quinta-feira, fevereiro 21, 2019

O Futuro Começou

Existem títulos que funcionam bem numa tradução direta do original, e outros, definitivamente, não. Isso pode acontecer por diferentes motivos, e às vezes não é fácil explicar o porquê. Cada língua parece possuir uma "alquimia" que é só dela, o que faz com que um mesmo título, dizendo precisamente a mesma coisa, perca (ou ganhe) muita força, pelo simples fato de ser transposto de uma língua para outra. O melhor exemplo que me vem à cabeça agora é o conto Sometimes They Come Back, de Stephen King, que pode ser encontrado na coletânea Sombras da Noite. O título original já é OK, mas alguém aí consegue explicar por que é que Às Vezes Eles Voltam soa tão mais forte, mais sinistro, mais cheio de sugestões sombrias? Eu também não: é a tal alquimia da língua.

Porém, a sonoridade muitas vezes não é o único critério que uma editora brasileira precisa levar em consideração na hora de definir o título de um livro traduzido. É o caso deste aqui. Quando, em 1972, Isaac Asimov e seu editor da época na Doubleday decidiram que seria uma boa ideia reunir num livro os primeiros contos do escritor (cujas publicações originais ocorreram durante a chamada era de ouro da ficção científica, entre o fim dos anos 30 e o fim dos 40), eles não precisaram pensar muito a respeito do título. O livro destinava-se a uma base já formada de leitores fiéis, e eles, que há tanto tempo pediam por uma edição assim, saberiam reconhecê-la só de bater o olho nela nas livrarias. Assim, o óbvio título The Early Asimov (algo como 'o Asimov do início') já servia. Aqui no Brasil, onde o livro foi publicado seis anos depois, a situação era bem diferente. Esta edição da Hemus precisava vender-se num país onde o mercado editorial em geral, e principalmente o de ficção científica, era muito mais tímido que nos Estados Unidos. Muitos leitores estariam tendo seu primeiro contato com Asimov, outros poderiam já ter lido um ou alguns de seus livros, mas poucos teriam tanta intimidade com a carreira e a obra do autor a ponto de compreenderem a importância de conhecer seus trabalhos iniciais. Por isso, a versão nacional acabou chamando-se O Futuro Começou. Levando em conta toda essa situação, não culpo a Hemus por esse título absolutamente genérico e que não informa realmente nada sobre o conteúdo do volume. Era apenas para chamar a atenção de leitores que já tivessem algum interesse em ficção científica, e deve ter funcionado.

O livro é, portanto, uma coletânea de contos dos primeiros anos da carreira de Asimov como escritor, mas não é só isso. Os contos estão inseridos entre trechos mais ou menos autobiográficos, tão interessantes quanto eles – e ocasionalmente, até mais. Vocês devem estar se perguntando como é que algo pode ser "mais ou menos autobiográfico", e a resposta é que o livro oferece vislumbres do dia a dia do adolescente e depois jovem adulto Isaac, mas sempre através do prisma da atividade de escritor. Talvez o fato de já estar acostumado a raramente obter alguma coisa com facilidade tenha enrijecido o couro do rapaz, levando-o a persistir a despeito de ter colecionado várias recusas de diferentes revistas até finalmente conseguir de fato vender sua primeira história para publicação. Seus pais, imigrantes judeus russos, tinham uma loja de doces de onde vinha todo o sustento da família, um sustento pelo qual eles e os filhos precisavam trabalhar constantemente. Isaac, o mais velho, revelou cedo tanto o interesse pela ciência quanto a paixão por ler e escrever. A combinação das duas coisas levou-o naturalmente à ficção científica, e ele gostava de contar que seu primeiro contato com o gênero foi aos nove anos de idade, na loja de doces mesmo, pois ela também incluía uma banca de jornais e revistas, e foi ali que ele travou conhecimento com algumas das várias revistas dedicadas à ficção científica que circulavam naquelas primeiras décadas do século XX. Aquela que viria a ser sua favorita e também a mais influente delas (em grande parte, graças a sua participação) intitulava-se Astounding Stories, mais tarde Astounding Science-fiction, e foi fundada em 1930, pouco depois de Isaac ter sido apresentado à ficção científica, então é provável que ele a tenha lido desde o primeiro número, mas seria somente uns oito anos depois, aos 18 anos de idade, que ele pela primeira vez apresentaria um de seus trabalhos ao editor da revista, John W. Campbell Jr. O trecho em que ele conta como se sentia logo antes dessa ousada empreitada é hilário:

Eu estava convencido de que, por ousar pedir para ver o editor de Astounding Science-fiction, eu seria atirado fora do edifício, e meu manuscrito seria picotado e jogado atrás de mim como confete. Meu pai, porém (que tinha ideais nobres) estava convencido de que um escritor – com o que ele significava qualquer um com um manuscrito – seria tratado com o respeito devido a um intelectual. Não tinha receios nenhuns – mas era eu quem ia entrar naquele edifício.

Mas esse temor não se concretizou: Campbell o recebeu muito bem. Asimov descobriu nessa ocasião que era costume do legendário editor (certo, ele ainda não era legendário na época) tratar todo escritor com o mesmo grau de deferência, fosse ele um veterano com o nome já firmado, aclamado pelos leitores, ou um jovem iniciante tímido. Pode ter ajudado o fato de que Asimov mandava cartas à revista com tanta regularidade, que Campbell lembrava dele, e talvez tenha achado curioso ter a oportunidade de conhecer pessoalmente aquele leitor tão entusiasta. Campbell era um excelente editor ainda por outros motivos, segundo Asimov: quando rejeitava uma história, ele tomava o tempo de escrever ao autor uma carta de considerável extensão, na qual discutia o texto em pormenores, apontando seus defeitos e qualidades e oferecendo dicas para que o escritor, ou aspirante a tal, pudesse aprimorar seu trabalho. Como diz Asimov: "A agradável carta de rejeição – duas páginas inteiras – em que discutia minha história seriamente e sem traços de paternalismo ou desprezo, reforçou minha alegria. (…) Realmente, a melhor coisa depois de [a história] ser aceita."

Atuando dessa forma, Campbell (que também era escritor) foi uma espécie de mentor para um punhado de jovens escritores que estavam em ascensão durante aqueles anos, e hoje é apontado por muitos como o principal responsável por tornar possível a era de ouro. A grande tríade de jovens autores da época, que, com o tempo, viriam a ser considerados titãs da ficção científica, era composta por A. E. Van Vogt, Robert A. Heinlein e pelo próprio Asimov, o mais jovem dos três e, segundo ele mesmo, o que mais demorou a construir reputação. Heinlein, autor de Estranho Numa Terra Estranha e Tropas Estelares, é razoavelmente conhecido entre nós; já quanto a Van Vogt, parece que chegou a ser publicado no Brasil, mas deve fazer muito tempo, pois os únicos livros dele em que consegui pôr as mãos até hoje eram edições portuguesas, das coleções Argonauta e FC Europa-América.

Para quem, como eu (e acredito que a vasta maioria dos fãs), conheceu Asimov já com seu status de monstro sagrado e por meio de uma de suas obras mais aclamadas, como Eu, Robô ou Fundação, será uma experiência bem estranha ler as histórias aqui apresentadas e constatar que: 01) sim, elas são, em tudo e por tudo, histórias "asimovianas"; 02) não, várias delas não são grande coisa. Mas a estranheza diminui ao lembrarmos que foram escritas por um jovem de seus 18 a 20 e poucos anos, talentoso, sem dúvida, mas ainda com muita coisa por lapidar. É preciso também não esquecer que as histórias que estão aqui são somente as que foram publicadas; houve várias, inclusive a primeira de todas, que, depois de terem sido rejeitadas mais de uma vez, o jovem Asimov deixou de lado e acabou, como ele diz, "perdendo de vista" ao longo dos anos, o que significa que os originais foram perdidos e essas histórias não existem mais. Asimov relata que certos leitores parecem contrariados com o fato, e acham que, por piores que fossem, essas histórias deveriam ter sido preservadas por seu valor histórico – afinal, foram as primeiras tentativas de Isaac Asimov, não menos que isso! Sobre esse ponto, o autor comenta com seu sutil e infalível senso de humor: "Tudo o que posso dizer, amigos, é que sinto muito, mas não havia modo de saber, em 1938, que minha primeira tentativa pudesse ter interesse histórico algum dia. Posso ser um monstro de vaidade e arrogância, mas não sou tão monstruosamente vaidoso e arrogante." Sim, ele tinha um ego e tanto (e sabia disso), mas o fato era frequentemente suavizado por um saudável humor autogozador.

Quanto às histórias em si, parece que nos primeiros tempos Asimov cobria um espectro bastante amplo dentro da ficção científica – talvez uma questão de necessidade prática: quanto mais versátil ele fosse ao escrever, melhores suas chances de conseguir vender histórias para diferentes revistas, já que cada uma tinha um perfil próprio. A Astounding queria histórias mais sérias e com alguma base científica factual, já a Planet Stories privilegiava ação e aventura, enquanto a Amazing era, digamos, mais eclética, e ainda havia outras menores, que tiveram vida mais curta. Como sempre acontece em qualquer assunto, quem não entende nada de ficção científica tende a pensar que é tudo a mesma coisa – um grande erro, o que não quer dizer que não houvesse gente que lia todas essas revistas, assim como não há nada de errado em gostar de Shakespeare e também de Harry Potter. De qualquer modo, quando se firmou o suficiente como escritor para poder, ao menos na maioria das vezes, escrever da forma que melhor lhe parecesse, Asimov passou a dedicar-se quase exclusivamente ao que hoje chamamos de hard science-fiction, histórias solidamente ancoradas na ciência, que lidam com ideias complexas e são voltadas para um público maduro.

A primeira história que encontramos em O Futuro Começou é uma que Asimov havia batizado de Clandestino, mas teve o título trocado para A Ameaça de Calisto por seu editor, Frederik Pohl, que também viria a tornar-se um grande nome da ficção científica, embora menos famoso. Pohl era amigo de Asimov e tinha praticamente a mesma idade, mas já tinha obtido mais sucesso como escritor, e acabava de fundar sua própria revista, a Astonishing Stories. Lendo essa história, dá para entender porque ela havia sido recusada tanto pela Astounding quanto pela Amazing, e só pôde ser publicada graças ao nível de exigência mais modesto da Astonishing, o que não quer dizer que seja de todo má. Como outras histórias presentes neste livro, é uma aventura espacial, feita para entreter e que, durante a maior parte do tempo, consegue, mas nota-se que já aí Asimov gostava de dar ao que escrevia um fundamento científico rigoroso, ou, ao menos, tão rigoroso quanto possível; aqui, a ciência que mais se destaca é a física, para ser mais exato o magnetismo. Uma nave de exploração, com uma tripulação de veteranos, está rumando para Calisto, uma lua de Júpiter onde várias outras naves já desapareceram, sem que ninguém saiba o que lhes aconteceu. Durante a viagem, descobre-se que Stanley, um garoto de cerca de 13 anos, embarcou clandestinamente, ansioso por aventuras – ele declara que "fugiu para o espaço, como fazem nos livros", o que é um claro paralelo com todos aqueles maravilhosos livros de aventuras nos quais os garotos "fugiam para o mar". Como voltar é impossível, a missão prossegue com o pequeno intruso a bordo, e ninguém imagina como sua presença acabará sendo providencial.

(De fato, ser um jovem escritor de ficção científica naqueles tempos exigia muita garra. Pagava-se pouco, o que não afetava as exigências de qualidade para que uma história fosse aceita; por vezes o editor até se interessava por determinada história, mas pedia ao autor que a remodelasse – o que, fora o volume extra de trabalho, envolvia a frustração de ter que mexer num texto do qual o autor provavelmente gostava e se orgulhava; e, quando tudo isso era superado e chegava-se à publicação, não raras vezes o título era trocado e o escritor só ficava sabendo ao ver a revista na banca. A respeito do pagamento escasso, uma curiosidade: o valor de uma história era calculado não com base no número de páginas, mas de palavras. A Astounding, sendo a revista de maior gabarito, era também a que pagava melhor: um centavo [de dólar, naturalmente] por palavra, enquanto o valor praticado pelas outras era, em geral, de meio centavo. Hoje em dia, em tempos de Microsoft Word e assemelhados, é fácil saber quantas palavras tem um texto, mas me pergunto como isso era feito naquela época de máquinas de escrever manuais.)

A segunda história, Anel em Torno do Sol, também é uma aventura no espaço e também tem a física como pano de fundo, com duas curiosidades: apresenta uma forte veia humorística e tem como protagonistas Jimmy Turner e Roy Snead, dois pilotos da United Space Mail, que é exatamente o que o nome sugere: uma companhia de serviços postais espaciais. Asimov nos conta que pretendia usar a dupla em outras histórias, criando sua própria série, como alguns escritores da época faziam, mas, por motivos diversos, nunca o fez; conseguiria isso mais tarde com Gregory Powell e Michael Donovan, cujas aventuras podem ser lidas em Eu, Robô. Ainda não foi aqui que Asimov conseguiu criar sua primeira história realmente notável, mas a verdade é que a trama de aventura funciona e o humor também, o que é mais do que dá para dizer da terceira história, A Posse Magnífica, que é calcada na química e não consegue nem empolgar, nem causar um sorriso amarelo que seja. Para compensar, segue-se Tendências, que foi a primeira que Asimov conseguiu vender para a Astounding (as três primeiras foram publicadas em revistas menores), realizando seu sonho de anos e arrecadando alguns dólares a mais do que conseguira até então. A história trata da primeira tentativa humana de voo espacial e, mais especificamente, da resistência social que o pioneiro da cosmonáutica John Harman precisa enfrentar. A história se passa em 1973-74, durante um período de revivescência religiosa que teria se seguido aos horrores da Segunda Guerra Mundial – é bom lembrar que a história foi escrita entre o fim de 1938 e o início de 1939. Como toda pessoa bem informada da época, o jovem Asimov via que as crescentes tensões políticas na Europa levariam inevitavelmente a uma guerra que acabaria envolvendo também os Estados Unidos e outros países, mas ele arriscou o palpite de que ela começaria em 1940; começou em '39 mesmo, meses depois de a história ter sido publicada. Um dos resultados da guerra (na ficção de Asimov) foi que a população em geral pegou um trauma da ciência e da tecnologia, considerando-as responsáveis pelas catástrofes da guerra, e, por consequência, voltou-se para a fé e o misticismo, enquanto a pesquisa científica era de todas as formas desencorajada. A maneira como pessoas religiosas são retratadas na história sugere que, apesar de vir de uma família judia ortodoxa, Asimov nunca teve grande simpatia pela religião de modo geral (na maturidade, ele parece ter sido um agnóstico), talvez porque, como muita gente, enxergasse fé e ciência como adversárias irreconciliáveis – uma noção, no mínimo, altamente discutível, como comento num outro post. Seja como for, Tendências é, sem dúvida, superior às histórias anteriores. Nos comentários temos a confirmação de algo que eu já imaginava enquanto lia a história: o fato de o personagem-narrador, um ajudante direto de Harman, chamar-se Clifford, não é coincidência, e sim uma homenagem ao escritor Clifford D. Simak, um dos ídolos de Asimov desde seus tempos de simples leitor.

A Arma Terrível Demais Para Ser Usada (título comprido, deselegante e inexato, já que a tal arma é usada) é provavelmente inferior a Tendências, mas, pessoalmente, me agradou mais. Nela, a mesma história que aconteceu tantas vezes na Terra repete-se durante a exploração do sistema solar: os terráqueos invadem e colonizam Vênus, transformando os nativos em cidadãos de segunda categoria em seu próprio mundo. Os venusianos já foram uma raça poderosa, mas, na época retratada, estão reduzidos em número, e muito da herança cultural e científica de seus antepassados se perdeu, de modo que não possuem a mínima condição de oferecer qualquer resistência à tirania da Terra. Naturalmente, muitos terráqueos são contra o modo como os venusianos têm sido tratados, mas, até aquele momento, foram voto vencido. Até que dois amigos – um venusiano e um terráqueo –, explorando as ruínas de uma cidade sagrada em Vênus, descobrem um artefato dos antigos venusianos que pode mudar tudo. Concordo que a resolução da trama é extremamente ingênua, como observa Asimov depois que a história termina, mas não faz mal: ainda assim é boa ficção científica, e muito agradável de ler.

Mais curiosidades vão pipocando: O Futuro Começou inclui O Frei Negro da Chama, que Asimov havia intitulado originalmente Cruzada Galática, mas também esse título foi trocado à sua revelia. É uma história ambiciosa (talvez um tanto ambiciosa demais para o escritor naquela altura da carreira) sobre uma rebelião da espécie humana contra os lhasinu, uma raça reptiliana originária de Vega, que a havia dominado. Essa rebelião é guiada pelos "loaras", sacerdotes de uma religião influente naqueles dias. Além da inspiração óbvia, e que estava explícita no título original, outras passagens da História antiga e medieval parecem ter servido como referências. Embora a ideia seja boa, a história é bastante confusa e tem problemas de ritmo; na parte autobiográfica Asimov conta que foi a campeã de revisões em toda a sua carreira, tendo sido reescrita cinco ou seis vezes, e o leitor fica inclinado a concordar com sua conclusão de que submeter uma história a muitas revisões tem maiores probabilidades de piorá-la que de melhorá-la. Vale mais pela curiosidade de que é nela que são citados pela primeira vez os planetas Trantor e Santanni, que teriam papéis importantes na saga Fundação.

Conforme vamos lendo, percebemos que Campbell, por mais acessível e colaborativo que se mostrasse para com jovens escritores, tinha um nível de exigência que ele não afrouxava: em 1940, com dois anos de atividade e quase 20 histórias produzidas, Asimov só podia gabar-se de ter publicado uma única em Astounding. Em geral ele apresentava seus trabalhos primeiro a Campbell, e, quando eram rejeitados, tentava outras revistas, eventualmente com sucesso, mas também houve contos que ele já previa que Campbell rejeitaria e por isso nem submeteu a ele. Há histórias que dá para entender por que o editor recusou publicar – histórias agradáveis e interessantes, mas um tanto ingênuas para o padrão da Astounding, como Mestiço, que fala sobre os tweenies, nome dado aos mestiços de terráqueo e marciano, marginalizados e perseguidos (Asimov estava bem ciente da sorte que ele, sendo judeu, tinha de viver nos Estados Unidos, e não na Europa, naqueles dias), mas foi um choque para mim descobrir que Campbell também recusou Robbie, a primeira história daquilo que viria a ser conhecido como o ciclo dos robôs positrônicos, e a primeira que encontramos em Eu, Robô, talvez o livro mais famoso de Asimov. Uma coisa, aliás, não dá para deixar passar em branco: na mesma visita em que comunicou a Asimov a rejeição de Robbie, Campbell também lhe apresentou L. Sprague de Camp, então com pouco mais de 30 anos e já com uma carreira consolidada como escritor – o tipo de sujeito que, naqueles dias, o jovem Isaac encarava com um misto de admiração e inveja. Eventualmente, os dois se tornariam grandes amigos. Asimov relata o encontro de forma um pouco mais detalhada em sua introdução ao livro Construtores de Continentes, de De Camp, embora, nessa introdução, não explicite que a história que Campbell rejeitou na ocasião era Robbie. Essa história, por sinal, seria publicada por Frederik Pohl em sua Astonishing, sendo que, para manter-se fiel ao seu hábito, ele trocou o título, chamando-a de Strange Playfellow (algo como 'Estranho Companheiro de Brincadeiras'), título que Asimov, compreensivelmente, detestou. Em Eu, Robô, e em todas as demais coletâneas em que apareceu ao longo dos anos, o conto saiu sob o título original.

(Espero que haja alguns fãs hardcore de ficção científica me lendo, pois creio que seja o único tipo de leitor capaz de se divertir com essa espécie de curiosidade! – risos. Todos os outros já devem ter desistido deste post.)

Como um jovem autor que ainda estava afiando seus instrumentos, Asimov por vezes errava a mão ao superestimar o conhecimento científico médio de seus leitores em potencial, como nas histórias Homo Sol e Imaginário, que, juntas, são como que um esboço de série, já que o ambiente e alguns personagens são os mesmos em ambas. Campbell aceitou a primeira e rejeitou a outra (que seria, mais tarde, publicada em outra revista), a despeito da justificável crença de Asimov de que um conto com "antecedentes" seria olhado com mais interesse pelo editor. Nessas histórias se delineia, de forma ainda nebulosa (e, para falar sem rodeios, tosca) um universo que lembra o de Fundação: há muitas civilizações, mas são todas humanoides, e já desponta a ideia de que seria possível prever as reações de grupos humanos a determinadas situações por meio de cálculos matemáticos. Curiosamente, nesse universo os humanos da Terra são exceção num ponto-chave: são a única raça humanoide conhecida que, quando em grandes grupos, fica mais suscetível a emoções como raiva ou pânico; todas as outras raças tendem a ter um comportamento tanto mais estável quanto mais numerosa for a multidão. Essa e outras características peculiares fazem dos terráqueos um povo imprevisível, com o qual é preciso tomar cuidado. O mesmo universo descrito em Homo Sol e Imaginário aparece, ainda, na divertida O Trote, que se passa numa universidade frequentada por estudantes de vários planetas e raças. Nessa, entretanto, só a ambientação é a mesma, pois os personagens das outras duas não aparecem.

Mais uma curiosidade se junta a tantas outras que descobrimos neste livro: em seus primeiros tempos como escritor, Asimov teve a constante ambição de colocar histórias suas na revista Unknown, uma espécie de irmã da Astounding, publicada pela mesma editora e também coordenada por Campbell, só que voltada para a fantasia. Fez várias tentativas ao longo de anos, sendo sempre rejeitado; parece que Campbell mantinha a mesma linha dura ao selecionar o material que iria publicar, fosse qual fosse a revista ou o gênero. Quando, já em 1943, Asimov finalmente conseguiu ter uma história aceita para a Unknown, a revista acabou sendo cancelada antes que ela fosse publicada: estava-se em plena Segunda Guerra Mundial e os recursos andavam escassos, até mesmo o papel, o que forçou Campbell a escolher entre extinguir a Unknown ou reduzir a periodicidade da Astounding para bimestral. E a decisão que ele tomou, ainda que dolorosa, foi correta: Astounding ganharia mais e mais relevância durante os anos seguintes, e existe até hoje, embora seu nome tenha mudado para Analog Science-fiction and Fact, geralmente chamada apenas de Analog. A história vendida e não publicada apareceu, anos depois, como bônus numa coletânea dedicada às melhores histórias da Unknown, e também está incluída em O Futuro Começou; trata-se de Autor! Autor!, na qual, sinceramente, não vi nada de mais. Se Campbell a considerou uma evolução em relação às tentativas anteriores de Asimov no campo da fantasia, respeito sua expertise de editor, mas a história realmente não me empolgou.

Um dos raros exemplos que sobreviveram dentre as histórias de Asimov rejeitadas pela Unknown é O Homenzinho no Metrô, também presente em O Futuro Começou, e que não depõe muito a favor da qualidade geral desses trabalhos; é uma história com pouquíssimo pé ou cabeça, cujo principal objetivo parece ser o de satirizar a religião, e séria candidata a pior conto do livro. Para deixar tudo ainda mais curioso, é produto de uma parceria entre Asimov e Frederik Pohl, e só foi preservada porque, depois que Campbell a recusou, Asimov devolveu o original a Pohl, que, vários anos mais tarde, conseguiu vendê-la para uma revista obscura, provavelmente graças ao renome que tanto ele quanto Asimov haviam ganho durante esse intervalo. Pohl e Asimov ainda voltariam a escrever em dupla, e O Futuro Começou nos oferece outro exemplo, Ritos Legais, uma história de fantasma (as surpresas parecem não ter fim: Isaac Asimov escrevendo sobre fantasmas??), também destinada à Unknown e também rejeitada e mais tarde vendida para outra revista – e não uma revista qualquer: simplesmente a Weird Tales! (ver aqui e aqui) Foi a única vez que um trabalho de Asimov foi impresso na WT – e ganhou a capa. Pohl assinou com um de seus vários pseudônimos, "James McCreigh", que acabou sendo grafado errado. Essa história é melhorzinha que a outra, mas não criem muita expectativa.

(Muito mais tarde, já nos anos 80, Asimov viria a dedicar-se à fantasia com regularidade e certo sucesso, com as histórias de Azazel, um minúsculo demônio [ou talvez extraterrestre, não se sabe ao certo] que faz amizade com um sujeito chamado George, e, a partir daí, os dois, utilizando os poderes de Azazel, tentam ajudar diversas pessoas a resolver variados tipos de problemas – o que sempre dá errado da maneira mais engraçada possível. Nessa altura, já maduro e experiente, Asimov havia aumentado muito sua versatilidade enquanto escritor, mas também é bom levar em consideração que não mais precisava preocupar-se se suas histórias seriam aceitas ou rejeitadas, primeiro porque já era um autor consagrado, cujo nome na capa de uma revista era garantia de boas vendas, e, segundo, porque a maior parte das histórias de Azazel foi publicada na revista que levava seu nome e que ele próprio editava [e que teve versão brasileira, embora com vida curta]. Na minha opinião de leitor, essas histórias são divertidas, mas não estão nem de longe entre as melhores do autor. O grande combustível das aventuras de George e Azazel é o humor, e, falando francamente, as habilidades de Asimov para a comédia não eram tão notáveis quanto ele parecia acreditar que fossem. Suas piadas às vezes funcionam, às vezes nem tanto.)

O Futuro Começou não inclui a história Nightfall ('O Cair da Noite'), porque isso fugiria ao seu objetivo, que era disponibilizar aos leitores os contos menos conhecidos do começo da carreira de Asimov, que não estivessem presentes em coletâneas anteriores. Ainda assim, o autor não pôde furtar-se a um breve comentário sobre essa história, que foi um marco em sua carreira – afinal, como ele diz com palavras ligeiramente diferentes, qual era a probabilidade de que um rapazote de 21 anos, escrevendo profissionalmente há menos de três e tendo produzido apenas umas 30 histórias (várias delas rejeitadas pelos editores), de repente, não mais que de repente, escrevesse o que viria a ser um dos contos mais aclamados da história da ficção científica? Nightfall colocou Asimov, pela primeira vez, na capa da Astounding, e é sem dúvida uma história extraordinária de diversas maneiras. Eu a li pela primeira vez na adolescência e, desde então, creio que reli mais uma vez. Como estou passando por uma fase de reencontro com as obras de Asimov, é provável que acabe lendo de novo, e, nesse caso, vai figurar aqui no blog de forma mais detalhada.

Há ainda várias outras histórias, boas e nem tanto, e não acho necessário falar sobre uma por uma; algumas eu já havia lido em outros livros, como Não é Definitivo!, que aparece na antologia A Sonda do Tempo, editada por Arthur C. Clarke, só que com o título Não é a Última Palavra!, ou Natal em Ganimedes (outra das tentativas de Asimov de fazer humor; esta, em minha opinião, com sucesso mediano), que sei que também já havia lido antes, mas não consigo lembrar onde. Só há mais um conto que quero destacar, e esse por razões absolutamente pessoais. Refiro-me a Nenhuma Ligação! (No Connection!), publicada originalmente na Astounding em junho de 1948. No começo temos a impressão de que os personagens que aparecem em ação são humanos, mas depois nos damos conta de que isso é mera suposição e, por um indício encontrado aqui e outro ali, começamos a desconfiar que não é bem assim, até a coisa ser explicitada: a civilização que ali vemos retratada pertence a seres que se autodenominam gurrows (o nome científico é Gurrow sapiens), fisicamente semelhantes a ursos, e provavelmente descendentes deles – ou seja, tudo leva a crer que estejamos vendo a Terra num futuro extremamente distante, quando o homem já não existe há muito tempo, o que abriu espaço para a ascensão de outra espécie inteligente, e os ursos, ao que podemos supor, evoluíram nessa direção. A sociedade deles é muito pacífica e verdadeiramente igualitária, sem as mazelas que sempre apareceram ao longo da História humana quando se tentou estabelecer uma "igualdade". Cada gurrow ocupa-se do tipo de trabalho que mais lhe agrade, desde que este seja útil à sociedade, e, se há uma tarefa da qual ninguém gosta, mas que é necessária, equipes são formadas para realizá-la por turnos, em sistema de revezamento. Por exemplo, um deles pode gostar de cultivar jardins e ter isso como profissão, mas, uma ou duas vezes por mês, tem que juntar-se a um grupo que vai fazer a limpeza das fossas sépticas, e dedicar-se a essa tarefa durante algumas horas. E, se aparecer alguém que goste de limpar as fossas sépticas, bem, esse gurrow irá trabalhar com isso, liberando outros de uma ocupação que, para eles, não é agradável. E o mais interessante: para os gurrows, a noção de profissões prestigiosas ou desprezadas é completamente desconhecida. Um limpador de fossas sépticas e um reitor de universidade, por exemplo, ganham a mesma coisa e estão em completa igualdade social, tendo, aos olhos de todos os outros, o mesmo status. A história dá a entender que esse estado de coisas não é resultado de nenhum tipo de política: são apenas os "gurrows sendo gurrows". O conceito é fascinante, não só a descrição de uma sociedade assim, mas a própria ideia de outra espécie inteligente evoluindo na Terra; porém, se eu fosse escrever essa história, acho que escolheria como base algum outro tipo de animal (não sei ao certo qual), já que os ursos são seres essencialmente solitários, que praticamente só convivem com outros de sua espécie para fins reprodutivos e durante curtos períodos, de modo que dificilmente desenvolveriam inteligência (a vida em grupo parece ser requisito para isso), e, ainda que a desenvolvessem, não acho provável que criassem uma sociedade complexa. Mas isso ainda não é tudo: parece que o impulso exploratório não é uma característica dos gurrows, pois faz poucos anos que eles descobriram que existem outros continentes além daquele em que habitam – e, surpresa, num deles existe outra espécie inteligente, essa derivada dos chimpanzés. Um grupo desses estranhos acaba de chegar à terra dos gurrows numa aeronave, e eles se dizem "refugiados políticos" – outra noção que a mente dos "ursos" não é capaz de conceber, mas que parece familiar aos recém-chegados, que chamam a si mesmos de ikas. Pelo visto, mesmo com a humanidade extinta, primatas serão sempre primatas.

Creio que é chegada a hora do apanhado geral, então vamos a ele. No que se refere às histórias, O Futuro Começou é irregular como noventa e nove por cento das coletâneas, com momentos excelentes e outros que testam nossa paciência, e, como já observei antes, isso não causa surpresa, já que, até aproximadamente a metade do volume, o que estamos lendo são os trabalhos de um autor inexperiente, ainda em busca de sua verdadeira "cara" como escritor; já os trechos autobiográficos ampliaram bastante o meu conhecimento a respeito da trajetória desse que foi um dos mais importantes autores de ficção científica, esclarecendo, inclusive, os motivos de algumas características conhecidas de certas obras suas. Portanto, em resumo, é um livro que deve ser recomendado a todos os que gostam de Asimov. Quanto à qualidade desta edição em particular, bem… Todo leitor brasileiro de ficção científica tem uma relação de carinho e gratidão com a editora Hemus, que durante muitos anos colocou ao nosso alcance muito do melhor que existe no gênero mundo afora; esse design inconfundível de seus volumes de capa branca, com o nome do autor em vermelho e preto no alto, sempre nos trará recordações agradáveis. Porém, nem mesmo tudo isso foi suficiente para me fazer fechar os olhos a todas as falhas que encontrei aqui. São creditados os nomes de três tradutores diferentes, sem que haja indicação de quais histórias cada um traduziu, e, em muitas delas, qualquer leitor que conheça a língua inglesa detectará erros ingênuos, que, a meu ver, seriam admissíveis se cometidos por um estudante de nível básico a intermediário, nunca por um tradutor habilitado. E, igualmente incrível, o revisor também os deixou passar… Talvez a editora Aleph, que anda relançando muitos livros de Asimov que há muito tempo estavam fora de ca-tálogo no Brasil, se anime a fazer uma nova edição de The Early Asimov, mais bem cuidada desta vez.

quinta-feira, janeiro 17, 2019

O Mundo Perdido

O mundo da literatura tem seus paradoxos. Um deles é o que acontece quando um autor consegue o raríssimo feito de criar um personagem que se torna tão famoso que, de certa forma, acaba por ganhar vida própria: nesses casos, a fama da criação costuma ofuscar a do criador. Foi assim com Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e seu personagem mais conhecido, o detetive Sherlock Holmes. Todo mundo sabe quem é Holmes, mesmo que a vasta maioria das pessoas nunca tenha lido uma linha da obra de Conan Doyle, mas apenas os poucos que têm alguma intimidade com literatura conseguirão, se perguntados, dizer o nome do escritor que o criou, e receio que ainda menos serão capazes de citar algum trabalho seu que não sejam as aventuras do grande detetive. O que é bem injusto, já que, mesmo que ele nunca houvesse criado Sherlock Holmes, ainda restariam no currículo de Doyle obras em quantidade e qualidade mais que suficientes para fazer dele um escritor de respeito. Para completar, alguns elementos que estão ou já estiveram largamente presentes na ficção moderna devem a Doyle o pontapé inicial: foi dele a ideia de usar uma múmia reanimada como personagem num conto de terror (Lote 249, de 1892), fonte na qual o cinema viria a beber dezenas de vezes; e também foi ele o responsável por trazer os dinossauros para a ficção, com O Mundo Perdido (1912), que acaba de ganhar esta nova e caprichada edição nacional pela editora Todavia (eita… A portuguesa Saída de Emergência tem uma competidora no ranking das editoras com nomes estranhos).

Garimpando, tempos atrás, num dos diversos sebos da rua Riachuelo, no centro de Porto Alegre, adquiri um exemplar da velha edição de O Mundo Perdido da Francisco Alves, editora que durante décadas fez por merecer a gratidão de todos os fãs brasileiros da literatura de imaginação; porém, o livro ainda aguardava na minha estante a sua vez de ser lido quando encontrei numa livraria esta nova edição, e, ao ver que incluía uma ampla seção de notas explicativas do tradutor Samir Machado, concluí que valia a pena: Conan Doyle tinha uma tendência a salpicar seu texto com referências a personalidades, instituições e costumes da Inglaterra vitoriana que podem soar bastante misteriosas para quem vive em outra época e outro país (e digo da Inglaterra porque, embora fosse escocês de nascimento e descendente de irlandeses, ele parecia ter em Londres seu habitat literário por excelência). E, de fato, as notas não apenas esclarecem sobre esses detalhes da realidade britânica da época, como corrigem e atualizam vários pontos nos quais as observações do autor sobre características e comportamento dos animais pré-históricos estão hoje ultrapassadas graças aos vastos progressos da paleontologia ao longo do último século. Contando com esse reforço, mergulhei na minha primeira leitura desse clássico.

Não foi pouca a minha surpresa ao perceber na estrutura de O Mundo Perdido uma série de semelhanças com Viagem ao Centro da Terra (1864), de Júlio Verne! É claro que o formato de ambas as histórias é comum a um sem-número de obras que tratam da descoberta de "mundos perdidos", o que alguns teóricos chegam a classificar como um subgênero específico dentro da literatura de aventura – a saber, uma expedição de intrépidos exploradores penetrando em alguma região isolada, desconhecida pelo resto da humanidade, e lá descobrindo todo tipo de maravilhas e surpresas – mas, mesmo assim, chamou-me a atenção que ambos os livros sejam narrados na primeira pessoa por jovens corajosos que deixam para trás suas respectivas amadas, cada um deles na esperança de retornar de sua aventura coberto de glória e assim merecer casar-se com sua musa. Ambos, também, seguem a liderança de um brilhante e excêntrico cientista. No livro de Verne, o jovem Áxel é sobrinho e discípulo do Prof. Otto Lidenbrock, e espera ganhar a mão de Grauben, afilhada do cientista; no de Conan Doyle, o protagonista Edward Malone é um jornalista jovem, mas que já granjeou certa reputação, e está irremediavelmente apaixonado por Gladys, uma moça que parece satisfeita de manter com ele uma relação de cordial amizade, situação sobre a qual o jovem repórter tem opiniões categóricas:

Éramos amigos, bons amigos, mas nunca consegui ir além do mesmo tipo de camaradagem que eu poderia ter com algum colega jornalista da Gazette – perfeitamente sincera, perfeitamente gentil e perfeitamente assexuada. Meus instintos iam contra a ideia de que uma mulher pudesse ser sincera e ficar à vontade comigo; para um homem, isso não é elogioso. Onde a verdadeira atração sexual começa, a timidez e a desconfiança são suas companheiras. (…) A cabeça baixa, o olhar arisco, a voz vacilante, os estremecimentos – esses são os verdadeiros sinais da paixão, não o olhar direto e a resposta franca. Mesmo em minha curta vida, esse tanto eu havia aprendido – ou herdado daquela memória que nossa raça chama de instinto. (…) Houvesse o que houvesse, essa noite eu precisava acabar com o suspense e levar o assunto adiante. Ela poderia até me rejeitar, mas era melhor ser repelido como amante que aceito como irmão.

Tudo pura verdade! Malone demonstra ser sábio para seus parcos 23 anos.

Ocorre que Gladys é uma jovem sonhadora, que tem absoluta certeza de que somente poderá amar um homem que tenha se destacado por algum feito grandioso. Diante disso, Malone pede a seu editor que lhe dê a pauta mais difícil e arriscada que tiver – e é assim que vem a conhecer seu próprio "Lidenbrock" na pessoa do Prof. George Challenger (sobrenome que significa literalmente 'desafiante'), cientista de renome, mas dotado de um gênio terrível. Dois anos antes, Challenger retornou de uma expedição à América do Sul com ideias estranhas, aparentemente convencido de que, em algum lugar isolado na selva amazônica, dinossauros e outras criaturas que deveriam estar extintas há eras continuam vivas e ativas. Suas afirmações são recebidas com compreensível ceticismo, e Challenger fica possesso sempre que é posto em dúvida, já tendo chegado a agredir fisicamente mais de uma pessoa por tal motivo – o que não é um risco a se desprezar, já que trata-se de um homem de força considerável. Malone encara o "desafio" e, depois de passar maus pedaços, acaba ganhando a confiança e até um pouco da simpatia do cientista, apesar da completa ojeriza que este dedica à imprensa e a todos os seus representantes diretos e indiretos. E assim o rapaz obtém o passe para a aventura heroica que procurava: torna-se membro da expedição que acompanhará Challenger à bacia do Amazonas em busca de provas concretas de tudo o que ele afirma. Também fazem parte do grupo Lorde John Roxton, experiente caçador e aventureiro, e o Prof. Summerlee, rival de Challenger no meio acadêmico britânico, que não esconde de ninguém que seu único objetivo naquela empreitada é desmascarar o que considera uma grande farsa.

O lugar onde o tempo parece ter parado (depois se descobrirá que não é bem assim) é um platô isolado, cercado em todas as direções por milhares de quilômetros quadrados de selva fechada e pouquíssimo explorada. A teoria de Challenger é a de que, durante alguma era antiga do planeta, atividade vulcânica violenta tenha erguido esse platô, rodeando-o de rochedos intransponíveis que cortaram completamente seu acesso ao resto do mundo. A não ser pelas criaturas aladas, nada entra e nada sai. Esse isolamento teria feito com que a fauna desse pedaço da selva não acompanhasse o processo de extinções e evolução pelo qual a vida na Terra passou desde então. Uma "terra que o tempo esqueceu" – por sinal, título de um livro de Edgar Rice Burroughs, publicado em 1924 e sobre o qual suspeito fortemente de que as semelhanças não sejam mera coincidência.

O platô onde se localiza a Terra de Maple White – assim nomeada em homenagem ao desafortunado explorador norte-americano que foi seu descobridor original – não tem uma extensão muito grande: é descrito como uma área em forma de elipse, com aproximadamente 50 quilômetros de comprimento por 30 de largura máxima. A população animal que uma região desse tamanho poderia sustentar seria pouco numerosa, ainda mais em se tratando de animais de grande porte como era o caso de muitas espécies de dinossauros, mas o leitor com algum conhecimento de paleontologia (mesmo que seja apenas um conhecimento nascido da curiosidade, como no meu caso) perceberá logo que não se deve esperar muito apuro científico nas descrições que Doyle faz da fauna do lugar. A ideia em si do motivo para que os dinossauros tenham sobrevivido ali é até plausível, ainda que improvável, mas é difícil explicar que, além deles, também sejam encontrados exemplos do que hoje chamamos de megafauna, mamíferos de grande porte que dominaram a Terra durante o período Pleistoceno, entre 1,8 milhão e cerca de 12 mil anos atrás – dezenas de milhões de anos depois da extinção dos dinossauros e preenchendo os nichos ecológicos outrora ocupados por eles (é importante lembrar que foi durante o Pleistoceno que se deu o surgimento do homem, cuja atividade como caçador pode ter contribuído para a extinção de certas espécies da megafauna). O autor chega a mencionar o toxodonte, o gliptodonte (este sem citar o nome, falando apenas em “seres semelhantes a tatus”), e, com destaque, o alce-gigante, também conhecido como alce-irlandês, cervo-gigante ou megalocero, talvez o maior cervídeo de que se tem notícia. Não se tratava realmente de um alce, estando geneticamente muito mais próximo do wapiti, ou cervo-canadense (que às vezes é equivocadamente chamado de alce, o que causa confusão) e do veado-vermelho do hemisfério norte, embora seus formidáveis chifres espalmados lembrassem, de fato, os do alce que conhecemos. Era um bicho enorme, que chegava a pesar 700 quilos. O registro fóssil indica que viveu na Europa e na Ásia; sua presença na Amazônia é mera licença poética. A espécie extinguiu-se há uns sete mil anos.

(Na verdade, o uso do nome alce é problemático. Em português, essa palavra refere-se à espécie cujo nome científico é Alces alces, o maior cervídeo vivo nos dias de hoje, encontrado na América, Europa e Ásia, mas somente em latitudes bem ao norte. Quando os romanos, que nunca tinham visto semelhante animal, travaram conhecimento com ele na Germânia, adotaram [numa forma latinizada] o nome que as tribos locais lhe davam, o que veio dar na palavra latina alces, origem tanto do nome científico quanto do nome em português. Na Europa, essa espécie é chamada em inglês de elk, em alemão de Elch, em norueguês e dinamarquês de elg – todas com origem na antiga palavra elgr, que era igual em protogermânico e em nórdico antigo. Na América do Norte, os colonizadores ingleses encontraram alces iguais aos que já conheciam, mas também outra espécie de cervo de grande porte, que os índios chamavam de wapiti e era ligeiramente menor; começaram por chamar ambas, indistintamente, de elk, mas acabaram adotando moose [também de origem indígena] para a espécie maior, deixando elk para a outra, uso que se manteve nos Estados Unidos e Canadá. Na Europa, onde o wapiti não é encontrado, elk continua designando o Alces alces.)

A pergunta inevitável é: se a Terra de Maple White foi isolada do resto do mundo devido à atividade sísmica ou vulcânica na época em que os dinossauros reinavam, como foi que esses grandes mamíferos, que só surgiram em estágios muito posteriores da história da vida na Terra, foram parar lá? O Prof. Challenger tem uma teoria:

Minha própria leitura da situação (…) é que a evolução tem avançado sob as condições peculiares desta terra até o estágio vertebrado, e os tipos antigos sobrevivem e vivem em companhia dos mais novos. Por isso encontramos criaturas modernas como a anta, um animal com uma linhagem e tanto, o grande veado e o tamanduá, em companhia de formas reptilianas do tipo jurássico.

Sim, eu sei: isso não é apenas superficial – é vago demais para podermos dizer que explica alguma coisa. É claro que, num simples livro de aventuras que fala de um lugar totalmente fictício, explicar cientificamente as características de tal lugar não seria uma prioridade nos planos do autor, nem há motivo para que o fosse, mas, como estou escrevendo por prazer, eu também vou me "aventurar" e alongar um pouco mais o assunto.

Quando O Mundo Perdido foi publicado, fazia pouco mais de 50 anos que Charles Darwin havia apresentado a teoria da evolução, e, embora ela já fosse aceita pela maior parte do meio científico e acadêmico, não sei o suficiente sobre história da ciência para poder dizer até onde haviam progredido os estudos sobre o assunto, ou qual a compreensão que se tinha do funcionamento da evolução na prática, então não sei se o esboço de teoria do Prof. Challenger está de acordo com o que se pensava ou o que se sabia na época, mas, à luz da biologia atual, pode-se apontar pelo menos um grande problema: sabe-se hoje que é muito improvável (para dizer o mínimo) que populações de uma mesma espécie, isoladas umas das outras, evoluam exatamente da mesma maneira – ainda que expostas a idênticas condições ambientais. Em outras palavras, vamos admitir que, quando a Terra de Maple White se formou, tenham ficado presos lá, junto com os dinossauros, alguns dos pequenos mamíferos primitivos que já existiam nos períodos Jurássico e/ou Cretáceo: a probabilidade de que esses animais dessem origem, milhões de anos depois, a antas ou alces-gigantes iguais aos do mundo exterior seria, a bem dizer, inexistente. Teriam, certamente, evoluído para novas espécies, mas estas seriam únicas, endêmicas do platô e diferentes das encontradas em qualquer outro lugar – e é provável que fossem todas pequenas, já que os nichos ecológicos disponíveis para espécies de grande porte estariam ocupados pelos dinossauros. E tem mais: por que os mamíferos teriam evoluído, enquanto os dinossauros permaneciam tal como eram? Mas não vamos julgar Doyle: premissas mais esdrúxulas que a de O Mundo Perdido já renderam boas histórias. O livro foi escrito para divertir, e não há dúvida de que o faz muito bem.

Esta edição termina com Grandes, Assustadores e Extintos, artigo de autoria de Samir Machado, tradutor e responsável pelas notas, como dito no início. Mesmo com um perceptível ranço politicamente correto, é um texto interessante, cheio de curiosidades sobre a longa e profícua carreira dos dinossauros no imaginário e na cultura popular, com ênfase em suas aparições no cinema, desde a primeira filmagem do próprio O Mundo Perdido, em 1925 (ainda nos tempos do cinema mudo), até a franquia Jurassic Park, criada por Steven Spielberg com base em um livro de Michael Crichton e cujo mais recente episódio foi lançado em 2018. Entretanto, a influência dos dinossauros sobre a imaginação humana não começou no cinema e nem mesmo na literatura escrita (lembrem-se de que narrativas orais também são uma forma de literatura): é fascinante pensar que fósseis de dinossauros, encontrados por acaso séculos antes que esses animais fossem conhecidos pela ciência, foram a provável origem dos mitos não só sobre dragões, mas também sobre outros seres fantásticos. Esqueletos de protocerátops – um ancestral da linhagem dos famosos tricerátops e estiracossauro –, que eram achados em quantidade na Ásia central, podem ter dado origem à lenda do grifo, um animal com quatro patas e bico de ave!… Voltando por um instante à primeira adaptação cinematográfica de O Mundo Perdido, descobri no artigo de Machado que os dinossauros desse filme foram criados por um cidadão chamado Willis O'Brien, um dos pioneiros da animação stop motion e, mais tarde, mentor do jovem Ray Harryhausen, por sua vez responsável por dar vida a tantas criaturas extintas ou fantásticas, em filmes inesquecíveis inspirados na mitologia grega e em As 1001 Noites, tais como Fúria de Titãs, Jasão e os Argonautas, Sinbad e o Olho do Tigre e tantos outros… Para mim e outros da minha geração, a menção desses títulos é suficiente para fazer bater aquela nostalgia. Harryhausen teve o privilégio de ser amigo de infância de outro Ray – Ray Bradbury, e os fãs de ficção científica conhecem bem o peso desse nome. Os dois Rays uniram forças num filme lançado em 1953, com o título The Beast from 20000 Fathoms; uma tentativa de tradução direta resultaria em algo tão horroroso quanto A Fera que Veio de 20000 Braças de Profundidade (arre!), motivo pelo qual, ao chegar ao Brasil, o filme foi rebatizado como O Monstro do Mar. Há mais curiosidades desse tipo esperando pelos leitores nesse artigo.

Para concluir, quero prestar o devido reconhecimento à editora Todavia, já que O Mundo Perdido há muito andava ausente das livrarias nacionais, e o retorno deu-se de maneira digna, com esta edição agradável e bem cuidada. O único senão é o mesmo do qual já me queixei uma vez aqui no blog, a coisa de terem decidido colocar as notas no final em vez de no rodapé das páginas, o que compromete o dinamismo da leitura. Sugiro rever isso nas próximas edições.

quarta-feira, dezembro 19, 2018

Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo

Quer dizer então que você está numa situação na qual precisa demonstrar inteligência e "espírito independente", mas não sabe muito bem como fazer isso? Precisa fazer uma média com aquele seu professor marxista de História ou de sociologia? Quer causar uma boa impressão naquela rodinha de colegas "intelectuais" que se reúnem no bar da faculdade e com quem você está tentando se enturmar? Quer "lacrar" numa discussão na internet? Nada mais fácil: ataque a Igreja Católica. Nem precisa entrar em controvérsias teológicas (aliás, isso nem é aconselhável, pois o seu "público-alvo", incluído aí o professor marxista, não entenderia nada): basta falar de como ela incitou o ataque (gratuito e sem provocação, é claro) aos coitadinhos dos muçulmanos nas Cruzadas, matou milhões de pessoas inocentes (todas inocentes, naturalmente) na Inquisição, tramou esquemas manipulando reis e Estados, só para ficar mais rica e poderosa, empatou o progresso da ciência durante séculos, legitimou a escravidão declarando que os negros "não tinham alma"… Isso são apenas alguns exemplos. A lista de distorções, meias-verdades, exageros e simples mentiras deslavadas é longa e você pode escolher à vontade sem perigo de errar. Basta enfileirar duas ou três observações (pouco importa o quão tolas e sem fundamento: sendo contra a Igreja, qualquer coisa serve, e não é preciso provas) sobre qualquer um desses pontos, e pronto: você deu a impressão de que é inteligente e estão garantidos os aplausos.

Muito bem, mas e a verdade? A Igreja Católica, praticamente sozinha, foi a responsável por manter a civilização ocidental viva quando o Império Romano desmoronou e povos bárbaros tomaram conta da Europa; mais tarde, também foi ela, e ainda praticamente sozinha, quem conseguiu domar esses mesmos povos bárbaros e criar condições para que a civilização voltasse a florescer – e não torçam o nariz quando falo em civilização: barbárie só é bacana em história do Conan. Dentro dos muros de mosteiros e abadias (católicos, não é demais lembrar), bibliotecas bem organizadas preservaram o conhecimento do mundo greco-romano, em livros que os bárbaros teriam queimado sem pensar duas vezes… Que digo eu? Sem pensar sequer uma vez. Foi dentro desses mesmos muros que a ciência moderna deu seus primeiros passos, sim senhor. Foi em torno da fé católica que tribos e grupos étnicos que não tinham mais nada em comum se uniram para formar os primeiros Estados nacionais da forma como os entendemos. Hospitais e universidades? Devemos à Igreja Católica. Devo continuar? Poderia ir longe, mas creio que basta por enquanto.

Este livro, escrito por um sujeito chamado John Zmirak (uma das principais cabeças por trás do site e jornal The Stream), mostra mais uma vez que sempre há coisas a aprender, mesmo sobre assuntos que acreditamos já dominar. Não que eu alguma vez tenha alimentado a ilusão de saber tudo sobre a Igreja Católica, apesar de haver congregado nela durante toda a minha vida, o que, agora, já significa um tempinho bem considerável. Porém, a Igreja é uma realidade imensa e complexa, que não se pode ver ou abarcar com a inteligência de uma vez só, e há de fato um ou dois temas específicos ligados a ela que eu acreditava conhecer bem – até agora. A oportunidade de aprender mais sempre me deixa contente, e ainda mais se for num livro como este, escrito do jeito que me agrada: com uma levada dinâmica, um assunto conduzindo ao outro com fluência, mas sem nunca perder o foco, numa linguagem rica e elaborada, sem pedantismo desnecessário, e valorizada, nesta edição, por uma tradução de qualidade, coisa que, infelizmente, vem se tornando cada vez mais rara em edições brasileiras – parabéns e obrigado ao tradutor Raul Martins (OK, há alguns problemas de português aqui e ali, mas nada que comprometa). Por outro lado, recomendo que desconsiderem a capa de péssimo gosto, feita por um tal Fernando Mena. O que dá pena é saber que o livro será lido mais por católicos mesmo, e dificilmente chegará às mãos daqueles que mais precisariam lê-lo. Mas vamos ver o lado bom: há tantos assuntos importantes aqui, e esmiuçados de forma tão eficiente, que quase nenhum católico do planeta poderá percorrer estas 367 páginas e, ao final, dizer que não leu nada que já não soubesse.

Nota-se que Zmirak se esforçou, entre outras coisas, para dar ao leitor um panorama o mais atual possível da situação vivida pela Igreja (talvez um cacoete trazido do jornalismo), o que terá a desvantagem de deixar parte do livro datada depois de alguns anos. Por outro lado, a maior parte dele trata de temas que serão sempre atuais – e mesmo aquilo que ficar datado terá o valor de registro histórico deste turbulento início de milênio. Como boa parte dos católicos mundo afora, Zmirak não parece lá muito contente com certas atitudes do atual papa, Francisco. Partindo disso, o autor aborda seu primeiro ponto: a noção equivocada que muita gente (inclusive muitos católicos) tem, de que o fiel católico tem por obrigação aceitar tudo o que o papa disser sobre qualquer assunto – e, mais equivocado ainda, de endossar tudo o que ele fizer. Os pseudointeligentes aos quais eu me referia no início do texto ouvem falar no dogma da infalibilidade papal e, sem se darem ao trabalho de procurar saber o que isso realmente significa, abrem logo a boca: "Mas cooomo? Como assim, o papa é infalível? E todos os papas corruptos e assassinos que existiram? Eles também eram infalíveis?" Que fique claro: a infalibilidade é, de fato, um dogma da Igreja, mas só se aplica ao que o papa declarar ex cathedra, quer dizer, às suas declarações oficiais sobre a fé e a moral – e somente sobre esses assuntos. Ao fazer esse tipo de declaração, o papa está amparado pelo Espírito Santo, que, no interesse de toda a Igreja, o preserva do erro… Desnecessário dizer que isso é um artigo de fé, o que significa que é algo em que a pessoa simplesmente acredita ou não acredita – e, se você não é católico, é muito provável que não acredite. Em todo caso, as declarações papais a respeito de fé e moral têm-se mostrado de uma notável constância e consistência ao longo desses vinte séculos repletos de chuvas e trovoadas de todos os tipos.

Passando para outros temas, entretanto, a coisa toda é diferente. Se o papa quiser emitir opiniões sobre política ou ecologia, é claro que ele pode, mas essas serão meramente suas opiniões, com as quais nenhum de nós tem a obrigação de concordar, e, no que se refere a sua conduta pessoal, ele é tão falível e propenso ao erro quanto qualquer outro homem. Os papas indignos registrados pela História tomaram o cargo, ou foram colocados nele, por meio de manobras escusas, e unicamente por causa do poder político que ele trazia junto; não estavam minimamente interessados em espiritualidade e não me consta que tenham feito declarações oficiais sobre fé e moral – o que, com a licença dos incrédulos, nós acreditamos ser mais um indício da ação do Espírito Santo. Mais ainda: bulas, encíclicas e demais documentos redigidos pelo papa, ou por ele determinados, destinam-se a esclarecer pontos da fé e nortear a conduta da Igreja e dos fiéis diante de novas circunstâncias trazidas pelas constantes mudanças que o mundo atravessa. Consistem em orientação, não são declarações ex cathedra, e não são infalíveis. O fiel católico deve prestar-lhes atenção e levá-los em grande consideração, como o faria com o conselho de qualquer pessoa sábia e instruída, mas não é obrigado a aceitar tudo o que contenham. Por fim, há que se observar que declarações papais apoiadas no dogma da infalibilidade são muito raras: o dogma (que já existia de forma implícita desde os primeiros tempos da Igreja) foi oficialmente proclamado durante o concílio Vaticano I, que ocorreu em 1869-70, e, desde então, foi aplicado apenas duas vezes.

O livro prossegue tocando em pontos que, por vezes, se mostram espinhosos para os católicos de hoje; é claro que não tem como oferecer soluções para a maioria deles, mas consegue esclarecê-los bastante e, de modo geral, fornecer um lembrete de como deveríamos agir em relação a cada uma dessas questões, caso queiramos ser católicos de verdade, e não meros "católicos de IBGE". Não que isso seja fácil, é claro. A questão da contracepção, por exemplo: historicamente, a Igreja sempre a considerou reprovável, e até hoje não aprova o uso de coisas como pílula e camisinha – mas não venham querer culpar a Igreja por haver tanta gente por aí transando sem proteção: se o povo ligasse para o que a Igreja diz sobre vida sexual, manteria abstinência até o casamento e fidelidade a partir daí, de modo que o risco das doenças venéreas praticamente não existiria e a tal proteção seria desnecessária. Não vou ser hipócrita e dizer que sempre segui esses preceitos à risca (sou solteiro e já mantive relacionamentos íntimos, sim; como Zmirak, assumo minha condição de mau católico), mas o fato é que, embora ele possa parecer nada mais que um moralismo ultrapassado, na verdade é a única orientação que a Igreja pode efetivamente oferecer sobre esse assunto sem trair alguns de seus princípios mais fundamentais – o primeiro deles sendo o de que não estamos neste mundo a passeio: há um Deus que colocou uma ordem nas coisas e espera de nós que ajamos em conformidade com ela. O problema com os contraceptivos, na visão da Igreja, é que eles desvinculam o sexo da função que o Criador lhe atribuiu, que é a da reprodução. Conhecendo a natureza humana (e, creiam, a natureza humana é algo que a Igreja, ao longo desses dois mil anos, teve oportunidade de conhecer muito bem), fica evidente para qualquer um que, uma vez rompido esse vínculo, o sexo vira um reles parque de diversões – e alguém aí vai negar que é exatamente assim que a sociedade moderna e secularizada o compreende? A Igreja não pode compactuar com isso e continuar sendo a Igreja. Ponto. Ninguém jamais disse que ser católico era fácil.

Por outro lado, mesmo o sexo dentro do casamento tem as suas complexidades. A Igreja não pretende que todo ato sexual entre marido e mulher resulte num filho, mas ensina que, se e quando isso acontecer, a criança gerada deve ser recebida com amor e educada com responsabilidade. Isso vale hoje como valia há quinhentos, mil ou dois mil anos. O que mudou foram outras coisas. Em séculos anteriores, controlar a quantidade de nascimentos não era uma preocupação, nem para a sociedade, nem para as famílias. Um casal dificilmente poderia ter filhos demais: tê-los em grande número era uma necessidade. Era preciso ter uns dez para que houvesse ao menos uma boa chance de que dois ou três chegassem à idade adulta. Além disso, nas sociedades eminentemente rurais desses tempos, o custo de se criar um filho era baixo, já que só era necessária uma educação rudimentar, e ele podia, desde tenra idade, começar a ajudar os pais no trabalho. Ocorre que, de lá para cá, o progresso da medicina e a melhoria das condições de vida da população em geral fizeram as taxas de mortalidade infantil despencarem, ao mesmo tempo em que a urbanização da sociedade, com a consequente demanda por profissionais cada vez mais especializados, passava a exigir um outro tipo de educação – mais demorada e mais cara. Em resumo: se, como no exemplo acima, o casal tivesse dez filhos, agora era provável que todos os dez sobrevivessem, e todos precisavam ir para a escola. Nessa nova realidade, não seria razoável da parte da Igreja censurar os casais que quisessem limitar os nascimentos na família ao número de filhos que pudessem efetivamente alimentar e educar. Mas, nesse caso, como fica? Se você só pode criar três filhos e já tem os três, deve simplesmente parar de fazer sexo com sua esposa ou marido? A resposta, que poderá surpreender a muitos, é um redondo não, pois, ainda que a função natural do sexo seja a reprodução, ele não pode ser reduzido apenas a isso: é também parte importante da vida e da intimidade de um casal. Para resolver o problema, a Igreja recomenda o que chama de métodos naturais, que consistem basicamente em calcular os períodos férteis da mulher e evitar fazer sexo durante os mesmos; se isso funciona na prática, é controverso. Além disso, uma mudança de entendimento não parece impossível, ao menos não desde que o papa Bento XVI admitiu que o uso da camisinha é aceitável em certas situações, o que sinaliza que o problema não é a camisinha em si, mas o modo como ela vem sendo usada e propagandeada: como um instrumento para desvincular o sexo de qualquer tipo de compromisso ou responsabilidade.

Sobre não ser fácil ser católico, como dito acima, Zmirak escreve: "É claro, há muitos pontos nos quais a fé cristã tradicional, e sobretudo em sua forma católica, é frustrante e exigente. Não precisaríamos do sacramento da Confissão se viver uma vida cristã nos fosse algo natural, como respirar, comer ou fazer valer nossa vontade às custas dos outros." O livro está coalhado de espetadas certeiras e cruamente realistas como essa. Ao longo das últimas décadas, e particularmente no ocidente, a mídia e uma educação tendenciosamente torta têm tentado criar nas mentes a ideia de que a natureza é sempre o modelo de perfeição e de que o melhor que fazemos é obedecer sempre a ela, o que significa sempre seguir nossos instintos – mas uma análise um pouco mais profunda da questão leva-nos a perceber que isso equivaleria a assinar embaixo de atos como roubo, assassinato e estupro, que são, sim, tendências naturais em primatas como nós, como o estudo do comportamento dos nossos primos quase irmãos, os chimpanzés, não deixa dúvida. O que nos faz seres racionais, capazes de respeitar os direitos uns dos outros e de viver em sociedade, é a nossa capacidade de contrariar os nossos instintos, quando eles nos querem levar a ter comportamentos antissociais. Em outras palavras, nossa capacidade de decidir quando obedecer à natureza e quando lutar contra ela – o que sempre foi uma das bases do ensinamento da Igreja.

Afora as questões que dizem respeito a todo católico em qualquer lugar do mundo, Zmirak (talvez de forma não premeditada, o que torna tudo mais revelador) acaba por nos oferecer um vislumbre de como é ser católico nos Estados Unidos, país predominantemente protestante, onde, não raras vezes ao longo da História, professar a fé romana foi fator de discriminação: dependendo da época e da região do país, ser católico não era mais fácil, nem mais seguro, que ser negro ou judeu. Além disso, o autor expõe seu parecer, na qualidade de católico, sobre diversas questões da realidade do país, também aplicáveis, em maior ou menor grau, a outros países. A ideia do presidente Trump de construir um muro na fronteira dos EUA com o México, por exemplo, pode ser uma maluquice pra ninguém botar defeito – mas a imigração descontrolada é um problema real, não mera paranoia. E, no entanto, o papa Francisco costuma falar como se fosse um dever moral de toda nação próspera receber de braços abertos qualquer imigrante que a procure, isso apesar de o próprio Catecismo da Igreja Católica prever que esse acolhimento deve ocorrer "até onde for possível", e não parece descabido interpretar esse "até onde for possível" como significando que uma nação não deve descuidar de seus próprios cidadãos porque precisa se virar com um número absurdo de imigrantes. Zmirak se alonga, nessa parte, discorrendo sobre os efeitos da política de imigração sobre a sociedade dos EUA, o que pode parecer sem relação com a realidade dos não-estadunidenses, mas não é bem assim – primeiro, porque muito do que acontece lá também acontece em outros países, e segundo, porque, queiramos ou não, o que afeta os EUA também nos afeta indiretamente.

E, se a torrente de imigração preocupa os norte-americanos, o que dizer, então, da Europa? Os europeus estão tendo cada vez menos filhos, pelos motivos discutidos acima, e isso parece ser uma questão de mentalidade, fora do alcance da influência quer da Igreja, quer do Estado, pelo menos a curto prazo. Enquanto isso, levas intermináveis de imigrantes chegam todos os anos – a maioria deles oriundos de países muçulmanos. É claro que, em sua vasta maioria, são pessoas de bem, que querem apenas encontrar trabalho e construir prosperidade para si e suas famílias… Mas nem todos, como mostra o fato de muitos dos atentados "em nome do Islã" praticados nos últimos anos na Europa terem sido obra de pessoas que entraram nela legalmente; em alguns casos, até mesmo de filhos de imigrantes, que já nasceram no novo país, têm cidadania nele – e, mesmo assim, o atacaram. Mesmo que não houvesse o perigo do terrorismo para ser levado em conta, é inevitável nos perguntarmos que efeitos terá, a longo prazo, essa entrada maciça de muçulmanos na Europa, principalmente no aspecto cultural. Em palavras simples: o que isso fará com a identidade do ocidente? Na Idade Média, a Igreja convocou as Cruzadas, que, embora execradas pela corja politicamente correta, salvaram nossa civilização… Acontece que, como costumo dizer, os cruzados contavam, ao menos, com a vantagem de saber quem era o inimigo e onde ele estava. Hoje, o inimigo pode ser qualquer um, em qualquer lugar.

Não estou de acordo com todos os pontos de vista de Zmirak, é claro. A defesa veemente que ele faz do direito à posse e ao porte de armas, por exemplo, parece ter muito mais a ver com sua formação de americano-de-classe-média-que-sempre-vota-nos-republicanos que com a fé católica – e, antes que alguém me interprete mal, esclareço que não sou radicalmente contra esses direitos, nem irrestritamente a favor deles: como em tudo na vida, o meio-termo é a melhor coisa. O modelo norte-americano, que permite que praticamente qualquer um compre uma arma como quem compra um guarda-chuva, é insensato, mas tampouco parece certo negar às pessoas qualquer meio prático de defender sua integridade física e a de sua família, bem como seu patrimônio. Por isso, acho válido que se tenha armas, desde que o controle seja rígido, constante, e inclua todos os testes psicológicos possíveis, que deveriam ser repetidos com frequência. Se você quer ter uma arma, prove que é equilibrado e responsável o suficiente para fazer bom uso dela – que não é apenas mais um babaca que se acha um "cidadão correto" e sairá dando tiros na primeira discussão de trânsito em que se envolver. Por outro lado, um dos capítulos mais interessantes do livro é aquele no qual Zmirak se dedica a desfazer uma ideia muito comum – tão comum, de fato, que um número enorme de católicos acredita nela: o de que o católico, e o cristão em geral, deve ser um pacifista, incapaz de matar um mosquito, não importa a situação. O papa Paulo VI liquidou o assunto (ou assim deveria ter sido) ao declarar que o cristão ama a paz, mas não é pacifista. "Paz a qualquer preço" é uma ideia ingênua (na qual, confesso, eu mesmo já acreditei); a posição da Igreja, e, a meu ver, a de qualquer pessoa realista, é a de que, embora a guerra seja sempre um mal, há momentos na História em que ela é o mal menor. Junto com as questões das armas e da guerra, Zmirak debate também a da pena de morte – assunto esse no qual faço grandes ressalvas aos pontos de vista que ele expressa, embora precise admitir que o faz de forma coerente e bem argumentada.

O capítulo X trata da relação entre a fé católica e a ciência – e não deixa sobrar nada da noção, tão difundida, de que a Igreja fez e faz tudo ao seu alcance para impedir o progresso científico e manter a humanidade eternamente aprisionada numa bolha de obscurantismo. Esse é um dos porretes favoritos dos que querem bater na Igreja, e podemos retraçar sua origem até os filósofos iluministas da segunda metade do século XVIII – eles mesmos, os mentores intelectuais da Revolução Francesa, cujos virulentos ataques ao cristianismo e particularmente ao catolicismo tinham clara intenção política, pois o apoio da Igreja era um dos pilares do poder dos reis, o que levava tais filósofos a se sentirem na obrigação de tentar demoli-la. Destacam-se nomes como Diderot, Montesquieu e, principalmente, Voltaire (1694-1778), consumado hipócrita que escrevia manifestos contra a escravidão que levavam seus leitores às lágrimas e, enquanto isso, investia suas economias pessoais em ações de navios negreiros. Não por acaso, foi Voltaire quem inventou e alardeou o quanto pôde que a Igreja afirmava que os negros não tinham alma e que, por isso, não havia problema em escravizá-los – estupidez essa até hoje repetida à exaustão quando alguém que acha que sabe algo sobre alguma coisa quer parecer "crítico" e inteligente. Um pouco de pesquisa séria e imparcial (o que, claro, é pedir demais a esse tipo de gente) revela a realidade: a escravidão era simplesmente algo que sempre tinha existido e que a Igreja não tinha poder para mudar, ao menos não sozinha; sendo assim, fazia o que estava ao seu alcance, exortando a quem tivesse escravos para que os tratasse de forma justa, sob pena de pecar gravemente – o que pode parecer ridículo para a mentalidade atual, mas constituía preocupação séria para a maioria das pessoas naquela época. E tem mais: será que ninguém se pergunta por que é que a Igreja sempre insistiu para que todos os escravos fossem batizados? Se fizesse parte da crença católica que os negros não tinham alma, batizá-los seria como batizar bezerros – inútil além de sacrílego.

Mais uma vez, divaguei: a maior parte do que vai no parágrafo anterior não está no livro de Zmirak, que só toca muito de passagem nos filósofos iluministas; mesmo assim, trata-se de informação que considero relevante, de modo que fica como está. Voltemos agora ao capítulo X, do qual eu estava começando a falar.

O fato nu e cru, meus amigos, é que a Igreja não empatou o progresso científico – ela o promoveu, e Zmirak se sai muito bem em mostrar que, apesar das notáveis realizações intelectuais de todas as civilizações antigas, foi necessária a cosmovisão cristã da Europa medieval para que a ciência experimental pudesse nascer. Enquanto os antigos enxergavam o universo como uma realidade essencialmente caótica, na qual seria impossível ao intelecto humano se aprofundar muito, a filosofia de base cristã via esse mesmo universo como a criação de um Ser racional e que, portanto, possuía uma ordem que refletia a mente de Deus; como a nossa mente, por sua vez, foi feita à imagem e semelhança da do Criador, não nos seria impossível chegar a compreender (mesmo que de forma limitada) a natureza de Sua obra. Daí porque cientistas cristãos – muitos deles padres ou monges – construíram, no decurso de alguns séculos, mais conhecimento científico prático do que havia sido alcançado em milênios antes. Mesmo casos como o de Galileu Galilei (que, por falar nisso, foi sentenciado à prisão domicilar, e não queimado na fogueira, como já ouvi vários "gênios" afirmarem) muitas vezes não foram bem do jeito que nos contaram: Galileu, em que pese seu brilhantismo científico, tinha um temperamento difícil e sérios problemas de ego, o que o levou a comprar brigas com autoridades eclesiásticas por motivos que pouco tinham a ver com sua teoria heliocêntrica.

E, é claro, um capítulo sobre Igreja e ciência não estaria completo sem dedicar alguma atenção à questão "Deus x Darwin"… Para começar, colocar a coisa nesses termos, como se Darwin alguma vez tivesse tentado se igualar a Deus, ou como se crer num deles fosse necessariamente sinônimo de descrer do outro, é uma visão simplista e tola, propícia ao sensacionalismo de certos setores da mídia – ou ao fundamentalismo burro. Zmirak dá o recado, embora de forma muito resumida, dedicando à questão da evolução muito menos espaço do que já houvera dedicado a assuntos, a meu ver, bem menos relevantes; a impressão que tive foi de que ele próprio não simpatiza muito com Darwin, embora esteja de acordo com o fato de que não é preciso jogar fora A Origem das Espécies para ser fiel à Bíblia, ou vice-versa. O que precisamos notar é que, apesar de alguns cristãos fundamentalistas (em geral de igrejinhas protestantes picaretas, mas há um ou outro católico no meio) ainda hoje insistirem em ler o Gênesis ao pé da letra, a posição oficial da Igreja é a de que o livro é, em grande parte, alegórico. O autor bíblico (e, cremos nós, o próprio Deus ao inspirá-lo) não estava querendo nos ensinar ciência, mas apenas transmitir a verdade básica de que tudo o que existe tem em Deus sua origem primeira; como, exatamente, essa criação se deu, está aberto à investigação. E, como diz o ditado, quem procura acha: sinais da evolução estão por toda parte. Baleias possuem certos ossos sem função alguma, vestígios das patas traseiras que seus ancestrais, animais terrestres, um dia tiveram. Da mesma forma nós próprios, humanos, ainda temos algumas vértebras caudais. A ordem de mamíferos conhecida como os monotremos se distingue pelo fato de pôr ovos e amamentar os filhotes que saem deles – um claro indicativo de que os mamíferos evoluíram a partir dos répteis. Até mesmo nossos dentes não passam de escamas modificadas!… Quem rejeita a teoria de Darwin, geralmente não a entendeu, e os poucos que entenderam e ainda assim a rejeitam, o fazem por pura ideologia, não por uma convicção baseada em evidências. Há inúmeras pessoas religiosas instruídas que aceitam tranquilamente a ideia da evolução, e, do outro lado, há também muitos cientistas evolucionistas que acreditam em Deus – vide o "evolucionismo teísta" defendido por Alister McGrath. A meu ver, aceitar a teoria da evolução (que, como disse o papa São João Paulo II, na verdade "é mais que uma teoria") não conflita de forma alguma com a crença em Deus; pelo contrário, um sistema tão perfeito aponta para a existência de um Intelecto que deve tê-lo coordenado.

E creio que já escrevi o suficiente: isso tudo já dá um bom vislumbre dos assuntos tratados neste Manual Politicamente Incorreto do Catolicismo, cuja leitura recomendo sem dúvida para católicos interessados em conhecer melhor sua Igreja e a fé que ela professa, e para não-católicos dotados desse dom, hoje em dia tão raro, que chamamos de honestidade intelectual, em grau suficiente para desejar conhecer a verdadeira história, missão e propostas dessa instituição tão falada e tão pouco compreendida, antes de começar a apedrejá-la. Há uma pá de outros assuntos abordados no livro e sobre os quais fiquei tentado a discorrer, mas isso deixaria o texto longo demais (desconfio que ele já esteja, de qualquer forma). Terei oportunidade de tocar nesses assuntos quando estiver comentando outros livros, tanto de ficção quanto de não-ficção, que já estão na minha lista. Então, vamos para a conclusão.

Uma análise histórica isenta, independente da crença, ou falta dela, de cada um, mostra que, desde os filósofos iluministas, como visto acima, um grande esforço vem sendo feito para difamar e desacreditar a Igreja, e que a quase totalidade dos órgãos da mídia em nossos dias está firmemente comprometida com esse objetivo, seja por estar nas mãos dos inimigos da Igreja ou porque os profissionais que dirigem esses órgãos, e produzem o conteúdo que veiculam, foram adequadamente doutrinados e agora acreditam sinceramente estar divulgando a "verdade". O que se quer, em resumo, é que aqueles ainda suficientemente teimosos para continuarem a ser católicos tenham vergonha de fazer parte da Igreja e cultivem uma atitude do tipo "desculpem-me por ser católico", quando, na verdade, deveriam ter orgulho disso. Coisas como as Cruzadas e mesmo a Inquisição (nomes que soam praticamente como palavrões aos ouvidos de muita gente) na realidade foram muito diferentes daquilo que a mídia quer que o público acredite que foram: houve abusos e arbitrariedades como sempre há em qualquer empreendimento humano (abusos e arbitrariedades quase sempre cometidos por indivíduos ou grupos, e que a Igreja teria impedido se pudesse), mas elas tiveram sua razão de existir e, cada uma a seu modo, evitaram grandes desastres em suas respectivas épocas.

Em nossos dias, a tirania do politicamente correto tornou-se o principal instrumento usado para tentar impedir a Igreja de levar a cabo sua missão, ou deveria dizer suas missões; a primeira é aquela que Cristo tinha em mente ao fundá-la, e que consiste em ajudar homens e mulheres a salvarem suas almas, mas há outra que ela tomou sobre si ao longo dos últimos dois milênios, que é a de manter a civilização ocidental de pé, por mais atacada que ela seja e por mais que também tente se autodestruir. O pior é ver que muitos católicos (até mesmo sacerdotes) se deixam levar por esse discurso castrador e hipócrita. Tornou-se "feio" dizer a verdade sem eufemismos e chamar as coisas pelos nomes que elas têm. Em tal cenário, o aparecimento de livros como este é providencial – e para nós, católicos, literalmente, pois pode ser visto como um sinal da providência divina. Como disse antes, só tenho pena de que o livro de Zmirak dificilmente será lido por aqueles a quem mais poderia fazer bem. Ninguém é obrigado a partilhar da nossa fé, mas, para os que partilham, a promessa de Cristo ("Pois eu te digo, tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela." Mt 16:18) é uma injeção diária de coragem e uma garantia da vitória final, pouco importa o quão numerosos e poderosos sejam os inimigos, ou de quanta perfídia façam uso.

quinta-feira, outubro 25, 2018

O Voo da Águia

O segundo volume da saga Águias do Império de Simon Scarrow começa praticamente onde o primeiro termina. O exército romano acaba de estabelecer sua primeira base de operações relativamente firme em solo britânico, tendo enfrentado para isso uma árdua batalha, e prepara-se para prosseguir com seu avanço de conquista. O general Aulo Pláucio e seus oficiais (entre eles Vespasiano, legado da Segunda Legião Augusta, e seu tribuno superior, Vitélio) sabem que precisam tomar a cidade de Camulodunum (trata-se da atual Colchester, e nesta tradução adota-se a versão aportuguesada "Camulodônia") antes que o mau tempo do outono e inverno tornem inviável a continuidade da campanha pelo restante do ano: a cidade é sede da aliança de tribos forjada por Carátaco, chefe dos catuvelaunos, para tentar resistir à invasão romana. Esse movimento tem dupla importância: tomando Camulodunum, os romanos quebrarão a espinha da aliança dos bretões e, além disso, darão uma de-monstração de força que poderá convencer várias tribos britânicas ainda neutras a apoiá-los. Se falharem e tiverem que esperar até a primavera seguinte, poderá ser tarde demais, pois Carátaco terá tempo de consolidar sua aliança e desferir um ataque fatal, tirando vantagem de sua superioridade numérica e melhor conhecimento do terreno. Só que tomar Camulodunum não será fácil: só para chegar até a cidade, as legiões precisarão atravessar dois rios, o Durobrivae (que, por alguma razão, Scarrow preferiu chamar pelo nome moderno, Meadway) e o Tamesis (Tâmisa), obstáculos naturais que Carátaco, sem dúvida, saberá usar a seu favor.

Nos bastidores da Segunda Augusta, a rivalidade velada entre Vespasiano e Vitélio está equilibrada, graças ao princípio da "destruição mútua assegurada": cada um conhece certos segredos que, se revelados, custariam a carreira e, provavelmente, também a vida do outro. Isso mantém os dois disputando um tenso jogo de xadrez no qual um só passo em falso pode ser fatal. Ambos estão destinados a serem imperadores – um deles por curto tempo e deixando uma memória ingrata, enquanto o outro se tornaria um dos mais notáveis a vestir a púrpura durante os 500 anos do período imperial romano. Porém, nessa época ainda não há como alguém saber disso.

Já entre os "meros mortais" que integram a legião, o jovem Quinto Licínio Cato, já com quase um ano de caserna, está, por fim, sentindo-se um legionário digno desse nome e, como optio, sua ajuda é valiosa para seu centurião, Lúcio Cornélio Macro, homem bravo e justo, mas um tanto bronco. Junto com a Nona, Décima Quarta e Vigésima legiões, a Segunda Augusta atravessa o Durobrivae em meio à feroz oposição dos bretões, resultando numa batalha sangrenta, na qual a Segunda, por estar com seu contingente reduzido, é utilizada como reserva… mas, para a aflição de Macro, Cato e seus companheiros, no momento em que eles são mais necessários e estão prontos para entrar em ação, a ordem de avançar não vem – e, desnecessário dizer, sem essa ordem eles não podem intervir, de modo que são obrigados a ficar olhando enquanto a Nona enfrenta a fúria dos bretões e sofre baixas pesadas. Chega a parecer que alguém no comando está sabotando a batalha, mas a Nona confirma a fama de unidade valente e durona que já então tinha, e ganha o dia, mesmo com tudo indo contra. A ordem para a Segunda avançar, quando finalmente vem, parece ter sido dada no último momento possível. Ainda assim, há luta suficiente para que Cato abata mais alguns inimigos e sofra um ferimento de certa gravidade.

As provações ainda estão longe de acabar. Na região pantanosa entre o Durobrivae e o Tamesis, a Segunda Legião, impossibilitada de se reagrupar, fica dividida em pequenas subunidades que se veem envolvidas numa série de escaramuças, nas quais os bretões, familiarizados com o terreno, levam vantagem. Num momento desesperado, em que a Sexta Centúria, já reduzida em número, parece na iminência de ser aniquilada, Macro ordena a Cato que tente salvar o restante da centúria enquanto ele próprio fica para trás, com um punhado de homens, para tentar atrasar o inimigo, num ato heroico e praticamente suicida. O jovem optio cumpre a missão, mas fica totalmente sem chão com a perda de seu centurião, que ele julga morto… Claro que não é spoiler dizer que Cato está enganado – todo mundo sabe que a série continua ainda por vários volumes e que, neles, Macro continua aparecendo, mas, durante alguns dias, não se tem notícias dele, o que automaticamente coloca Cato no comando interino, função na qual ele não se sente nada à vontade – e quem poderia culpá-lo, sendo ainda tão pouco experiente? De qualquer forma, Cato e os soldados, de comum acordo, determinados a vingar seu centurião, apresentam-se como voluntários para fazer parte da primeira leva de tropas que atravessará o Tamesis; essa primeira leva terá que segurar as coisas por ali até que a segunda chegue para ajudá-la, e mesmo os meros minutos que os transportes levarão para cruzar o rio de volta, embarcar a segunda leva e retornar podem ser tempo suficiente para que eles sejam massacrados. Essa parte é muito propícia a que Simon Scarrow dê mais uma demonstração de suas habilidades como narrador de batalhas. É interessante notar que esse tipo de batalha – um exército tentando atravessar um rio, fosse vadeando-o ou por meio de embarcações, enquanto o outro tentava impedi-lo – seria muito típico das guerras medievais, séculos mais tarde. As legiões romanas eram insuperáveis como infantaria pesada, mas, justamente por causa do peso de seu equipamento, sua mobilidade no campo de batalha era limitada; era mais vantajoso para elas esperar que o inimigo tomasse a iniciativa de atacar, mas, devido à própria natureza das batalhas travadas no Durobrivae e no Tamesis, desta vez viram-se forçadas a assumir postura ofensiva, o que teve seus custos em termos estratégicos e acarretou sérias baixas. A conquista da Britânia não sairia barata ao Império.


Uma vez assegurado o controle da travessia dos rios, o exército comandado por Pláucio está finalmente em condições de avançar para Camulodunum, mas não pode fazer isso de uma vez: o imperador Cláudio, determinado a tirar daquela campanha todo o proveito político que puder, faz questão de estar presente para posar de herói conquistador, embora, é claro, não vá tomar parte em batalha alguma – ele nunca teve saúde para ser soldado, e, além disso, nessa época já não é jovem, sem contar que não teria muito cabimento um imperador arriscar a vida dessa forma, considerando que sua morte repentina poderia facilmente lançar o Império no caos. Vespasiano reflete que, enquanto o exército romano permanece parado, esperando pela chegada do imperador, Carátaco está tendo tempo para se preparar, e diz consigo mesmo que "a vaidade de Cláudio podia matá-los a todos", mas, para crédito de Cláudio, a verdade é que não se trata de mera vaidade, e sim de uma maneira de consolidar-se no trono.

Por esse tempo, há em Roma um movimento semissecreto conhecido como "os Liberais", que tem por objetivo a restauração da República, e pretende alcançar isso sabotando tudo o que o imperador tente fazer, como a campanha da Britânia, por exemplo. Nesse caso, eles podem estar agindo de uma forma bastante direta: Macro, Cato e outros soldados na linha de frente começam a notar que muitos chumbos lançados pelos fundibulários britânicos e muitas espadas empunhadas por seus guerreiros são de fabricação romana. Se fosse numa escala menor, nada disso seria de se estranhar – os fundibulários poderiam estar simplesmente reaproveitando os chumbos lançados pelos romanos contra eles, e as espadas poderiam ser despojos de batalhas anteriores, mas a presença de tais itens na quantidade em que estão sendo encontrados só pode significar uma coisa: há romanos fornecendo armas aos bretões. A primeira e natural suspeita de Vespasiano é que algum comerciante romano, mais sensível à sede de lucro que ao patriotismo, esteja negociando com os bárbaros por baixo dos panos, mesmo correndo o risco de ser apanhado, caso no qual seria executado publicamente da forma mais dolorosa e vergonhosa possível – era assim que Roma lidava com traidores. Porém, a realidade parece ser ainda mais sinistra: há nisso o dedo dos Liberais, e, o pior de tudo, Vespasiano suspeita que sua própria esposa, Flávia, uma nobre dama romana com trânsito livre na corte imperial, esteja envolvida.

Quando Cláudio finalmente chega, traz consigo reforços substanciais sob a forma de tropas e máquinas de cerco, tudo isso muito bem-vindo pela força expedicionária romana, já combalida pelas batalhas. Traz também, curiosamente, alguns elefantes (!), muito mais para fazer vista que qualquer outra coisa: embora isso tenha sido tentado por mais de uma vez, não parece que tenha havido algum sucesso consistente em utilizar elefantes em combate de forma eficaz no exército romano, nem mesmo com a colaboração de mahouts (condutores) nativos da África, provavelmente cartagineses ou númidas – esses povos, antes de serem subjugados, haviam lutado contra os romanos, muitas vezes utilizando elefantes com resultados terríveis. Por outro lado, a simples visão dos paquidermes costumava valer por um golpe severo no moral do inimigo, que geralmente nunca tinha visto nem imaginado semelhantes "monstros". Para eles, os animais pareciam algo saído de um pesadelo.

(A título de curiosidade, os elefantes de Cláudio, embora parecendo enormes aos olhos dos bretões e mesmo da maioria dos romanos, provavelmente não eram tão grandes quanto nós, modernos, os imaginaríamos, pois quase certamente pertenciam a uma subespécie hoje extinta, a Loxodonta africana pharaoensis, que habitava o vale do Nilo e outras partes do norte da África e era menor que as outras duas subespécies de elefantes africanos, que ainda existem e que, por habitarem a África subsaariana, eram exóticas para os povos da bacia do Mediterrâneo na Antiguidade. Essa subespécie menor era a mesma dos elefantes de guerra empregados por Cartago nas Guerras Púnicas.)

Bem… Quando escrevi meus comentários sobre A Águia do Império, primeiro volume desta série, deixei registrado meu estranhamento quanto ao detalhe de que Cláudio tivesse ordenado a Vespasiano que investisse o adolescente Cato no posto de centurião – ordem essa totalmente disparatada e que, se cumprida, seria certeza de desastre para a centúria em questão e, numa batalha, poderia até afetar toda a coorte, num efeito dominó. Acontece que o Cláudio aqui retratado (pois, neste volume, ele aparece) seria perfeitamente capaz de ordenar isso. Scarrow pinta-o como um tolo completo, talvez até levemente retardado – um papel que Cláudio representava quando julgava necessário, mas que não correspondia a sua personalidade real. É ponto pacífico entre os historiadores que ele foi um governante competente, que tomou decisões sábias na administração e na justiça do Império e era estimado pelo povo, além de ter sido um intelectual de capacidades não desprezíveis, autor de vários livros de História considerados notáveis pelos acadêmicos das gerações seguintes, mas que, infelizmente, não foram preservados até nossos dias. Aqui, porém, Cláudio é retratado como um pateta vaidoso, completamente manipulado por seu homem de confiança, o liberto Narciso, e, enquanto permanece na frente de combate, por vezes dá pitacos absurdos, obrigando o general Pláucio a verdadeiros contorcionismos de retórica para salvar seu exército sem afrontar o imperador. Fiquei até as últimas páginas na expectativa de ver Cláudio, talvez em particular com Pláucio ou com Vespasiano, tirar a máscara de abobado e começar a falar com autoridade e firmeza (mesmo que continuasse a gaguejar!), mostrando-se como realmente era, mas isso não aconteceu.

Outro ponto discutível que encontrei foi numa passagem em que Cato (no exercício de suas funções administrativas na centúria) e Macro estão conversando sobre um soldado que precisou ter uma perna amputada devido a um ferimento gravíssimo em combate e que, por conta disso, seria mandado para casa tão logo recebesse alta do hospital de campanha. Não estou encontrando o trecho agora para me certificar dos detalhes (livro físico também tem suas desvantagens), mas, pelo que minha memória reteve, Macro relembra os veteranos aleijados que ele via nas ruas de Roma quando jovem, levando vidas miseráveis e dependendo da caridade alheia para sobreviver; então, para poupar seu legionário ferido desse destino, promove uma coleta entre os companheiros para que ele tenha o capital inicial para abrir um negócio, talvez fabricando calçados ou alguma outra atividade que possa exercer sentado. A questão é: todas as fontes históricas que já consultei a respeito das legiões romanas (e acreditem, foram muitas, ao longo de mais de 30 anos) são unânimes em afirmar que um legionário inválido não ficava entregue à própria sorte. Havia o aerarium militare, talvez o primeiro sistema de previdência institucionalizado e regulamentado da História, que era custeado em parte por um desconto compulsório sobre os soldos dos legionários na ativa, em parte por outras verbas provenientes de impostos e destinadas pelo governo imperial. Esse sistema garantia uma renda aos soldados inválidos ou às famílias dos que morressem. Dependendo de seu nível de educação e da qualificação profissional que possuísse, um legionário que ficasse incapacitado para lutar podia, também, ser remanejado para funções administrativas ou de apoio dentro do próprio exército ou em diferentes órgãos públicos.

Como parece ser característico da série Águias do Império, em O Voo da Águia encontramos a alternância entre partes que tratam do cotidiano dos legionários (incluindo as batalhas, é claro) e outras que envolvem política, intriga e suspense. Neste volume, há uma conspiração em andamento para assassinar Cláudio, e, como no livro anterior, Macro e Cato vão ver-se envolvidos na trama, resultando numa situação em que nenhum dos dois gostaria de estar metido, mas na qual terão que mobilizar toda a sua coragem para tentar salvar a vida do imperador. Suponho que procurar equilibrar os dois aspectos dentro da narrativa seja a aposta de Simon Scarrow para evitar que qualquer um deles se torne cansativo, e devo dizer que, na minha opinião, funciona. Suas histórias são interessantes, intensas e satisfazem plenamente o leitor interessado na Antiguidade romana. Seguirei lendo e recomendando.