terça-feira, julho 28, 2015

A Trilogia da Escuridão + The Strain

Quando um voo da Regis Airlines, procedente de Berlim, se prepara para pousar no aeroporto internacional John F. Kennedy, em Nova York, não parece haver razão alguma para imaginar que algo possa estar errado. A enorme aeronave toca o solo em segurança e no horário previsto. Porém, quando seus motores desligam, o mesmo acontece com todas as luzes a bordo, e, o que é pior, a tripulação deixa de responder às insistentes tentativas de comunicação por parte da torre de controle do aeroporto. E há os passageiros, que normalmente ficam num frenesi para desembarcar assim que o avião aterrissa, mas que, no presente caso, parecem estar muito quietos… Quietos demais para ser um bom sinal. A primeira coisa em que todos pensam, claro, é numa ação terrorista, possivelmente com uso de armas químicas ou biológicas. Para lidar com a possível presença de patógenos desconhecidos, é chamada a equipe do Centro de Controle de Doenças, liderada pelo Dr. Ephraim Goodweather, também coordenador do Projeto Canário, cuja função é manter vigilância constante contra ameaças de epidemias. Quando Ephraim ("Eph" para os amigos) e sua colega, a Dra. Nora Martinez, ambos pesadamente protegidos contra qualquer contágio, entram no avião para investigar, a cena que encontram é atordoante. Duzentas e seis pessoas, entre passageiros e tripulação, estão aparentemente mortas, sem sinal de violência, e, se houve infecção, o agente foi algo diferente de tudo o que os dois experientes epidemiologistas já viram. Com o tempo, quatro pessoas – três passageiros e o comandante – despertam, mas nenhuma delas consegue dizer o que aconteceu no voo, e nem mesmo acrescentar qualquer informação que lance alguma luz sobre a estranheza do caso.

A investigação conduzida pelas autoridades encarregadas do tráfego aéreo só encontra um objeto suspeito, ou, no mínimo, estranho a bordo do avião: uma enorme caixa retangular de madeira de lei, toda coberta de intrincadas figuras entalhadas representando morte e sofrimento. A caixa dá a ideia de um esquife, mas tem mais de dois metros e meio de comprimento, e, em vez de uma simples tampa, possui portas duplas, à maneira de um guarda-roupa, por assim dizer. Quando é aberta, descobre-se que possui um trinco pelo lado de dentro. No mais, a caixa contém apenas terra. O inacreditável é que ela não consta no manifesto de bagagem, o que não faz nenhum sentido: em tempos pós-Onze de Setembro, deveria ser impossível embarcar com carga não declarada em qualquer voo com destino aos Estados Unidos, e ainda mais um objeto desse tamanho. Eph deseja submeter a caixa a mais análises, assim como os corpos das vítimas e os quatro sobreviventes, que, nem é preciso dizer, deverão ficar sob rigorosa quarentena até segunda ordem – mas não consegue que nenhuma dessas providências seja tomada. A caixa desaparece misteriosamente, apesar de estar sendo mantida em área de acesso restrito, e um dos sobreviventes é uma advogada arrogante e (infelizmente) com "contatos importantes", que consegue que ela e os outros sejam liberados, solenemente passando por cima das normas de segurança médica. Quanto ao exame dos corpos, ele bem que começa a ser feito, mas os procedimentos são interrompidos de forma bizarra, quando os supostos mortos começam a levantar das mesas de autópsia e a atacar quem encontram pela frente, usando novos e horrendos órgãos que parecem ter desenvolvido durante o período de latência que foi confundido com morte.

O agente é, sem dúvida, um vírus, e, como todo vírus, tem um único objetivo na existência: infectar seres vivos, para obrigar suas células a funcionar como fábricas, produzindo o maior número possível de novos vírus. Isso mesmo: um vírus só existe para se replicar. Ele não faz mais nada. Não é capaz de mais nada. Sob esse aspecto, como dissemos, o vírus em questão é igual a qualquer outro… Em tudo o mais, porém, é horrivelmente único. Ele "reescreve" o código genético do organismo infectado, causando transformações físicas para tornar o hospedeiro mais útil aos "interesses" do vírus. Os órgãos internos secam e atrofiam, já que a maior parte das funções que realizavam não são mais necessárias à nova criatura. Na garganta, desenvolve-se uma espécie de tentáculo muscular, que fica recolhido, talvez enrolado quando em repouso, mas que, esticado, chega a medir até um metro e oitenta de comprimento, terminando num ferrão. A criatura usa o tentáculo como se fosse um chicote para subjugar a presa; feito isso, crava o ferrão para sugar o sangue – e quem é sugado fica infectado, de modo que o processo recomeça.

A última parte lembra algo? Não é mera coincidência. Há um homem em Nova York que conhece tanto as antigas lendas quanto a realidade por trás delas. Abraham Setrakian, um judeu de origem armênia, mas criado na Romênia, é proprietário de uma loja de penhores no Harlem, mas já foi professor de literatura e folclore eslavos na universidade de Viena, e teve seu primeiro contato com a praga vampírica mais de 60 anos antes, quando era prisioneiro dos alemães em Treblinka, na Polônia. Embora Treblinka fosse um campo de extermínio, Setrakian, como outros prisioneiros jovens e fortes, foi mantido vivo, em caráter temporário, para que o Terceiro Reich pudesse se beneficiar de sua força de trabalho. Foi graças a essa prorrogação de vida que ele teve a chance de aproveitar o caos que se abateu sobre o campo por ocasião de um ataque do exército russo, e escapar. Antes de sua fuga, contudo, o jovem Abraham testemunhou um horror ainda maior que as atrocidades dos nazistas, que faziam parte do cotidiano do lugar. Escondida nas sombras da noite, uma criatura misteriosa, dotada de força e velocidade impossíveis, esgueirava-se pelos barracões que serviam de alojamento aos prisioneiros, alimentando-se dos homens adormecidos, e, o que é pior, com a conivência do comandante do campo – Abraham tem certeza desse detalhe, pois foi ele quem construiu e entalhou a caixa, por ordem do comandante e para uma finalidade que não é difícil imaginar. O oficial nazista permitia a esse ser fartar-se do sangue dos prisioneiros – que seriam mortos de qualquer forma – e lhe oferecia abrigo, em troca… do quê? A busca da resposta para essa pergunta, do conhecimento da verdadeira natureza da criatura, e de uma maneira de destruí-la, viriam a tornar-se a razão da vida de Setrakian durante as décadas seguintes. Agora ele está velho e sofrendo do coração, mas, se seu vigor físico já não é igual ao de outros tempos, sua coragem continua a mesma, e sua mente está mais aguçada que nunca.

Embora seja um folclorista por formação, Setrakian não negligenciou o que a ciência tinha a contribuir durante seus longos anos de pesquisas e investigações. Ele já sabe, por exemplo, que o que transforma seres humanos em vampiros é um vírus, não uma maldição ou qualquer outra coisa sobrenatural. Descobriu também que o vetor da praga é um pequeno verme, com menos de cinco centímetros de comprimento e espessura pouco maior que a de um fio de cabelo, e com uma habilidade extraordinária para perfurar a pele humana: se você tiver contato físico com um desses, em segundos ele estará na sua corrente sanguínea, e então, nada mais poderá ser feito para salvá-lo. O velho professor apurou, ainda, que a criatura que ele viu em Treblinka era um vampiro-mestre, algum tipo de consciência antiga e maligna, capaz de trocar de corpo ao longo do tempo – o que o faz praticamente imortal – e que controla o contágio do vírus para servir a seus próprios planos. Os vampiros comuns são seres apenas semi-inteligentes, capazes de pouca coisa além de ir atrás de sangue e espalhar a praga, mas o Mestre pode, quando assim deseja, transformar certos humanos escolhidos em uma classe superior de vampiros, mais espertos e poderosos, com capacidade de controlar seus instintos e lembrança total de suas vidas anteriores. Esses, ele reserva para serem seus servidores diretos.


Todo esse conhecimento acumulado por Setrakian, bem como sua impressionante coleção de armas e livros, irá mostrar-se de importância vital para o pequeno grupo dos que irão opor-se aos planos do Mestre a fim de tentar evitar um "apocalipse vampiro" de proporções mundiais. Desse grupo fazem parte Eph e Nora, que por meios tortuosos vêm a conhecer o professor e a somar forças com ele, já que, no fim das contas, todos têm o mesmo objetivo, embora discordem sobre quem recrutou quem para sua causa. Aos três, junta-se eventualmente um sujeito de nome Vasiliy Fet, um filho de imigrantes russos que trabalha para a secretaria municipal de saúde como exterminador de pragas, sendo os ratos sua especialidade. Graças a sua experiência profissional, Vasiliy é o primeiro a perceber que, sob certos aspectos, os vampiros agem de forma parecida à dos roedores. Além disso, ele pensa de forma fria, desprovida de sentimentalismo. Eph e Nora, ao menos no início, sentem uma compreensível hesitação em situações que exigem a eliminação física de vampiros, porque não conseguem deixar de pensar neles como os seres humanos que já foram, e pelos quais eles, como médicos, juraram zelar. Já para Vasiliy, a partir do momento em que alguém é infectado, passa a ser nada mais que um veículo disseminador de doença, assim como os ratos – e deve ser tratado tal como eles. Essa atitude, aprovada por Setrakian, causa horror e repulsa aos outros dois, o que abala a união do grupo ― e isso só pode ser bom para o Mestre… Porém, muitas reviravoltas ainda terão lugar antes do fim.

E, como se a situação já não fosse desesperadora o suficiente, existem outras forças e outros interesses em ação. Um tal Eldritch Palmer (haveria algum paralelo com Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick? Hum…), um dos homens mais ricos do mundo, está agindo em parceria com o Mestre. Para começar, foi graças a ele que o grande vampiro conseguiu transpor o oceano para chegar da Europa aos Estados Unidos ― pois, embora os vampiros desta história tenham muitas diferenças em relação aos vampiros clássicos, também possuem semelhanças, e uma delas é a incapacidade de atravessar água em movimento, a não ser com a ajuda de humanos; qual seria a explicação científica para isso, não se sabe (no terceiro volume é oferecida uma explicação mítica). Palmer é um homem poderoso em todos os sentidos, exceto o físico: sempre teve uma constituição débil e uma saúde frágil. Já tem certa idade, uma idade à qual um homem comum com os mesmos problemas dificilmente teria chegado; só conseguiu manter-se vivo graças ao fato de ter dinheiro para recorrer sempre aos mais modernos tratamentos médicos, e ainda não acha que tenha vivido o suficiente. Na verdade, ele almeja a imortalidade, que o Mestre já ofereceu a alguns humanos antes: Palmer quer ser transformado num daqueles vampiros superiores, com memória e inteligência, e assim seguir vivendo indefinidamente. Em troca, providenciou a viagem do Mestre (com pressões ou subornos às pessoas certas, conseguiu que a enorme caixa fosse embarcada naquele voo, sem registros e sem perguntas), e agora usa sua influência junto à imprensa numa maciça campanha de desinformação, para evitar que o público em geral fique sabendo o que realmente está acontecendo. Nisso, a incredulidade teimosa que é sempre a reação da maioria diante do insólito é uma grande aliada: a TV e os jornais falam em “tumultos”, "saques", uma onda de desaparecimentos, e todo tipo de perturbação da ordem, mas sem nunca revelar o que há por trás de todo esse caos. Boatos circulam, é claro, mas as pessoas preferem acreditar no que conhecem. Vampiros? Quem acreditaria nessa "bobagem"? A maior parte das pessoas vai sempre se obstinar em fechar os olhos à realidade, se ela for muito diferente daquilo que estão acostumadas a ver como "realidade".

Escrevi acima que os vampiros da Trilogia da Escuridão têm diferenças e também semelhanças com os vampiros clássicos. Pois outra semelhança, além da questão da água corrente, é a velha crença segundo a qual um vampiro recém-transformado irá atrás, em primeiro lugar, de seus familiares e amigos – daqueles que ele amou em vida. Essa crença, infelizmente, é verdadeira. Ao longo do primeiro volume, Noturno, enquanto o mundo ainda mantém uma certa aparência de normalidade, acompanhamos a disputa entre Eph Goodweather e sua ex-esposa, Kelly, pela guarda do filho de onze anos, Zack. Isso pode parecer apenas um recurso para fazer de Eph um personagem mais complexo, dando-lhe background e mais humanidade, mas vira algo bem diferente a partir do momento em que Kelly é infectada pelo vírus. Em sua nova existência como vampira, ela não vai descansar enquanto não infectar também o garoto para poder tê-lo novamente junto dela, de modo que a disputa que antes acontecia nos tribunais irá continuar, só que de uma maneira bem mais selvagem e assustadora.

Puxa, comentar livros muito ricos é difícil! Conforme vou escrevendo, vão surgindo mais e mais pontos interessantes que não parece certo deixar de mencionar. Um deles acaba de me ocorrer por causa dessa comparação entre os vampiros de que estamos falando aqui e os vampiros clássicos. Mas, afinal, que raios é um "vampiro clássico"? Suponho que podemos defini-los como sendo os vampiros criados por autores vitorianos como Bram Stoker, John William Polidori, Joseph Sheridan Le Fanu, esse pessoal, e os que vieram depois, diretamente influenciados por eles, tanto na literatura quanto no cinema. Porém, o vampiro em si é mais antigo que isso, e, em sua origem, muito menos glamouroso. Para falar a verdade, nas lendas da Europa oriental, que datam, no mínimo, do fim da Idade Média (e muito provavelmente de bem antes), os vampiros são descritos como seres repelentes, tão dignos de pena quanto de temor, com uma aparência hedionda – às vezes cadavérica, outras com traços animais –, que andavam nus ou cobertos de trapos imundos, escondiam-se em túmulos enlameados e tinham pouca ou nenhuma inteligência. Que diferença entre isso e as representações de vampiros na cultura popular do século XXI, não?… O que a Trilogia da Escuridão faz, de certa forma, é apontar para as origens, ao mostrar a face mais bestial e menos sedutora do vampirismo. Ao mesmo tempo, a existência de exemplares "superiores", como os escolhidos do Mestre, pode ser vista como a possível origem das noções a respeito de vampiros mais inteligentes e sofisticados, como os Lordes Ruthven, as Carmillas e os Dráculas dos vitorianos.


Os fãs do cineasta mexicano Guillermo del Toro ficaram surpresos com a notícia de sua estreia como escritor, e, quando se soube que seria em parceria com o veterano Chuck Hogan, foi inevitável a dúvida: será que esse não vai ser mais um daqueles casos em que um dos autores faz o trabalho, enquanto o outro entra com o nome famoso? Porém, quem leu convenceu-se do contrário: Hogan provavelmente foi o responsável por dar forma ao texto, mas o estilo de Del Toro está por toda parte; a própria ideia geral deve ter sido dele. E, se a estreia do cara na literatura surpreendeu, o fato de a obra resultante ser adaptada para a tela já era de se esperar – só que a tela em questão acabou sendo a da TV em vez da do cinema, seu campo costumeiro de atuação. O que nos leva ao próximo tópico…

Na TV

The Strain (algo como "linhagem, descendência") era o título original da Trilogia da Escuridão, e foi mantido na série de TV baseada nela. A produção é do canal FX, e a primeira temporada, exibida nos Estados Unidos em 2014, já está disponível entre nós em DVD. A segunda está indo ao ar este ano em terras gringas, e a terceira está confirmada para 2016; uma temporada para cada volume da trilogia. Quando a série chegou ao Brasil, foi exibida e lançada em DVD com o título em inglês mesmo, que provavelmente foi considerado mais chamativo – algo bem típico do nosso país, embora eu não possa dizer que aprovo.

Quem lê um livro e gosta muito costuma ficar contrariado quando assiste à versão audiovisual e constata que muita coisa foi alterada – mas será que faz sentido ter essa reação quando o próprio autor esteve envolvido na produção? Quando as mudanças feitas foram decididas ou, pelo menos, aprovadas por ele? É o que se verifica aqui: Del Toro e Hogan criaram a série, baseada, naturalmente, em seus próprios livros, e assinam a produção executiva; além disso, Del Toro dirigiu o episódio-piloto, verdadeiro longa-metragem com mais de 70 minutos de duração, muito mais que os outros episódios, que têm em torno de 40 minutos cada. Num dos extras encontrados nos DVDs da primeira temporada, ele diz que uma das coisas legais nas alterações feitas é que, dessa forma, a série reserva surpresas até mesmo para quem leu os livros. Eu acrescentaria que, para os autores, essa produção deve ter representado uma oportunidade rara: a de "passar a limpo" uma obra depois de já publicada! Quem escreve fatalmente conhece a experiência e a sensação: você está trabalhando num texto (seja um post para um blog ou uma trilogia de romances, tanto faz) e, depois de muito quebrar a cabeça, por fim consegue lhe dar uma forma final que o deixa satisfeito – naquele momento. Porém, é inevitável que, ao reler o resultado mais tarde, você ache que poderia ter ficado melhor, caso tivesse feito isto ou aquilo de forma diferente. Até onde sei, a história da literatura registra raros casos de livros que tenham sido "mexidos" de forma significativa (ao menos por seus próprios autores) depois de publicados. Hoje em dia, entretanto, novas mídias abrem possibilidades novas, e, graças a isso, Del Toro e Hogan puderam reinventar o que consideraram "reinventável" em sua saga, sem atormentar seus leitores com diferentes versões dos livros.

Nos papéis principais da série estão David Bradley (que interpreta Abraham Setrakian na atualidade, sendo substituído por Jim Watson nas cenas da juventude do personagem), Corey Stoll (Eph Goodweather), Mia Maestro (Nora Martinez), Kevin Durand (Vasiliy Fet), Jonathan Hyde (Eldritch Palmer) e Robin Atkin Downes (o Mestre). E, a meu ver, duas das mais importantes mudanças ocorridas na transição das páginas para a tela são representadas por dois personagens que não fazem parte dessa lista de "principais". Um deles já existia nos livros, embora só aparecesse no segundo volume e tivesse relativamente pouca importância: é Thomas Eichhorst, que comandava o campo de Treblinka quando Setrakian era prisioneiro lá. Convertido em vampiro, Eichhorst continua vivo (se é que ser vampiro é estar vivo) e em plena atividade no século XXI. Na série, o personagem aumentou muito em importância, aparecendo, e bastante, desde o início da primeira temporada. No presente, serve ao Mestre, sendo o contato entre ele e Palmer; no passado, é uma figura-chave durante os flashbacks ambientados nos dias da Segunda Guerra, que, por sinal, foram muito ampliados em relação ao que havia nos livros. Para completar, Eichhorst é magnificamente interpretado por Richard Sammel, que, além de atuar bem, tem até a aparência perfeita para "ser" um oficial nazista.


A outra personagem a que me referi é a hacker Dutch Velders; essa foi criada para a série. Ela começa do lado errado: Palmer a contrata para derrubar os principais servidores de internet da América do Norte, a fim de dificultar as comunicações e reduzir as chances de que se forme alguma resistência organizada contra a propagação da praga vampírica. Dutch, que nada sabe sobre o vírus e seus efeitos, executa a sabotagem acreditando estar "apenas" servindo a alguma trapaça corporativa; quando conhece o grupo de heróis e compreende o que ajudou a fazer, ela muda de lado e torna-se uma aliada valiosa para Setrakian e companhia – além de atrair o interesse de Vasiliy, um sujeito, até então, bem pouco romântico. Dutch é interpretada por Ruta Gedmintas, que, por causa desse nome incomum e de sua beleza exótica, cheguei a pensar que viesse de algum país improvável, mas não: a gata é inglesa (sua personagem também é, apesar do apelido de Dutch, 'Holandesa'), nascida na histórica Canterbury, e já participou de outras produções de destaque, como The Tudors, que, infelizmente, ainda não conheço. A inclusão de Dutch na trama parece atender às rápidas mudanças no mundo da mídia e das comunicações: o primeiro volume da Trilogia foi publicado em 2009, mas começou a ser bolado alguns anos antes, por volta de 2005. Nessa época, a internet já era parte integrante da vida de pessoas e nações, mas as comunicações ainda não eram totalmente dependentes dela, como hoje, de modo que Hogan e Del Toro provavelmente não pensaram que Palmer e o Mestre teriam que fazer algo com a rede para que seu plano funcionasse. Já em 2014, esse seria necessariamente um ponto essencial da coisa toda, e é aí que entra Dutch. São os autores reinventando sua criação, como escrevi acima.

Acho curioso, ainda, assinalar um detalhe sobre Nora. Nos livros, nada é dito sobre sua nacionalidade, mas, como seu nome e biotipo indicam origem hispânica, o leitor é levado a deduzir que ela pode ser mexicana, ou hispano-americana mesmo. Na série, é revelado que ela nasceu na Argentina e lá viveu sua infância, presumivelmente durante os anos 70 e início dos 80, ainda sofrendo os efeitos de uma das mais cruéis ditaduras que a América Latina, infelizmente tão experiente com esse tipo de coisa, já conheceu. Em um ou dois diálogos com Eph, Nora traça breves comparações entre tirania e vampirismo, baseadas no que viu e sentiu em seu país de origem quando era criança. Aí tem o dedo de Del Toro, que, sendo mexicano e admirado mundo afora, está em boa posição para lembrar ao público dos Estados Unidos que o resto do mundo existe e tem seus próprios problemas ― algo que os ianques têm extrema facilidade em esquecer. Além disso, o cara parece considerar questão de honra mostrar a dura realidade da vida de pessoas comuns sob regimes ditatoriais, como deve ter notado quem viu O Labirinto do Fauno.

A Trilogia da Escuridão e The Strain, a série de TV, são algo um pouco diferente das coisas que os fãs de Guillermo del Toro estão acostumados a receber dele, mas não menos fascinante ou empolgante. Ambas as obras misturam com eficiência drama, suspense, terror e ficção científica, e acorrentam o leitor/espectador de forma implacável, levando-o a querer mais e mais, até chegar ao desfecho da coisa toda. Prevejo que quem assistir à primeira temporada da série vai querer ler os livros, nem que seja só por não aguentar esperar mais dois anos pelo final da história. E essa é uma leitura que recomendo com entusiasmo!

segunda-feira, junho 15, 2015

A Companhia Negra

Durante séculos, a tropa mercenária conhecida como a Companhia Negra construiu para si uma sólida reputação que se estendeu por vários reinos. Sua eficiência no campo de batalha e seu empenho em honrar os contratos firmados fizeram-na respeitada e temida. Porém, os melhores tempos da Companhia parecem ter passado. Reduzidos em número e em prestígio, seus remanescentes, atualmente, trabalham para o Síndico (governante) da cidade portuária de Berílio, pouco tendo a fazer além de ajudar a manter a ordem, o que, como na maioria das cidades portuárias, às vezes se torna um problema.

Notícias de guerra chegam de longe. A Dama, uma feiticeira de enorme poder, derrotada em eras passadas, está de volta, ressuscitada graças às artes de alguns de seus seguidores, conhecedores de magia necromântica. Nos tempos antigos, a Dama e seu amante, outro poderoso feiticeiro conhecido como o Dominador, haviam derrotado dez de seus mais fortes inimigos e aprisionado suas almas, obrigando-os a se tornarem seus servos; esses são conhecidos como os Tomados, e a mesma magia que trouxe a Dama de volta à vida os trouxe também – se é que dá para chamar seu estado de "vida". A Dama retoma seu reinado de tirania e sua busca por mais poder; além disso, ela quer impedir que o Dominador desperte também. Opondo-se a ela, há uma força rebelde, encabeçada por um grupo de magos chamado o Círculo, e a guerra está se espalhando como fogo pelo continente.

Inesperadamente, um gigantesco navio de aparência sinistra surge em Berílio, e quem está no comando é ninguém menos que um dos Tomados, que atende pelo nome de Apanhador de Almas. Esse servo da Dama faz uma proposta ao comandante da Companhia Negra (que todos os seus soldados conhecem simplesmente como o "Capitão"; usar o próprio nome parece ser um costume raro na Companhia): quer que se juntem a ele a serviço de sua senhora, indo ajudar a enfrentar os rebeldes. A proposta não pode ser aceita, já que o contrato feito com o Síndico de Berílio ainda está em vigor, mas o empecilho desaparece poucos dias depois, quando o Síndico é morto durante uma revolta – com o detalhe de que não são os revoltosos os responsáveis por sua morte, e sim uma criatura denominada forvalaka, uma espécie de vampiro com características felinas e poderes transmórficos (no folclore do leste europeu, onde a lenda dos vampiros teve origem no nosso mundo, eles eram chamados de vorkolakas; pode não ser coincidência). O forvalaka fora aprisionado, com outros de sua espécie, numa tumba na necrópole de Berílio, séculos atrás, e foi libertado apenas dias antes, quando um raio caído de um céu claro destruiu a placa de pedra onde estava gravado o feitiço de confinamento que o mantinha preso. O comportamento de ir atrás de uma vítima específica – e até mesmo invadir uma fortaleza bem guardada para apanhá-la – em vez de simplesmente procurar por sangue onde fosse mais fácil, também não é exatamente típico. Ou seja, parece ter havido uma conspiração (seja das circunstâncias ou de alguém mais concreto) para permitir, na verdade quase obrigar a Companhia Negra a entrar para o serviço da Dama.

O narrador da história, Chagas, é também um dos personagens mais interessantes. Ele responde, ao mesmo tempo, pelas funções de médico e de cronista da Companhia, responsável pelos registros históricos – tudo isso além de ser um soldado combatente. Mais instruído que a maioria dos outros, Chagas percebe as manipulações que existem por trás de cada lance da guerra, e, embora às vezes seja impossível não se perguntar se está lutando do lado certo, há um ponto sobre o qual ele não tem ilusões: aquilo não é uma luta entre o "bem" e o "mal". A Dama é tirânica, mas os rebeldes tampouco são anjos. Os dois lados cometem crimes. É em meio a tudo isso que ele e seus companheiros terão de tentar sobreviver, fazer jus a seu pagamento, e manter intacta a honra da Companhia Negra.


Talvez o diferencial de Glen Cook em relação a outros autores de fantasia seja o fato de que, embora suas histórias se passem num mundo imaginário, esse mundo não é idealizado ― seus personagens enfrentam uma realidade bem dura. No mundo deles, tal como no nosso, miséria e criminalidade estão quase por toda parte, é arriscado confiar na honra do inimigo (e, não raro, até na dos próprios aliados), e a guerra tem muito pouco de heroísmo, emoção ou glória, sendo composta de uma porcentagem muito maior de medo, brutalidade e sujeira. O autor (nascido em 1944) já foi fuzileiro naval, o que explica sua familiaridade com ambientes militares e, provavelmente, sua popularidade entre o pessoal das forças armadas, tanto nos Estados Unidos quanto nos outros países onde sua obra foi publicada. Ao ser interpelado sobre esse assunto certa vez numa entrevista, Cook disse que seus personagens e algumas situações eram inspirados em pessoas que conheceu e em eventos que testemunhou durante seu serviço militar, o que fazia com que suas narrativas tivessem um tipo de realismo que não é possível em histórias de autores que só possuem conhecimento livresco sobre a vida na caserna. Desconfio, também, que a experiência militar tenha levado Cook a desenvolver um gosto exacerbado por prontidão e praticidade, e que por isso ele não goste de gastar tempo pensando em nomes próprios de sonoridade exótica, o que explicaria o motivo pelo qual, em A Companhia Negra, tanto os personagens quanto os lugares são nomeados com palavras comuns: os personagens são Elmo, Corvo, Caolho, Capitão, Tenente, Lindinha, Manco, Sussurro; as cidades, Berílio, Ferrugem, Geada, Rosas, Celeiros, Lordes, Talismã e por aí vai.

A Companhia Negra, primeiro volume da série de mesmo nome, foi publicado originalmente em 1984, e, portanto, pode ter influenciado os criadores do jogo de computador Myth: the Fallen Lords, lançado treze anos depois – eu senti um clima muito parecido em ambos, talvez por terem em comum o fato de representarem guerras nas quais as tropas tradicionais ainda são essenciais, mas o uso de magias potentes pode fazer a balança pender para um ou outro lado. Tanto o livro quanto o jogo tentam levar para a guerra medieval algo do terror das guerras modernas, introduzindo armas capazes de matar muita gente de uma vez só, sem que faça qualquer diferença a força, a coragem ou a perícia individuais, não mais que o fato de alguém usar as melhores armas e armaduras. Não há lança-chamas ou grandes bombas, mas há magias que causam efeitos semelhantes aos dessas armas, e até piores.

Pessoalmente, não gostei tanto assim de A Companhia Negra: ele vale o tempo que toma, mas não chega a empolgar. O que o autor se propõe a fazer é contar a história de uma guerra, mas, apesar do indiscutível realismo, poucas vezes ao longo do livro temos um vislumbre do que a guerra de fato significa para os seres humanos de carne e osso (e notem que eu não disse que isso não aparece: apenas que aparece pouco). Volta e meia, a narrativa escorrega para uma simples enumeração de batalhas travadas ali e acolá, de cidades conquistadas ou perdidas por cada um dos lados – tudo inventariado de forma banal, sem que o leitor fique sabendo como foram essas batalhas, com exceção da grande batalha final em que o exército rebelde em massa ataca a fortaleza da Dama, essa sim descrita em pormenores. Não por acaso, o que mais cativa em todo o livro é o pequeno punhado de personagens cujas individualidades são um pouco mais exploradas. Homens como Corvo, um indivíduo enigmático, capaz de ser sanguinário ou gentil – ele chega a adotar Lindinha, uma pequena órfã da guerra; Elmo, um sargento veterano, homem ao mesmo tempo corajoso e ponderado; Caolho e Duende, magos de combate da Companhia, que brigam como cão e gato (com direito a confrontos de truques mágicos que resultam em verdadeiros shows para os companheiros), mas, no fundo, são grandes amigos; Calado, também mago de combate, de cujos lábios ninguém jamais ouviu uma palavra; e o próprio Chagas, homem de certa cultura e a memória da Companhia. São eles os responsáveis pela maior parte dos bons momentos.

Enfim, eu tive a sensação de estar diante de um mundo fictício e de um enredo geral que poderiam render histórias grandiosas, mas, pelo menos neste primeiro livro, na minha opinião, isso não chegou a acontecer. Pode ser que os volumes seguintes sejam mais empolgantes; se tiver oportunidade de ler, direi o que achei.

quinta-feira, maio 28, 2015

Escuridão Total Sem Estrelas

Um novo livro de um autor importante sendo lançado é sempre um acontecimento empolgante para seus fãs, mesmo os que não encaram madrugadas em filas diante de livrarias para conseguir estar entre os primeiros a comprá-lo – pessoalmente, nunca consegui ser "xiita" desse jeito em relação a nada. Porém, não deixo de entender os camaradas que fazem isso: no meu caso, topei com Escuridão Total Sem Estrelas na vitrine da Livraria Digital durante uma passada pelo shopping Bourbon de Novo Hamburgo, e tive que comprá-lo na mesma hora. Ainda ia a outros lugares, seria bem mais prático se não estivesse carregando nada, e o livro certamente não iria fugir se eu deixasse para comprá-lo na semana seguinte, mas, mesmo assim, comprei, e logo comecei a lê-lo, o que implicou em deixar outros livros na fila por mais um tempo. Mas não muito tempo, pois "devorei" minha nova aquisição em questão de poucos dias.

A primeira coisa que chama atenção em Escuridão Total Sem Estrelas, antes mesmo de o abrirmos, é a bem bolada apresentação editorial: a Suma de Letras, atualmente responsável pela publicação de Stephen King no Brasil, fez um trabalho caprichado, aproveitando a sugestão do título. A capa é preta, com letras igualmente pretas, que só são legíveis por terem acabamento fosco, contrastando com a textura lustrosa do fundo, e até as bordas das páginas são pretas!... Só a lombada e a contracapa trazem letras brancas, imagino que porque o recurso da textura só tenha um resultado legível se a fonte for grande.

A publicação original de Escuridão Total Sem Estrelas é de 2010, e talvez o hiato de cinco anos explique o motivo do pouco estardalhaço em torno do lançamento nacional: a essa altura do campeonato, os fãs mais ansiosos já o leram em edições importadas, ou na internet mesmo. Para os que ainda não leram, entretanto, a espera valeu a pena, pois o livro oferece tudo o que estamos acostumados a esperar de King, ainda que seja um exagero colocá-lo entre as melhores coisas que o cara já escreveu. Trata-se de quatro histórias que exploram diferentes esferas da costumeira área de atuação do autor, variando do tradicional conto de terror sobrenatural ao suspense psicológico, por vezes com leves pinceladas de ficção policial.

A primeira e mais longa história intitula-se 1922, citando o ano em que os eventos a serem narrados teriam transcorrido. Os protagonistas são Wilfred James, um plantador de milho do Nebraska, e sua família: a esposa, Arlette, e o filho adolescente, Henry. (Talvez não esteja fora de propósito lembrar que também é no Nebraska que se desenrola o conto As Crianças do Milharal, que vocês podem ler na coletânea Sombras da Noite; trata-se de um dos estados mais rurais dos EUA, famoso justamente por seus vastos milharais.) Dá para perceber que Arlette sempre teve um gênio ruim e que provavelmente sempre desejou viver na cidade, enquanto Wilfred e o filho são homens do campo por excelência, mas o conflito de verdade tem início quando ela herda as terras do pai, vizinhas às do marido, e decide vendê-las, o que lhe proporcionaria dinheiro suficiente para começar a vida em outro lugar. Ocorre que o comprador em potencial é uma empresa que pretende instalar ali um matadouro de porcos, o que irá poluir o riacho local e obrigar os vizinhos a conviverem com mau cheiro e dejetos. A solução apresentada por Arlette é muito simples: Wilfred pode vender suas terras também, e a família toda se mudaria para a cidade – só que o fazendeiro prefere morrer a fazer isso. Segundo ele, "cidade é lugar para idiotas", e o filho concorda totalmente. A questão chega a um impasse, até que Wilfred, já em desespero, começa a ter pensamentos nefastos: e se Arlette "desaparecesse"? A ideia de que, depois de sete anos desaparecida, ela seria considerada oficialmente morta e suas terras passariam a ser dele, só surge de maneira periférica na cabeça do fazendeiro, que é o narrador da história: fica claro que o crime que ele pensa em cometer não é motivado pela cobiça, e sim pelo apego ao único modo de vida que conhece, e pelo pânico que lhe causa a ideia de uma mudança. E isso apesar de Wilfred não ser o camponês bronco que vocês talvez estejam imaginando: a maior parte do tempo livre que os afazeres agrícolas lhe deixam é preenchida por leituras, e, refletindo esse hábito, sua narrativa é salpicada de citações literárias. Embora seja uma boa história, 1922, em minha opinião, estende-se além do necessário, ocupando, só ela, mais de um terço do livro, e não traz elementos sobrenaturais, a não ser que queiramos interpretar assim certas passagens macabras que também podem ser entendidas como alucinações da mente de Wilfred, atormentado pela culpa – é provável que suscitar essa dúvida no leitor fizesse parte dos planos do autor.

Na sequência, temos Gigante do Volante. A personagem principal é Tess, uma escritora que alcançou um relativo sucesso com seus romances policiais light sobre um grupo de velhinhas cujos passatempos preferidos são tricô e desvendar assassinatos (o paralelo com Miss Marple, a famosa personagem de Agatha Christie, é tão óbvio que o autor prefere citar explicitamente a semelhança, talvez para que ninguém o acuse de plágio – o que parece já ter acontecido com Tess). A escritora, entretanto, não está na mesma faixa etária de suas personagens: tem 30 e poucos anos e, além do que lhe rendem os direitos autorais de seus livros, costuma ganhar uns extras fazendo palestras em livrarias, bibliotecas e eventos. É em sua viagem de volta de uma dessas palestras que ela sofre a experiência que irá marcá-la pelo resto da vida. Ao pegar um atalho sugerido pela simpática bibliotecária que organizou a palestra, um dos pneus de seu carro é estourado por pedaços de madeira com pregos que alguém deixou cair (jogou?) na estrada. Quem aparece para oferecer ajuda é um enorme e prestativo motorista – que, em vez de trocar-lhe o pneu, acaba estuprando-a, e depois, julgando-a morta, descarta-a num lugar ermo onde jazem os restos de, no mínimo, duas outras mulheres. Ela decide não ir à polícia, mas tomar o assunto nas próprias mãos, vingar a si mesma e às vítimas que a precederam, além de poupar outras mulheres de passar pelo mesmo. Porém, essa busca por vingança acaba trazendo à tona um lado da escritora que ela até então não conhecia, e que não a faz se sentir mais tranquila consigo mesma. Também aqui não há nada sobrenatural: o horror nestas páginas é de outro tipo, e King demonstra dominá-lo igualmente bem. Como frequentemente se diz, é impossível a um homem compreender ou imaginar como fica a cabeça de uma mulher que foi estuprada, mas o autor, sem dúvida, se esforçou: deve ter lido vários depoimentos e artigos de psicologia para compor a personagem. O resultado é, no mínimo, perturbador.

O terceiro conto (enfim!) traz ao livro a presença do "estranho, bizarro e inesperado", como diria Jack Palance. Extensão Justa é a história de um homem chamado Dave Streeter, que, diagnosticado com um câncer terminal, sabe que só lhe restam alguns meses de vida, e que esse curto intervalo de tempo será muito desagradável, isso para falar eufemisticamente. Então, aparentemente por acaso, ele conhece um estranho negociante que se apresenta como Sr. Odabi (o autor dá a dica de que isso é um anagrama, e o significado das letras depois de reordenadas fica óbvio quando se toma conhecimento da natureza do negócio que ele tem a oferecer). Odabi explica que vende "extensões" – qualquer tipo de extensão de que a pessoa necessite: extensões de amor para apaixonados, extensões de crédito para os que enfrentam problemas financeiros, e até mesmo extensões de "pinto" para os insatisfeitos com seu "equipamento de fábrica". Para alguém na situação de Streeter, ele declara estar em condições de oferecer uma extensão de vida a preço módico; porém, além do preço acertado, há outro ponto a considerar. Segundo Odabi, "até mesmo coisas que não existem possuem peso. Peso negativo, que é o pior tipo". Sendo assim, o peso a ser removido dos ombros de Streeter precisa ir para algum lugar – falando sem rodeios, precisa ser transferido para alguém, e é o próprio Streeter quem precisa decidir quem será, precisa dar um nome, apontar uma pessoa específica, pois, também de acordo com Odabi, "essa história de sacrifício anônimo já foi testada e não funciona". (Se isso fez alguém lembrar do clássico conto A Caixa, de Richard Matheson, não é mera coincidência; pelo menos, não creio que seja.) Extensão Justa é o conto mais curto, o melhor e, ouso dizer, o mais "Stephen King" do livro. Deixo para cada leitor julgar se isso tem ou não a ver com o fato de ser também o único a apresentar elementos sobrenaturais.

Fechando o quarteto de histórias, Um Bom Casamento é um suspense psicológico sobre a impossibilidade de se conhecer completamente uma pessoa. Darcy Anderson é uma mulher de meia-idade, com um casamento feliz que já dura 27 anos, dois filhos adultos, e uma vida tranquila e normal, qualquer que seja o prisma por onde se olhe. Seu marido, Bob, é contador (conseguem imaginar profissão mais "normal" que essa?) e parece ser o sujeito mais centrado do mundo: bom marido, bom pai, organizado e metódico em tudo o que faz, talvez até um pouco demais. Para Darcy, ela e sua família habitam um universo confortável, previsível e à prova de abalos… Até ela descobrir, por puro acaso, um nicho oculto num canto da garagem de sua casa, onde Bob evidentemente pretendia que ela não o encontrasse. Nesse esconderijo estão os documentos pessoais de uma mulher que Darcy não conhece, mas cujo nome não lhe é estranho, e ela logo lembra por que: ouviu o nome nos telejornais. Aquela mulher foi a mais recente vítima de um misterioso serial killer conhecido como "Beadie". A horrenda conclusão que se impõe com esse achado estilhaça num único instante todas as certezas que Darcy acreditava ter, além de confrontá-la com a decisão mais dura de sua vida: o que seria pior? Denunciar o pai de seus filhos e vê-lo ser condenado à prisão perpétua? Ou continuar dormindo ao lado de um monstro, fingindo não saber de nada e deixando-o livre para seguir matando? Contar mais que isso seria dar spoiler, mas acho engraçado (ou assustador, depende do ponto de vista) mencionar a parte em que, logo após ter feito sua descoberta, Darcy fala ao telefone com o marido, que está numa viagem de trabalho. Embora ela se esforce por aparentar normalidade, Bob facilmente percebe que algo está errado, e com a mesma facilidade deduz – corretamente – do que se trata, apressando, então, seu retorno, a fim de que os dois possam ter a "conversa franca" que a situação exige. Uma inflexão diferente na voz da esposa, uma mínima alteração no padrão das pausas em relação ao costumeiro, um ligeiro gaguejar aqui e ali, e pronto: Bob já sabe o que precisa saber, e é mais do que provável que, se os papéis estivessem trocados, Darcy também soubesse. Isso apenas mostra o quanto duas pessoas se conhecem depois de tanto tempo vivendo juntas – e a questão aqui é: elas podem se conhecer muito, mas não completamente. Nunca completamente.

Quem já leu bastante Stephen King aprendeu a reconhecer a diferença entre o autor em sua melhor forma e quando ele está apenas "dentro do esperado". Pessoalmente, nunca o vi ficar abaixo disso, e, mesmo em seus momentos menos inspirados, qualquer coisa escrita por ele é garantia de, no mínimo, fazer valer o tempo e o dinheiro investidos pelo leitor. Escuridão Total Sem Estrelas não pode em hipótese alguma ser colocado no mesmo patamar de clássicos como Christine ou O Iluminado, mas, apesar da variabilidade no nível das histórias, fica, tirando uma média, pelo menos alguns degraus acima das coisas mais fraquinhas já produzidas pelo cara ao longo de sua extensa e prolífica carreira.

terça-feira, abril 28, 2015

O Rei de Amarelo

Muito tempo atrás, escrevi pela primeira vez aqui no blog uma referência ao famoso ensaio de H. P. Lovecraft, O Horror Sobrenatural na Literatura (foi neste post, para ser exato), observando que era uma leitura curiosa, mas, no cômputo final, um tanto frustante, pois Lovecraft comenta, literalmente, dezenas de autores e obras que despertam interesse em qualquer fã do gênero, sendo que, no caso da grande maioria, é remota a possibilidade de que nós, brasileiros, venhamos algum dia a ter acesso a esse material (na verdade, a maior parte dessas obras, hoje, deve ser rara até em seus países de origem). Ao longo dos anos, mencionei o ensaio outras vezes, geralmente quando, contra as expectativas, conseguia ler algum dos livros ou contos nele comentados. O Rei de Amarelo, de Robert W. Chambers, é mais um deles, mas possui certas características que são únicas… E, devo dizer, curiosíssimas.

O comentário de Lovecraft sobre O Rei de Amarelo é elogioso, mas breve e sem maior aprofundamento. O próprio Lovecraft ficaria surpreso se soubesse que, depois de sua morte, a obra de Chambers passaria a ser frequentemente citada em conexão com a sua. Isso foi graças a um de seus amigos escritores, August Derleth (1909‑1971), que decidiu assumir o encargo de organizar e sistematizar as informações dispersas sobre os Mitos de Cthulhu, e, entre outras coisas, criou uma ponte entre eles e a assim chamada "Mitologia Amarela" de Chambers. A validade disso é até hoje objeto de discussão entre os fãs de ambos os autores, mas sobretudo entre os de Lovecraft, muitos dos quais acham essa ligação arbitrária e forçada. Só há um único conto de Lovecraft que realmente faz referência a elementos do universo de Chambers, e a intenção pode ter sido a de uma simples homenagem. É verdade, entretanto, que muitas passagens dos contos de Chambers evocam um tipo de horror que quem está acostumado a ler Lovecraft irá reconhecer.

Pode-se dizer que a força de O Rei de Amarelo não está tanto naquilo que ele diz, e sim no que deixa de dizer. O livro "real", o que podemos ler, tem o mesmo título de uma outra obra que só existe em seu universo de ficção. O "outro" O Rei de Amarelo é uma peça de teatro, mencionada em vários dos contos de Chambers como sendo, ao mesmo tempo, uma obra aclamada e maldita. Ao contrário do Necronomicon de H. P. Lovecraft, livro raro e secreto, no qual apenas poucos estudiosos do oculto já tiveram oportunidade de pôr as mãos, O Rei de Amarelo de Chambers é facilmente encontrado em livrarias em seu mundo fictício, e saudado pela crítica como uma obra que atingiu o mais alto nível de excelência artística – mas seu conteúdo é tão perturbador, que leva à loucura quem ousar lê-lo. Seu autor nunca é nomeado, e, quanto a enredo e personagens, só há informações vagas. O que vemos descrito, isso sim, são seus efeitos sobre as mentes de algumas pessoas.

O Rei de Amarelo "real" é principalmente um volume de contos – digo "principalmente" porque ele contém nove contos e também O Paraíso do Profeta, que é uma coisa difícil de definir, uma coleção de pequenos "poemas em prosa", cujo real significado provavelmente só o autor conhecia. Dos nove contos, os quatro primeiros estão em conexão com a peça O Rei de Amarelo; são os que apresentam maior teor de elementos fantásticos, e, em minha opinião, formam a melhor parte do livro. 

A primeira história, intitulada O Reparador de Reputações, é uma coisa muito bizarra à primeira vista… Não que se torne menos bizarra em seu desenrolar, mas, aos poucos, vamos percebendo que talvez nem tudo o que é narrado mereça credibilidade, já que o protagonista/narrador, Hildred Castaigne, apesar de julgar-se muito são (o louco nunca se acha louco), tem as faculdades mentais seriamente comprometidas, o que se deve, ao menos em parte, à leitura de O Rei de Amarelo. Basta dizer que o personagem nutre a esdrúxula ambição de ser coroado "imperador" dos Estados Unidos, título ao qual acredita de todo o coração ter direito – mas, para isso (pensa ele), terá que tirar do caminho outro "herdeiro" em potencial, seu primo Louis, este um jovem oficial militar e homem totalmente comum. Os delírios monárquicos de Hildred não são apenas acalentados por ele, mas alimentados por um personagem bizarro, um certo Sr. Wilde (uma homenagem a Oscar Wilde?), que vem a ser o reparador de reputações do título. Não fica claro se Wilde é simplesmente tão doido quanto Hildred, ou se tem seus próprios motivos misteriosos para incentivar a loucura do rapaz. A história passa-se em 1920 (pelo menos, é a data que Hildred fornece), sendo, portanto, um exercício de futurologia, já que o livro foi publicado em 1895. Nela, os Estados Unidos saíram recentemente vitoriosos de uma guerra contra a Alemanha (!), e, talvez em decorrência disso, são agora uma sociedade fortemente militarista. Embora o protagonista ache que o país vive tempos prósperos e gloriosos, parece haver muita gente descontente. O dia em que Hildred inicia sua narrativa é também o da inauguração da primeira Câmara Letal na cidade de Nova York, uma medida adotada pelo governo para ajudar os numerosos candidatos a suicida a encontrarem seu fim de forma "ordeira" e "limpa".

Antes de tornar-se conhecido como escritor, Robert W. Chambers já havia construído certa fama como desenhista e pintor, tendo contribuído com ilustrações para diversos jornais e revistas conhecidas da época. Sua educação nas artes visuais teve lugar em Paris, onde estudou de 1886 a 1893, morando no famoso Quartier Latin, o bairro boêmio, de estudantes e artistas, que teria um papel relevante em muitas de suas histórias. Fica evidente o quanto esse período de sua vida foi marcante para o autor: muitos de seus personagens são justamente jovens americanos, artistas ou estudantes de arte, que moram no Quartier Latin. O segundo conto de O Rei de Amarelo, A Máscara, é o primeiro a fazer uso dessa ambientação. É um texto dolorosamente lindo, cujo mote parece algo sugerido por um sonho. Boris e Alec, jovens estudantes americanos, moram no Quartier Latin e são amigos inseparáveis; Alec, pintor, é o narrador da história. Seu amigo Boris, escultor, de forma não explicitada, descobriu uma espantosa fórmula alquímica que transforma os seres vivos que nela são mergulhados em uma bela pedra semelhante ao mármore. Flores, pequenos peixes e um coelho servem de cobaias para essa curiosa experiência, e todos se convertem em maravilhosas "esculturas" ― mas, é claro, Boris está brincando com algo que não compreende, o que não pode terminar bem. Para tornar a trama mais complexa e mais humana, existe a paixão platônica que Alec nutre por Geneviève, a companheira de Boris. É um conto mais sereno, que cai bem depois da agitação febril que caracteriza O Reparador de Reputações, e sua força dramática é inegável.


(É curioso lembrar que, quando Hildred Castaigne descreve o prédio da Câmara Letal em O Reparador de Reputações, ele menciona que sua fachada é ornada por um conjunto de esculturas representando as Parcas, entidades da mitologia grega que controlavam a duração da vida dos mortais; as estátuas são "obra de um jovem escultor americano, Boris Yvain, que morrera em Paris com apenas 23 anos". Em A Máscara, ao entrarmos no estúdio de Boris, podemos ver lá as Parcas, ainda inacabadas. Esse é o primeiro de vários exemplos de como Chambers gostava de entrelaçar suas histórias, sugerindo que todas tinham lugar num mesmo universo.)

Na sequência, temos No Pátio do Dragão, cujo protagonista, ainda abalado pela leitura de O Rei de Amarelo, busca o conforto e a estabilidade oferecidos pela religião – mas, dentro da própria igreja onde assiste à missa, descobre-se sendo observado por um organista de aparência estranha e olhar maligno. Saindo da igreja, o personagem tenta voltar para a segurança de seu apartamento, que fica no "Pátio do Dragão", assim chamado por localizar-se na Rue du Dragon (tanto o pátio quanto a rua existiam mesmo), mas o organista macabro o persegue (ou seria tudo coisa de sua mente perturbada?). Há sugestões veladas de que esse organista é, na verdade, um ente demoníaco. Acredito, ainda, que o autor tenha-se aproveitado do curioso nome do logradouro para dar um duplo sentido ao título do conto, que, no original, era In the Court of the Dragon: court pode significar tanto pátio quanto corte, e o dragão é um dos símbolos usados na Bíblia para representar o diabo. "Na corte do diabo", então? Sinistro…

O último conto da primeira parte, e também o último a mencionar explicitamente a peça O Rei de Amarelo, é O Emblema Amarelo, considerado por muitos críticos como a história de Chambers com maior carga de elementos sobrenaturais. Novamente, o protagonista é um artista americano vivendo em Paris, um pintor que é chamado apenas de "Sr. Scott", e que pode, ou não, ser Jack Scott, que aparecia como coadjuvante em A Máscara (de novo, eis o entrelaçamento). Da janela de seu estúdio, Scott consegue avistar uma igreja próxima, com seu pequeno cemitério ao lado… E o guarda do cemitério é um sujeito anormalmente pálido e de olhar mortiço, cuja cara branca e balofa lembra ao pintor um verme de sepultura (provavelmente, não é coincidência que a descrição do guarda do cemitério lembre a do organista de No Pátio do Dragão). O repulsivo personagem começa a aparecer recorrentemente nos pesadelos de Scott, perguntando-lhe com insistência a respeito de um tal "Emblema Amarelo", que parece simbolizar algum mal antigo e inimaginável (Hum… Pensando bem, a conexão com Lovecraft não é tão absurda), ligado de alguma forma a O Rei de Amarelo, livro que Scott, até então, evitara a todo custo. Até então.

De acordo com a introdução de Carlos Orsi, os quatro contos de que acabo de falar formam a primeira parte de O Rei de Amarelo, e, como foi dito, apresentam elementos fantásticos. À guisa de transição para a segunda parte, de cunho mais realista, há dois textos "soltos", que não se enquadram em nenhum dos dois conjuntos. Um deles é O Paraíso do Profeta, que já descrevi, e o outro, o belo A Demoiselle d'Ys. Neste, o jovem protagonista americano está caçando sozinho nas charnecas do norte da França quando se perde, e, em meio à natureza selvagem, é salvo e acolhido por uma linda mocinha que se dedica à arte medieval da falcoaria. Aliás, tudo parece medieval nesse mundo isolado onde o jovem entrou, mas, apesar da estranheza geral, ele não pensa muito a respeito, pois sua atenção está toda voltada para sua bela anfitriã – mas surpresas o aguardam (e ao leitor) antes do fim da história. É um conto encantador sobre amor, nostalgia, e sobre a fragilidade da "realidade".

Talvez não seja mesmo por acaso que A Demoiselle d'Ys esteja onde está: um lembrete de que a realidade pode não ser tão certa nem tão sólida quanto achamos que ela é, vem a calhar antes de entrarmos na parte "realista" do livro. Essa parte também é conhecida como o "Quarteto das Ruas", porque consta das histórias A Rua dos Quatro Ventos, A Rua da Primeira Bomba, A Rua de Nossa Senhora dos Campos, e Rue Barrée. Também aqui, Chambers faz de sua juventude em Paris a fonte de inspiração mais frequente, mas, embora devesse ser uma coisa extraordinária estudar arte em uma das cidades mais bonitas e de vida cultural mais intensa do mundo, os contos não têm a mesma força sem o toque sobrenatural da primeira parte. O destaque, creio, fica com A Rua da Primeira Bomba, que descreve as durezas do cerco de Paris durante a Guerra Franco-Prussiana: o horror da escassez de alimentos ganha um eficiente símbolo na figura de um personagem em especial, um menino de espírito empreendedor que se especializa em ficar de tocaia junto aos bueiros, para matar os ratos e vendê-los aos cidadãos esfomeados. Chambers (para sua sorte!) não testemunhou esses eventos, já que o cerco teve lugar durante o inverno de 1870-71, anos antes de sua chegada a Paris, mas, sem dúvida, ouviu muitas histórias a respeito.

Os outros três contos da segunda parte tratam de aspectos do cotidiano dos moradores do Quartier Latin, embora com enfoques diferentes: A Rua dos Quatro Ventos tem um clima melancólico e fala sobre solidão, enquanto A Rua de Nossa Senhora dos Campos e Rue Barrée são simples histórias juvenis sobre paixões e descobertas. Com um detalhe revelador: uma das questões centrais dessas histórias é o choque entre os costumes liberais (dissolutos talvez fique mais próximo da realidade) dos estudantes veteranos, já plenamente adaptados ao estilo de vida parisiense, e a visão de mundo inocente, até simplória, de um jovem recém-chegado, ainda com as marcas de uma educação tradicional em alguma cidadezinha do interior dos Estados Unidos. Robert W. Chambers talvez estivesse retratando a si próprio em personagens como o veterano Foxhall Clifford, que aparece nas duas últimas histórias e, ao olhar para os calouros Hastings e Selby, parece sentir um misto de pena de sua ingenuidade e inveja de sua pureza.

Em tempo: essas duas últimas histórias de O Rei de Amarelo prefiguram o rumo que a carreira literária de Chambers tomaria a seguir – ele se rendeu às pressões do mercado e passou a dedicar-se ao tipo de literatura que vendia, o que, na época, significava romance-para-moças, gênero com o qual acabou ficando rico. H. P. Lovecraft nunca o perdoou por isso, e, em O Horror Sobrenatural na Literatura, lamenta pelos bons trabalhos de terror que Chambers nunca produziu.

Como observação final, quero registrar que achei muito boa a edição da Intrínseca. Só há uma coisa que eu teria feito diferente: as notas. Se ter as notas no final do livro já é pouco prático, imaginem no final de cada conto!… O resultado é uma constante, incômoda e desnecessária interrupção no fluxo da leitura, o que poderia ser evitado mediante o simples expediente de colocar as notas no rodapé das páginas.

sexta-feira, março 13, 2015

Total War Rome - Destruição de Cartago

– (...) O que você faria depois de eles se renderem?
– Não cometeria o erro cometido em Cartago sessenta anos atrás. Eu arrasaria Numância completamente. Dividiria seu território igualmente entre cada oppidum ao redor, para fazer amizade com aqueles que antes foram nossos inimigos. Pelo mesmo motivo, levaria os filhos dos guerreiros sobreviventes a Roma, não para humilhá-los, mas para exibi-los em minhas procissões triunfais como os adversários nobres e dignos que são. E os educaria como oficiais romanos, como Gulussa e Hipólita, e os colocaria encarregados de uma força celtibera auxiliar para lutar por Roma enquanto avançamos ao norte pelas montanhas em território gaulês, que é para onde eu iria depois de conquistá-los. O legado do cerco de Numância não seria o triunfo vazio de um inimigo tão derrotado que jamais poderia se reerguer, mas a celebração de um inimigo transformado em um combatente por Roma.

*          *          *

A série de romances Total War: Rome é uma iniciativa louvável. A partir do sucesso do game de estratégia de mesmo nome, esses livros surgem como uma oportunidade valiosa para suscitar em alguns jovens o interesse pela História em geral, e pela Antiguidade em particular. Tudo bem, não em muitos: basta uma rápida espiada em qualquer fórum de games do gênero na internet para constatar que a grande maioria dos gamers (claro que com honrosas exceções) é formada por pessoas comuns, pouquíssimo intelectualizadas (muitas mal sabem escrever) e sem o menor interesse em saber o que foi que inspirou a criação do jogo com o qual se divertem. Mas vamos ser francos: um único adolescente do século XXI que venha a se fascinar com a vida e as realizações de romanos ou gregos já pode ser considerado uma façanha, e um serviço prestado ao mundo moderno. O lucro que os criadores do jogo e dos romances tiverem obtido ou venham a obter no processo, pode ser considerado uma recompensa merecida.

Destruição de Cartago é o primeiro volume da série, e, como o título indica, trata da Terceira e última Guerra Púnica, que durou de 149 a 146 a.C., e ao final da qual Roma, por fim, aniquilou o mais perigoso e persistente inimigo que já enfrentara até então. Cartago, cidade de origem fenícia situada no norte da África, em território da atual Tunísia, dominou durante séculos as rotas comerciais no Mediterrâneo, acumulando com isso enorme riqueza e poder, tornando-se a maior potência da época – o que fatalmente a colocaria numa posição de rivalidade em relação a Roma, quando esta última começou a tentar expandir seu poder e influência para além da Península Itálica.

A história narrada em Destruição de Cartago é a de Cipião, o Jovem, cujo nome completo era Públio Cornélio Cipião Emiliano, neto por adoção de Públio Cornélio Cipião, conhecido como Cipião, o Africano, um dos mais celebrados generais romanos, sempre lembrado por ter derrotado o temido Aníbal na batalha de Zama, em 202 a.C., o que deu a vitória a Roma na Segunda Guerra Púnica. Justamente por sentir que Cartago jamais deixaria de ser uma ameaça às ambições e possivelmente à própria existência de Roma, Cipião, o Africano, pretendia destruir totalmente a cidade, mas não teve autorização do Senado romano para isso. Cartago, derrotada, foi gradualmente reconstruindo suas forças ao longo das décadas seguintes, e, em meados do século II a.C., havia-se tornado mais rica que nunca, apesar de haver perdido suas colônias na Espanha, na Sicília e em grande parte do norte da África, tomadas por Roma durante a guerra. A origem da riqueza de Cartago era o comércio marítimo: fiéis a suas raízes fenícias, os cartagineses eram hábeis marinheiros e ainda melhores como negociantes, capazes de encontrar oportunidades para obter lucro em praticamente qualquer situação. Compravam e vendiam qualquer coisa: vinho, azeite, minérios, cereais, tecidos, armas, gado, escravos.

Em Roma, por essa época, existiam partidos anti e pró-Cartago, e não é difícil imaginar que, em Cartago, também houvesse vozes anti e pró-Roma; é claro que, independentemente da política, havia comércio entre as duas cidades, e lobbies influentes que não queriam que os lucros que vinham daí cessassem. Por outro lado, havia muitos – tanto romanos quanto cartagineses – que não viam possibilidade de convivência pacífica entre ambas a longo prazo: o Mediterrâneo simplesmente não era grande o bastante para isso. No Senado de Roma, a voz mais forte a favor da guerra total era a de Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), que passaria à História como Catão, o Censor. Veterano da Segunda Guerra Púnica, ele defendia a aniquilação completa do inimigo; não viveu o suficiente para ver seu desejo realizado, mas o bordão que criou, e que sempre pontuava seus enérgicos discursos no Senado, tornou-se uma palavra de ordem que continuaria a guiar os romanos na guerra, mesmo depois de sua morte: Carthago delenda est ('Cartago deve ser destruída').

É importante saber que Cipião, o Jovem, foi adotado não porque fosse órfão; entre os romanos, era considerado da máxima importância que nenhum homem morresse sem deixar ao menos um descendente masculino, pois as linhagens se perpetuavam somente pelo lado paterno, e evitar-lhes a extinção era uma preocupação constante de todos, por razões primeiro religiosas, e, mais tarde, também legais. Sendo assim, a lei e os costumes ofereciam essa alternativa: se um pai tivesse vários filhos homens, ele poderia, a seu critério, permitir que um deles fosse adotado por um amigo ou parente que não tivesse nenhum, e essa adoção podia ocorrer já na idade adulta, sem qualquer problema. Desnecessário dizer que não se devia adotar qualquer um: com esse gesto, você estava escolhendo quem herdaria todos os seus bens, e, muito mais importante que isso, a história e as glórias da sua família, bem como a responsabilidade, que nunca era leve, de continuar essa história com honra.

(Por uma questão de comodidade, daqui por diante, ao dizer "Cipião", estarei me referindo ao Jovem; quando quiser falar de seu avô adotivo, direi "Cipião Africano". É verdade que, depois de sua vitória sobre Cartago, Cipião também ganhou o direito de ser chamado Africano, o que aumenta ainda mais a confusão, mas o fato é que a nomenclatura usada pelos romanos exige, muitas vezes, que se estabeleçam convenções desse tipo, pois é muita gente com o mesmo nome ou com nomes parecidos.)

O pai natural de Cipião era o general Lúcio Emílio Paulo, que, já tendo dois outros filhos mais velhos, permitiu a seu amigo Públio Cornélio Cipião – filho de Cipião Africano – adotar o terceiro, que, a partir daí, passou a ter o mesmo nome que o pai e o avô adotivos, acrescido do Emiliano ao final, que servia para distingui-lo de ambos, além de lembrar que nascera da gens dos Emílios. Lúcio Emílio Paulo conduziu o exército romano à vitória na batalha de Pidna, em 168 a.C., que determinou a rendição da Macedônia e sua transformação em província romana. Aos olhos do mundo da época, essa vitória estabeleceu definitivamente Roma como uma potência, tendo o significado simbólico de extinguir de vez o que ainda restava do poder macedônico forjado por Filipe II e expandido por seu filho Alexandre, quase dois séculos antes. E foi em Pidna, segundo o autor David Gibbins, que o jovem Cipião, então com 17 anos, teve seu batismo de sangue, ao lado de seu fiel amigo Fábio Petrônio Segundo, da mesma idade e, também ele, filho de um veterano de Zama. Fábio é um personagem fictício, sob cujo ponto de vista o autor enfoca a maior parte dos acontecimentos ao longo do livro. Embora de origem humilde, sua bravura e a lealdade incondicional ao amigo de alta estirpe o levam a ascender na carreira militar, de modo que, por ocasião da batalha final contra Cartago, já ocupa o posto de primipilo (em latim, primipilus, 'primeira lança'), o centurião de mais alta patente numa coorte – o mais alto posto acessível a um homem que não fosse de nascimento ilustre no exército romano, até aquela época.

Por falar nisso, o livro está cheio de informações empolgantes para apaixonados por história militar (sei que são poucos, mas eu sou um deles e o blog é meu! – risos). Na época, as legiões ainda não eram o exército profissional que se tornariam mais tarde (a reforma de Mário ainda não havia acontecido): os cidadãos eram recrutados para uma campanha específica, conforme a necessidade, e, uma vez concluída esta, davam baixa, retornavam à vida civil, havendo a possibilidade de virem a ser convocados novamente. Porém, algumas coisas a respeito do exército romano já eram como continuariam a ser: disciplina e lealdade já eram as virtudes mais valorizadas. Um bom legionário não discutia uma ordem, e tinha muito mais medo de seu comandante que de qualquer inimigo, por boas razões: para eles, fugir do inimigo numa batalha era um péssimo negócio, pois significava apenas trocar uma morte que todos considerariam honrosa por outra que cobriria de vergonha o nome de sua família – que era, provavelmente, a coisa que um romano tradicional mais prezava na vida. Desertores não recebiam piedade alguma, e ainda deviam considerar-se afortunados quando a urgência dos tempos de guerra lhes garantia uma execução rápida, com um golpe de espada na nuca; sempre que havia tempo e viabilidade, a preferência era por transformar desertores em exemplos, submetendo-os a mortes mais dolorosas e humilhantes, como o fustuarium (o condenado era abatido a porretadas pelos próprios companheiros) ou até mesmo o damnatio ad bestias, a clássica – e aterradora – execução por feras famintas, que, além da execução em si, era também uma "curiosidade" a ser apresentada à população por ocasião de grandes eventos públicos (isso aparece no livro).


Destruição de Cartago aborda um problema com o qual Roma debateu-se durante gerações, como já sabe quem leu meus comentários sobre a série O Imperador, de Conn Iggulden: suas conquistas territoriais, seu poder militar e sua influência no cenário geopolítico da época haviam feito dela um império em tudo, exceto no nome – e na forma de administração e governo. Esse império continuava tentando reger-se como se fosse uma cidade-estado, e qualquer tentativa de inovação esbarrava no tradicionalismo empedernido que sempre foi uma característica do pensamento romano, pois os membros do Senado, em sua maioria, acreditavam sinceramente que o que havia funcionado para seus pais e avós, continuaria funcionando para seus filhos e netos. Para nós, hoje, parece natural aceitar o fato de que o mundo está sempre em transformação, mas, naquele tempo, isso não entrava na cabeça da maioria das pessoas – muitas vezes, nem mesmo das mais instruídas.

O escritor norte-americano James Freeman Clarke dizia que o político pensa na próxima eleição, e o estadista, na próxima geração. Infelizmente, não é de hoje que os "políticos" são muito mais comuns que os estadistas. Na Roma republicana, os governantes supremos eram dois cônsules, eleitos para mandatos de apenas um ano, o que causava certos problemas. Muitos cônsules não se interessavam em começar obras públicas que, embora de grande proveito para a cidade, não poderiam ser concluídas ainda em seu governo, simplesmente porque quem colheria as glórias seria quem calhasse de estar exercendo o consulado quando a obra fosse inaugurada. Pior: havia os que queriam a todo custo marcar seu ano de consulado com um triunfo, e, para conseguir isso, ordenavam ações militares em situações que poderiam ser resolvidas de forma diplomática, desperdiçando uma enormidade de recursos e de vidas. A propósito: hoje em dia, "triunfo" é geralmente entendido como um simples sinônimo de vitória, mas aqui, a palavra é usada com seu significado original; quem não souber o que era um triunfo romano pode descobrir clicando aqui.

O exército também sofria por outro motivo. Havia uma coisa chamada cursus honorum (latim para 'caminho da honra'), que vinha a ser a sequência de cargos que um romano de origens ilustres ocupava ao longo da carreira, incluindo tanto postos civis quanto militares. O próximo cargo que alguém iria ocupar dependia de indicações, que, em teoria, deveriam basear-se no desempenho que o sujeito tivesse mostrado nas funções anteriores – mas, é claro, às vezes as amizades e a troca de influências acabavam pesando mais que a competência. Por causa disso, uma legião que recebia um novo comandante só podia orar aos deuses para que ele tivesse boa cabeça para a guerra – pois, em casos de azar extremo, poderia tratar-se de alguém que, além de não ter capacidade alguma, fosse burro demais para dar ouvidos aos conselhos dos oficiais experientes sob seu comando.

Cipião é um romano à moda antiga no que se refere ao senso do dever e à retidão moral, mas, por outro lado, entende a necessidade de mudanças, tanto na organização do exército quanto no governo. Sua personalidade naturalmente franca e honesta faz com que ele se desanime quando, depois de participar de sua primeira campanha militar, na Macedônia, retorna a Roma para o triunfo de seu pai Emílio Paulo, e percebe todo o potencial para a intriga que existe nos meandros da política da capital. Isso é parte dos motivos que o levam a afastar-se da vida pública e, desgostoso, passar os anos seguintes no isolamento, caçando nas florestas montanhosas da Macedônia, acompanhado apenas pelo fiel Fábio.

Como dissemos, isso é parte dos motivos; há mais. Neste romance (que, não custa lembrar, é uma obra de ficção, tendo a história apenas como inspiração), Cipião é apaixonado por Júlia, a filha fictícia de um personagem real, Sexto Júlio César – houve vários homens com o mesmo nome; este, em particular, foi eleito cônsul em 157 a.C. Por causa de seus deveres para com a família e a República, Cipião abre mão de Júlia e ambos se casam com outras pessoas: ela, com um certo Metelo, dez anos mais velho e notório desafeto de Cipião; ele, com Cláudia Pulcra, por quem não tem qualquer afeição maior e com quem nunca chega a viver de forma conjugal. O ressentimento por ter sido obrigado a renunciar a seu amor soma-se ao fato de Cipião ser um soldado por natureza, não tendo a menor vontade de suportar anos de tédio exercendo cargos jurídicos ou administrativos, à espera do dia em que o cursus honorum talvez (só talvez) acabe levando-o a um posto de comando militar. Isso parece ainda menos provável considerando o período de paz que Roma vive após a derrota dos macedônios.

A esperada notícia de uma nova guerra em perspectiva é, por fim, trazida por Políbio (sim, o famoso historiador grego), amigo e mentor de Cipião, quando vai visitá-lo nas montanhas da Macedônia: os celtiberos, na Espanha, estão agitados, e, talvez insuflados por Cartago, parecem prestes a se rebelar contra o domínio romano. Note-se que os celtiberos, por muito tempo, haviam sido súditos de Cartago, pois a Espanha era possessão cartaginesa até ser tomada por Roma durante a Segunda Guerra Púnica, e que fizeram parte do exército que os romanos, sob o comando de Cipião Africano, enfrentaram naquele conflito. São guerreiros formidáveis, que Cipião respeita e sempre desejou transformar em aliados de Roma. A campanha contra os celtiberos, concluída com a tomada da cidade de Intercácia, surge como uma oportunidade de retomada da carreira militar de Cipião e como um aquecimento para a guerra final contra Cartago. Treze anos depois da derrocada desta última, Cipião voltaria à Espanha e lideraria a tomada de Numância, que marcou a sujeição definitiva dos celtiberos. No devido tempo, esse povo produziria não apenas excelentes legionários, como ele esperava, mas também estadistas, generais, e inclusive imperadores.

Citei há pouco um período de paz vivido por Roma depois da vitória sobre a Macedônia; deveria ter dito "período de aparente paz", pois, durante esses anos, está em andamento uma espécie de "guerra fria" entre Roma e Cartago. Os cartagineses reconstruíram sua poderosa marinha de guerra e agora têm dois portos separados, um deles totalmente dedicado às atividades bélicas, e erigiram altos molhes em volta de todo o complexo, para impedir a espionagem a partir de navios passando por sua costa. Roma cometeu um grave erro dando ao inimigo tempo para refazer suas forças.

Muitos historiadores atribuem a longa duração das duas primeiras Guerras Púnicas (a Primeira durou 23 anos, e a Segunda, 17), ao menos em parte, a uma espécie de equilíbrio: enquanto os cartagineses eram superiores no mar, os romanos levavam vantagem em terra firme. De fato, as legiões romanas de então, embora ainda não tivessem atingido o grau de excelência ao qual chegariam mais tarde, já eram muito mais disciplinadas e versáteis que qualquer outro exército que algum povo do ocidente pudesse pôr em campo naquela época. Já os cartagineses, devido a sua experiência na navegação comercial, conheciam o mar e sabiam conduzir um navio. Além disso, os romanos consideravam o serviço militar uma ocupação viril e valorosa, que conduzia o homem à honra e à glória; seu exército era uma força homogênea, formada essencialmente por cidadãos. Os cartagineses, por outro lado, não pareciam achar as artes da guerra algo particularmente honorável; tinham um exército que era um verdadeiro saco-de-gatos, composto de mercenários oriundos de quase todos os cantos do mundo conhecido. Praticamente só os oficiais eram cartagineses. A marinha, em compensação, contava com uma participação maior de cidadãos.

Na penúltima parte do livro, Fábio e Cipião vão a Cartago como espiões, disfarçados de mercadores, para descobrir o máximo possível sobre o poder militar inimigo. Isso já é às vésperas da guerra final, e o comandante supremo cartaginês de então é um homem chamado Asdrúbal, que se diz descendente do legendário Aníbal, contra quem Cipião Africano, o avô adotivo de Cipião, lutou na Segunda Guerra Púnica; de certa forma, a história parece prestes a se repetir. O que os dois espiões descobrem é aquilo que Cipião já imaginava: Cartago não poupou dinheiro nem trabalho para preparar-se para a guerra. A armada e o exército estão a postos, e até mesmo foi ressuscitada uma tradição de tempos antigos, a tropa de elite conhecida como o Batalhão Sagrado. Nada de mercenários nessa força: os soldados são todos jovens oriundos de famílias nobres cartaginesas, educados para serem guerreiros esforçados, quase fanáticos, que defenderão suas posições até a morte. O fato de esse batalhão estar pronto para entrar em ação revela algo mais: que os cartagineses estão se preparando para a guerra há muito tempo, pois esses rapazes, sem a menor dúvida, vêm sendo treinados desde a infância.


O desfecho da história é épico, sangrento e definitivo, não trazendo surpresas, exceto uma: pouco antes da batalha final em Cartago, Cipião conhece um jovem oficial de nome Gneu Metelo Júlio César, que, claro, é o filho de sua amada Júlia com seu velho rival Metelo – oficialmente, pelo menos. Cipião só precisa somar dois mais dois para perceber que o rapaz é, na verdade, seu próprio filho ("verdade" fictícia, é claro, pois Gneu não é personagem histórico). Naturalmente, o jovem Gneu irá sobreviver à batalha, fazer uma carreira honorável, e, um dia, tornar-se patriarca do ramo César da gens dos Júlios – o que implicaria que Caio Júlio César, que nasceria quase meio século depois, poderia ser seu neto ou bisneto, e, portanto, descendente genético, embora não nominal, de Cipião! Claro que tudo isso é pura liberdade criativa de David Gibbins, e, de qualquer forma, a ideia apresenta uma inconsistência fatal: como já vimos, as linhagens, entre os romanos, só se perpetuavam pelo lado paterno, de modo que um filho de Metelo e Júlia não levaria "Júlio César" no nome – teria o nome da família do pai, não da mãe.

Gibbins demonstra um vasto conhecimento da matéria que está abordando – ele é envolvido com arqueologia, tendo inclusive dirigido pesquisas nos sítios de Cartago –, mas não é propriamente um narrador formidável: seus personagens são todos muito parecidos na índole e no modo de pensar, sentir e agir. Em diversas partes ao longo do livro, são inseridos no texto pequenos "ensaios" sobre política e guerra sob a forma de diálogos, que, embora fascinantes, quebram o ritmo da história, e, às vezes, aparecem em momentos pouco críveis, como quando Cipião, ainda jovem, fica sabendo que um assassino acaba de ser despachado para eliminar Petreu, o velho centurião que foi seu mestre na academia – e, em vez de sair correndo para tentar salvar a vida do velho homem, lança-se a uma discussão que ocupa várias páginas, com Fábio e outro amigo, Ênio, sobre as intrigas que rolam pelas ruas de Roma e sobre a quem esse assassinato iria beneficiar. Só depois de o assunto estar bem debatido e esmiuçado é que os rapazes se põem em movimento!… Não acho isso lá muito realista.

A leitura de Destruição de Cartago é empolgante, mas não sei se seria a mais indicada para adolescentes que acabam de descobrir o mundo antigo por meio de um jogo de computador, e provavelmente ainda sabem pouco sobre ele. Algum grau de conhecimento prévio sobre a história de Roma, sua cultura e organização militar, se não for essencial, é certamente de grande ajuda. Porém, o livro tem um mérito especial: apresenta ao leitor, seja ele quem for, um vislumbre da essência original de Roma, uma cidade que, na época retratada, estava-se tornando cada vez mais poderosa, mas cujos habitantes (até então) ainda se pareciam muito com os da Roma dos primeiros tempos, uma Roma pequena e pobre, cuja riqueza repousava na bravura e nas virtudes de homens como Rômulo, Caio Cévola, Horácio Cocles, Marco Corvo, entre tantos outros. A essência de um povo severo, muitas vezes inflexível, para quem honra, dever e lealdade eram quase tudo o que tinha importância na vida, e os que não agiam de acordo com essa crença eram vistos como indignos de serem considerados verdadeiros romanos.