exército, deixando na Gália apenas um número suficiente de homens para que a paz seja mantida. Há um episódio que Iggulden não narra, mas é um dos mais famosos da trajetória de César: ao chegar às margens do riacho conhecido como Rubicão, e ciente de que atravessá-lo levando o exército será considerado por Pompeu como um ato de guerra civil, César atravessou, declarando: "Alea jacta est" ('A sorte está lançada').

Guerra civil. Eis uma coisa que vai contra tudo o que fez Roma grande. Os gregos poderiam ter-se antecipado aos romanos e se tornado os senhores de um império que dominaria o mundo conhecido durante séculos (Alexandre, ao morrer, deixou tudo pronto para isso), se não fosse pelo fato de gostarem tanto de lutar uns contra os outros e por sua incapacidade de se unirem em torno de objetivos comuns. Os romanos levaram a melhor justamente porque se mostraram capazes disso - e, com o tempo, também estenderiam o mesmo sentimento aos não-romanos, fazendo de vários outros povos parte tão vital do Império quanto eles próprios. César sabia muito bem da primeira parte, e provavelmente era um dos poucos homens de sua época que também anteviam a segunda, e mesmo assim encarou a guerra civil; pode tê-lo feito por ambição pessoal ou por acreditar sinceramente que podia dar a Roma um futuro que Pompeu não podia, mas o mais provável é que tenha sido por um misto das duas coisas. De todo modo, voltando ao livro, ele marcha sobre Roma com suas legiões; Pompeu, inferiorizado em número de homens, foge para a Grécia, acompanhado pela maioria dos senadores, e assume o comando das legiões lá estacionadas, o que o coloca em vantagem numérica. Feito isso, espera pelo ataque de César, que, sem a menor dúvida, virá.

César toma posse de Roma sem derramar uma gota de sangue - o povo o recebe alegremente e o elege cônsul pela segunda vez, além de eleger um novo Senado, o que automaticamente coloca fora da lei a ditadura de Pompeu: para a maioria do povo da capital, César é seu governante legítimo. Mas ocorre algo desagradável: quando César indica Marco Antônio para o segundo posto de cônsul (eram sempre dois), Brutus fica indignado, considerando que Júlio deveria partilhar o poder com ele. Na verdade, como César explica a Marco Antônio (um tanto tarde demais: deveria ter explicado a Brutus, antes de fazer a indicação), não se trata de chutar ninguém para escanteio, mas simplesmente de distribuir as funções de acordo com os talentos de cada um. Marco Antônio é o homem certo para governar Roma enquanto César vai à Grécia haver-se com Pompeu - e Brutus, como o general formidável que é, será uma peça essencial para alcançar a vitória. Ou melhor, seria.

Brutus, cansado de dedicar a vida a serviço de um líder que ele acha que nunca vai reconhecer seu verdadeiro valor, decide ir para a Grécia e colocar-se sob as ordens de Pompeu - mas, naturalmente, é recebido com desconfiança, pois todos conhecem sua fama e sabem que sempre foi um dos partidários mais leais de César; por tudo o que Pompeu e seu lugar-tenente, Labieno, sabem, poderia ser um espião. E aqui está mais uma liberdade do autor: Brutus torna-se amante de Júlia, filha de César e esposa de Pompeu, que está na Grécia com ele, já tem um filho crescido e acaba engravidando do segundo - que pode muito bem ser de Brutus. Na verdade, nessa época Pompeu já estava casado com outra mulher, pois Júlia morreu no parto do primeiro filho, quando César ainda estava na Gália. É mera licença artística e, de certa forma, justiça poética, como se Brutus tivesse pensado: "Júlio 'pegou' minha mãe, então por que não posso 'pegar' a filha dele?"

O quanto Brutus era estimado por César fica evidente no fato de que sua deserção para o lado de Pompeu é histórica, como também o é o perdão oferecido por seu antigo comandante. Certo, César deu anistia a todos os que lutaram contra ele na guerra civil, mas uma coisa é perdoar soldados que estavam do outro lado desde o início, cumprindo seu dever para com seu comandante legítimo, e outra bem diferente perdoar um traidor. Nas legiões, a pena para a traição sempre foi a morte, e César não era o tipo de homem que tivesse por costume abrir exceções para favorecer amigos. O autor desenha a personalidade de Brutus de uma maneira bastante complexa e, pode-se dizer, humana, e, como tal, cheia de contradições. Ele é essencialmente um homem decente, mas não consegue esconder de si mesmo que as motivações que o levam a participar do assassinato de seu velho amigo não são somente patrióticas: ao zelo pela manutenção da República soma-se, sim, uma boa dose de inveja.

Iggulden vai empilhando gradualmente os motivos que levariam à vitória final de César na guerra civil, apesar de estar enfrentando um general quase tão astuto quanto ele próprio, mais velho e experiente, e com a vantagem dos números (Pompeu comandava onze legiões, cerca de 55 mil soldados, contra as sete de César, 35 mil; praticamente dois terços de todo o exército romano estavam envolvidos). O que acaba ditando o resultado parece ser o fato de que, enquanto Pompeu hesita, César toma decisões rápidas. Também pesa o uso ardiloso da propaganda: muitos dos legionários sob o comando de Pompeu são de opinião que César é mesmo o legítimo governante de Roma e de que Pompeu deveria submeter-se a ele. Deserções ocorrem e são punidas com brutalidade exemplar, o que vai minando mais e mais a confiança e a lealdade dos soldados de Pompeu, já insatisfeitos por estarem lutando contra compatriotas.

A guerra civil tem seu lance final quando, derrotado em Farsália (outras fontes dão Farsalos), Pompeu foge para o litoral, de onde embarca para o Egito - e é ao partir em sua perseguição que César, sem saber, está rumando para a última grande aventura de sua vida, aquela sobre a qual mais livros foram escritos e mais filmes rodados. Talvez tenha sido justamente por isso que Conn Iggulden optou por narrar essa parte da história de uma maneira tão resumida: fiquei surpreso ao perceber que já lera dois terços do livro sem que César houvesse posto os pés no Egito ainda. E dou-lhe razão: a vida de César foi de tal modo intensa e atarefada, que, a menos que o autor quisesse chegar a um quinto e, quiçá, a um sexto volume, era necessário ser enxuto em alguma parte. Melhor que fosse essa parte, já que não faltam opções a quem quiser conhecê-la em mais detalhes: basta ler uma biografia de Cleópatra - existem várias, algumas delas muito boas. Pela mesma razão, embora eu mesmo pudesse tecer diversos comentários sobre a relação do grande general e cônsul romano com a jovem rainha do Egito - relação que foi um retrato fiel do papel que suas respectivas civilizações representavam no mundo da época -, prefiro deixar isso para outra ocasião, pois trata-se de tema que merece mais do que umas poucas palavras. Em vez disso, meus dedos estavam coçando para escrever sobre as consequências dramáticas da traição de Brutus (o que já fiz) e sobre o perfil de Otaviano. Vamos a isso...

Como citei de passagem no comentário de A Morte dos Reis, Iggulden optou por criar uma proximidade maior entre Júlio César e Otaviano - que, aliás, só passaria a ser chamado assim depois de sua adoção por César: seu nome original era Caio Otávio Turino; com a adoção, passou a chamar-se Caio Júlio César Otaviano, ou seja, o nome igual ao do pai adotivo, acrescido do "Otaviano" para distinguir os dois e lembrar que, por nascimento, ele pertencera à família dos Otávios. Porém, por comodidade, continuarei a chamá-lo de Otaviano.

Historicamente, Otaviano era neto de uma das irmãs mais velhas de César, nasceu em 63 a.C., quando o próprio César estava com cerca de 37 anos de idade e começava a ficar famoso, e estava na adolescência - um jovem extremamente inteligente e promissor - quando o tio-avô, não tendo (até então) tido nenhum filho homem, decidiu adotá-lo. Estava com 18 anos quando César foi assassinado, empenhou-se ferozmente em caçar e punir seus assassinos, e foi um dos principais personagens no cenário político dos anos seguintes, acabando, em 27 a.C., por sagrar-se imperador, com o nome de César Augusto. Aliás, foi o primeiro imperador de Roma.

Conn Iggulden quis que Otaviano fosse um dos companheiros de César durante seus longos anos de campanhas militares, e, para tanto, começou por alterar o grau de parentesco e a diferença de idade: o sobrinho-neto transformou-se em um primo apenas alguns anos mais jovem. Além disso, o perfil do personagem também mudou: na série, Otaviano é um perfeito guerreiro romano, um espadachim excepcional, treinado por Rênio e Brutus. Comanda uma legião e, a partir da deserção de Brutus, também se torna o líder dos extraordinarii, a cavalaria de César. O verdadeiro Otaviano não era guerreiro de forma alguma: apenas tangenciou o serviço militar e talvez nunca tenha participado diretamente de uma batalha - eis um ponto em que não puxou a seu destemido tio-avô, que nunca deixou de lutar ao lado de seus soldados. O que não quer dizer que fosse um covarde: como diz Cômodo no filme Gladiador, existem diferentes formas de coragem. E de passagem, é sempre bom lembrar que Otaviano não se notabilizou entre os imperadores apenas por ter sido o primeiro: esteve entre os quatro ou cinco melhores durante os 500 anos nos quais Roma teve imperadores.

Tive a impressão de que os últimos dias de César foram narrados de uma maneira simplificada, como se o autor não quisesse se estender muito mais - o que é compreensível, ao fim de uma história de mais de 1600 páginas. Depois de ajudar Cleópatra a tomar o poder, César vive um caso de amor com ela; tudo indica que ela o tenha seduzido por interesse, mas depois acabado apaixonada de verdade. É Cleópatra quem dá a César o único filho homem que ele terá. É histórico que César levou-a a Roma ao voltar, talvez pretendendo divorciar-se de sua esposa, Calpúrnia, e oficializar o enlace, o que uniria os dois impérios, mas não viveu o suficiente para isso. O episódio em que Marco Antônio tenta colocar uma coroa na cabeça de César aparece aqui de modo muito diferente do que eu conhecia, e as motivações por trás dele, muito diferentes das que eu imaginava. Na narrativa de Iggulden, o próprio César pede a Antônio que venha com a coroa no momento de seu triunfo, e tira-a da cabeça desapontado quando percebe que o povo não gostou nem um pouco da ideia (sempre a velha prevenção contra reis e realezas, passada de pai para filho entre os romanos desde os tempos do domínio etrusco). Sempre acreditei, e ainda acho mais provável, que a ideia tivesse sido de Marco Antônio e outros, e que César houvesse se recusado a ser coroado justamente porque sabia que isso criaria antipatia entre a população e daria munição a seus opositores, que já adoravam compará-lo aos antigos e tirânicos reis etruscos, derrubados pela rebelião que instaurou a República.

Quanto ao assassinato, esse narra-se em poucas páginas, chegando a parecer estranho que seja uma passagem tão breve a pôr fim a uma história tão longa, o que imagino que esteja certo: quem ouviu a notícia deve ter experimentado uma sensação de absurdo. Como podia um homem que fizera tantas coisas grandiosas, durante tanto tempo, desaparecer assim, de uma hora para outra? Quando generais romanos eram homenageados com triunfos, um sacerdote os acompanhava na carruagem que os levava, com a tarefa de dizer-lhe a intervalos regulares: "Lembra-te de que és mortal". César foi lembrado desse fato da maneira mais implacável possível: apesar de tudo o que fora e fizera, não podia haver dúvida de que continuava a ser mortal, pois não escapou à ação do caos inerente que rege a existência humana - depois de sobreviver a tantas batalhas, foi morto por pessoas em quem confiava, num lugar que deveria ser seguro.

Sei que já disse ou dei a entender isso várias vezes durante os últimos meses, mas não é possível concluir sem dizê-lo de novo: O Imperador é uma grande e maravilhosa série, que recomendo sem restrições a quem, como eu, ama o mundo antigo greco-romano, ou simplesmente gosta de biografias bem escritas... além de não se intimidar com leituras extensas! Conn Iggulden finaliza a nota histórica deste último volume dizendo que "nos próximos anos posso ter de escrever uma história do que ocorreu depois do assassinato". E sem dúvida deveria fazê-lo: a vida de César deu início a um grande ciclo, que sua morte não encerrou. Personagens como Otaviano, Brutus, Marco Antônio, Cleópatra e muitos outros ainda realizariam muitos feitos dignos de serem narrados e teriam papéis fundamentais no nascimento do mais duradouro e influente império que o mundo ocidental já viu.