sábado, dezembro 09, 2017

Águias na Tempestade

Águias na Tempestade conclui a Trilogia das Águias de Ben Kane, cujos outros dois volumes já foram objeto de comentários aqui no blog (ver aqui e aqui), e que me proporcionou três sucessivos e deliciosos mergulhos no mundo do primeiro século da Era Cristã, e, mais especificamente, nas histórias por trás dos reveses sofridos pelos romanos na Germânia, que determinaram a cessação de sua expansão pelas terras a leste do Reno. Isso fez com que o rio continuasse, pelos séculos que se seguiram, a ser, na prática, a fronteira entre a área de influência de Roma e as terras que permaneciam sob o controle das tribos bárbaras; em termos modernos, isso significa que a maior parte do que é hoje a Alemanha nunca foi de fato incorporada ao Império, o que se refletiria em sua história, tanto no campo cultural quanto político. Novamente, Kane nos oferece uma narrativa empolgante girando em torno de Armínio, o chefe germânico que já foi um oficial do exército romano, e de Lúcio Comênio Tulo, centurião veterano que viveu altos e baixos (alguns deles muito baixos) durante os últimos anos servindo na Germânia.

Um ano depois dos eventos narrados em O Resgate das Águias, Armínio continua lutando com o mesmo problema de sempre: seus compatriotas germanos estão demasiado ligados a seu modo de vida tradicional para serem capazes de pensar e agir como um só povo. Cada chefe só pensa nos interesses de sua própria tribo e desconfia das outras – e, principalmente, desconfia dos outros chefes. Também as opiniões a respeito dele, Armínio, estão longe de formar um consenso. Alguns chefes o veem com bons olhos por causa da vitória à qual conduziu os germanos na floresta de Teutoburgo, seis anos antes, mas outros acham (e não sem razão) que ele pretende muito mais que apenas manter sua pátria fora dos domínios de Roma: Armínio ambiciona tornar-se um líder supremo, uma espécie de rei, pretensão que soa ofensiva aos ouvidos daquele povo tribal, para quem a ideia de fazer parte de um Estado centralizado não parece muito diferente da de escravidão. O contra-ataque romano do ano anterior, com a recuperação de uma das águias tomadas em Teutoburgo, foi um claro sinal de que é perigoso para as tribos dar a vitória como certa e achar que podem relaxar (ou, como diriam seus inimigos, "adormecer sobre os louros"), e Armínio, mais uma vez, se esforça para conseguir que todos se unam. Para isso, ele não lança mão somente de expedientes honestos; há momentos em que julga necessário manipular, e o faz por quaisquer meios ao seu alcance, seja bajulando ou intimidando. Assassinato também não é uma solução que ele se recuse a utilizar, quando se trata de tirar do caminho alguém que esteja se mostrando um obstáculo particularmente difícil. Há também o drama pessoal do qual Armínio ainda não se recobrou por completo: o rapto de sua esposa grávida, por volta da mesma época da revanche dos romanos. Ele sabe que ela deve estar viva e sendo bem tratada, que deve ter dado à luz o filho do casal e estar criando-o num cativeiro, confortável talvez, mas que nem por isso deixa de ser um cativeiro, sabe-se lá em que lugar dos vastos domínios de Roma – mas saber que a mulher e o filho estão vivos só oferece um consolo limitado, já que ele provavelmente nunca mais os verá.

Tulo, enquanto isso, vive uma fase que, embora dura e trabalhosa como nunca deixava de ser a vida de um legionário, está-lhe trazendo satisfação pessoal. Deve estar agora com seus 50 anos, ou quase isso, e, embora a ideia de reformar-se pareça cada vez mais tentadora, nota-se que ele só sentirá que seu dever foi cumprido quando a águia da Décima Oitava (sua antiga legião, uma das três aniquiladas por Armínio e seu exército na floresta de Teutoburgo) for recuperada. Depois de anos de constrangimentos por causa do que aconteceu em Teutoburgo, e de ter sido rebaixado de posto graças à influência do odioso jovem legado Túbero, ele merecidamente caiu nas boas graças de Germânico, sobrinho e filho adotivo do imperador Tibério, governador militar e general em comando das legiões da Germânia, e, no começo deste novo livro, é novamente promovido, passando a comandar a Segunda Centúria da Primeira Coorte da Quinta Legião (uma legião tinha dez coortes, e a autoridade e prestígio de um oficial eram inversamente proporcionais ao número da coorte na qual ele servia: um centurião da Primeira Coorte estava bem mais alto que um da Sexta, por exemplo). Em Teutoburgo, Tulo salvou uma menina germânica órfã a quem acabou adotando, mas, por não ser possível a um velho soldado solteirão tomar conta de uma criança, confiou-a aos cuidados de Sirona, madura e atraente viúva gaulesa, proprietária de uma taberna na vila próxima ao forte onde ele serve. Tulo sempre arrastou uma asa por essa dama, e agora o sentimento parece estar transbordando, levando-o a tomar atitudes (um tanto atabalhoadas) das quais, tempos atrás, nem teria se julgado capaz, o que rende uma ou duas passagens bastante divertidas.

Ocorre então que, certa tarde, Tulo, de folga, está justamente no joalheiro da vila, tentando escolher um presente para sua crush, como diríamos hoje, quando, através da porta da loja, vê passar na rua seu general, Germânico, acompanhado apenas de uns poucos guardas pretorianos que lhe servem de guarda-costas, rumo a sua loja de vinhos favorita – e, logo atrás, um grupo de guerreiros germanos armados. Com risco da própria vida, Tulo consegue salvar seu comandante, e já não pela primeira vez, mas fica abalado e preocupado ao reconhecer entre os assassinos um homem de nome Degmar, da tribo dos Marsi, cuja vida ele salvou tempos antes, e que, durante um curto período, foi seu escravo. Como ele escapa (é o único do grupo que consegue), as perguntas ficam sem respostas, e a apreensão gerada pelo incidente ainda está com Tulo quando, meses depois, o exército formado por oito legiões, mais tropas auxiliares, atravessa o Reno para uma nova investida contra os germanos.


E creiam, se a narração da batalha de Idistaviso (também referida como batalha do rio Visurgis, embora Ben Kane designe o rio por seu nome moderno, Weser) presente nos capítulos XX a XXIII não for a melhor narração de batalha que já li em romances históricos, está, pelo menos, no "Top 3". O modo como Kane conta sobre o desenrolar dos acontecimentos permite-nos ver com nitidez a diferença entre os estilos de combate de romanos e germanos, ainda que Armínio aproveite alguma coisa do que aprendeu no tempo em que servia a Roma – não pode usar tudo o que aprendeu, pois, para isso, precisaria de um tipo de soldado do qual não dispõe. Embora odeie os romanos do fundo da alma, ele sente uma admiração relutante e pontuada de inveja pela coragem disciplinada que eles demonstram no campo de batalha – um tipo de disciplina que seus guerreiros germânicos teriam que nascer de novo umas três vezes para conseguir. "Disciplina, era sempre a merda da disciplina deles que vencia", reflete enquanto tenta não se deixar levar pelo desespero quando a batalha começa a tomar um inconfundível ar de derrota. Mesmo quando isso não é formulado em palavras, é fácil imaginar que Armínio devia ficar pensando frequentemente sobre as "misérias" que poderia fazer contra o Império se seus seguidores fossem como os legionários. Um general romano não precisava perder um tempo muitas vezes precioso nem sabotar a própria autoridade persuadindo repetidamente os oficiais sob seu comando de que seria "melhor para todos" se fizessem o que ele dizia, ou, caso isso falhasse, recorrendo à bajulação e a promessas de recompensa. Bastava-lhe dar uma ordem, e não era preciso repeti-la.

Não é meramente como se os germanos não tivessem a capacidade para alcançar o mesmo grau de disciplina que os romanos: acontece que eles nem mesmo querem isso. A simples ideia soa-lhes revoltante. Isso fica bem ilustrado numa passagem em que Armínio repreende alguns guerreiros por fazerem algo sem sua autorização, e o mais idoso do grupo lhe retruca: "Toma lá isto para a tua autorização. – O velho guerreiro fez um gesto obsceno. – Segundo a última informação que tive, eras o chefe da tribo dos Queruscos, não eras nem rei nem centurião romano, e eu era um homem livre, não um escravo ou a merda de um legionário." Para a mentalidade dos germanos, a obediência pronta, sem discussão que um soldado romano prestava ao seu superior era uma coisa abjeta, indigna de um homem. O fato de ser precisamente essa disciplina o que dava aos romanos a capacidade de superá-los no campo de batalha não lhes entrava na cabeça.

Também conforme aquilo que já nos acostumamos a esperar dele nos dois primeiros volumes da saga, Ben Kane aproveita os ganchos da história para apresentar mais detalhes sobre as legiões e sobre como era a vida de seus integrantes – e mesmo quem, como eu, está longe de ser estranho ao assunto, sempre aprende mais alguma coisa. A "bola da vez" (bem, uma delas) são os pretorianos e sua relação com os legionários "comuns": há um trecho especialmente interessante e que chega a ser engraçado, em que Tulo, precisando falar com urgência a Germânico numa hora tardia, tem sua entrada barrada por um par de guardas emproados e acaba perdendo a paciência, dizendo umas tantas coisas que, sem dúvida, muitos legionários gostariam de dizer. Bem, para começo de conversa, quem eram os pretorianos? Na origem, o prætorium, ou pretório, era a casa (numa base permanente) ou tenda (num acampamento) onde o comandante de uma força militar se alojava e de onde exercia suas funções, tais como expedir ordens e receber os relatórios dos oficiais. Durante sua longa campanha na Gália, Júlio César decidiu criar uma guarda especial para sua segurança, e que seria composta por homens escolhidos, legionários experientes, de absoluta lealdade e sólida reputação por atos de valor. Por proteger o pretório e seu mais ilustre ocupante, essa força especial ganhou o nome de Guarda Pretoriana, e viria a tornar-se uma instituição tradicional no exército romano, diretamente responsável pela segurança do imperador e de sua família (certo, o próprio César nunca foi formalmente entronizado, mas, com exceção do título, foi imperador em tudo o mais). Durante o tempo de César, a Guarda existiu de maneira informal; seu sobrinho-neto, filho adotivo e sucessor, Augusto – o primeiro a usar o título de imperador – foi quem a institucionalizou e regulou. Tibério, enteado e sucessor de Augusto, e que era o imperador na época em que está ambientado o livro, fez construir um imponente quartel-general para a Guarda Pretoriana, que, por falar nisso, era a única força militar à qual era permitido estacionar na zona urbana de Roma. Em reconhecimento a esse gesto, a Guarda adotou como emblema um escorpião, o signo zodiacal de Tibério. Os pretorianos distinguiam-se dos demais legionários pelas túnicas escuras e pelos escudos, que eram ovalados, como os dos exércitos da época da República, em vez de retangulares.

Se a Guarda Pretoriana tivesse continuado a ser o que foi pensada para ser, é provável que não se houvesse instalado a antipatia com que homens como Tulo e seus soldados a encaravam; afinal, os pretorianos deveriam ser a elite do exército, deveriam ser exclusivamente heróis das legiões, dignos da admiração de todos. Deveriam. Só que ser um pretoriano era uma posição cobiçável, já que o soldo era duas vezes maior que o dos legionários regulares, o tempo de serviço era mais curto, e havia uma série de privilégios, para não falar no fato de que, salvo na eventualidade de algum membro da família imperial decidir ir para o campo de batalha, era pouco provável que viesse a ser preciso efetivamente lutar (os pretorianos que acompanham Germânico, por exemplo, não têm uma vida tão tranquila). E, como costuma acontecer em se tratando de posições cobiçáveis, uns e outros não demoraram muito a encontrar "formas alternativas" de ter acesso a uma vaga na Guarda, para quem tivesse uma família influente e/ou bastante prata disponível. Como resultado, na opinião de Tulo, pelo menos uma grande parte da Guarda Pretoriana em seus dias é composta de jovens bundões em armaduras reluzentes que se julgam superiores aos outros legionários, mas que, se estivessem em sua centúria, sentiriam o peso de sua vitis (vara de videira que os centuriões portavam) até virarem homens de verdade.

De toda a trilogia, Águias na Tempestade é, mais do que provavelmente, o volume com a mais farta quota de sangrentas cenas de batalha; eu ainda não tinha visto Tulo e seus homens causarem tamanha devastação entre as fileiras inimigas, e é digno de admiração o modo como Ben Kane consegue levar um trecho de até duas, três páginas narrando isso, sem que em momento algum a coisa pareça repetitiva ou desnecessária. As baixas do lado romano também não são poucas, ao menos quando Armínio, cuja capacidade estratégica não é desprezível, consegue forçar as legiões a lutar em terrenos e condições que tornam muito difícil colocar em prática as táticas e manobras engenhosas que os soldados romanos treinavam exaustivamente até serem capazes de executá-las de olhos fechados e com a precisão de um relógio – o que, em grande parte, era o segredo de suas vitórias contra inimigos fortes e corajosos, mas desorganizados, como era o caso dos guerreiros germanos. Como nos dois livros anteriores, não há aqui mocinhos nem bandidos, ou, pelo menos, ninguém é alguma dessas coisas o tempo todo: de ambos os lados são praticadas atrocidades e também atos heroicos. A guerra é sempre um negócio brutal e terrível, e talvez não haja nada como ela para trazer à tona o melhor e o pior que existe no homem.

Não é possível concluir o texto sem dizer uma ou duas palavras a respeito de Nero Cláudio Druso Germânico (filho), ou apenas Germânico, personagem histórico real aqui retratado. Em Eu, Claudius, Imperador, o autor Robert Graves pintou-o sob a ótica de seu irmão menor, Cláudio, que o idolatrava, talvez, mais que ao próprio pai, a quem quase não conheceu (Nero Cláudio Druso Germânico pai, normalmente referido como Druso, faleceu em 9 a.C., quando Cláudio tinha cerca de um ano de idade). Antônia, mãe dos dois, punha todo o seu orgulho e esperanças no filho mais velho, dedicando apenas desprezo ao pequeno Cláudio, a quem considerava um retardado inútil; da família, só Germânico gostava de Cláudio, e fez por ele tudo o que pôde. Não admira, portanto, que Graves, ao tentar escrever como o próprio Cláudio escreveria, tenha feito de Germânico a representação mais favorável possível. Já em Águias na Tempestade, a ótica é outra: Ben Kane baseou-se principalmente nos relatos dos historiadores Tácito e Dio Cássio; esse é Germânico em ação na guerra, conduzindo-se, muitas vezes, de modo implacável. Nas campanhas dos anos 15 a 17, as tribos que se haviam aliado a Armínio em Teutoburgo foram derrotadas, e várias delas, quase exterminadas, mas isso não foi seguido por uma ocupação massiva do território, e nem mesmo por um esforço sistemático no sentido de restabelecer a próspera província romano-germânica que estava tomando forma antes de Armínio orquestrar sua revolta; o principal motor dessas campanhas foi o fato de que o massacre na floresta de Teutoburgo não podia ser deixado sem resposta, por pelo menos duas razões. Primeiro, se o Império não revidasse, isso poderia assanhar as tribos do leste do Reno e levá-las a achar que a vitória uma vez obtida poderia ser reprisada, e, com isso, a margem oeste do rio passaria a sofrer com seus ataques. Segundo, as águias das legiões esmagadas em Teutoburgo continuavam em poder dos bárbaros, e, enquanto não fossem recuperadas, isso permaneceria como uma ferida aberta no moral de todo o exército. Uma vez concretizada a represália, os romanos retiraram-se; o imperador Tibério e o senado concordaram que as terras além do Reno exigiriam demasiado esforço para sua conquista, e não ofereciam em troca nada que não pudesse ser obtido mais facilmente em outros sítios. Portanto, pode-se dizer que o objetivo de Armínio e seus seguidores, de manter a maior parte da Germânia independente do Império Romano, foi alcançado, mesmo que o saldo final do confronto tenha sido de derrota para eles. Quanto a Germânico, só podemos ficar imaginando que grande imperador ele poderia ter sido (era filho adotivo de Tibério, e, portanto, o próximo na linha de sucessão) se não fosse por sua morte prematura, em 19, sem ter completado 34 anos. De qualquer forma, o principado de Tibério seria bem longo: ele governaria até sua morte no ano 37, e, não mais dispondo de Germânico para sucedê-lo, indicou o filho dele, Caio Júlio César Augusto Germânico… mais conhecido como Calígula. Um pouco mais sobre esses dois imperadores pode ser encontrado em meu post sobre o livro de Robert Graves, cujo link está logo acima neste parágrafo.

Ben Kane, sem dúvida e sem favorecimento algum, é um dos mais notáveis escritores atualmente em atividade a se dedicarem à ficção histórica, e estou grato por ter tido a oportunidade de ler a Trilogia das Águias, que me rendeu algumas horas de uma leitura muito intensa e agradável. Não tenham preguiça de ler na íntegra a nota do autor ao final do livro: há partes que são repetidas das notas dos dois primeiros volumes, mas outras não são e tratam de coisas que vale a pena saber. Certo, parece que Kane não quis dar-se ao trabalho de garantir que a nota ficasse tão bem escrita quanto o resto do livro, pois o texto é um tanto bagunçado, com vários assuntos jogados aparentemente a esmo num único parágrafo. Há indicações empolgantes de museus e sítios arqueológicos romanos que podem ser visitados na Alemanha – espero conseguir um dia – e uma pá de curiosidades. Kane assegura que a ronda noturna de Germânico pelo acampamento, disfarçado, para conferir como anda o moral de seus soldados (que eu poderia jurar ter sido inspirada numa cena da peça Henrique V, de Shakespeare!) é histórica, embora, no livro, tenha levado o toque ficcional de fazê-lo acompanhar por Tulo. E, fazendo uma brincadeira com seus leitores, o autor desafia: "Há duas homenagens ao filme Gladiador no livro – veja se as descobre". Uma delas eu encontrei facilmente, e embora, é claro, ainda não tivesse lido a nota, pensei comigo que não podia ser coincidência: o início de uma conversa entre Tulo e seu optio, Marco Fenestela, no capítulo XXXII, é idêntico ao diálogo do general Maximus com seu ajudante de ordens, Quintus, logo antes da primeira batalha no filme de Ridley Scott. "As pessoas deviam saber quando são conquistadas." "Você saberia, Quintus? Eu saberia?" (A propósito, o optio, que se pronuncia "ópcio", era o segundo oficial mais graduado numa centúria, auxiliar direto do centurião e, quando necessário, seu substituto.) Quanto à outra homenagem, creio que a achei também, mas, se for o que eu penso, é bem menos explícita que a primeira, e, de qualquer modo, não posso dizer aqui do que se trata, pois envolve um spoiler. Por fim, preciso confessar que estou, de certa forma, contente de que esses livros tenham sido publicados em Portugal. Adquiri-los é trabalhoso, demoram a chegar e custam caro, mas tenho calafrios só de imaginar o que noventa e nove por cento dos tradutores brasileiros de hoje em dia teriam feito com os textos de Kane, naquelas horrendas tentativas de "linguagem de época".


quinta-feira, novembro 16, 2017

O Silmarillion

Meu início na literatura de J. R. R. Tolkien foi exatamente o mesmo que eu hoje aconselho a quem me perguntar por onde começar: O Hobbit, que é, sem dúvida, a mais simples e leve das obras a respeito da Terra-média. Fácil de ler, divertido, empolgante, não requer qualquer conhecimento prévio, e já traz em si aquela combinação tocante de grandiosidade, atmosfera épica, humor e nostalgia – uma nostalgia inexplicável de algo que jamais conhecemos. Porém, depois que você já adquiriu uma certa intimidade com o universo criado pelo autor, passa a querer saber sua história desde o começo – o verdadeiro começo, mesmo que outras partes dessa história tenham sido contadas primeiro.

O Silmarillion satisfaz, ao menos em parte, esse desejo. Diz a lenda (para os apaixonados por Tolkien, não é exagero falar assim) que, depois do inesperado sucesso de O Hobbit, publicado em 1937, o editor Stanley Unwin disse a Tolkien que o público estava sedento por novas aventuras ambientadas na Terra-média, e que, se houvesse tais histórias, ele as publicaria sem dúvida. O Professor, entretanto, metódico como sempre, em vez de simplesmente escrever novas histórias seguindo a receita já aprovada, quis "começar pelo começo", e apresentou a Unwin um punhado de manuscritos soltos, embora interligados entre si, que tratavam da origem e dos primeiros tempos daquele mundo. O editor foi da opinião de que aquele tipo de coisa era demasiado séria e complexa para agradar aos leitores que tinham adorado O Hobbit, e recomendou ao autor que focasse nos hobbits, já que era principalmente nas pequenas criaturas de pés peludos e apetite voraz que o interesse do público parecia se concentrar. O resultado foi O Senhor dos Anéis, livro que, se tivesse podido fazer as coisas como queria, Tolkien talvez jamais tivesse escrito – e sobre o qual poderíamos dizer que, se a ideia era mesmo fazer algo "não tão complexo", então parece que nem tudo saiu conforme os planos. Seja como for, hoje em dia a esmagadora maioria dos fãs do Professor (maioria na qual, com toda a certeza, eu me incluo) considera o SdA como sua obra-prima.

Acontece que, mesmo sem terem sido publicados, os textos de O Silmarillion sempre foram importantes para Tolkien, que os considerava, "oficialmente" e para todos os fins, parte da história da Terra-média, como mostram suas cartas e outros escritos. Não era possível que seus leitores ficassem para sempre privados desses conhecimentos, mas foi preciso esperar até 1977 (quatro anos depois da morte de Tolkien) para que esses textos fossem reunidos num livro, editado por Christopher Tolkien, filho do autor, o que deu início a uma longa e árdua, embora frutífera, missão, que continua até hoje, apesar do fato de Christopher, veterano da Segunda Guerra e aposentado da cátedra de Língua Inglesa na Universidade de Oxford, completar 93 anos agora em novembro.

O livro publicado sob o título de O Silmarillion reúne, na verdade, vários textos menores – menores, bem entendido, no sentido de mais curtos, não no de menos importantes. O primeiro deles é Ainulindalë, 'a Música dos Ainur', que, para definir da maneira mais sucinta, trata da criação do mundo. Em muitos lugares nos escritos de Tolkien há sugestões (e, por vezes, mais que sugestões) de que o mundo sobre o qual suas obras versam é o nosso próprio mundo num passado distante. Como se fosse para reforçar esse entendimento, esse mundo é chamado de Arda, nome que possui ligação evidente com Earth em inglês, Erde em alemão, Jord (pronunciado Iord) em nórdico antigo, e assim por diante, todos significando 'Terra'; Tolkien, como hábil linguista que era, naturalmente não perderia a oportunidade de utilizar nomes e palavras como uma forma de fornecer informações que um leitor atento e com certo conhecimento poderia captar. Não que os nomes tenham sido criados como um recurso para apoiar as narrativas: de certa forma, foi o inverso. O Professor criou primeiro as línguas de seu mundo fantástico, e só depois, levado pela vontade de dar a elas um substrato histórico e lendário, criou as histórias. Certa vez, falando sobre o esperanto, ele disse que essa língua artificial de criação moderna está muito mais "morta" que o latim ou o grego antigo, porque não possui história e tampouco um corpus mitológico ligado a ela – coisas que o grego antigo e o latim possuem. O desejo de evitar que seus tão queridos idiomas élficos tivessem essa mesma sina de "línguas natimortas" foi o que o motivou a criar as lendas que tanto amamos e que, hoje, fascinam milhões de leitores no mundo todo, independentemente do interesse que eles tenham ou não tenham em filologia.

Eu e minhas digressões… Estava dizendo que Ainulindalë, a primeira parte de O Silmarillion, trata da criação do mundo. Sendo um católico devoto, Tolkien, conscientemente ou não, desenvolveu essa narrativa de uma forma essencialmente compatível com a visão cristã sobre o assunto, encontrada em parte na Bíblia, em parte na tradição da Igreja. Por falar nisso, e apesar do que muita gente pensa, a Igreja não é avessa à ciência e não considera que aceitar o que ela descobriu sobre as origens da vida e do universo seja incompatível com a crença num Deus criador – essa é a posição oficial, mas há os católicos fundamentalistas, que insistem na interpretação literal do Gênesis, isso para não mencionar os membros de outras denominações cristãs. Não sei qual era a opinião pessoal de Tolkien sobre essa questão, mas isso não faz tanta diferença para o nosso assunto do momento: seja como for, Ainulindalë é a criação do mundo narrada de uma forma poética, não científica.

Ele nos conta que, no início, "havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar" – ou seja, Deus. Ilúvatar significa 'Pai de Todos' em Quenya, uma das duas línguas élficas inventadas por Tolkien (que também criou línguas para os anões, orcs, entre outros, embora, a essas, tenha-se dedicado menos), e, como no caso de Arda, é fácil estabelecer a correlação entre vátar ('pai') e seus equivalentes em várias línguas de raiz germânica: father em inglês, Vater em alemão, fađir em islandês… Eru Ilúvatar, então, deu existência aos Ainur (no singular, Ainu), seres espirituais dotados de grande sabedoria e poder. Novamente em consonância com a visão católica, os Ainur não são deuses, mas poderíamos dizer que são anjos, criados por Deus antes que o mundo que conhecemos existisse. E, na narrativa de Tolkien, o trabalho de criação realizado por Ilúvatar se dá através da música. Primeiro Ele canta para os Ainur, depois pede-lhes que cantem também, sob Sua regência, e as maravilhosas melodias que produzem vão dando forma ao mundo que viria a ser Arda, mas que os Ainur chamaram primeiro Eä – numa tradução livre, 'o Mundo que É', quer dizer, o mundo que deixou de ser apenas uma ideia na mente de Eru para ganhar existência real. Mas, mesmo no reino de Eru, nada é perfeito. Um dos Ainur, de nome Melkor, quis criar sua própria melodia, e, com isso, trouxe desarmonia à música que seus irmãos faziam seguindo fielmente a orientação de seu Senhor.

Não é nada difícil ver que Melkor é a versão de Tolkien para Lúcifer – um dos anjos mais poderosos e mais próximos de Deus, que um belo dia decidiu que servir não era suficiente para ele – mas seria um redondo engano achar que o Ainulindalë limita-se a parafrasear de forma óbvia a narrativa cristã sobre a queda dos anjos. Ele traz um acréscimo muito interessante, enunciado nesta fala de Ilúvatar:

(…) Tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

Isso também faz parte da visão cristã, mas nem todo mundo sabe ou se dá conta: é a ideia de Santo Agostinho, de que "Deus não permitiria o mal, se dele não pudesse tirar um bem maior". Por mais que Suas criaturas se rebelem, no final ficará provado que tudo tinha um lugar no plano de Deus. Não que Ele deseje que elas se rebelem; simplesmente sabe de antemão quando isso acontecerá, já que é onisciente, e toma as providências necessárias.

Uma vez criado o mundo, e antes que surgissem os Filhos de Eru (elfos e homens), alguns dos Ainur optaram por viver nele, cabendo a cada um deles administrar um aspecto da criação; esses Ainur que viviam na Terra passaram a ser chamados de Valar (singular Vala, que no feminino fica Valië). No começo da segunda parte d'O Silmarillion, intitulada Valaquenta ('História dos Valar'), é dito que os Valar foram, com frequência, chamados de deuses pelos humanos, o que explica a semelhança das características de muitos deles com as de divindades de diferentes panteões, bem como as dessas divindades entre si. Impossível, por exemplo, olhar para uma ilustração de Ulmo, o Vala responsável pelas águas, e não lembrar imediatamente de Poseidon, o deus grego do mar. Do mesmo modo, Aulë, o Vala associado ao fogo e ao trabalho do metal, assemelha-se a Hefestos, o mesmo que os romanos chamavam de Vulcano. Já em Varda, a Valië da luz, que teria feito as estrelas, Tolkien permitiu-se revelar um vislumbre de sua própria fé, retratando não alguma deusa, mas a Virgem Maria, por meio de várias características que nós, católicos, atribuímos a ela e que ele deu também a Varda – o que não significa que as figuras das duas sejam sempre equivalentes, pois isso seria uma alegoria, coisa da qual o Professor notoriamente não gostava. Como sempre em sua obra, o que há é campo aberto para a famosa "aplicabilidade": num momento e situação específicos, Varda pode representar Maria; em outra situação, Varda pode representar outra coisa, e, em outro lugar da obra do autor, outra personagem pode assumir as atribuições de Nossa Senhora, como o faz Galadriel em O Senhor dos Anéis, quando dá a Frodo um cristal contendo a luz da estrela Eärendil. Mais tarde, quando o hobbit está perdido na escuridão da caverna de Laracna, esse presente não apenas ilumina seu caminho, mas renova sua coragem; não há como não ver aí exatamente o que a proteção da Mãe de Jesus significa para nós e, sem a menor dúvida, significava para Tolkien.

Os Valar, pois, estavam na Terra, cada um cuidando da parte dela que lhe fora confiada por Ilúvatar, mas Melkor, o Vala renegado, não se manteve ocioso; fazia tudo o que podia para arruinar o trabalho dos outros, e não estava sozinho nessa tarefa, contando com a ajuda de outros Ainur que o seguiam, bem como de inúmeros espíritos de menor poder – tal como Lúcifer, que, de acordo com a tradição cristã, foi seguido em sua rebelião por um terço dos anjos. Isso gerou muitos conflitos para os quais o jovem mundo serviu de palco. Os Valar fiéis sabiam do plano de Ilúvatar de trazer à vida os elfos e os homens, mas não sabiam quando isso aconteceria, e tanto tempo se passou que Aulë, impaciente, desejando ter criaturas inteligentes às quais pudesse ensinar suas artes, acabou criando os anões. Quando Eru viu o que o Vala havia feito sem Seu consentimento, repreendeu-o com severidade. Aulë, ao contrário do soberbo Melkor, acatou humildemente a reprimenda de seu Senhor, e, embora entristecido, ergueu seu martelo, pronto para destruir sua criação, lembrando um Abraão prestes a sacrificar o filho Isaac – mas, tal como o fez com Abraão, Deus não permitiu que concretizasse o ato; deteve a mão de Aulë e, magnanimamente, deixou que os anões vivessem, com a condição de que ficassem adormecidos até que Ele julgasse chegado o momento de despertar seus primogênitos, os elfos. Essa bela história fornece uma adequada explicação mítica para as características essenciais dos anões: Aulë os fez resistentes e teimosos para que pudessem sobreviver num mundo ainda castigado pelas artes malignas de Melkor; quanto ao amor pela mineração e pelo trabalho do metal, herdaram-no de seu "pai".

Conforme prosseguimos a leitura de O Silmarillion, vamos nos deparando com as origens de povos, personagens e lugares que já conhecemos, e, pelo menos nessa primeira vez, fiquei satisfeito por estar lendo-o agora, que já conheço O Hobbit e O Senhor dos Anéis: O Silmarillion amarra muitas pontas que pareciam soltas e coloca as coisas dentro de uma perspectiva mais ampla. Alguém que fosse lê-lo sem antes conhecer essas outras obras talvez achasse a leitura cansativa; do jeito como eu fiz, de forma alguma… Bem, não durante a maior parte do tempo. Há, sim, trechos que exigem paciência por parte do leitor, como o capítulo XIV, De Beleriand e Seus Reinos, que consta de nove páginas de anotações geográficas e topográficas. Tenham em mente que o livro é um apanhado de escritos soltos de diferentes tipos: é provável que Tolkien tenha escrito esse texto para sua própria referência, sem imaginar que algum dia seria publicado. E como material de referência e consulta, ele é útil para os que desejam conhecer a fundo o universo do autor, mas não esperem que seja divertido. Pretendo, um dia, reler as obras do Professor em ordem cronológica, à luz do conhecimento adquirido nas primeiras leituras.

Entre as revelações mais importantes para a história da Terra-média presentes em O Silmarillion estão as que tratam de Melkor, o primeiro Senhor das Trevas (gosto mais dessa forma, corrente em Portugal, que de "Senhor do Escuro", usada no Brasil desde a tradução d'O Senhor dos Anéis feita nos anos 90 por Lenita Rímoli Esteves), título que, mais tarde, passaria dele para seu servo, Sauron, que vem a ser o Senhor das Trevas mais conhecido pelos leitores de Tolkien – ou, melhor dizendo, aquele com cujo nome estamos mais familiarizados, já que, no SdA, embora seja a sua vontade que move as forças do mal, Sauron não chega a aparecer como um personagem propriamente dito, uma vez que, na ocasião, encontrava-se privado de um corpo. Não deixei de notar, também, que o paralelo entre Melkor e Lúcifer não fica apenas na semelhança das trajetórias de ambos, estendendo-se a sua índole e modus operandi: na tradição judaico-cristã, o diabo empenha-se em imitar Deus, embora sempre de forma imperfeita ou invertida; Melkor não tem o poder de criar novos seres como o faz Ilúvatar, então dedica-se a perverter a obra do Criador. Fez isso, por exemplo, quando tomou alguns elfos que havia capturado e, por meio de "lentas artes de crueldade" (nas palavras do autor) que é melhor nem tentarmos imaginar, desenvolveu, a partir deles, a raça dos orcs, destinados a serem seus soldados e escravos. Num processo semelhante, também inventou os trolls a partir dos ents, os "pastores de árvores".

Um personagem importante em O Silmarillion – e na história da Terra-média de modo geral – é Feänor, filho de Finwë, rei dos elfos Noldor e, sem dúvida, um dos mais poderosos e brilhantes representantes da raça élfica em todas as eras do mundo. Feänor criou as Silmarils, três joias inigualáveis que guardavam a luz de Telperion e Laurelin, as Duas Árvores que iluminavam Valinor (a terra dos Valar, no extremo oeste, separada da Terra-média por um mar) antes que o sol e a lua existissem. Também é atribuída a ele a invenção das Palantíri, artefatos que permitiam ver o passado, o futuro e o que acontecia em lugares distantes, e do alfabeto Tengwar, às vezes chamado de "runas élficas" ou "caracteres feänorianos". Porém, apesar de toda a sua sabedoria, Feänor também deixou um legado de violência, quando Melkor roubou as Silmarils e fugiu com elas em direção à Terra-média. Feänor conclamou todos os Noldor a segui-lo numa cruzada contra Melkor (a quem ele deu o nome de Morgoth, o 'Inimigo Negro'), para recuperar as gemas e vingar seu pai, Finwë, que o Vala renegado havia assassinado, fazendo dele o primeiro elfo a morrer de forma violenta… Só que, por mais justas que fossem as motivações, essa iniciativa causaria muitas desgraças. Para alcançar seu duplo objetivo, Feänor não se deteria diante de nada, mesmo que precisasse lutar contra outros elfos. Isso conduziu ao histórico e sangrento Fratricídio de Alqualondë, quando Feänor e seus Noldor travaram batalha contra os Teleri, um ramo dos elfos que vivia à beira-mar e que, até então, os considerava um povo amigo. Esse e outros episódios fazem da busca de Feänor, a meu ver, uma das partes mais emocionantes e mais trágicas de O Silmarillion, embora haja as que rivalizam. Omiti de propósito detalhes da história que tornarão a experiência mais interessante se vocês os descobrirem somente quando lerem.

Quem conhece um pouco da biografia de Tolkien também conhece algo de sua índole e opiniões, e sabe do sério problema que ele tinha com a tecnologia e o mundo moderno de forma geral (é engraçado tentar imaginar o que ele diria se pudesse ter previsto a internet e sabido que, no futuro, ela serviria para integrar seus fãs dos quatro cantos do mundo). Isso transparece em suas histórias, como quando ele descreve a cidade de Melkor/Morgoth, protegida pelas Ered Engrin, "Montanhas de Ferro", e conta que a fortaleza do inimigo tinha altas torres que exalavam fumaça e vapores que obscureciam o céu e envenenavam o ar… Isso pode até fazer pensar em vulcões, mas, para mim, parece bem mais com uma imagem de grandes fábricas com suas chaminés poluidoras. Mais tarde, Sauron seguiria o exemplo de seu mestre nesse ponto, assim como em outros; também Saruman, o mago-mestre que traiu sua ordem e se aliou ao Senhor das Trevas, adaptou sua fortaleza, Isengard, a esse padrão tenebroso, mandando derrubar suas florestas para transformá-las em lenha e alimentar as forjas que trabalhavam dia e noite produzindo armas para seu exército de orcs. Para Tolkien, o mundo moderno e industrial era o inimigo da natureza, e, por consequência, de tudo o que existia de belo e bom.

Embora as histórias interessantes em O Silmarillion sejam várias, a mais notável (na opinião do próprio Tolkien) é a de Beren e Lúthien. Beren, um jovem guerreiro humano, de origem nobre, mas caído em desgraça (não vou me alongar com os detalhes; basta dizer que sua família teve uma história trágica), vagando por uma floresta, vê Lúthien, filha do rei elfo Elu Thingol, dançando sobre uma colina, e apaixona-se por ela. O sentimento é mútuo, mas Thingol, que nutre um desprezo a priori pelos humanos, declara que só consentirá na união dos dois caso Beren lhe traga uma das Silmarils – as joias feitas tanto tempo antes por seu parente Feänor, roubadas por Morgoth, e que, naquele momento, são mantidas na fortaleza deste último, protegidas por todo o seu exército e por seus poderes tenebrosos. Nenhum rei elfo, mesmo com exércitos às suas ordens, jamais ousou atacar Morgoth no intuito de recuperar as Silmarils, e Thingol sabe disso muito bem; para um jovem sozinho e sem quaisquer recursos, tentar essa empreitada seria morte certa, e é justamente isso o que o pai de Lúthien pretende. Beren, entretanto, simplesmente ri e replica que "por preço baixo os reis élficos vendem suas filhas: por pedras preciosas e objetos criados por artífices", e parte para encarar o desafio. Sem spoilers, direi apenas que, na aventura cheia de peripécias que se segue a isso, Lúthien não fica com o papel da frágil donzela que apenas espera pela volta de seu herói e teme pela sorte dele: mostra-se sagaz e corajosa, dona de habilidades valiosas. Mais tarde, em nome de seu amor por Beren, ela vem a abrir mão de sua imortalidade. Essa história, de certa forma, tem um eco na Terceira Era (milênios depois), com Aragorn e Arwen, embora haja algumas diferenças importantes: enquanto o pai de Lúthien odiava Beren, Elrond, o pai de Arwen, gosta de Aragorn e vê com simpatia o amor dos dois, ainda que não pareça muito otimista quanto ao tipo de futuro que eles poderão ter. O mais bonito vem agora: nas figuras de Beren e Lúthien, Tolkien retratou a si próprio e a sua esposa, Edith; os nomes foram gravados junto dos seus próprios na lápide do túmulo que os dois compartilham no cemitério de Wolvercote, em Oxford.

Uma coisa em O Silmarillion poderá decepcionar a alguns: o livro conta as origens de elfos, anões, homens, até dos orcs, mas não diz um A sobre os hobbits (há uma única e brevíssima menção a eles no apêndice denominado Dos Anéis de Poder e da Terceira Era, que, como Christopher Tolkien salienta no prefácio, é realmente um apêndice, não fazendo parte de O Silmarillion; de todo modo, essa menção não diz sobre o Povo Pequeno nada que já não soubéssemos). Talvez a explicação esteja no fato de que, segundo Tolkien (provavelmente em alguma de suas cartas; não lembro onde foi que li isso), o povo de Bilbo e Frodo não constitui uma raça à parte, mas um ramo dos humanos. Usando uma linguagem mais científica, não falaríamos em "raças": elfos, anões e homens seriam diferentes espécies, embora muito próximas uma das outras, ao ponto de ser possível o nascimento de crianças mestiças – ao menos no caso de humanos e elfos; nunca soube da existência de mestiços humano/anão ou anão/elfo, pelo menos no universo de Tolkien. Seguindo o mesmo raciocínio, os hobbits seriam uma subespécie dos humanos. Mesmo levando isso em consideração, a existência dos hobbits, o quando, o como e talvez o porquê de terem se diferenciado dos outros seres humanos, isso tudo deve ter uma história fascinante por trás – talvez uma que o Professor não tenha chegado a escrever. Uma pena! Porém, estou longe de ser um especialista em Tolkien e estou bem ciente disso; se alguma história assim existir e alguém que me lê a conhecer, ficarei agradecido por ser corrigido, e também pela indicação de onde poderei ler tal história.

Ainda há muito mais neste livro, mas acho que já "falei" demais. Assim, já entrando na reta final do post, acho necessário indicar que, fora todos os que já citei, estão aqui, pelo menos, mais três conteúdos importantes. O primeiro, ainda dentro d'O Silmarillion propriamente dito, é a história de Túrin Turambar, que, no universo de Tolkien, preenche o arquétipo do herói valoroso, porém desventurado; parece que o autor se inspirou numa história presente no Kalevala finlandês, a respeito de um personagem de nome Kullervo, mas, enquanto lia sobre as calamidades que perseguiam Túrin, lembrei por mais de uma vez do mito grego de Édipo, tão bem aproveitado por Sófocles em suas peças Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona. O segundo, no apêndice Akallabêthtrata da terra de Númenor, habitada pelo ramo mais nobre da raça dos homens, do qual descendia o herói Aragorn, bem conhecido de quem leu O Senhor dos Anéis; e o terceiro, no já citado Dos Anéis de Poder e da Terceira Eraé precisamente a origem dos Anéis do Poder, os detalhes a respeito de sua forjadura, tema que só havia sido tangenciado naquele livro.

Boa parte das críticas que O Silmarillion recebeu logo a seguir ao seu lançamento deve ter despertado a ira dos fãs de Tolkien (o punhado de excertos que li certamente despertou a minha!), mas é difícil negar os pedaços de verdade que há em algumas delas, em especial quando se referem ao fato de, não raras vezes, tornar-se praticamente impossível seguir o texto e reter tudo o que se está lendo, ou não se cansar com as dezenas e dezenas de nomes exóticos que pipocam a cada página: não dá para memorizar tudo isso. O Professor, à semelhança de uma criança extraordinariamente criativa e engenhosa, deleitava-se a brincar com os brinquedos que havia construído para si próprio – suas línguas fictícias, que ele não se contentou em criar, mas levou a um grau inacreditável de coerência e detalhamento, com etimologia própria, uma gramática com direito a tempos verbais, conjugações, declinações e tudo o mais. Tal criação não é menos que genial, e é totalmente compreensível que o autor quisesse vê-la funcionando, sem esquecer que a Terra-média e sua mitologia só existem por causa dessas línguas, mas nada disso impede que, em várias partes do livro, a avalanche de nomes de personagens e lugares (todos esses nomes, sem exceção, com significados precisos em uma ou outra língua imaginária) deixe o leitor meio desarvorado, mesmo que ele já tenha alguma experiência com a escrita de Tolkien. Como um louvável esforço para amenizar esse problema para os leitores, Christopher Tolkien incluiu um glossário dos famigerados nomes de personagens, lugares, povos, etnias etc., que podemos consultar sempre que não lembrarmos ao que um determinado nome se refere. Há também um apêndice com elementos formativos dos nomes nos idiomas quenya e sindarin, para que tenhamos a chance de, aos poucos, pegar gosto por decifrar os sentidos desses nomes, dominando seus radicais e vendo como eles se encaixam como peças de um quebra-cabeça para formar nomes e palavras. Dessa forma, talvez cheguemos até a acumular um pequeno vocabulário nessas línguas. Tão úteis quanto tudo isso, há árvores genealógicas das linhagens de homens e elfos que têm papéis de destaque nas histórias. Enfim, O Silmarillion vai, por vezes, exigir esforço e paciência do leitor, mas, vamos concordar, quase tudo o que vale a pena na vida exige esforço e paciência. É um belíssimo livro, indispensável para todos os fãs de Tolkien.

sábado, outubro 21, 2017

A Espada Diabólica

Dentro do subgênero de fantasia conhecido como sword and sorcery ('espada e feitiçaria'), o britânico Michael Moorcock (1939-) é um dos autores que mereceriam ter bem mais fama do que têm. Seu personagem mais conhecido, Elric de Melniboné, é, de várias maneiras, o oposto do típico herói desse subgênero – e, como o "típico" herói de sword and sorcery tem em Conan seu mais clássico exemplo, é interessante lembrar que o cimério e o melniboneano já se encontraram nos quadrinhos da Marvel: o épico crossover começa com uma luta, é claro (os fãs não dispensariam isso!), mas o breve duelo não chega a ter um desfecho, e os dois acabam por se tornar aliados – temporários e relutantes aliados, e de forma alguma amigos.

E por que seria Elric o oposto de Conan? Bem… Enquanto o herói cimério de Robert E. Howard desconfia da magia (embora, ao longo da carreira, por vezes tenha aceito a ajuda de magos e feiticeiros) e faz muita questão de só confiar em sua própria força, coragem e em sua espada, Elric é tanto um feiticeiro quanto um guerreiro – talvez mais feiticeiro que guerreiro. Albino e de constituição física frágil, ele ganha força e resistência por meio da magia e de uma misteriosa ligação com sua espada, Stormbringer (algo como 'a que traz a tempestade'), uma enorme lâmina feita de algum metal negro desconhecido, que, sem o auxílio da magia, ele não seria capaz sequer de levantar, quanto mais de manejar. Entre outros poderes, ela tem a capacidade de absorver a força vital daqueles que mata e transferi-la para seu detentor. Elric não gosta disso, dando por vezes a impressão de sentir que seu vínculo com a espada perverte sua própria humanidade, mas o considera, no fim das contas, um mal necessário.

Mais diferenças: Conan, um bárbaro do norte sem quaisquer traços de nobreza em suas origens, alimentou desde a juventude o sonho de tornar-se rei, o que eventualmente conseguiria; Elric, por outro lado, é um imperador, embora seu império, Melniboné, esteja em decadência, depois de ter dominado o mundo por dez mil anos. O mundo em questão, por falar nisso, parece ser a Terra, talvez num passado há muito esquecido, talvez num futuro distante: o prólogo da primeira parte, intitulada O Advento do Caos, diz que a saga de Elric tem lugar "dez mil anos antes de a História ser registrada ou dez mil anos depois que deixaram de ser compostas as crônicas, como se preferir", mas, ao longo do livro, novas informações que vão aparecendo revelam que a primeira possibilidade deve ser a verdadeira. A rigor, o uso da palavra "humanidade" no parágrafo anterior é impróprio: os melniboneanos não se consideram humanos e veem com preocupação a ascensão dos "Jovens Reinos", estes sim povoados por homens no sentido estrito do termo, que parecem estar ganhando poder e influência à medida que Melniboné enfraquece.

Fazer esse paralelo entre os dois heróis deixa óbvio que Moorcock cresceu lendo as histórias de Howard, assim como as de Edgar Rice Burroughs e, possivelmente, também as de Lord Dunsany, mas quis que suas aventuras fantásticas tivessem uma cara própria, e conseguiu isso com Elric. A exemplo dos contos de Howard sobre Conan, e também dos de Fafhrd, escritos por Fritz Leiber, as histórias sobre o imperador albino foram publicadas soltas, sem seguirem uma ordem, e organizá-las numa cronologia é tarefa complexa. Sei que isso já foi feito nos Estados Unidos, onde a saga de Elric foi publicada em vários volumes; provavelmente no Reino Unido também. No Brasil, por outro lado, até onde sei, só temos este volume, publicado pela editora Francisco Alves em 1975, dentro de sua coleção Mundo Fantástico, paralela à Mundos da Ficção Científica – ambas trazem gratas recordações para os fãs brasileiros de literatura de imaginação das décadas de 70 e 80 (pessoalmente, estou nessa desde os anos 80). O título original era Stormbringer.


A aventura começa quando, tarde da noite, uma tempestade sobrenatural desaba sobre Karlaak, a capital de Melniboné, e um grupo de assassinos inumanos – criaturas brutais enviadas pelos misteriosos Senhores do Caos – penetra na cidade, aproveitando-se de os portões estarem abertos, e as sentinelas, adormecidas, tudo efeitos da mesma magia que conjurou a tempestade para facilitar-lhes a missão. E sua missão parece ser a de matar Elric, que dorme em sua alcova no palácio, ao lado de sua esposa, a bela Zarozínia, sem de nada suspeitar. Parece, mas não é. Elric enfrenta os invasores, mas está sem sua espada, da qual prefere manter-se longe sempre que ela não é indispensável, e acaba subjugado, desacordado com um golpe na cabeça. Ao recuperar a consciência, fica surpreso por ainda estar vivo, mas a coisa seguinte que percebe é que a imperatriz foi raptada. Durante a luta, Elric conseguiu matar um dos sequestradores, e agora, por meio de magia, faz com que o cadáver se levante e fale. O efeito só dura alguns minutos, tempo suficiente para a criatura "desmorta" enunciar um enigma, que fala sobre uma guerra prestes a ser travada, e sobre um parente de Elric que deverá lutar ao seu lado empunhando a "cópia fiel" de Stormbringer. O imperador espera que, se for capaz de desvendar a charada e de sobreviver aos perigos aos quais ela conduzirá, talvez consiga recuperar sua esposa.

E é, a princípio, sozinho que Elric se aventura; não se faz acompanhar sequer por uma guarda pessoal, como um soberano normalmente faria, talvez na esperança de conseguir viajar incógnito – por mais que, no caso dele, isso seja quase impossível. É verdade que, numa sociedade de características medievais como o Império de Melniboné e terras vizinhas – sem imprensa, TV, internet e coisas que tais –, a maior parte da população que vive longe da capital nunca viu seu monarca e não o reconhecerá se por acaso o encontrar… A menos que o monarca em questão tenha uma aparência tão incomum a ponto de chamar atenção e causar comentários: vocês também não se lembrariam se, numa ruela enlameada de alguma aldeia, cruzassem com um sujeito magrelo, com pele e cabelo brancos feito marfim e olhos vermelhos ardentes, portando uma gigantesca espada negra de aparência tão exótica quanto a dele?

Seguindo as pistas enigmáticas obtidas do assassino morto-vivo, o herói albino viaja para o oeste, onde os reinos de Dharijor e Pan Tang formaram uma aliança e estão se preparando para invadir outros reinos vizinhos. Os exércitos dos defensores são comandados pela rainha Yishana de Jharkor, aliada e outrora amante de Elric, e sob sua bandeira, entre outros, lutam os mercenários de Imrryr, liderados por um homem de nome Dyvim Slorm, primo de Elric e seu único parente vivo. Quanto à cópia fiel da espada, é fato que Stormbringer possuía uma "gêmea", Mournblade (a "lâmina lamentosa", mais ou menos; o verbo to mourn quer dizer lamentar ou prantear, geralmente por alguém que morreu, podendo significar também, por extensão, 'estar de luto'); ocorre que essa segunda espada era empunhada por Yyrkon, outro primo, que Elric matou durante uma disputa dinástica anos antes, e a arma, ao que se acredita, foi perdida, de modo que parece impossível o pleno cumprimento da profecia. Em todo caso, Elric e Dyvim Slorm juntam-se ao exército de Yishana para a batalha que decidirá o destino do oeste.

E que batalha é essa! Saber narrar bem um combate em massa é tão importante para o escritor de fantasias épicas quanto para o de ficção histórica, e Moorcock demonstra ter o dom, mas não se trata de uma batalha "comum", entre tropas de homens protegidos por armaduras e usando lanças, espadas e arcos; há tropas assim, é claro, mas há também tigres treinados para o combate, cavaleiros montando répteis de seis patas em vez de cavalos, esquadrões de homens alados… Sim, eu também fiquei imaginando como seria isso tudo num filme, e é pena ser tão improvável que algo assim se concretize. De qualquer forma, a batalha, na qual Elric arrisca a vida, é apenas um passo em sua busca por Zarozínia. O narrador diz explicitamente que o albino se considera um realista, mas, em seus atos, pelo menos nesta história, ele demonstra um pendor para o fatalismo: seu inimigo morto fez uma profecia, e os mortos, se, por um lado, não podem dar respostas diretas, tampouco podem mentir. Sendo assim, Elric está disposto a cumprir seu papel nessa profecia, mesmo sem compreendê-la totalmente, na esperança de que, em seu desenlace, sua esposa lhe seja devolvida, como também foi profetizado. Porém, há mais em jogo que apenas sua vida. As forças do Caos que tramaram o rapto da imperatriz querem algo em troca de sua libertação: exigem a entrega tanto de Stormbringer quanto de Mournblade, as únicas armas que podem, nas mãos certas, representar um entrave a seus planos de dominar o mundo.

Elric odeia Stormbringer (a espada possui vontade própria e até um certo tipo de inteligência maligna, mais ou menos como o Um Anel de Tolkien) e ficaria feliz de nunca mais empunhá-la; portanto, em nível pessoal, aceitaria a troca com a maior das alegrias. Acontece que, se o fizer, estará, com esse ato, condenando o mundo a uma era de trevas e terror, e, embora preocupar-se com a sorte de povos ou reinos não seja nele uma reação natural, o imperador albino possui, sim, uma consciência. Talvez seu heroísmo tenha ainda mais valor por não ser instintivo como o de um Hércules ou um Super-Homem: ao contrário, escolher seu curso de ação numa situação como essa custa-lhe angústia e indecisão. Elric carrega o fardo de ser o último imperador de Melniboné, e de lhe haver cabido ocupar o trono exatamente durante esses dias, que equivalem ao apocalipse para esse mundo antediluviano. Os servos do Caos desprezam a Ordem porque, segundo eles, ela limita a matéria, enquanto o Caos representa possibilidades infinitas; para o mundo, porém, essas possibilidades acarretam catástrofes: ao mesmo tempo em que eclodem guerras terríveis, o próprio planeta parece estar em convulsão, assolado por terremotos, erupções vulcânicas e tempestades sobrenaturais. Além disso, a influência do Caos puro causa espantosas transformações nos seres vivos que estiverem nas proximidades, deformando seus corpos em paródias obscenas de suas aparências originais, ora mudando-os em figuras tortas e desproporcionais, ora fazendo com que desenvolvam aleatoriamente vários membros e cabeças em qualquer lugar do corpo. Enfim, os piores pesadelos ganham existência material.

Embora seja um feiticeiro erudito, iniciado em muitos mistérios, o monarca albino ainda é um mortal, e, por isso, há muitas coisas que não pode vislumbrar ou compreender. Uma delas lhe é revelada por um ser misterioso, imortal, de nome Sepiriz, que lhe oferece ajuda e aconselhamento para sua missão, e o teor da revelação é que, não importa o que Elric faça, ele não pode verdadeiramente salvar o mundo que conhece: esse mundo deve e vai desaparecer, abrindo espaço para o que Sepiriz chama de "os verdadeiros primórdios da história da humanidade", o que parece significar o início da História que conhecemos. Tudo o que Elric pode influenciar é que espécie de mundo vai se erguer dos escombros do seu milênios depois: se as forças do Caos vencerem, elas terão absoluto domínio nos tempos futuros; se Elric as derrotar, isso não significa que o Caos será erradicado, mas fará com que, no novo mundo, a Ordem, ou a Lei, como os personagens a chamam, tenha ao menos uma chance de luta. Nenhuma das duas forças deve alcançar uma vitória definitiva sobre a outra, pois é no embate interminável entre elas, e no precário e incerto equilíbrio que daí nasce, que o universo encontra condições de existir e de se desenvolver: o Caos puro o levaria ao colapso, a Ordem pura resultaria em estagnação.

Eu não iria ao ponto de dizer que Elric defende a Ordem, e sim que procura favorecer esse equilíbrio, mas mesmo isso já representa uma opção radical para ele, filho de uma raça gerada pelo Caos, se é que pode-se falar em opção quando existe um destino que somente ele pode cumprir. É nesse destino, e no modo como se posiciona diante dele, que reside aquilo que faz de Elric um personagem tão interessante, pelo menos no meu modo de ver. Ele não é bondoso nem altruísta por natureza, embora ainda seja mais afável que a média de seu povo – os melniboneanos são essencialmente caóticos e cruéis –, mas, mesmo assim, aceita os riscos e os sofrimentos que sabe que estão à sua espera, somente pelo bem de um mundo onde nem ele, nem nenhum descendente seu viverá, e no qual ninguém saberá que ele existiu.

Até agora, eu só tinha conhecimento indireto sobre a obra de Michael Moorcock, e Elric era para mim apenas um personagem que tinha aparecido numa aventura de Conan; sabia que ele tinha uma vida própria na literatura, e que suas histórias haviam inspirado pelo menos três músicas do Blind Guardian: Fast to Madness, do álbum Follow the Blind (1989), The Quest for Tanelorn, do Somewhere far Beyond (1992) e Tanelorn (Into the Void), do At the Edge of Time (2010), mas é a primeira vez que tenho a oportunidade de realmente lê-lo, e agora posso atestar que Moorcock é, sem sombra de dúvida, um dos maiores nomes da história do subgênero sword and sorcery e, ouso dizer, até mesmo da literatura de fantasia em geral, e deveria ser considerado leitura obrigatória para a geração que hoje "viaja" nas páginas das Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin e de outros expoentes atuais desse segmento. É complicado ficar contando com traduções – este volume já é muito antigo (e, cronologicamente falando, deve ser o último da saga, por motivos que vocês terão que ler para saber), e nunca ouvi falar em outras edições nacionais desta ou de outras aventuras de Elric –, mas, se você lê em inglês e gosta desse tipo de literatura, eis aqui um mundo cujo fim será um privilégio testemunhar.

Em tempo: se eventualmente for feito um filme baseado em A Espada Diabólica, as partes a respeito dos dragões, e, mais especificamente, a respeito de seu uso como armas de guerra, na certa farão muitos quadrúpedes da internet soltarem comentários como "pô, véi, copiaram Game of Thrones na cara dura!" (As maiúsculas, a pontuação e os acentos são generosidade minha, é claro.) Espero que haja alguém com paciência para explicar que Michael Moorcock escreveu as histórias de Elric entre as décadas de 60 e 90, sendo que A Espada Diabólica foi originalmente publicada em 1965, quando George R. R. Martin, aos 17 anos, ensaiava os primeiros passos em sua carreira de escritor – e, muito provavelmente, era um ávido leitor de Moorcock.

domingo, setembro 10, 2017

Aléxandros: O Sonho de Olympias

Até que outro livro me leve a mudar de ideia, considero a trilogia Aléxandros como o melhor trabalho de Valerio Massimo Manfredi, pelo menos na parte que se refere ao entretenimento: por alguma razão, aqui os diálogos não sofrem daquela certa rigidez pouco natural, nem as cenas de ação, do andamento arrastado que prejudica partes de suas outras obras. Como resultado, a leitura flui tão fácil que, quando nos damos conta, já percorremos os três volumes quase como se fossem um.

Muito disso deve-se ao carisma da própria figura central da trilogia, um homem absolutamente único na História, por várias razões. Como já deve estar mais ou menos óbvio até para quem não sabe nada sobre a obra, o Aléxandros do título (com tônica no é e o x pronunciado ks) é ele mesmo: Alexandre III da Macedônia, que divide com um escasso punhado de outros vultos históricos a rara distinção de ser conhecido como "o Grande". Mas não se preocupem, pois ele só é chamado assim em alguns trechos onde o autor introduz breves falas em grego; durante o resto do tempo, é Alexandre mesmo.

Poderíamos dizer que Alexandre deve ter ganho em algum tipo de loteria por ocasião de seu nascimento, considerando a grandiosa combinação de circunstâncias que permitiu que ele se tornasse aquilo que foi. Não há a menor dúvida de que tinha um conjunto raro de qualidades: inteligência, coragem, carisma pessoal, empatia, talento para uma vasta e diversificada gama de atividades, e, não menos importante, uma energia aparentemente inesgotável. Em adição a tudo isso, nasceu de um pai e de uma mãe que, cada um por suas próprias razões, tinham o máximo interesse em proporcionar-lhe a melhor educação possível – e dispunham de amplos meios para tanto. Por fim, Alexandre nasceu no lugar certo e no momento (histórico) exato. Em resumo, ele tinha tudo para dar certo, mas isso não diminui nem um pouco seus méritos individuais em tudo o que realizou durante sua curta e extraordinária vida.

A relação dos macedônios com a Grécia, ao tempo do nascimento e infância de Alexandre, era semelhante à dos romanos cerca de um século e meio depois: uma admiração não correspondida de um lado, um desprezo mesclado de temor do outro. Havia um desejo generalizado, por parte da classe mais instruída da Macedônia (aí incluídas a nobreza e a realeza) de que o país se integrasse ao mundo helênico, beneficiando-se de seus avanços sociais e políticos e de sua cultura; já os gregos desprezavam seus vizinhos do norte, que tachavam de bárbaros, porque, embora fossem muito próximos deles – tinham a mesma origem étnica, a mesma religião, e uma língua muito parecida –, os macedônios eram um povo rústico e inculto, essencialmente pastores das montanhas. Não deixava de ser uma ingratidão, de certa forma, pois, se não houvesse a Macedônia, a Grécia estaria diretamente exposta aos ataques dos verdadeiros bárbaros – os povos eslavos de além dos Bálcãs –, e isso era a última coisa de que ela precisava, considerando que já penava para resistir às intermitentes tentativas de invasão por parte do Império Persa. O rei Filipe II (r. 359-336 a.C.), pai de Alexandre, via claramente a necessidade de promover essa integração, e as vantagens que isso traria ao seu reino, não só do ponto de vista cultural, mas também político e estratégico. Essa, para ele, era a parte mais importante de sua missão como rei; porém, e também à semelhança dos romanos, Filipe e sua gente tinham como lema que "admiração é admiração, guerra e poder à parte". Já que a Grécia não estava disposta a abraçar a Macedônia como país irmão, seria obrigada a respeitá-la pela sua força militar.


Injustamente relegado em muitas crônicas históricas ao papel secundário de "pai de Alexandre", Filipe foi um rei astuto, notável tanto por sua habilidade política quanto pelo talento militar. Subjugou ou forjou alianças com vários povos vizinhos, anexou as cidades gregas da costa do mar Adriático (entre outras) e reformou completamente o exército medíocre que herdara do pai, fazendo dele uma força bélica que não conheceria rival até o surgimento das legiões romanas. Filipe, na verdade, "não era" para ter sido rei, já que tinha dois irmãos mais velhos, que reinaram durante curtos períodos: Alexandre II (r. 370-368 a.C.) e Pérdicas III (r. 365-359 a.C.); o primeiro foi assassinado, e o outro morreu em combate. Com 14 anos de idade, o então príncipe Filipe foi entregue como refém a Tebas (a Tebas grega: não confundir com a cidade egípcia de mesmo nome), e por quatro anos viveu na casa de Epaminondas, o maior general daquela cidade, com quem muito aprendeu; mal imaginava o general que estava educando o futuro pai daquele que riscaria sua cidade do mapa. Mais tarde, de volta à pátria e já ocupando o trono, Filipe faria excelente uso do que aprendera em Tebas, mas a maioria dos historiadores está de acordo em que a maior contribuição que deu para fazer do exército macedônio o mais temido do mundo foi mérito exclusivamente seu: é a Filipe que se atribui a invenção da sarissa. Nerds de história militar, preparem-se para algo interessante. O resto de vocês talvez prefira pular os próximos dois parágrafos (risos).

O que Filipe fez, de certa forma, foi reinventar a falange, que vinha sendo a espinha dorsal dos exércitos gregos já fazia séculos. Substituiu a tradicional dórica, uma sólida lança com dois a três metros de comprimento, pela sarissa, que podia medir até o dobro disso (!), com um fuste feito de madeiras selecionadas, geralmente corniso, tratadas com cera de abelha para máxima resistência e uma certa maleabilidade. Numa mesma unidade, os soldados portavam lanças de comprimentos variados: os das fileiras da frente tinham as mais curtas, e o comprimento ia aumentando gradativamente em direção à retaguarda. Em vez de lutarem ombro a ombro numa formação compacta, criando uma parede de escudos, como fazia a falange tradicional, os soldados da infantaria pesada macedônia mantinham entre si um espaço suficiente para passarem as enormes lanças dos companheiros das fileiras de trás. Com isso, as cabeças das lanças de todas as fileiras podiam ser alinhadas, formando uma verdadeira barragem de pontas afiadas que tornava a falange macedônica praticamente invulnerável a ataques frontais. Seu ponto fraco eram os flancos, que Filipe tratou de guarnecer com tropas auxiliares de infantaria leve, arqueiros e fundibulários. Também faziam parte de sua máquina de guerra duas poderosas alas de cavalaria pesada: os Hetairoi ('Companheiros'), oriundos da nobreza macedônia, e os Tessalônicos, recrutados na região grega da Tessália, aliada da Macedônia e famosa como a terra dos melhores cavalos do mundo. Essas alas eram especialmente mortíferas por combinarem mobilidade com um tremendo poder de choque; Filipe dizia que a falange era uma bigorna, e a cavalaria, um martelo.

Ainda a respeito da falange, foram necessárias algumas outras adaptações, das quais a mais visível foi a redução do tamanho do escudo: uma sarissa era bastante pesada, com até cinco ou seis quilos, e precisava ser manejada com as duas mãos, o que tornava inviável ao soldado portar o enorme e pesado escudo hoplon; foi adotado um escudo um pouco menor (embora ainda muito maior que o da infantaria leve), o que tinha o seu custo em termos de proteção individual, mas isso era equilibrado pelo fato de que, na nova maneira de combater, havia boas probabilidades de que o soldado não precisasse engajar-se em luta corpo a corpo com o inimigo. É curioso notar que, como uma lança de seis metros de comprimento tinha uma inevitável tendência de apontar para baixo quando empunhada, as sarissas mais longas, as das fileiras de trás, eram providas de um contrapeso na extremidade do cabo, como mostrado na ilustração. Essa arma inovadora, combinada à tática da frente oblíqua (também chamada ordem oblíqua), aprendida com Epaminondas, deu a Filipe uma série de vitórias memoráveis, e Alexandre, mais tarde, também se mostrou um mestre na utilização desses dois trunfos. O sonho de Filipe (para cuja realização esse poderoso exército seria uma ferramenta importante) era criar uma liga reunindo todas as principais cidades-estado gregas, pondo fim à interminável história de conflitos entre elas, e então, à frente de uma força militar formada por macedônios e gregos, invadir a Ásia e desferir um golpe mortal direto no coração do Império Persa, aniquilando de uma vez por todas o inimigo que já ameaçava o mundo helênico há tanto tempo. Uma tal façanha, sem a menor dúvida, gravaria seu nome para sempre nas páginas da História.

Dos assuntos militares para os dinásticos… Olímpia (que Manfredi chama de Olympias), mãe de Alexandre, era uma princesa do Épiro, pequeno reino vizinho da Macedônia, pouco mais que uma cordilheira montanhosa à beira do mar Jônico. Foi a quarta esposa de Filipe (não, ele não tinha enviuvado três vezes: mantinha todas elas simultaneamente, para não falar em mais algumas concubinas), e esse foi um casamento político, é claro, embora tudo indique que o rei, ao menos durante algum tempo, tenha sido verdadeiramente apaixonado por ela, que era linda e tinha uma personalidade e tanto. É provável que em parte por isso, e em parte por ter dado a Filipe um filho homem, ela foi alçada à dignidade de rainha (que era diferente de simplesmente ser esposa do rei), o que, naturalmente, atraiu a inveja das outras, contra as quais Olímpia passou boa parte da vida se precavendo. Na verdade, uma das outras esposas de Filipe já tinha um filho, Arrideu, mas esse não era considerado um candidato viável ao trono por ser meio fraco da cabeça, o que teria sido sequela de uma doença. Houve boatos de que a tal "doença" teria sido resultado de um envenenamento ordenado por Olímpia, que não queria que o garoto viesse, no futuro, a competir pelo trono com seu querido Alexandre. Nada jamais foi provado, mas, à luz do que sabemos sobre a rainha, não parece que ela seria incapaz de algo assim, se fosse para defender os interesses do filho.

Seja como for, parece que, a partir do momento em que Alexandre nasceu, Filipe nunca vacilou em relação a quem seria seu sucessor. Um bom indicativo disso foi o tanto de dinheiro e esforço que investiu na educação dele. Seus estudos foram supervisionados, a princípio, por um certo Leônidas, parente da rainha, que, além de ensinar pessoalmente, selecionava os professores que instruiriam o príncipe em matérias específicas. Mas nenhum mestre foi tão marcante para Alexandre (e para o resto do mundo) quanto Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.), responsável por sua educação dos 13 aos 16 anos. É claro que, na época, ninguém podia saber que Aristóteles passaria à História como um dos maiores filósofos que já viveram, mas ele já gozava de suficiente prestígio para que comprar seu passe não fosse barato – um investimento que Filipe fez sem hesitar, e parece que os ensinamentos do sábio lapidaram de forma única o já privilegiado intelecto de Alexandre.

Eita! Comecei este texto com o objetivo de comentar a trilogia de Valerio Massimo Manfredi, mas acabo de perceber que escorreguei para uma biografia resumida (ou nem tanto) do personagem. Vamos tentar voltar aos trilhos.

Bem, Manfredi não é nenhum grande vulto da literatura, e sabe disso. Não nos oferece momentos arrebatadores de drama, nem personagens profundos e multifacetados; sabe que não tem cacife para tanto, e não se sabota com tentativas pretensiosas de fazê-lo. Seu objetivo era que o leitor, ao terminar estes três volumes, tivesse uma razoável noção de como foi a vida de Alexandre, e que tivesse se divertido no processo – e ele conseguiu. Um de seus diferenciais em relação a outras "vidas de Alexandre" está no fato de dar certo destaque a alguns personagens que elas não mencionam muito, como o grupo de amigos de infância, todos eles filhos de nobres da Macedônia, que foram educados com ele, cresceram em sua companhia e vieram a ser seus generais. É muito curioso ler sobre aqueles garotos vivendo seus anos de molecagens despreocupadas e lembrar que pelo menos dois deles – Seleuco e Ptolomeu – dariam nome a dinastias!… Também fazia parte desse grupo ele: Heféstion, o companheiro mais chegado de Alexandre e, segundo muitos, seu amante, o que seria encarado com relativa tranquilidade entre os gregos, mas suscitaria reprovação na Macedônia. De todo modo, Manfredi opta por não colocar nenhuma ênfase particular na relação dos dois, provavelmente porque tinha outras coisas em mente para destacar em sua obra, e não quis desviar a atenção dos leitores criando polêmica desnecessária em torno da sexualidade do personagem. O suposto affair de Alexandre e Heféstion até é mencionado, mas de forma casual e nada conclusiva: um ou outro personagem comenta, como quem ouviu um boato, que "dizem que os dois são amantes" – e é tudo. Nas cenas em que eles efetivamente aparecem, nada sugere isso. Para Manfredi, Alexandre e Heféstion são grandes amigos, e isso basta.

Sabe-se que as famílias reais não são como as outras famílias, e a de Alexandre é um bom exemplo. Como vimos, seu pai nunca se pejou de praticar a poligamia, o que os costumes macedônios toleravam; com isso ele criou, de certa forma, diversas famílias menores, cada uma formada por uma esposa ou amante e os respectivos filhos. Alexandre estava na "subfamília" de maior prestígio e privilégio, já que era o herdeiro presuntivo do trono e sua mãe tinha o status de rainha, que manteve mesmo depois que suas relações com Filipe já haviam esfriado até ao ponto de os dois só eventualmente se verem. Olímpia, por falar nisso, teve outra filha, Cleópatra, única irmã bilateral de Alexandre, que tinha tantos meios-irmãos. Não há relação direta entre essa Cleópatra e a famosa rainha do Egito de quase três séculos depois, mas a semelhança não é mera coincidência. Esse nome (grego) era bastante popular na Macedônia; quando Alexandre morreu, seu império foi dividido entre seus generais, cabendo a Ptolomeu o Egito, onde o amigo de infância de Alexandre recebeu o tradicional título de faraó, reinou até o final de sua vida e, de quebra, fundou a última dinastia a governar o país – dinastia essa que, por ser de origem grega, nunca foi plenamente aceita pelo povo egípcio. A Cleópatra "de César" foi a última de uma longa sucessão de rainhas e princesas com o mesmo nome, todas descendentes de Ptolomeu.

Apesar de viverem essa situação que, para nós, parece tão estranha, tudo indica que Alexandre e o pai tivessem uma relação próxima e afetuosa, pelo menos o tipo de afeto do qual o rude guerreiro Filipe era capaz. Amava o filho do seu jeito e tinha orgulho dele, enquanto Alexandre amava o pai com um amor pontuado pela admiração e – como muito bem sublinha Manfredi – pela vontade de competir. A meu ver, o Filipe de Manfredi é um tanto moderado demais no trato com o filho, se comparado ao que algumas biografias de Alexandre fazem crer: a impressão que se tem dessas biografias é a de que o Filipe histórico estava mais preocupado em tornar o rapaz forte que em deixar-lhe boas recordações. Exemplo disso é o célebre episódio do garanhão Bucéfalo. No primeiro volume da trilogia, O Sonho de Olympias, o caso é narrado da seguinte forma: Filipe havia mandado Alexandre para uma espécie de retiro num lugar chamado Mésia, para que ele pudesse dedicar-se a seus estudos com Aristóteles sem ser distraído pela agitação da vida em Pela, a capital da Macedônia. Ali o jovem passa cerca de três anos, apenas com esporádicas visitas à capital para ver os pais e a irmã. Ao decidir que é hora de trazer o filho de volta para casa, Filipe vai pessoalmente buscá-lo e leva-lhe um presente: um cavalo magnífico, mas selvagem, que ninguém consegue dominar. O rei, pacientemente, explica ao filho que ele precisará esperar que o animal seja domado antes de poder montá-lo. Na versão de Plutarco, seguida também por outros romances que retratam a vida de Alexandre, o caso todo ocorre de forma bastante dura e absolutamente não premeditada. Filônico, um criador de cavalos da Tessália, tinha ido a Pela negociar seus animais, e ofereceu o garanhão a Filipe por treze talentos, uma soma altíssima. O rei, impressionado com a estatura e a aparência imponente do animal, pensou em comprá-lo para seu próprio uso, mas desistiu depois que seus melhores cavaleiros tentaram domá-lo sem sucesso, e disse a Filônico para levá-lo embora. O jovem Alexandre, de 14 anos, encantado pelo cavalo assim que o viu, protestou, garantindo que podia domá-lo, o que lhe valeu uma reprimenda por parte do pai, que considerou isso uma intolerável demonstração de arrogância. O garoto insistiu e o rei acabou consentindo em deixá-lo tentar, mediante um acordo, ou, melhor dizendo, uma aposta: se Alexandre conseguisse domar Bucéfalo, Filipe o compraria para ele; caso contrário, o próprio príncipe teria que pagar o preço do animal – o que, é claro, estava totalmente fora da realidade. É óbvio que tudo o que Filipe esperava era que alguns tombos e uma pequena humilhação ensinassem a seu filho algo sobre humildade, mas ele não estava preparado para o que veria a seguir, nem o estavam Filônico, os cavaleiros macedônios, ou as dezenas de membros da corte que testemunharam o evento. Com suas capacidades de observação e análise muito bem treinadas pelas lições de Aristóteles, Alexandre percebeu que o cavalo se assustava com os movimentos de sua própria sombra; obrigou-o a virar a cabeça de frente para o sol e, a seguir, cavalgou-o e o fez galopar até a exaustão, quebrando-lhe toda a resistência. Ao ver o terrível Bucéfalo domado por aquele pirralho, conta-se que Filipe foi às lágrimas de orgulho e, abraçando fortemente o filho, disse uma frase que entraria para a História: "Meu filho, procura para ti outro reino! A Macedônia é pequena para um príncipe como tu!"

Daí em diante, Bucéfalo foi a montaria de Alexandre em todas as suas batalhas (das quais não perdeu uma só) durante quase 18 anos, e, quando morreu, seu nome batizou uma das novas cidades que ele fundou na Ásia. Uma das muitas lendas em torno de Alexandre diz que Bucéfalo teria nascido no mesmo dia que ele, mas isso, na certa, não passa de uma invenção poética. Primeiro, porque não era costume de ninguém na época registrar a data de nascimento de um cavalo, e segundo, porque, se fosse assim, Bucéfalo, ao ser domado por Alexandre, já estaria com 14 anos, idade madura para sua espécie, e seria muito pouco provável que um criador permitisse a algum de seus animais chegar indomado a essa altura da vida: caso a doma resultasse mesmo impossível, teria sido sacrificado bem antes. Tampouco teria utilidade como reprodutor, já que o mais provável era que gerasse potros tão intratáveis quanto ele próprio. Portanto, Bucéfalo devia ter uns quatro ou cinco anos – adulto, mas ainda jovem –, e foi uma grande sorte para ele ter encontrado o príncipe da Macedônia. Alexandre, que comandava pessoalmente sua cavalaria no campo de batalha, tinha outras montarias, mas fazia questão de montar Bucéfalo no início de cada batalha: para ele, além de um amigo, o cavalo era uma espécie de talismã.

E, embora tivesse, antes disso, liderado pequenas expedições militares contra certas tribos do norte que punham em perigo as fronteiras da Macedônia, a primeira grande batalha de Alexandre (montando Bucéfalo, naturalmente) foi aos 18 anos, em Queroneia (338 a.C.), onde compartilhou o comando com o pai, derrotando uma coalizão de atenienses e tebanos. Depois da vitória, Filipe optou por mostrar-se generoso para com os vencidos, estabelecendo condições moderadas para a paz e incumbindo Alexandre de liderar pessoalmente a comitiva que foi enviada a Atenas para levar as cinzas dos mortos da cidade, a fim de que tivessem um sepultamento digno. Daí em diante, Atenas mostrou-se mais cooperativa para com a Macedônia… Mas Tebas não, o que seu povo, mais tarde, viria a lamentar.

É, não tem jeito: escrever sobre um assunto que se adora é praticamente garantia de "viajar" longe. Eu ia mencionar Bucéfalo de passagem, só para ilustrar o que estava dizendo sobre a forma como o rei Filipe encarava a educação do filho, e vejam só onde vim parar… Pretendia fazer um único post sobre a trilogia, mas vejo que isso vai ser impossível, então este fica sendo apenas sobre o primeiro volume, e mais tarde decido se faço outro sobre os volumes dois e três, ou se cada um deles terá que ter o seu próprio.

Além dos amigos de infância de Alexandre, outro personagem que ganhou destaque na trilogia de Manfredi (pois, em outras obras, só aparece de forma menos que periférica) foi seu tio e xará, Alexandre, rei do Épiro. Ainda um menino quando Olímpia, sua irmã mais velha, casou-se com Filipe, Alexandre viveu anos na corte de Pela, sob a proteção do cunhado, para evitar que fosse assassinado por qualquer dos nobres conspiradores que na época se digladiavam pelo trono do Épiro. Quando completou 20 anos, voltou à terra natal e, graças à ajuda de Filipe, conseguiu recuperar o trono de seus ancestrais. Cerca de cinco anos depois disso, Filipe tomou mais uma esposa, Eurídice, que tinha a idade de sua filha Cleópatra e era filha (ou sobrinha; as fontes divergem) de Átalo, um de seus generais. Uma esposa a mais ou a menos teria feito pouca diferença, não fosse por um acontecimento infeliz: na festa do casamento, Átalo, já embriagado, decidiu fazer um brinde aos noivos, rogando aos deuses que de sua união nascesse um "herdeiro legítimo" para o trono da Macedônia. Isso, é claro, equivalia a chamar Alexandre de bastardo, e o príncipe não deixou por menos: confrontou Átalo exigindo que engolisse suas palavras, e, ao não ser obedecido, atirou sua taça na cara do general. Filipe, furioso e também embriagado, desembainhou a espada e investiu contra o filho, que o esperava empunhando a sua, e talvez a coisa tivesse degenerado numa luta de verdade entre os dois, com consequências imprevisíveis, se o rei não tivesse falseado o pé e caído. Alexandre fez um comentário sarcástico sobre reis que querem invadir a Ásia, mas não conseguem nem atravessar um salão de festa, e rapidamente retirou-se; conhecia o pai e sabia que, naquele momento, Filipe seria mesmo capaz de mandar matá-lo, ainda que mais tarde morresse de remorso. Alexandre e Olímpia fugiram às pressas de Pela e refugiaram-se na corte do irmão dela, mas ali tinham pouco sossego: a cada poucos dias chegava um mensageiro de Filipe com uma carta exigindo que Alexandre retornasse a Pela e se desculpasse formalmente por seu comportamento, o que, com seu orgulho, ele jamais faria. A situação ficou ruim para Alexandre do Épiro, que, nessa briga, dava razão ao sobrinho, mas, por outro lado, devia seu trono ao cunhado. Diante disso, Alexandre, acompanhado apenas pelo fiel Heféstion, deixou o Épiro e partiu para a Ilíria (mais ou menos equivalente às atuais Sérvia, Croácia e Montenegro), na época uma terra de tribos bárbaras, algumas das quais ele já havia enfrentado e vencido em batalha à frente do exército do pai, isso nos seus 16, 17 anos; agora tinha 19 e uma reputação que o precedia. Não se sabe que aventuras Alexandre viveu durante o meio ano que duraram suas andanças pela Ilíria, e Manfredi trata o assunto com breves pinceladas; tenho para mim que só esses meses já dariam assunto para um livro.

Quaisquer que tivessem sido as ofensas trocadas, Filipe amava o filho, e, o que era mais, sabia que a participação dele seria essencial em sua planejada campanha contra os persas. Os dois eram muito orgulhosos, e não está claro quem tomou a iniciativa ou cedeu um pouco para possibilitar a reconciliação, mas esta aconteceu afinal em 336 a.C., pouco antes de o exílio de Alexandre completar um ano (Manfredi atribui o fato à esperteza de Eumênio, amigo de Alexandre e secretário-chefe de Filipe). Alexandre retornou e fez as pazes com o pai, mas parece que o relacionamento dos dois nunca voltou a ser como antes… Bem, na verdade não houve tempo para isso, mas é melhor não nos anteciparmos.

A rainha Olímpia havia permanecido na corte do Épiro quando Alexandre partiu para a Ilíria, e lá continuou quando ele retornou a Pela. Considerando-se desonrada por Filipe, ela tentou convencer o irmão a declarar guerra à Macedônia – o que Alexandre do Épiro precisaria ser, no mínimo, doido de pedra para fazer. Ele tinha um bom exército, sim (por sinal, organizado segundo o modelo macedônio, já que o treinamento fora cortesia de Filipe), mas a simples superioridade numérica do oponente decidiria esse conflito em questão de semanas, se tanto – isso para nem mencionar que Alexandre do Épiro era um jovem guerreiro esforçado, mas Filipe era um general tarimbado cujas vitórias contavam-se às dezenas. Assim, a única resposta que Olímpia teve a suas pressões foi um categórico "nem pensar". Mesmo assim, Filipe julgou conveniente fortalecer os laços com o cunhado fazendo dele também seu genro, e ofereceu-lhe a mão da princesa Cleópatra. A jovem, educada desde a infância para resignar-se à ideia de um casamento político, que o pai decidiria sem pedir sua opinião, deve ter-se considerado com sorte no final das contas: Alexandre do Épiro era belo, gentil, inteligente e valente, e, apesar de serem tio e sobrinha, a diferença de idade entre os dois não passava de seis ou sete anos. O casamento foi preparado em Pela, com toda a grandiosidade possível, pois Filipe não perderia mais essa oportunidade de impressionar seus novos aliados gregos. O que ele não esperava era ser assassinado pouco depois da cerimônia, e antes do começo dos festejos, por um membro de sua própria guarda pessoal, um tal Pausânias. Sabia-se que esse guarda tinha queixas contra Filipe, que o havia humilhado em público durante uma de suas crises etílicas; depois, arrependido, tentou compensá-lo com presentes e honrarias, mas sem nunca desculpar-se de fato (é claro). Só que, por mais que Pausânias tivesse mágoas pessoais de seu senhor, é sempre difícil acreditar que o assassinato de um rei ocorra sem nenhuma motivação política por trás. Na lista de suspeitos de serem os mandantes figuraram desde Dario III Codomano, rei da Pérsia, que sabia dos planos de Filipe para atacá-lo, até Olímpia e o próprio Alexandre, que poderiam ter agido juntos ou separados, mas ambos no interesse de evitar que Filipe nomeasse como sucessor o pequeno Carano, seu filho com Eurídice (correndo o risco de ser ingênuo, eu prefiro acreditar que Alexandre não fosse capaz de tal coisa; Olímpia são outros quinhentos). A ordem poderia ter partido, ainda, de alguma das cidades gregas que, muito a contragosto e principalmente por medo, haviam aderido à "liga pan-helênica" que Filipe forjara e da qual se fizera líder. Porém, Pausânias, o único que poderia (mediante a "persuasão adequada") fornecer alguma informação a respeito, foi morto pelos outros guardas logo depois de consumar seu ato, e a verdade sobre os motivos do assassinato de Filipe morreu com ele.

Coroado aos 20 anos de idade assim como acontecera com seu tio, Alexandre teve como primeiro desafio na condição de rei reafirmar (por quaisquer meios possíveis) a lealdade ou ao menos a cooperação dos gregos, a fim de garantir alguma segurança e estabilidade quando partisse para a Ásia. Até mesmo a Tessália, tradicional aliada da Macedônia, vivia dias agitados, mas o jovem rei conseguiu acalmar os ânimos sem necessidade de luta. Fez o mesmo com Atenas e outras cidades; já Tebas, onde seu pai aprendera muito do que lhe ensinou, estava em negociações com o rei Dario, que prometia fornecer armas e dinheiro se os tebanos liderassem um movimento na Grécia para resistir à "tirania macedônica". A cidade não recuou de sua postura de desafio, e Alexandre, que, via de regra, era clemente com os vencidos, julgou necessário abrir uma exceção: ordenou que Tebas fosse arrasada (na verdade, como ele era um amante das artes, mandou poupar a casa onde vivera o poeta Píndaro). Quem sobreviveu teve por destino o mercado de escravos. Não foi uma vitória fácil, pois os tebanos eram guerreiros notáveis, mas serviu a seu objetivo, de modo que foi uma Grécia em relativa paz e tranquilidade que o exército macedônio (reforçado por algumas tropas gregas) deixou atrás de si ao fazer a travessia para a Ásia. O primeiro volume da trilogia termina aqui, mas não posso finalizar sem mais um comentário: achei emocionante ver o paralelo entre a aventura de Alexandre da Macedônia rumo ao oriente e a de Alexandre do Épiro rumo ao ocidente, pois, meses mais tarde, o tio e cunhado do jovem rei partiu para a Itália a fim de atender ao pedido de ajuda dos colonos gregos em Taranto, ameaçados por algumas das várias tribos independentes e belicosas que então habitavam a Península Itálica. Alexandre do Épiro, inclusive, faria uma aliança com Roma, na época uma potência em crescimento, ainda muito longe de tornar-se aquilo que a menção de seu nome desperta em nossa imaginação hoje em dia. Essa aventura empolgante não era mencionada nem sequer de passagem em nenhuma das outras versões da vida de Alexandre da Macedônia que li, e olhe que foram várias. Concluo que Alexandre do Épiro teve azar em ser tio de seu sobrinho, pois, por mais que ele tenha feito coisas extraordinárias, a sombra do outro Alexandre o encobriu por completo. Dificilmente alguém escreverá um livro ou fará um filme sobre ele, o que é mesmo uma pena.

Pois é… Acabei resumindo o livro todo, erro que antigamente eu volta e meia cometia nos meus posts, mas que tenho, em geral, conseguido evitar nos últimos tempos. O problema é que, por alguma razão, fica bem mais difícil evitar isso quando os acontecimentos sobre os quais estou escrevendo são históricos. Paciência: gostei pra caramba de escrever este texto, gostei de como ficou, e agora já me afeiçoei demais a ele para conseguir mudá-lo muito – quem gosta de escrever conhece a sensação: um texto, de certa maneira, é como se fosse um filho. Felizmente, como este é apenas o primeiro volume, acho que não dei grandes spoilers, mesmo que haja alguém no planeta com algum interesse no mundo helênico (ao menos o suficiente para desejar ler esta trilogia) e que já não saiba, em linhas gerais, como a história de Alexandre continua e como ela termina. Enfim: quem já leu Aléxandros me compreende, e quem ainda não leu deveria fazer isso o quanto antes.