domingo, janeiro 28, 2024
Internato para Meninas Cruéis
quinta-feira, março 23, 2023
O Gênio do Crime
E O Gênio do Crime começa falando sobre uma coisa que marcou e ainda marca muitas infâncias: álbuns de figurinhas. É claro que eles existem até hoje, mas, embora possa ser só impressão minha, me parece que antigamente esse filão era bem mais explorado, talvez porque a molecada de décadas passadas não tivesse à disposição tantas opções de diversão quanto as crianças de hoje. Havia até editoras cuja principal área de atuação era a criação de álbuns. Eu mesmo nunca fui um dos maiores adeptos desse hobby, que me lembre tive dois álbuns durante toda a infância, um de bichos e outro dos personagens da Disney, mas lembro que todo ano saíam vários, a maioria com repercussão modesta, mas havia sempre um ou dois que viravam febre entre a garotada. Alguns álbuns eram destinados às crianças em geral, enquanto outros visavam claramente os meninos ou as meninas (hoje em dia não faltaria um imbecil lacrador para "problematizar" isso). Os álbuns de futebol, por exemplo, eram território dos meninos, e um deles (fictício, é claro) é o mote para esta aventura.
Dias depois, Edmundo recebe em casa a visita do dono da fábrica, seu Tomé, que lhe conta seu drama: há uma quadrilha de falsários fabricando réplicas perfeitas das figurinhas difíceis e vendendo-as por altos preços para a garotada. Com isso, a quantidade de álbuns cheios está atingindo patamares absurdos, e ele, na obrigação de dar os prêmios prometidos, está rapidamente se aproximando da falência. Seu Tomé viu, da janela de seu escritório, o início de tumulto na frente de sua fábrica, e viu também como Edmundo convenceu os outros a desistir do vandalismo e fazer as coisas dentro da lei. Impressionado com a coragem e a presença de espírito do garoto, o industrial vem pedir a ele que tente descobrir a fábrica clandestina, já que, como diz, figurinhas são coisa que pertence ao mundo das crianças, e um adulto investigando despertaria suspeitas. É claro que os pais de Edmundo vetam a ideia na hora, mas o garoto não resiste à tentação de uma aventura detetivesca batendo em sua porta, e decide ajudar mesmo sem o consentimento deles. Ao seu lado estão Pituca e o Bolacha, também conhecido como "o gordo". E o gordo… bem, é o gordo.
Pois não é por acaso que a série de livros que cresceu a partir de O Gênio do Crime, e da qual Marinho deixou 13 volumes, não se chama As Aventuras da Turma do Edmundo, e sim As Aventuras da Turma do Gordo. Esse personagem sem nome, conhecido apenas pelos apelidos Bolacha, Bolachão ou "o gordo" (sem maiúscula) é o que realmente movimenta as tramas. Vendo com os olhos de hoje, é mais ou menos claro que, se ele fosse uma pessoa real, diríamos que sofre de um grau leve de autismo: distraído, volta e meia está com a cabeça longe, como num trecho impagável em que todos estão discutindo o caso em investigação, exceto o gordo, que está com o olhar parado e não abre a boca. Quando interpelado, nem ele parece saber direito no que estava pensando: "acho que era numa vaca que tem na fazenda do meu pai". Quando resolve raciocinar, porém, ele é brilhante, tanto que demonstra ser o único capaz de quebrar o sofisticado esquema de despistamento que o líder dos falsários (o tal gênio do crime do título) arquitetou para impedir a localização de sua fábrica clandestina a partir dos cambistas que vendem as figurinhas. Bolacha consegue deixar para trás até mesmo Mr. John Smith Peter Tony, renomado detetive escocês que também está envolvido na investigação.
O Gênio do Crime é o tipo de livro que, depois de ter lido na infância ou adolescência, você tem vontade de apresentar aos seus filhos (eu certamente teria essa vontade, caso tivesse filhos). Até a pontuação desleixada contribui para o estilo coloquial, e o resultado é tão bom que eu, sempre bastante chato quando se trata de correção de texto em livros, consegui fechar um olho para essa característica, de tão agradável que flui a leitura. Uma aventura para garotos, protagonizada por garotos, cheia de boas ideias e narrada com uma baita eficiência… Exigir ainda mais que isso deste pequeno livro seria muito injusto, mas o fato é que sim, ele oferece mais: um vislumbre de como era a infância em São Paulo na década de 60 – muito diferente da de hoje, e isso é fato em São Paulo como no resto do mundo. Destaque para o jogo conhecido como "abafa" ou "bafo", que consistia em colocar figurinhas no chão, com a face para baixo, e tentar virá-las com tapas; como as próprias figurinhas eram a aposta envolvida, esse era outro meio do qual os garotos dispunham para tentar conseguir as que faltavam em seus álbuns. Cheguei a ver isso quando eu ainda era bem pequeno, mas pouco depois, lá por meados da década de 80, as figurinhas passaram a ser autocolantes, o que foi prático para os colecionadores, mas também condenou o jogo de abafa ao gradual esquecimento, já que as novas figurinhas eram mais rígidas e pesadas, difíceis de virar. E a garotada de hoje, provavelmente, nem sabe que houve um tempo em que as figurinhas não eram autocolantes, tal como pensam que a TV já foi inventada com o controle remoto. O tempo passa mesmo, não tem jeito.
quinta-feira, novembro 17, 2022
O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro
Guillermo del Toro já foi assunto aqui no blog por várias vezes, por conta de Hellboy, da Trilogia da Escuridão e da série de TV derivada, The Strain, de seu envolvimento com a trilogia cinematográfica O Hobbit… Que eu me lembre, é isso. Existem vários outros de seus trabalhos que admiro pacas, filmes como Cronos (1993), A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), entre outros, que também poderiam virar assunto, e talvez ainda virem. E o cara sempre volta: desta vez, com a série antológica O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro, cuja primeira temporada, com oito episódios, ficou disponível na Netflix agora em outubro.
Os primeiros comentários que ouvi e li, antes de ter contato direto com o material, foram no sentido de que se tratava de uma série bastante macabra e pesada, feita sem aliviar a mão, fosse nos conceitos perturbadores ou nas cenas aflitivas – e esse é um lado que Del Toro, como muitos autores ou realizadores do gênero fantasia, sabidamente possui: basta lembrar de O Labirinto do Fauno, que tem cenas delicadas de magia e encantamento, mas tem também um punhado de criaturas horripilantes e uma cena de um homem sendo assassinado a sangue frio a golpes de garrafa. É fato que, aqui, os episódios são dirigidos por outras pessoas, mas, na qualidade de produtor executivo e criador do conceito da série, coube a Del Toro a escolha dos diretores e, presumivelmente, a supervisão geral, de modo que podemos dizer que seu estilo pessoal perpassa tudo. Ele aparece no início de cada episódio, fazendo um breve comentário enigmático sobre o que veremos a seguir, e apresentando o diretor ou diretora. Por sinal, a julgar pelo rápido levantamento que fiz na internet, são, em sua maioria (mas nem todos), diretores pouco conhecidos, com relativamente pouca coisa em seus currículos, pelo menos enquanto diretores – a australiana Jennifer Kent, por exemplo, que dirigiu O Murmúrio, último episódio desta primeira temporada, teve uma extensa carreira como atriz, mas assina a direção de apenas três filmes até o momento (é verdade que um deles é o muito comentado e elogiado O Babadook, que ainda preciso ver). O importante é notar que Del Toro parece estar apostando em diretores que ainda estão em ascensão, sejam os que ainda não acumularam um grande currículo por serem relativamente jovens, ou os que sempre trabalharam em outras funções no cinema ou TV e estão agora se acostumando com a cadeira da direção.
Assisti a essa primeira temporada num espaço de alguns dias e, por tratar-se de uma série antológica, quer dizer, com cada episódio contando uma história fechada e independente, aplica-se, também aqui, o que sempre digo a respeito de livros de contos: existem altos e baixos e isso é natural – mais que natural, é inevitável. A impressão geral foi muito favorável, e torço para que venham mais temporadas num futuro relativamente próximo. Também à semelhança do que tenho feito com livros de contos, não pretendo comentar cada episódio em detalhes; falarei daqueles que, como espectador, eu tiver achado notáveis e/ou que apresentem alguma… hã… curiosidade.
Muitos fãs de Guillermo del Toro devem ter pensado o mesmo que eu pensei sobre esta série: que faltou ter ao menos um episódio dirigido por ele. Como se fosse para compensar em parte isso, há dois episódios baseados em contos de sua autoria. O primeiro, Lote 36, é dirigido por outro Guillermo, o Navarro, também mexicano e seu colaborador antigo, que trabalhou como diretor de fotografia em vários de seus filmes. Foi inevitável pensar em Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, mas só os títulos é que são parecidos. A história se ambienta em janeiro de 1991 – uma datação tão precisa é possível porque o episódio começa com um personagem vendo na TV o pronunciamento do presidente George Bush (pai) logo após o primeiro ataque aéreo americano contra Bagdá, que deu início à fase "quente" da Guerra do Golfo, que já se arrastava desde meados do ano anterior. O protagonista (que não é o personagem da primeira cena) é Nick Appleton, um veterano do Vietnã que está devendo a um agiota, o qual lhe tem feito ameaças regularmente. Para tentar conseguir o dinheiro que pode ser a diferença entre a vida e a morte, Nick recorre a diversos expedientes, e um deles requer uma breve explicação… Nos Estados Unidos são comuns os self storages, lugares onde as pessoas podem alugar depósitos individuais, numerados, para pôr a tralha que não têm mais onde guardar em casa; se o locatário de um depósito morre sem herdeiros, desaparece ou deixa de pagar o aluguel durante um determinado número de meses, a administração do storage procede a uma espécie de "despejo": o conteúdo do depósito é levado a leilão, e o comprador tem um prazo para retirar tudo, a fim de que o espaço possa ser alugado novamente. Um "lote", então, é a totalidade do conteúdo de um desses depósitos abandonados. O detalhe interessante, por assim dizer, é que esses leilões são uma loteria: os participantes fazem seus lances sem saber o que vão encontrar quando abrirem o lugar. Pode estar cheio de objetos raros que renderão uma pequena fortuna num antiquário, ou conter apenas pilhas de jornais velhos, mobília quebrada, roupas roídas por traças, e todo tipo de quinquilharia sem valor que pessoas idosas (geralmente) guardaram ali porque seus familiares estavam ameaçando jogá-las fora. Nick, então, arrisca o dinheiro que tem comprando alguns desses lotes, na esperança de encontrar algo que dê lucro. O mais recente é o de número 36, que pertenceu ao mesmo "velhote esquisito" desde que o storage começou a funcionar, logo após o fim da Segunda Guerra, e agora o velhote acaba de morrer. Em meio à costumeira montanha de inutilidades empoeiradas, Nick descobre um móvel valioso e curioso, uma mesa feita especialmente para a invocação de espíritos, e, dentro de suas gavetas, três livros muito raros e sinistros. O ex-soldado é do tipo cético – e mais que isso, um cético chato: quando um especialista em ocultismo, que ele procura em busca de uma avaliação dos itens, tenta lhe explicar sobre os mistérios e histórias sombrias envolvendo aqueles livros, ele interrompe impaciente, pois a única coisa que lhe interessa é saber quantos dólares pode conseguir pelo conjunto. Tudo o que posso dizer sem revelar mais do que devo é que ele vai ver-se numa situação na qual seu ceticismo não lhe servirá de nada. Nick é o tipo de protagonista do qual é importante que o espectador não goste, e o roteiro se encarrega disso: além de sua rabugice, ele é preconceituoso, mostrando uma evidente má vontade para com negros, latinos e, provavelmente, para com qualquer estrangeiro – embora eu lhe dê razão num ponto, o de não gostar do fato de que aparentemente só determinados tipos de pessoa é que têm o direito de exigir respeito e de se indignar caso não o recebam: negros são protegidos pela lei e pelo senso comum contra ofensas de cunho racial, mas, por outro lado, eles próprios são livres para dirigir ofensas (inclusive de cunho racial) contra brancos, à vontade, sem que nada aconteça; já era assim em 1991, e hoje muito mais. O mesmo se aplica aos gays em relação aos héteros, às mulheres em relação aos homens e por aí afora: basta apresentar o seu crachá de membro de qualquer "minoria oprimida", que você tem carta branca para fazer e dizer o que quiser, incluindo as coisas mais escrotas e absurdas, e ninguém pode protestar, sob pena de ser rotulado de ista e fóbico. Desculpem-me os politicamente corretos, mas isso não é certo; a verdade não deixa de ser verdade só porque quem está dizendo-a é um sujeito desagradável como Nick Appleton. Mas esse não é o ponto aqui: Lote 36 é um episódio forte e envolvente, um excelente pontapé inicial para a série, além de nos deixar com vontade de ler mais dos trabalhos de Del Toro no campo da literatura.
Guillermo del Toro sempre foi um grande fã de H. P. Lovecraft. Um de seus sonhos já de muitos anos, e bem conhecido por quem acompanha sua carreira, é dirigir um grandioso filme adaptando um dos contos mais ambiciosos do escritor, Nas Montanhas da Loucura, mas, pelo que li tempos atrás, ele teria brigado feio com os produtores em potencial porque eles queriam meter uma trama romântica na história (!). De vez em quando circulam rumores de que o projeto está em vias de finalmente engrenar, mas, até o momento em que escrevo, nenhum boato sobre o qual eu tenha lido me pareceu ser mais que isso – boato. Enquanto Nas Montanhas da Loucura não acontece, Del Toro nos traz em seu Gabinete as adaptações de duas outras histórias de Lovecraft, estas de porte mais modesto, mas nem por isso menos cultuadas, e muito merecidamente, pelos fãs do autor: O Modelo de Pickman e Os Sonhos na Casa da Bruxa.
O primeiro, dirigido por Keith Thomas e estrelado por Ben Barnes (de O Retrato de Dorian Gray e Westworld), é apenas frouxamente inspirado no texto original, e eu entendo o motivo: o conto é muito discursivo, o que não funcionaria bem na tela. Barnes interpreta o protagonista Thurber, que no conto era também o narrador, e que no episódio ganhou um primeiro nome, William. Nesta versão, Thurber, ainda rapazote, é um dos mais destacados estudantes de arte na Universidade Miskatonic (fundada em 1690 e cuja simples menção deixa qualquer fã de Lovecraft de orelha em pé) quando sua turma recebe um novo aluno, um tal Richard Upton Pickman, um sujeito mais velho, já nos seus 30 ou quase isso, e de passado misterioso. Thurber imediatamente sente uma curiosidade intensa a respeito do novo colega, que demonstra já ser um artista de grandes capacidades, dotado de um talento natural aperfeiçoado por um número muito maior de anos de prática do que qualquer um de seus colegas pós-adolescentes pode ter tido – mas com um detalhe: seja qual for o motivo artístico proposto, Pickman transforma-o em imagens assustadoras, repletas de sugestões de elementos do oculto, da feitiçaria e do além-túmulo, e sempre com uma habilidade prodigiosa. No início é Thurber quem repetidamente procura a companhia de Pickman (que claramente preferiria ser deixado só), fascinado que está tanto por sua arte macabra quanto por sua personalidade misteriosa – mas então a narrativa dá um salto de vários anos, e encontramos um William Thurber já maduro, casado e com um filho, além de membro conceituado da comunidade dos artistas em Massachussetts; nesse ínterim Richard Pickman reaparece, depois de uma longa ausência. Agora é Pickman quem parece ansioso por reatar a antiga amizade, declarando que o julgamento crítico de Thurber é valioso para ele, enquanto Thurber, tomado de desagradáveis suspeitas a respeito de qual pode ser a verdadeira origem da arte de Pickman, prefere não ter ligações com o pintor, e, principalmente, não gosta da ideia de vê-lo rondando sua família… Não irei mais adiante para evitar spoilers, o que é ainda mais importante aqui porque, como a adaptação é muito livre, o episódio reserva surpresas inclusive para quem leu a história, e longe de mim querer estragá-las. Pode-se discutir (e seria uma discussão deveras interessante) se a versão de O Modelo de Pickman trazida por Del Toro e Keith Thomas ainda é Lovecraft, mas, mesmo que não seja, é inegável que o roteirista Lee Patterson soube apropriar-se do legendarium do autor e com ele produzir uma história digna de respeito, que consegue manter-nos durante uma hora inteira com os olhos pregados na tela. Barnes não surpreende – considero-o um ator correto, mas talhado para papéis de galã e que dificilmente nos apresentará algo muito diferente disso; por outro lado, Crispin Glover, no papel de Richard Pickman, é um pesadelo à parte (no sentido elogioso!), com uma atuação ao mesmo tempo feroz e irônica e um olhar que é simultaneamente o de um visionário que enxerga outros mundos e o de um maníaco.
Acho necessário fazer um parágrafo separado apenas para comentar o magnífico trabalho de arte que vemos em O Modelo de Pickman. É atordoante pensar na quantidade de horas de trabalho investidas por um artista (aliás, provavelmente vários) para criar pinturas que a câmera iria mostrar apenas de relance (e confesso que apertei o pause várias vezes para tentar analisar mais detidamente as imagens). Seria interessante saber se todas essas pinturas foram feitas especialmente para o episódio ou se algumas delas eram trabalhos preexistentes, usados com permissão dos autores – pois, como já comentei em outro lugar, muitos artistas plásticos fãs de Lovecraft já fizeram suas tentativas de materializar os terríveis quadros de Pickman a partir das descrições fornecidas no texto. As pinturas de Pickman em si eram a parte que mais me intrigava nesse conto, e continuam a sê-lo nesta adaptação. Assumindo todos os riscos (tal como o de enlouquecer), eu bem que gostaria de fazer uma visitinha ao atelier dele.
A outra adaptação de um conto de Lovecraft presente nesta temporada é Os Sonhos na Casa da Bruxa, com direção de Catherine Hardwicke (Crepúsculo) e tendo como ator principal Rupert Grint (o Rony Weasley dos filmes de Harry Potter). Numa comparação com O Modelo de Pickman, Os Sonhos na Casa da Bruxa até tem um pouquinho mais de correlação com o conto que lhe deu origem – e, apesar disso, entrega um resultado menos bom. No conto, o protagonista Walter Gilman é um estudante de graduação da Universidade Miskatonic que, curiosamente, mistura sua exaustiva dedicação a alguns dos campos mais complexos da alta matemática com um interesse por folclore e pelas histórias dos julgamentos de bruxaria – e acaba fundindo os dois campos de conhecimento. Gilman acredita, ou, melhor dizendo, tem certeza, com base nas conclusões teóricas da matemática, de que a existência de outras dimensões é um fato, ao qual só falta a prova material. Ele acredita também (e isso sim é uma crença) que as antigas bruxas conheciam o segredo de como viajar entre as dimensões; as velhas histórias de voos noturnos em vassouras ou no dorso de animais mágicos poderiam não ser mais que uma representação simbólica disso. Dos registros que leu sobre a época dos julgamentos, chamou-lhe especial atenção a história de uma tal Keziah Mason, que teria fugido da Cadeia de Salém em 1692. A casa onde morou essa célebre bruxa ainda existe, e Gilman consegue alugar o exato quarto onde ela viveu e, presumivelmente, praticou seus feitiços. As paredes da decrépita habitação estão rabiscadas com símbolos e diagramas que todos sempre supuseram tratar-se de algum tipo de escrita demoníaca, mas que o estudante reconhece como sendo matemática avançadíssima, um tipo de conhecimento que deveria ser impossível para uma velha comum e provavelmente analfabeta do século XVII. E, ao dormir naquele quarto, Gilman passa a ter sonhos cada vez mais perturbadores envolvendo Keziah e seu suposto "familiar", uma criatura semelhante a um grande rato com cara humana (um "familiar", ao que se acreditava, era um pequeno demônio em forma animal, ou semi-animal, que o diabo dava de presente a cada bruxa por ocasião de sua iniciação, e que prestava serviços a ela). Para Lovecraft, a obsessão intelectual de Gilman, sua determinação de provar perante a ciência que outras dimensões existem e que viajar entre elas é possível, era motivação válida e plenamente suficiente para seu protagonista; nesta adaptação, o roteirista deve ter achado que um objetivo tão abstrato e impessoal quanto esse não atrairia a empatia do público para o personagem, e assim, inventou para ele uma história trágica: Gilman, na infância, tinha uma irmã gêmea a quem era muito ligado, e que morreu em tenra idade, com o detalhe de que o pequeno Walter a viu ser arrastada, em sua forma espiritual (ou fantasmal, se quiserem) para uma espécie de limbo que ficaria em outra dimensão, enquanto seu corpo físico ficava para trás. Daí em diante, o rapaz ficou obcecado por parapsicologia, por fenômenos mediúnicos e pela possibilidade da comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, vindo inclusive a fazer parte de uma sociedade espiritualista. É por esse caminho que ele acaba indo parar no velho quarto de Keziah Mason. Na minha opinião, essa "humanização" da trama pode funcionar para os espectadores que nunca leram Lovecraft, mas os que conhecem o conto vão achar o novo enredo uma coisa prosaica e novelesca, que apaga muito da sensação de estranheza extraterrena que conferia à história original a maior parte de seu interesse; além disso, a novidade de fazer com que as viagens de Gilman entre as dimensões sejam possibilitadas por uma espécie de poção foi, a meu ver, um recurso bastante ordinário. Visualmente, achei a representação de Keziah exagerada: poderia ficar mais assustadora se a apresentassem simplesmente como uma velha de olhar maligno em trajes de época, em vez de um espectro hollywoodiano padrão, totalmente criado em CG, que poderia ter saído de algum filme da franquia Invocação do Mal ou de qualquer outro "terrorzão de shopping". Por outro lado, Brown Jenkin, o familiar da bruxa, ficou perfeito – adequadamente macabro.
A Autópsia, dirigido por David Prior, aposta no já tantas vezes bem-sucedido crossover entre ficção científica e terror, propondo uma versão ainda mais assustadora para o clássico Invasores de Corpos (1978). O veterano ator F. Murray Abraham (de quem eu sempre me lembro como o compositor Antonio Salieri, o rival de Mozart em Amadeus) interpreta o Dr. Carl Winters, um igualmente veterano médico legista que atende ao chamado de um velho amigo, o xerife Nate Craven, delegado de uma outrora tranquila cidadezinha mineradora que, há algum tempo, vem sendo assolada por uma onda de desaparecimentos; agora aconteceu um acidente inexplicável na mina que emprega a maior parte da população e que é a base da economia da cidade, tirando a vida de vários trabalhadores. Winters confidencia ao amigo que está sofrendo de um câncer terminal e tem poucos meses de vida – e faz isso pouco antes de entrar na gelada e tétrica sala onde realizará sozinho a autópsia dos mineiros mortos e fará descobertas horrendas. O episódio é muito bom, tenso do início ao fim e com um conceito de arrepiar os cabelos. Só estejam avisados de que, como ele trata em grande parte de autópsias, vocês poderão achar algumas cenas um tanto difíceis de assistir. Eu achei.
Como tantas vezes, o melhor de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro ficou para o final: é justamente O Murmúrio (The Murmuring), dirigido pela já citada Jennifer Kent e tendo como principais atores Essie Davis (também australiana e que atuou em O Babadook) e Andrew Lincoln (da série The Walking Dead). E, assim como o primeiro, este último episódio da temporada é baseado num conto de Del Toro. O primeiro comentário que me veio à cabeça ao terminar de assisti-lo foi que nunca devemos achar que determinado tema já está batido demais para render uma boa história de terror, seja na literatura, cinema ou TV: parece-me que o velho tema da casa assombrada, contanto que seja explorado com competência, nunca deixará de causar calafrios. A história se passa nos anos 50 e os protagonistas são Nancy e Edgar Bradley, um casal de ornitólogos que recentemente passou por uma tragédia pessoal, a perda da filha ainda bebê. Fazendo da dedicação ao trabalho sua terapia, os dois partem para uma pesquisa de campo a fim de estudar os hábitos dos pilritos (pássaros semiaquáticos e migratórios, espécie comum na Europa), o que exigirá que passem um longo tempo numa desabitada região de charcos – o local não é nomeado, mas parece ficar em alguma parte das Ilhas Britânicas. Lá, o casal se aloja numa grande e antiga casa, completamente isolada, parecendo ser a única na pequena ilha onde fica. Está desabitada há 30 anos, mas os retratos nas paredes sugerem que já foi a moradia de uma família perfeitamente normal e feliz – um casal e seu filho pequeno. Nancy se intriga imaginando por que eles teriam partido deixando para trás seus móveis e todos os objetos pessoais, incluindo até mesmo um grande número de cartas, mas seu trabalho com os pilritos ocupa demais seu tempo e energia para que ela possa pensar muito a respeito… Até começar a ouvir e ver certas coisas na casa. Coloquei nessa ordem de propósito: primeiro ela ouve, em meio às horas e horas de gravações dos sons dos pássaros, uma voz infantil sussurrando que está com frio. É indispensável observar que, de acordo com as explicações da própria Nancy, murmuring, em inglês, pode ter dois sentidos: um, bem conhecido e de uso comum, é o de falar baixo, sussurrar; o outro se refere às formações que bandos de pássaros em voo podem assumir, às vezes sugerindo certas figuras (eu nunca tinha ouvido falar nessa segunda acepção). Mais tarde, ela passa a ver o menino andando pela casa às escuras durante a madrugada, às vezes encharcado, com a roupa escorrendo água… É apavorante de verdade, e nisso há muito mérito da diretora, cuja condução é ora sensível, ora implacável. Outra coisa que o espectador nota é que o fato de apenas Nancy ter consciência dessa presença não pode ser mero acaso; Edgar declara repetidamente que nunca viu nem ouviu nada. Isso pode significar, de modo implícito, que, embora tenha sofrido (e ainda sofra) tanto quanto a esposa com a morte da filhinha, ele já conseguiu "ir em frente"; Nancy ainda não. A incapacidade dela de falar sobre sua perda, e o fato – observado pelo marido – de que não verte nenhuma lágrima, indicam que toda a sua dor está trancada dentro dela, atormentando-a dia a dia. Talvez seja essa dor recolhida o que a coloca em sintonia com a dor daqueles que moraram (e aparentemente ainda moram) naquela casa. O Murmúrio chega muito perto da perfeição, conseguindo em uma hora o que muitos longas-metragens de terror não conseguem no dobro desse tempo, e reforça minha vontade de conhecer os filmes anteriores de Jennifer Kent, bem como minha expectativa do que mais ela poderá nos trazer no futuro.
Seguindo minha resolução de só entrar em detalhes sobre um episódio no caso de ele ter chamado muito a minha atenção, percebo que acabei falando (mais longamente ou menos) sobre seis dos oito; houve dois episódios dos quais eu não gostei, e por esses passarei muito rapidamente. Um deles foi o terceiro, Por Fora, que, embora abordando temas importantes (até que ponto uma pessoa é capaz de ir em busca de aceitação social e o poder da TV para influenciar comportamentos e criar necessidades), simplesmente não me "pegou"; não consegui construir uma ligação com a protagonista e achei o desenrolar tedioso, de modo que, mesmo que o episódio tenha a mesma duração que a maioria dos outros, com cerca de uma hora, me pareceu muito mais longo que isso. O outro foi o penúltimo, A Inspeção, cujo maior mérito, a meu ver, é o de conseguir imergir com perfeição o espectador na atmosfera dos anos 70 (o ano citado é 1979), por meio do visual dos personagens e da trilha e efeitos sonoros, evocando aquele mundo psicodélico e com tendência ao exagero estético; a fotografia também parece ter sido planejada para remeter a filmes daquela década ou do comecinho da seguinte, como Alien e O Enigma de Outro Mundo – e vamos descobrir que todo o trabalho investido em criar essa semelhança foi com bons motivos, motivos que têm a ver com o roteiro. Infelizmente, esse roteiro nunca chega a dizer a que veio: a maior parte do episódio é preenchida por longas e tediosas conversas entre os personagens, e, quando o componente fantástico é finalmente apresentado, mostra-se genérico, gratuito e jogado de qualquer maneira. Valeu a curiosidade de rever o agora idoso Peter Weller, ator que protagonizou Robocop, um dos melhores filmes de ficção científica de ação da década de 80.
Enfim, Guillermo del Toro fez um belo trabalho criando e produzindo esta série, que, embora irregular, certamente recompensa bem o tempo investido para assisti-la, para os amantes do terror em geral e para os fãs de Del Toro em particular. Pelo que vi na internet, a receptividade do público tem sido boa, o que nos permite cultivar a esperança de que essa primeira temporada não seja a última. Seria excelente se, nas próximas, fossem trazidos contos de outros autores notáveis de terror, fossem antigos ou contemporâneos – Arthur Machen, Edgar Allan Poe, Stephen King, Clive Barker… Mas torço para que, se isso acontecer, as adaptações sejam mais fiéis que as de Lovecraft que vimos. Seria bom, ainda, que Del Toro assumisse a direção em alguns episódios. É esperar para ver.
quinta-feira, agosto 25, 2022
O Minotauro
Portanto, eu já tinha alguma familiaridade com o universo de Lobato quando cheguei à idade escolar, e tive a sorte de ter professoras que me incentivaram a ler (coisa que meus pais também faziam em casa) e tinham especial reverência para com o autor: provavelmente elas próprias o haviam lido na infância. E foi o que eu também fiz. Na já famosa biblioteca do SESI perto de onde cresci (vejam aqui e aqui) existia uma edição em oito volumes contendo todas as histórias do Sítio. Peguei todos emprestados, um por um (sem me preocupar em seguir a ordem numérica), embora precise confessar que "dropei" algumas histórias, como O Poço do Visconde e Aritmética da Emília, porque o que queria eram aventuras, de modo que achei esses livros "didáticos" demais (mas li a História do Mundo para as Crianças de cabo a rabo; sempre tive uma "coisa" com História). Ainda tenho planos de corrigir esses meus deslizes da infância.
Está claro que, se o objetivo da expedição é resgatar Tia Nastácia das garras de algum monstro mítico, o período histórico ao qual os aventureiros devem se dirigir é aquele anterior à Guerra de Troia, em plena Idade do Bronze, quando se supõe que tenham vivido os grandes heróis gregos como Hércules, Teseu, Jasão e tantos outros; entretanto, o mergulho no passado é feito, por assim dizer, de forma gradual. A primeira parada é a Atenas do século V a.C., o assim chamado "século de Péricles", período em que, sob a administração inteligente desse notável ditador de múltiplos talentos, a cidade conheceu seu apogeu cultural. As Guerras Greco-pérsicas tinham-se encerrado com a vitória dos gregos, e, livres dessa ameaça externa, estes últimos puderam dedicar um volume sem precedentes de recursos e trabalho às artes plásticas, à arquitetura e à literatura. D. Benta, uma senhora de muita cultura, sempre teve esse como seu período favorito na História grega, e acaba decidindo ficar ali mesmo, com sua neta Narizinho, enquanto Pedrinho, Emília e o Visconde continuam sua odisseia no passado em busca de Tia Nastácia. Para isso, os três viajam para os tempos da "Grécia heroica", que, para os gregos dos dias de Péricles, já são um passado remoto. A partir daí, o livro alterna capítulos ambientados nas duas épocas. Como hóspedes de Péricles, D. Benta e Narizinho têm a chance de conhecer grandes vultos das artes, ciências e filosofia da Grécia, como os escultores Fídias e Policleto, o historiador Heródoto, o dramaturgo Sófocles, o filósofo Sócrates, entre outros. Enquanto isso, nos tempos míticos, Pedrinho, Emília e o Visconde sobem o monte Olimpo para xeretar como vivem os deuses, assistem escondidos Hércules liquidar a terrível hidra de Lerna no segundo de seus famosos Doze Trabalhos, e, é claro, vão ao resgate de Tia Nastácia, depois de terem consultado o célebre Oráculo de Delfos para descobrir-lhe o paradeiro.
Mesmo sendo apenas um "aperitivo" para Os Doze Trabalhos de Hércules, livro muito mais extenso e ambicioso, O Minotauro é uma pequena joia da literatura infanto-juvenil brasileira, que, no tempo em que crianças e adolescentes ainda liam livros (bem, pelo menos algumas crianças e adolescentes liam), deve ter plantado em muitas jovens cabeças a primeira noção a respeito da importância verdadeiramente inestimável que a civilização grega teve para o mundo ocidental em todos os aspectos da vida. As conversas que D. Benta mantém com Péricles e seus eminentes convidados fazem a proeza de estarem num nível de compreensão acessível para qualquer criança esperta, sem serem rasas, e estão cheias de "iscas" para a curiosidade infantil, que provavelmente levaram muitos meninos e meninas a quererem saber mais sobre as personalidades e os acontecimentos que são mencionados. (Na época da publicação original, essas informações tinham que ser procuradas em enciclopédias, e por vezes me pergunto se não era melhor desse jeito, já que é uma tendência natural no ser humano dar mais valor àquilo que custou esforço para obter – inclusive conhecimento. Easy comes, easy goes.) E há pelo menos uma fala dela, já perto do final do livro, que só fez ficar mais atual nesses 83 anos que se passaram desde que O Minotauro foi escrito. A convite de Péricles, D. Benta e Narizinho vão assistir, com ele e seus amigos, a uma encenação da tragédia Alceste, de Eurípedes – na época, uma obra que estava estreando. Ao final da peça, conversando sobre ela com Sófocles, D. Benta declara:
O que resta a dizer depois dessas palavras? Não há nada a acrescentar, dá apenas para comentar e ilustrar, e sei de um exemplo que cai como uma luva. Quando minha namorada, Cintia, se cansa do ajuntamento de vizinhos batendo papo na calçada diante de sua porta (é aquele tipo de gente com vocabulário de umas 40 palavras, para quem "caraio" é vírgula, e que parece não saber falar baixo), ela costuma tocar música clássica bem alto. É tiro e queda: não dá 60 segundos e todo mundo some. Quer dizer, esse pessoal está tão idiotizado pela exposição a funk, "sertanejo universitário" e outras atrocidades, que positivamente não suporta ouvir Mozart; qualquer coisa que lembre arte ou cultura os repele, faz com que se sintam mal. Não se enganem, não há nada de casual nisso; muita gente trabalhou com afinco e durante muito tempo para que o nível intelectual médio do nosso povo descesse até esse ponto. Exceto por algum milagre, nenhum desses "mano" (o erro de concordância é proposital) jamais vai ler um livro na vida, nem se perguntar o que está fazendo no mundo ou por que as coisas são como são e não de outro jeito, e, para os que querem o fim da civilização ocidental (não pela sua destruição propriamente dita, e sim por meio de uma sutil e gradual remodelagem feita de dentro para fora), é ótimo que seja assim. Ainda acho que Monteiro Lobato tinha uma visão idealizada demais da Grécia antiga, mas o mero fato de que na época os teatros precisavam ter capacidade para 20, 30, 50 mil pessoas já diz algo sobre o nível cultural de seu povo no tempo de Péricles. Como é explicado no livro, na Atenas de então, como em outras cidades, todo mundo ia ao teatro; o ingresso custava um valor simbólico, e os que mesmo assim não pudessem pagar, recebiam ingressos gratuitos, custeados por um fundo do tesouro público destinado a fins culturais e artísticos. O resultado disso, e de outras ações semelhantes, podia ser sentido dando-se uma volta pelo mercado para ouvir as conversas: havia gente que nem mesmo sabia ler discutindo pontos de filosofia ou trocando análises argutas sobre a política da cidade. É claro que era bem mais complicado governar gente assim do que um povo que mal sabe falar, e, mesmo assim, Péricles e outros ditadores fizeram tudo ao seu alcance para que o teatro, a filosofia, a poesia, a literatura em geral, e todas as outras formas de engrandecimento cultural, florescessem o máximo possível, promovendo uma elevação contínua das capacidades intelectuais de seus povos. (A palavra "ditador" tem um sentido odioso para nós, mas na época queria dizer algo diferente.) A única explicação para isso é que possuíam virtude, uma palavra (e um conceito) que nos soa tão pouco familiar nos dias de hoje.
Por fim, preciso fazer um alerta. O que despertou em mim a vontade de reler O Minotauro foi o acaso de encontrar (numa daquelas feirinhas temporárias de livros que aparecem e desaparecem periodicamente nos corredores de certos shoppings) uma pilha de exemplares de uma edição recente publicada por uma para mim desconhecida editora Pé da Letra. Cada exemplar custava módicos dez reais, então adquiri um e me preparei para um delicioso reencontro com um pedaço tão querido da minha infância… Sabe de nada, inocente. Trata-se de uma edição de péssima qualidade (vai ver é por isso que é barata) e, muito pior que isso, toda estropiada pela censura politicamente correta, algo que, pensando bem, não é nenhuma surpresa, pois antecedentes não faltam (vejam aqui). Entre os personagens do Sítio há um que é muito significativo, apesar de só aparecer uma vez ou outra, o Tio Barnabé, que é uma espécie de personificação da sabedoria popular dos rincões interioranos do estado de São Paulo na época de Monteiro Lobato; pelo que me lembro, sua principal aparição é no livro O Saci, no qual ele conta tudo sobre o próprio, para atender à curiosidade de Pedrinho, menino da cidade. Pois bem… Em O Minotauro, Emília, tentando explicar a um personagem grego o hábito moderno do fumo, cita Tio Barnabé como exemplo:
Lá no Sítio há o Tio Barnabé, um negro de mais de noventa anos, que não tira o cachimbo da boca. Os médicos dizem que se ele não fumasse estaria já com cem anos.
Isso era o que dizia o texto original… Na edição woke da Pé da Letra, a palavra negro foi substituída por senhor. Eu sei, não tem lógica, nem coerência, nem honestidade intelectual alguma: esperar qualquer uma dessas coisas dessa galera lacradora é como esperar que uma macieira dê jacas. Hoje em dia certas livrarias têm uma estante separada para livros de "autoria negra", onde colocam, entre outros, Machado de Assis, que, para mim, sempre foi "apenas" o maior escritor brasileiro e um dos maiores do mundo em todos os tempos; o fato de ele ter sido negro (na verdade era mulato) nunca sequer entrou nas minhas considerações. Por outro lado, simplesmente dizer que um personagem é negro é considerado ofensivo ao ponto de precisar ser censurado. Se refletirmos a respeito, as duas coisas (e muitas outras) apontam para uma mesma realidade: o Brasil, que sempre teve uma identidade de país miscigenado, e que até recentemente, de modo geral, lidava bem com isso, está se transformando numa sociedade na qual as pessoas são classificadas e julgadas, antes de qualquer coisa, pela cor de sua pele – e os promotores dessa nova "cultura" juram que estão combatendo o racismo.
E fica pior. Procurando por Tia Nastácia nos cafundós da Grécia heroica, a mesma Emília pergunta a um pastor se por acaso a teria visto, o que dá lugar ao seguinte e impagável diálogo:
(Não farei comentários sobre os "outros efeitos" do pó de pirlimpimpim que possibilita todas essas viagens no tempo e no espaço; sei que é um ponto problemático, mas mesmo assim não sou a favor de mutilar o texto.)
Senhoras e senhores, com vocês versão da Pé da Letra:
Vamos mais longe. Admitamos por um momento que as falas de Emília no texto original de O Minotauro sejam preconceituosas: isso nos dá o direito de "corrigir" o que o autor escreveu? Eu entenderia se o editor acrescentasse ao livro uma nota preliminar explicando que a linguagem e os conceitos da época do autor eram diferentes dos atuais, mas colocar uma expressão como "lábios carnudos" na boca da Emília é um total despropósito, algo como fazer o Cebolinha, de repente, começar a pronunciar todos os erres corretos. Pior? Provavelmente pior. Há mais exemplos, entre os quais sobressai o momento em que Tia Nastácia, já resgatada, emociona-se ao rever sua querida patroa D. Benta e corre para abraçá-la, gritando: "Sinhá! (…) Sou eu, sua negra velha, Tia Nastácia…" Na edição da Pé da Letra ela diz "sou eu, sua ajudante". Ajudante. Ajudante. AJUDANTE. Pelo menos não puseram "colaboradora", que é como agora são chamados os que antigamente eram "empregados" ou "funcionários", mas soa igualmente morto, frio, sem emotividade, sem as conotações afetuosas do "sua negra velha". Sei o que estão pensando e concordo plenamente: é deprimente mesmo.
Entretanto, Monteiro Lobato ainda é Monteiro Lobato e assim será sempre; esse tipo de vandalismo praticado contra sua obra apenas reflete os tempos nojentos que estamos atravessando, e que, Deus o permita, ficarão para trás e serão lembrados somente como uma lição a ser aprendida. E, como eu não queria dar o serviço pela metade, tratei de procurar por outra edição que pudesse ser lida sem causar náuseas. A L&PM tem uma, dentro de sua coleção L&PM Pocket, que, até onde pude verificar, respeita o texto original. Ou então, se vocês forem da mesma geração que eu e estiverem se sentindo nostálgicos, pode valer a pena dar uma fuçada na Estante Virtual para tentar conseguir um exemplar de uma das velhas edições da Brasiliense (editora fundada pelo próprio Lobato), com as pra lá de clássicas ilustrações de Manoel Victor Filho.
terça-feira, fevereiro 22, 2022
Cobra Kai
Essa piadinha pueril que circulava no dojo ilustra bem o fato de que, ainda que o caratê nos desse um nível de foco e disciplina que a maioria não tem na nossa idade, mesmo assim éramos garotos (garotOs: em seis anos no dojo, acho que vi umas quatro ou cinco meninas, e uma era filha do professor), e, como nove entre dez garotos, adorávamos filmes de artes marciais. Entre os mais populares estava a trilogia Karate Kid, cujos filmes saíram em 1984, 86 e 89; vi o primeiro quando fazia cerca de um ano que treinava – passou na TV, que era como a gente via filmes na época, de modo que todo mundo viu ao mesmo tempo, e, a partir daí, ele foi o assunto forte na academia durante semanas. O segundo chegou aos cinemas pouco depois que o primeiro passou na TV, e o terceiro, alguns anos depois, e eles também causaram seu impacto, ainda que menor. Nosso sensei nunca disse uma palavra sobre esses filmes; pensando a respeito hoje, creio que ele apreciava a motivação que aquilo nos trazia, e preferia não nos desiludir explicando que muito do que os filmes mostravam era pura fantasia. De todo modo, descobriríamos isso mais cedo ou mais tarde, caso continuássemos treinando.
Acho difícil que alguém que esteja me lendo não tenha visto o primeiro Karate Kid, ou não teria se interessado em ler a respeito de Cobra Kai, então talvez eu nem precisasse falar sobre ele, mas não parece certo não dar ao menos um resumo básico (prometo tentar mantê-lo realmente básico). O jovem Daniel Larusso (Ralph Macchio) começa a frequentar uma nova escola depois de mudar-se, e nela conhece e se interessa por Alison "Ali" Mills (Elizabeth Shue), uma garota bonita, rica e popular que é animadora de torcida (é um filme para adolescentes, então relevem os clichês). Ela também gosta dele, embora Daniel seja apenas um calouro magrelo, pobre e sem nada de excepcional (relevem também as inverossimilhanças). Ocorre que Ali, até pouco tempo antes, namorava Johnny Lawrence (William Zabka), que por acaso é o campeão regional de caratê e não aceitou a decisão dela de terminar. Como resultado, Daniel passa a sofrer bullying violento com frequência – e nem sempre de forma inocente: por vezes ele bem que provoca. Quando está levando uma surra particularmente dura aplicada por Johnny e vários de seus amigos que também são lutadores, o garoto é salvo pelo Sr. Miyagi (Noriyuki "Pat" Morita), que trabalha como zelador e faz-tudo no condomínio modesto onde ele mora. Ao ver aquele japonês idoso e baixinho nocautear cinco atletas de caratê de uma vez só, Daniel percebe que o homem é muito mais do que aparenta, e o convence a lhe ensinar caratê para que possa se defender. Durante seu treinamento, ele recebe de Miyagi uma série de lições que, embora direcionadas ao caratê, encontram aplicação nas mais diferentes situações da vida. O filme termina com Daniel e Johnny se enfrentando no torneio regional, e o final dá a entender que a vitória (dramática, como teria que ser) alcançada pelo primeiro deve ter posto fim ao seu tormento.
Os outros dois filmes são apenas desdobramentos do primeiro. O segundo, ambientado na maior parte em Okinawa (a província natal do Sr. Miyagi, no sul do Japão, e provável local de origem do caratê) é legal; o terceiro é fraco, praticamente uma reciclagem do roteiro do primeiro, mudando apenas os detalhes. Existe um quarto filme que, apesar de contar com Morita novamente no papel de Miyagi, é considerado constrangedor por quase todos os fãs da saga; nele, o mestre treina uma nova aluna, interpretada por Hilary Swank. Ralph Macchio não participa – não que sua ausência seja o motivo da ruindade do filme, pois no terceiro ele está tão irritante que dá vontade de socá-lo, não fosse ele um lutador treinado. Esse quarto filme é solenemente ignorado nos roteiros de Cobra Kai, que têm sempre o maior cuidado em levar em consideração cada mínimo detalhe dos três primeiros.
A série estreou em 2018 no YouTube Premium, mas, depois de duas temporadas bem recebidas pelo público, foi adquirida pela Netflix. A terceira temporada saiu no início de 2021, e a quarta, no final do mesmo ano; a quinta já foi confirmada e é esperada para algum momento de 2022. A primeira coisa que chama atenção é o fato de os produtores terem conseguido trazer de volta praticamente todos os atores principais dos filmes (com exceção de Morita, que faleceu em 2005) e até mesmo muitos dos secundários. Os protagonistas são Daniel Larusso e Johnny Lawrence, novamente interpretados por Ralph Macchio e William Zabka, mas, diferente do que acontecia nos filmes, aqui a história é narrada, a priori, do ponto de vista do segundo. Isso fica evidente já no início do primeiro episódio, que exibe as cenas finais do primeiro Karate Kid, com Daniel nocauteando Johnny com o hoje clássico golpe do grou (ou garça), mas, depois do chute que decidiu a final do torneio em 1984, a câmera deixa de lado a comemoração de Daniel e seus amigos para focar em Johnny caído no tatami, atordoado e vencido. A seguir, corta para os dias atuais. Trinta e poucos anos depois de perder o título de campeão de caratê, Johnny sobrevive fazendo serviços de manutenção residencial e mora num condomínio humilde, muito parecido com aquele onde Daniel morava na adolescência – de certo modo, os papéis se inverteram, pois, na época, Johnny parecia ser um rapaz rico, que circulava numa imponente moto e frequentava o elitista country club local. Ficamos sabendo então que ele tem um padrasto rico, mas com quem nunca se deu bem e de quem não quer aceitar favores. Para piorar, tem uma tendência a beber demais. Daniel, em contrapartida, subiu na vida, e agora é dono de várias concessionárias de veículos espalhadas pelo Vale de San Fernando, um distrito de Los Angeles, bem perto de Hollywood e famoso por concentrar as produtoras de filmes adultos (não que isso tenha algo a ver com a história – risos). É casado com Amanda (Courtney Henggeler) e tem dois filhos, a patricinha Samantha (Mary Mouser) e o caçula Anthony (Griffin Santopietro), típico pré-adolescente pé-no-saco que sofre crise de abstinência se ficar uma hora sem celular ou videogame. Samantha, na infância, chegou a aprender caratê com o pai e com o Sr. Miyagi (agora já falecido), mas não pratica há anos, enquanto Anthony nunca teve o menor interesse na arte marcial.
Johnny encontra algum estímulo para sair de sua estagnação ao conhecer Miguel Diaz (Xolo Maridueña), filho de uma imigrante equatoriana, que acaba de se mudar para o mesmo condomínio junto com a mãe e a avó. Meio por acaso, salva-o de levar uma surra de um grupo de valentões da escola (é curioso como o mundo dá voltas), e nota-se sua satisfação, apesar de tudo, ao constatar que ainda é um excelente lutador. Começa por recusar os pedidos de Miguel para ensiná-lo, mas acaba não só aceitando, como decide recriar o Cobra Kai, nome do dojo no qual treinava na juventude. O Cobra Kai foi originalmente fundado por John Kreese (Martin Kove), um veterano da Guerra do Vietnã que, ao ensinar caratê, punha ênfase na agressão, inculcando em seus discípulos que "compaixão é para os fracos", o que explica, ao menos em parte, o comportamento truculento de Johnny e seus amigos nos velhos tempos. Portanto, as recordações de Johnny a respeito de seu mestre e do lugar onde aprendeu a lutar são ambivalentes: ali ele não aprendeu apenas como dar golpes e como defender-se deles – aprendeu também sobre disciplina e autoconfiança, lições que lhe podem ser úteis agora, que ele está novamente tentando dar um rumo a sua vida; por outro lado, sofreu uma lavagem cerebral que o transformou num indivíduo irracional e violento, um condicionamento do qual ele ainda luta para se livrar. Seu objetivo é passar aos jovens somente o que havia de bom nos ensinamentos que recebeu: como ele próprio diz, quer ensiná-los a "serem durões sem serem babacas". Infelizmente, nem todos os seus alunos assimilam essa lição, e alguns se aproveitam do fato de agora saberem lutar para virarem eles próprios os bullies.
Daniel fica inconformado ao saber que Johnny trouxe o Cobra Kai de volta e decide contra-atacar abrindo seu próprio dojo, o Miyagi-do, para ensinar caratê focado na autodefesa, tal como aprendeu com seu falecido sensei. Isso reacende a rivalidade entre os dois, mas nota-se que ambos amadureceram (embora nem sempre aparentem) e que têm respeito um pelo outro como lutadores, ainda que cada um ache que sua abordagem do caratê é superior. Em vários momentos chega a parecer que estão a ponto de se tornar amigos, mas, é claro, algo sempre acontece para estragar tudo.
Sem dar muito spoiler, adianto que outros rostos do passado vão surgindo e trazendo reviravoltas que obrigam Johnny e Daniel a trabalharem juntos, o que, no entanto, nunca acontece sem atritos. A série tem roteiros ágeis, com as doses certas de ação e drama; as partes românticas não são exageradas a ponto de se tornarem enjoativas, nem as partes de luta a ponto de cansarem (há também momentos de humor aqui e ali). Como dito acima, muitos atores da trilogia de longas-metragens (muitos mesmo) vão reaparecendo um por um, dando vida novamente a seus antigos personagens, o que é empolgante e divertido – puro fan service da melhor qualidade! Para dar uma ideia, até Randee Heller, que interpretava Lucille Larusso, mãe de Daniel, está de volta, velhinha como sua personagem teria que estar depois de mais de 30 anos. Rob Garrison, que fazia o papel de Tommy, um dos lutadores do Cobra Kai original e amigo de Johnny, retorna num episódio que investe na nostalgia – já muito debilitado pela doença que o mataria pouco depois.
Colocando a questão em palavras simples, o fato é que o caratê e outras artes marciais são a antítese dessa cultura da glorificação da fraqueza que nos cerca hoje. O mundo está cheio de jovens "floquinhos de neve" – mimados, frágeis, hipersensíveis – que se ofendem e se magoam com tudo e são absolutamente incapazes de qualquer coisa que exija um mínimo de determinação ou sacrifício, e isso nem é o pior: o pior é que a mídia e grande parte da sociedade incentivam e recompensam esse tipo de atitude. No caratê, você precisa de força de vontade para obter qualquer progresso, precisa se acostumar à obediência pronta, a treinar sempre, não importa se está disposto ou não, a conviver com a dor, a esforçar-se pela vitória mas encarar serenamente a possibilidade da derrota, e precisa aprender a não se abalar com um corretivo severo aplicado pelo seu sensei; precisa fortalecer o corpo e o espírito. Enfim, ele desenvolve virtudes que aqueles que controlam a mídia atual não querem que as pessoas tenham. Portanto, apostar numa série com essa temática foi uma iniciativa corajosa, e a excelente recepção que ela vem tendo é um bem-vindo sinal de que ainda podemos ter alguma esperança de que a humanidade não acabe morrendo afogada num oceano de cancelamentos e pronomes neutros.