terça-feira, fevereiro 11, 2014

O Último Desejo

Parece que os editores brasileiros (e os leitores, pois, se algo está sendo publicado, é porque existe de­manda) estão sentindo uma necessidade urgente de compensar o longo tempo durante o qual a litera­tura de fantasia esteve, a bem dizer, ausente de nossas livrarias e bibliotecas. Desde a virada do século que não param de pipocar as edições nacionais de livros do gênero. Por motivos tanto culturais quanto mercadológicos, a maioria desses títulos vem dos países de língua inglesa, mas há algumas notáveis exce­ções, e uma delas é o polonês Andrzej Sapkowski.

Sem qualquer intenção de menosprezar ninguém, preciso dizer que é "refrescante", vez por outra, ler histórias de fantasia medieval com pretensões mais modestas que as da maior parte das obras do gêne­ro. Nas aventuras de Geralt de Rívia, das quais O Último Desejo é o primeiro volume, o destino do mundo não está em jogo (bem, é verdade que este é só o primeiro volume...). Geralt perambula por di­ferentes reinos, visitando desde os castelos dos reis até as vilas dos camponeses, oferecendo seus servi­ços em troca de ouro e prata em quantidade suficiente para suprir suas necessidades materiais durante algum tempo - pelo menos, tempo suficiente para que ele encontre seu próximo trabalho. Parece co­mum demais para render histórias heroicas? Eu me sentiria inclinado a concordar, se não fosse o tipo de trabalho que o cara faz.

Geralt de Rívia é um bruxo - e aqui cabe uma breve explanação. No mundo criado por Sapkowski, bruxos parece ser o nome que se dá aos usuários de magia que a dominam de uma forma mais instin­tiva e a utilizam para fins mais práticos; em contraposição a isso, há os feiticeiros, que parecem ser uma classe de magistas mais eruditos, que frequentaram uma academia e possuem formação teórica. Enquanto muitos feiticeiros possuem colocações prestigiosas, servindo a um rei ou a um nobre pode­roso, a ocupação tradicional dos bruxos é a de vagar pelo mundo caçando criaturas sobrenaturais peri­gosas - e recebendo pagamento por isso, seja do senhor da terra ou de um bando de aldeões assusta­dos que reúnem suas parcas economias para pagar o homem que, esperam, poderá livrá-los da amea­ça.

Demorei um pouco para entender a organização do livro. Os contos propriamente ditos estão entre­meados com breves interlúdios, todos intitulados A Voz da Razão - I, II, III e assim por diante -, nos quais Geralt aparece hospedado num santuário da deusa Melitele, cuja superiora, Nenneke, parece ser uma amiga de longa data. O bruxo está se recuperando de alguns ferimentos sofridos no exercício da profissão, e, aparentemente, fazendo um balanço de sua vida - ajudado pelas observações de Nenneke, sempre sábias, mas, por vezes, dizendo coisas que ele não gosta de ouvir. Sendo assim, os contos são in­troduzidos como se Geralt, imbuído desse espírito reflexivo, estivesse recordando algumas de suas aventuras recentes.

E são aventuras para nenhum amante de fantasia medieval botar defeito. Ao longo de suas viagens, Geralt já se viu às voltas com todos os tipos de magia e maldições, com guerreiros brutais, com nobres inescrupulosos e, principalmente, com uma galeria bizarra de seres míticos - míticos para nós, pois, em seu mundo, são todos muito reais. São mencionadas desde criaturas conhecidas (pelo menos, co­nhecidas por quem gosta de mitologia e de fantasia), como quimeras, mantícoras, anfisbenas, dragões ou basiliscos, até outras de que eu nunca tinha ouvido falar e tenho pouca ou ne­nhuma ideia de como podem ser: quiquimoras, bosqueolos, tragarças, zygopteras, bobolacos, leshys, wippers e por aí vai. Para enfrentá-las, Geralt vale-se ora de suas perícias em magia, ora de uma boa e velha espada - pois, dife­rentemente do que acontece com magos e bruxos em outras sagas, os bruxos de Sapkowski também possuem habilidade com armas. E ele carrega duas espadas, uma de prata e outra de aço. A crença po­pular é a de que a primeira é para monstros, e a outra para seres humanos, mas Geralt jura que ambas são para os monstros, pois, embora a maioria deles seja vulnerável à prata, há os que precisam ser mortos com aço. Ele também se utiliza de poções que ampliam suas capacidades, mas não deixam de cobrar seu preço: aqui e ali ao longo do livro, há insinuações de que o uso frequente desses prepara­dos pode ir, aos poucos, transmutando o bruxo para um ser diferente - humano na aparência, mas não totalmente em sua essência.

As histórias de Geralt de Rívia fazem lembrar muito os contos de fantasia publicados em revistas nor­te-americanas de fantasia e ficção científica durante as décadas de 30 e 40, escritos por gente como Fritz Leiber, Manly Wade Wellman, Jack Vance e outros - não que eu os tenha lido na época (risos), mas li alguns em coletâneas, e não ficaria surpreso de ficar sabendo que Andrzej Sapkowski é um fã e discípulo atento desse autores. Mas relaxem, pois o polonês não copia ninguém: embora alguns ele­mentos de suas histórias remetam aos velhos mestres, ele tem um estilo muito pessoal e marcante, que o leitor rapidamente aprende a reconhecer. Há passagens engraçadas, dramáticas e, é claro, épicas, tudo isso combinado em doses adequadas para tornar a leitura a mais agradável possível, e, aqui e ali, inesperadamente, topamos com menções a contos de fadas que todos conhecemos, embora de uma maneira que provavelmente nunca imaginamos!... Só para aguçar a curiosidade, adianto que Um Grão de Veracidade, talvez o melhor conto do livro, é, todo ele, uma reinterpretação do clássico A Bela e a Fera (esqueçam a versão da Disney, peguem um bom livro de contos de fadas para relembrar o enre­do), só que de uma maneira mais "realista", tentando mostrar como a história ter-se-ia desenrolado se a maldição que transformou um jovem nobre num monstro acontecesse num mundo habitado por se­res humanos de carne e osso, com as conhecidas mazelas humanas - e não por personagens de conto de fadas com seu comportamento exemplar. E, por falar em personagens, na obra de Sapkowski, até mesmo os de uma história só, que aparecem e somem, são primorosos. Quanto aos que parecem estar ligados de forma mais duradoura ao destino de Geralt, como Jaskier, o bardo falastrão, ou a sedutora feiticeira Yennefer, esses são inesquecíveis.


Quem leu os grandes nomes da literatura de fantasia encontrará nas histórias de Geralt de Rívia a maioria dos elementos a que está acostumado: há seres humanos, há anões, há elfos - não há hobbits, mas, para compensar, existem gnomos e outras raças menores (menores tanto em número e influên­cia quanto em tamanho). Porém, ninguém deve esperar encontrar elfos etéreos e perfeitos como os de Tolkien: aqui, elfos são seres bem terrenos, embora mais conectados à natureza que os humanos ou os anões. Podem ser violentos ou irracionais como qualquer um de nós, e ser movidos pelas mesmas pai­xões: luxúria, ganância ou vingança. Independentemente da raça, a maioria dos personagens parece perfeitamente apta a manter conversações espirituosas, pois os diálogos são um deleite à parte, cheios de frases perfeitas, observações sagazes e ditos que caem como uma luva. Dane-se se conversações re­ais não são assim: isto aqui é fantasia, e para que ela serviria se precisasse ser tão banal e tediosa quan­to a realidade? Não digo que a literatura de fantasia não possa servir para nos levar a refletir sobre as coisas do mundo real (que o diga A História Sem Fim), mas sua função número um é mesmo a de nos permitir escapar momentaneamente desse mundo e entrar em outro mais empolgante: é a eficácia em atingir esse objetivo que diz se uma história de fantasia é boa ou não; a reflexão, se surgir, é lucro. E, para construir um mundo mais empolgante, vale tudo: pode-se lançar mão de magia, raças não-humanas, seres míticos, contos de fadas, e, sim, até mesmo de diálogos inteligentes! Andrzej Sapkowski dá uma aula de como usar todos esses elementos com absoluta maestria. Não vejo a hora de ler os próximos volumes.

A edição nacional está bem cuidada, como é tradicional nas publicações da Martins Fontes, que já nos trouxe tantas boas obras de fantasia, tanto as clássicas quanto boas novidades. A tradução foi feita direto do polonês por Tomasz Barcinski, e, talvez por uma falta de familiaridade do tradutor com as estruturas frasais mais usadas em português, nota-se uma tendência a quase sempre colocar o adjetivo antes do substantivo: "O escurecido céu por trás da janela foi cortado pela cegante luz de um relâmpago, logo seguido pelo potente estrondo de trovão. O temporal adquiria cada vez mais força e espessas nuvens deslizavam sobre Rinde". Com a repetição ao longo de todo o livro, isso começa a soar forçado e incômodo. No lugar do editor, eu teria uma conversa com o tradutor e com os revisores a respeito. Em todo caso, não é nada que impeça o leitor de apreciar as muitas e grandes qualidades da obra.

sexta-feira, janeiro 17, 2014

Spartacus - Deuses da Arena + Sangue e Areia

Comprei os DVDs da série Spartacus todos de uma tacada só – o box custava consideravelmente mais ba­rato que comprar as temporadas separadamente, de modo que decidi que valia a pena aprofundar um pouco mais a mão no bolso na hora, considerando a economia que isso representaria a médio prazo. A caixa traz as três temporadas oficiais (Sangue e Areia, Vingança e Guerra dos Condenados), mais a minissérie prequel Origens: Deuses da Arena. Esta última foi produzida depois de Sangue e Areia, mas, como é próprio das prequels, narra fatos que ocorreram antes. Conforme vim a saber, o ator principal, Andy Whitfield, acabava de gravar Sangue e Areia, que seria a primeira temporada da série (em 2009/2010) quando foi diagnosticado com câncer. Enquanto Whitfield se tratava, os produtores executivos Sam Raimi (Homem-Aranha, Arraste-me Para o Inferno, entre outros) e Rob Tapert, além do criador da série, Steven S. DeKnight, decidiram aproveitar a estrutura e o elenco já montados para filmar Deuses da Arena, que, mesmo que não tivesse mais nenhuma qualidade (mas tem, e como!), já mereceria reconhecimento só pelo fato de não sofrer do mal que aflige quase todas as prequels: aquela coleção de eventos obviamente criados só para moldar-se aos fatos posteriores já conhecidos pelo públi­co, e que o espectador, por mais boa vontade que tenha, não consegue deixar de achar que ficaram artificiais (quem assistiu às duas trilogias de Star Wars sabe do que estou falando). Em Deuses da Arena, tudo se ajusta com naturalidade, chegando a dar a sensação de que a minissérie era algo que havia sido escrito antes, que, por um ou outro motivo, não ha­via sido produzido, e que foi desengavetado quando a oportunidade surgiu.

Infelizmente, o tratamento de Andy Whitfield não deu o resultado esperado, e ele faleceu em 2011, aos 39 anos de idade. Para substituí-lo no papel de Spartacus, foi recrutado o ator Liam McIntyre, que é quem aparece em Vingança e Guerra dos Condenados. Já que eu estava com tudo nas mãos, decidi assistir na ordem cronológica. Neste post, falarei sobre Deuses da Arena e Sangue e Areia, que são as partes que assisti até o momento – além de me permitir dar um pouco de vazão ao meu gosto por escrever sobre História (ah, vocês já tinham percebido? risos).

E, creiam-me, trata-se de entretenimento de altíssimo nível. Pessoalmente, não costumo aguentar longos perío­dos diante de uma tela: não consigo assistir a mais de um filme de longa metragem num dia, ou mais que dois epi­sódios de um seriado em sequência (muito excepcionalmente, três). Isso dá uma medida do quanto Deu­ses da Arena me prendeu a atenção: assisti a seus seis episódios no curto intervalo de menos de 24 horas, entre uma noite de sexta e a tarde do sábado, salientando que cada episódio tem em torno de uma hora de duração – o normal para séries de ação ou drama é de pouco mais de 40 minutos. Uma experiência muito intensa, quase hipnótica, que até me animou a perdoar as imprecisões históricas que percebi. O visual é perfeito, de encher os olhos, e a série não esconde (na verdade, escancara) que sua principal influência para as cenas de ação épica foi o filme 300: tal como nele, as sequências de luta são cheias de paradinhas e alternam a todo momento entre a velocidade normal e o slow-motion. Na verdade, 300 não foi pioneiro no uso desses recursos, pois, afinal, Matrix veio antes... De todo jeito, o resultado são imagens para fazer qualquer fã de filmes épicos babar o colarinho. É surpreendente pensar que algo de tal nível não foi feito para o cinema, e sim para a TV. Tudo isso se aplica também a Sangue e Areia, cujos 13 episódios "devorei" durante os dois finais de semana seguintes.

Deuses da Arena e Sangue e Areia tratam basicamente de gladiadores, e, sendo assim, exibem muitas cenas de luta. Muito esforço parece ter sido investido em tornar essas cenas tão realistas quanto possível, sem poupar o público da visão chocante de mortes e ferimentos – mas apenas quando isso era cenicamente interessante: a produção também não teve qualquer pudor de mostrar alguns absurdos, sempre que achasse que renderiam cenas impactantes. Quando alguém é degolado ou decapitado, por exemplo, o jorro do sangue, impulsionado pelas batidas finais do coração, parece real (quero dizer, tal como eu ima­gino que seria, já que nunca vi e espero nem ver tal coisa ao vivo); por outro lado, há uma cena em que Spartacus decepa as duas pernas de um oponente, aparentemente sem fazer qualquer esforço, com a facilidade de quem corta um par de linguiças – na verdade, cortar um membro não é tão fácil assim: exige uma lâmina muito afiada e uma enorme força física. Para completar, até ser eliminado com um último golpe, o sujeito fica se arrastando pela arena sem que sangue algum saia dos tocos de suas pernas!...

Os detalhes do dia-a-dia num ludus (palavra latina para escola, também aplicada às escolas especiais para o treinamento de gladiadores) foram bem pesquisados e reproduzidos, mas, em contraste com tal realismo, notei deslizes quanto à parte técnica dos jogos. Na Roma antiga (e no mundo da época), cada gladiador pertencia a uma classe específica, de acordo com as armas e técnicas de luta que utilizava, e cada classe especializava-se em enfrentar uma ou, no máximo, duas outras; na série, cada lutador enfrenta oponentes dos mais diferentes tipos, o que é com­preensível: os realizadores devem ter optado por fazer essa concessão a fim de dar mais variedade e dina­mismo às cenas de combate, tanto no treinamento dos gladiadores quanto nas lutas para valer. Além dis­so, não me consta que houvesse classes de gladiadores lutando com enormes machados e até martelos (o que, considerando o peso dessas armas, os tornaria oponentes muito lentos, presas fáceis para um espa­dachim bem treinado, por exemplo), e menos ainda que as regras rígidas que regiam os combates na are­na permitissem que um único gladiador enfrentasse dois, três ou até quatro oponentes ao mesmo tempo. Os mesmos deslizes estão presentes em Gladiador, de Ridley Scott, que segue sendo um de meus filmes preferidos... Portanto, como diriam os espectadores numa arena romana, missio ('misericórdia'): sejamos in­dulgentes.

A história narrada gira em torno de Quinto Lêntulo Batiato (John Hannah, da trilogia A Múmia), um influente lanista (proprietário de ludus) da cidade de Cápua, no centro-sul da Itália, no último século antes de Cristo. Batiato representa a terceira geração de sua família a dedicar-se ao negócio dos gladiadores, mas nutre outras ambições, a maior delas a de ingressar na política, e um dia, quem sabe, chegar ao senado de Roma – o que, salvo em casos muito excepcionais, era a mais alta posição de poder a que um homem podia esperar chegar naqueles tempos. Em seus esforços para conseguir isso, ele conta com o auxílio de sua bela, astuta e inescrupulosa esposa, Lucrécia (Lucy "Xena" Lawless). Se nada mais de positivo puder ser dito sobre o casal, parece que os dois realmente se amam, numa época em que quase todos os casamentos eram arranjados. Lucrécia quer ver o marido conquistar poder e glória, e, para ajudá-lo, lança mão de todos os recursos ao seu alcance, lícitos ou não; Batiato, por sua vez, dá muito valor à inteligência da esposa e sempre se mostra feliz e agradecido pelo apoio dela. Não parece ter qualquer relevância o fato de ambos amiúde dedicarem-se a passatempos sexuais com seus escravos – ele às claras, exercendo suas prerrogativas de homem, ela mais discretamente, mas com igual entusiasmo. Aliás, nudez e sexo (nunca explícito, mas por vezes bastante "gráfico") fazem parte da série tanto quanto as lutas entre gladiadores, tentando retratar como era a vida numa época e numa cultura em que essas coisas não eram tabus.

(E, caso estejam se perguntando, a resposta é sim: em Spartacus, toda a geração masculina que cresceu assistindo a Xena: a Princesa Guerreira e imaginando Lucy Lawless nua tem a chance de finalmente realizar o sonho – risos.)

Quando Deuses da Arena começa, o grande anfiteatro de Cápua ainda está em obras, e as lutas acontecem numa acanhada arena improvisada, na qual os espectadores ficam tão próximos dos gladiadores, que arriscam ser atingidos por sangue espirrado, ou pior, por golpes perdidos (as duas coisas acontecem!). Batiato, que concorre com outros lanistas pela liderança no fornecimento de lutadores para os jogos, está particularmente interessado em assegurar a presença de seus homens nos eventos que marcarão a inauguração da nova arena. A melhor carta que tem na mão é o gaulês Gannicus (Dustin Clare), treinado em seu ludus e, segundo a opinião geral, o melhor gladiador de Cápua e região. Só que colocar lutadores na arena nos jogos importantes – com todo o dinheiro e prestígio que isso pode trazer – é um prêmio buscado por muitos, e disputado de modos bem mais escusos que pelo simples confronto honesto de habilidades de combate entre gladiadores oriundos dos diferentes ludi. Tráfico de influências, troca de favores, corrupção, intimidação, assassinato, nenhum desses expedientes é descartado por quem busca a proeminência nesse meio.

Para tentar ganhar as boas graças de Túlio, um figurão da cidade, Batiato compra por valor absurdo um escravo aparentemente comum pertencente a ele: outro gaulês, Crixus (Manu Bennett), que até então trabalhava carregando pedras na construção da arena, e por quem, a princípio, ninguém dá nada como gladiador. Só que ele se mostra tão determinado, que não demora a ganhar a marca da irmandade (um "B", de Batiato, gravado a ferro em seu antebraço), que distingue os gladiadores de verdade dos simples aspirantes, que ainda convivem com o pavor de serem vendidos para as minas – um destino muito pior que lutar na arena. A seguir, Crixus vai galgando posições até ser considerado o melhor murmillo da casa de Batiato, e depois, o melhor de toda Cápua – até já haver quem o considere capaz de ganhar o título de campeão da cidade, que atualmente pertence a Gannicus. Há entre os dois uma rivalidade pontuada de respeito: para Crixus, Gannicus é um grande gladiador; para Gannicus, Crixus é um novato que demonstra suficiente coragem e força de vontade para ser capaz de ameaçar-lhe a posição.

Obs.: O murmillo é a classe de gladiador que luta com um gládio (espada curta), e um escudo grande. O gládio era uma das armas mais comuns no mundo romano, usada também pelos legionários, e deu origem à própria palavra gladiador: parece que, no começo da história dos jogos, era a única arma permitida – a diversificação de estilos veio mais tarde. Gannicus é um dimachaearus, que usa duas espadas e uma técnica totalmente diferente, já que, como não porta escudo, as espadas precisam encarregar-se ao mesmo tempo do ataque e da defesa. Spartacus, por fim, começa como um thrax (trácio; casualmente, ele é nativo da Trácia, cujos guerreiros inspiraram essa classe de gladiador), usando a sica (espada curva) e um escudo menor que o do murmillo. Mais tarde, Batiato determina que ele passe a atuar como dimachaearus.

O melhor amigo de Gannicus é Enomaus (Peter Mensah, o emissário persa de 300), um gladiador mais velho, que vive desde criança na casa de Batiato. Foi adquirido no tempo em que o ludus ainda era dirigido pelo pai de Quinto, e praticamente cresceu junto com o atual chefe. Enomaus era o principal gladiador da casa até ser gravemente ferido, cerca de um ano antes, ao enfrentar Theokoles, conhecido como "a Sombra da Morte", provavelmente o gladiador mais temido da República (lembrem-se de que, nessa época, Roma ainda não era um império). O longo período que Enomaus teve que ficar longe da arena depois disso deu oportunidade à ascensão de Gannicus – um fato que não abalou a amizade dos dois –, mas, ao mesmo tempo, o ocorrido revestiu Enomaus de uma espécie de aura mística, pois diz-se que ele foi o único homem a sobreviver a uma luta com Theokoles. Só agora ele está plenamente recuperado, e anseia pelo dia de seu retorno à arena, para provar a Batiato, ao público e, principalmente, a si mesmo, que ainda é um grande gladiador. Porém, seu desejo não está destinado a realizar-se, pois, em vez disso, ele acaba sendo designado para o posto de doctore, um misto de professor e feitor, responsável pelo treinamento dos gladiadores e por supervisionar seu comportamento.




Por falar nisso, é interessante a ênfase que Deuses da Arena põe numa particularidade dos gladiadores: em sua maioria, eles eram escravos (havia gladiadores livres, mas esses eram exceções), e estavam entre os raros escravos a quem era permitido, e até estimulado, que mantivessem um certo tipo de orgulho. Muitos deles realmente sonhavam com a glória na arena, não só pela esperança de liberdade e talvez até de riqueza que isso poderia trazer, mas pela glória em si, e dedicavam lealdade a seu lanista. No que diz respeito a merecer uma tal lealdade, Batiato mostra-se um tanto ambivalente: em muitos momentos, até dá a impressão de ser um senhor justo, que dá valor às capacidades de seus escravos e ouve o que eles têm a dizer – mas, quando se trata de pavimentar seu caminho até o poder, não se detém diante de nada, e não hesita em submeter seus homens a qualquer tipo de situação, mesmo as mais humilhantes.

Passando de Deuses da Arena para Sangue e Areia, somos apresentados à figura central da série, Spartacus em pessoa. Muito pouco ou quase nada é sabido sobre o Spartacus histórico; Plutarco, assim como outros historiadores menos notórios, registrou que ele era provavelmente de origem trácia (a província romana da Trácia incluía partes das modernas Bulgária, Grécia e Turquia) e que serviu numa das chamadas auxiliae, tropas auxiliares do exército romano nas quais se alistavam não-cidadãos nativos dos países conquistados. E teria desertado de sua unidade, o que era um dos piores crimes previstos no código militar romano: um legionário desertor, se capturado, seria sumariamente executado, enquanto um membro das auxiliae culpado do mesmo delito seria condenado à escravidão – que foi o que aconteceu com Spartacus. Para compreender a diferença de status envolvida, basta lembrar que, para ser um legionário, você precisava ser cidadão romano por direito de nascimento, enquanto os soldados auxiliares somente ganhavam a cidadania (transmissível aos descendentes) ao final de seu tempo de serviço, que variou conforme a época – podia ser de 15 a 25 anos. Na série, a fim de criar empatia do público para com o herói, Steven S. DeKnight fez com que tanto o alistamento quanto a deserção de Spartacus ocorressem por motivações louváveis: ele aceita entrar para as tropas auxiliares não como uma opção de carreira, mas unicamente porque os romanos prometem que, juntos, expulsarão definitivamente os guetas (não faço ideia de que povo seja esse), inimigos dos trácios que ameaçam suas cidades. Já a deserção acontece quando seu comandante romano, quebrando a palavra dada, ordena que as legiões da Trácia (acompanhadas de suas auxiliae), marchem para o leste a fim de se unirem às forças que enfrentam a rebelião de Mitrídates, o que significaria deixar a própria Trácia à mercê dos guetas. Spartacus, então, foge para tentar salvar a vida de sua esposa, Sura (Erin Cummings, uma gata, por falar nisso). Porém, é claro, os dois são capturados e separados, e Spartacus acaba indo parar em Cápua. Toda essa parte, que fique claro, é fictícia: não se sabe nada sobre a vida de Spartacus antes de se tornar um gladiador, e é muito provável que, na realidade, sua deserção tenha ocorrido sob circunstâncias muito menos heroicas. Mas isto é ficção, não História, então vamos adiante.

Como dito antes, a pena para um soldado das auxiliae que desertasse era a escravidão; portanto, o mais provável é que o Spartacus histórico, ao ser capturado, tenha sido enviado a um mercado de escravos, e lá, devido a seu tamanho, força e experiência militar, naturalmente tenha sido comprado para ser treinado como gladiador. DeKnight, porém, quis que a entrada do herói no mundo das arenas acontecesse em grande estilo, então pôs em seu roteiro que ele foi condenado à morte (a fidelidade ao aspecto histórico não foi uma preocupação). Era comum, naqueles tempos, que as execuções públicas de criminosos condenados fossem realizadas na arena, antes de começarem os jogos propriamente ditos – e daí até alguém pensar num modo de tornar essas execuções mais "emocionantes", foi um pulo. Então, em vez de serem simplesmente conduzidos amarrados até o centro da arena e lá decapitados sem mais delongas, os criminosos maiores (em tamanho) e mais fortes passavam a receber uma arma e a ter que enfrentar gladiadores treinados, encarregados de sua execução. É claro que essas lutas costumavam ser muito curtas e que, de modo geral, pouca diferença faziam em relação a uma execução comum, a não ser por prolongarem o sofrimento do condenado, mas surpresas podiam acontecer. A possibilidade de um condenado realmente derrotar um gladiador era quase nula, mas, se ele lutasse bem e ganhasse a simpatia do público, este último podia clamar ao organizador dos jogos que lhe concedesse clemência; nesse caso, a sentença de morte podia ser comutada para a de escravidão – o que até poderia, sim, ser o passaporte para uma carreira bem-sucedida como gladiador e, quem sabe, um dia, para a liberdade. Isso podia realmente acontecer, e é a alternativa que DeKnight adota, mas, é claro, de modo extremamente hiperbólico, fazendo com que Spartacus, seminu e armado apenas com uma espada, derrote não um, mas quatro gladiadores totalmente equipados. Ele é, então, comprado por Batiato e vai parar no ludus deste, onde viverá muitas "aventuras sangrentas" (citação à fala do lanista Proximo, de Gladiador, devidamente creditada).

Como seria de se esperar, a vida no ludus é brutal, e um recruta recém-chegado precisa provar seu valor várias vezes e de diversas maneiras antes que os gladiadores veteranos se dignem sequer a lhe dirigir a palavra sem ser para insultar e provocar. Spartacus faz amizade com Varro, um cidadão romano reduzido à escravidão por dívidas de jogo, e constantemente se desentende com Crixus – é difícil dizer qual dos dois provoca o outro mais vezes. A princípio considerado por Batiato e por Enomaus como um animal indomável, o trácio vai aos poucos entrando nos eixos, quando o lanista lhe acena com a promessa de que poderá encontrar sua esposa e trazê-la para que os dois fiquem juntos e um dia obtenham sua liberdade. É essa esperança que ainda empurra Spartacus para a frente e o anima a sobreviver, mesmo quando isso parece impossível; porém, ele descobrirá que o talento de certos homens para a perfídia e a traição é maior do que poderia imaginar, e que apenas coragem e habilidade com a espada não podem defendê-lo contra esses males.

Um grande problema de filmes ou séries com ambientação histórica é que as pessoas que não pos­suem conhecimento prévio sobre o assunto (ou seja, a maioria do público) tendem a aceitar o que é mostrado como realidade, o que nem sempre é o caso... Aliás, na vasta maioria das vezes, não é. Só para dar um exemplo, há um gladiador chamado Barca, de quem se diz que é nativo de Cartago (que a dublagem chama de "Cártago"... Não pela primeira vez, dói ver a falta de cultura dos tradutores que andam por aí), e que, quando "os cártagos" (Arrrgh...) foram derrotados pelos romanos, milhares deles morreram nas arenas, sendo Barca um dos poucos que sobreviveram. Acontece que os romanos destruíram Cartago ao vencerem a Terceira Guerra Púnica, em 146 a.C. (detalhes aqui), mais de 70 anos antes da revolta de Spartacus... Isso dá uma ideia do grau de preocupação com a História que norteou os responsáveis pela série. O próprio Rob Tapert, num dos extras (aqueles a que ninguém assiste) incluídos no último disco de Sangue e Areia, diz que perguntou a Steven S. DeKnight o quanto ele sabia sobre História e, ao ouvir em resposta "muito pouco", respondeu: "Ótimo, pois não ligo a mínima para isso". Creio que isso diz tudo. Então, a quem estiver me lendo sem ter ainda visto a série e tenha planos de fazer isso, reitero que é entretenimento de primeira classe – mas só. No máximo vinte por cento do que você vai ver é História, e o restante é ficção. Se isso estiver bem claro e presente na mente durante todo o tempo, Deuses da Arena e Sangue e Areia podem ser recomendados com entusiasmo a qualquer fã de épicos da Antiguidade. Embora tenha sido feita para a TV, a série nada fica a dever às melhores produções desse tipo feitas para o cinema desde 2000, quando Ridley Scott e seu Gladiador resgataram o gênero do limbo onde se encontrava havia décadas.

terça-feira, dezembro 31, 2013

Deixa Ela Entrar

Em meu post sobre Dráculaescrevi que os conceitos do vampirismo foram durante muito tempo um dos assuntos mais interessantes que escritores de terror tiveram à sua disposição, até ficarem "desgastados pelo uso excessivo". De fato, parece que já faz muito tempo que não aparece alguém que consiga criar uma verdadeira atmosfera de terror utilizando os "sanguessugas". Eles continuam aparecendo (e muito) em manifestações da cultura pop em geral  livros, quadrinhos, e, é claro, cinema , mas essas produções parecem quase sempre tender para outros gêneros: Blade é ação, não terror, por mais que haja vampiros em cena; Crepúsculo é uma saga de aventura e romance em que, por acaso, o mocinho tem caninos longos e pontudos. E é quase tudo assim. Foi preciso que eu topasse com este livro de um autor pouquíssimo conhecido no nosso meio, e vindo de um país tão improvável quanto a Suécia, para recuperar a fé de que ainda é possível, sim, produzir narrativas de terror – terror genuíno e eficiente – apostando em vampiros.

John Ajvide Lindqvist começa por nos mostrar um lado da Suécia sobre o qual raramente pensamos. Por ser esse um dos países mais prósperos e desenvolvidos do mundo, nós, os não-suecos, tendemos a imaginar (sem refletir muito a respeito) que lá todos tenham vidas perfeitamente ordenadas, com objetivos claros e todos os meios à disposição para atingi-los. Um país onde as pessoas não têm problemas? Ilusão. O autor, sem pedir licença, leva-nos a participar do cotidiano dos moradores de Blackeberg, um subúrbio de Estocolmo que realmente existe – ele, Lindqvist, cresceu lá. Nessa vizinhança, temos a oportunidade de conhecer, por exemplo, o grupo formado por Morgan, Lacke, Larry, Jocke e Karlson: cinco homens de meia-idade, com pouco dinheiro e nenhuma perspectiva, que costumam se reunir num restaurante chinês, onde pouco comem, mas muito bebem. Esses personagens aparecem para dar uma ideia do panorama local, e provavelmente são inspirados em pessoas que o autor conheceu. Porém, o protagonista é Oskar, que tem 12 anos e sofre. Morando com a mãe, ele raramente vê o pai. Embora ela seja afetuosa e mostre preocupação com o filho, parece preferir fechar os olhos a certos problemas, e não ajuda o fato de que Oskar, como todo pré-adolescente, tem seu orgulho, de modo que há coisas sobre as quais prefere silenciar.

O maior espinho na carne do garoto são os valentões da escola, que tentam aliviar o tédio perseguindo-o. Nem sempre é fácil dizer por que é uma determinada criança, e não outra qualquer, que acaba escolhida como alvo desses tipos; no caso de Oskar, talvez tenha sido por ser gorducho e estar mais para introspectivo que para popular, mas, no fim, tanto faz: outras crianças são perseguidas por usarem óculos, por pertencerem a qualquer minoria étnica, religiosa ou de outra espécie, por serem muito altas, muito baixas, por alguma assimetria de feições que as afaste do padrão de aparência considerado ideal, ou por qualquer outra bobagem irrelevante na qual os "perfeitos" consigam pensar. Se por acaso não houver numa turma ninguém que se encaixe em nenhuma dessas situações, a escolha provavelmente caberá ao azar: o certo é que alguém precisa ser a vítima. Há momentos em que Oskar se odeia ainda mais do que odeia seus algozes, porque por vezes se submete à humilhação para evitar apanhar. E assim vai levando a vida aos trancos e barrancos. Para consolar-se, o garoto se entope de doces, quer comprados ou surrupiados. E lê. Muito.

Acontece então que chegam novos vizinhos ao prédio de apartamentos onde Oskar mora: um homem e uma menina. Todos imaginam que sejam pai e filha, e eles deixam que as pessoas continuem pensando assim. A menina, Eli, é estranha, mas fascina Oskar. Dona de uma extraordinária e exótica beleza, ela jamais aparece durante o dia, tem modos misteriosos, um jeito estranho de falar, que por vezes parece mais próprio de um ancião que de uma criança, e parece incapaz de entrar em qualquer recinto a menos que seja convidada em voz alta, de forma explícita: "Você pode entrar", ou algo equivalente. Oskar, apreciador de filmes e livros de terror, sabe muito bem o que isso tudo junto costuma significar, mas "vampiros não existem", não é mesmo? A amizade que se forma entre as duas crianças respeita certos limites: há coisas sobre Eli que deixam Oskar curioso, mas ela tem seus meios de fazê-lo compreender quando deve parar com as perguntas. É graças à paixão que começa a sentir por Eli – a primeira de sua vida, coisa que nunca se esquece – que o menino decide começar a enfrentar seus problemas: não quer que ela o veja como um covarde. Parte do impacto da história está na justaposição chocante de toda essa inocência infantil com os terríveis detalhes da parte da vida de Eli que Oskar não conhece.

O acompanhante de Eli não é seu pai – nem poderia. Håkan (pronuncie Hôkan) é um personagem que causa pena. Já foi professor de sueco, de modo que é um homem de considerável cultura e já soube o que é ser um membro respeitado da sociedade. Seus desvios sexuais o arruinaram: Håkan é um pedófilo – um pedófilo que sofre, dilacerado entre seus desejos inconfessáveis e o senso do certo e do errado. Eli o encontrou quando ele já havia alcançado o fundo do poço, ao ponto de cair bêbado em praças, só esperando pela morte, e o reergueu, pelo menos até onde era possível, para que ele servisse a suas necessidades. A princípio, como o próprio Håkan reflete, Eli parecia perfeita para ele: tem o corpo infantil que o atrai, mas não é uma criança – na verdade é muito mais velha, experiente e sábia do que ele próprio, o que lhe daria, finalmente, a chance de satisfazer seus desejos sem sentir culpa. Isso, é claro, se Eli estivesse disposta a cultivar intimidades com Håkan, o que não parece ser o caso: ela sabe que ele a ama e a deseja, e apenas usa isso para mantê-lo dominado. Ele a ajuda a salvar as aparências (já que uma criança vivendo e circulando sozinha chamaria demasiada atenção) e "caça" para ela; no começo, não se compreende por que, já que em diversos momentos da história a menina mostra-se perfeitamente capaz de obter "comida" sozinha: a explicação aparece mais adiante. A tarefa de Håkan consiste em emboscar pessoas, sedá-las e drenar-lhes o sangue para que Eli se alimente. É claro que tal atividade não poderia passar despercebida por muito tempo, de modo que a dupla precisa mudar-se constantemente. O leitor notará que, nas partes que são narradas sob o ponto de vista de Oskar, todos os adjetivos e particípios que se referem a Eli estão no feminino – claro –, ao passo que, quando o ponto de vista é o de Håkan, estão no masculino. O que diabos isso pode significar, faz parte dos mistérios da história.

Eli possui muitas das características dos vampiros clássicos, sendo que o livro enfatiza especialmente (e já no próprio título!) a de não poder entrar sem ser convidada, mas ela também não pode sair ao ar livre durante o dia em hipótese alguma, o que a mataria na hora – e isso, até onde sei, foi inventado no filme Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau, e popularizado por centenas de outros filmes durante as décadas seguintes, mas não faz parte das lendas originais, nem está nos escritos de Bram Stoker: conforme essas fontes essenciais, o vampiro pode, caso precise, circular durante o dia eventualmente – a luz do dia lhe é incômoda e anula temporariamente a maior parte de seus poderes, mas não o mata de forma instantânea. Outra coisa a se notar é que Eli, para uma vampira tão pequena, parece possuir um tremendo apetite: precisa alimentar-se a cada poucos dias, e, a cada vez, consumir o equivalente a todo o sangue que um indivíduo adulto ou jovem tem no corpo (cerca de cinco litros numa pessoa de porte médio); além disso, a menos que a vítima seja morta no ato, transforma-se em vampiro também. Certo, são duas crenças populares a respeito dos vampiros, mas que, se fossem verdadeiras, tornariam inviável a existência dessas criaturas, e que, por isso, são hoje unanimemente desprezadas pelos especialistas. Vamos ver por quê? Vai ser interessante!

Em primeiro lugar, um vampiro que precisasse matar uma pessoa uma ou duas vezes por semana duraria muito pouco: seria rapidamente caçado e morto. A ideia corrente entre os autores atuais é a de que o vampiro pode dominar uma pessoa por meio de hipnotismo (ou atacá-la enquanto dorme) e então sugar uma pequena quantidade de sangue, suficiente para mantê-lo vivo durante alguns dias, sem causar dano sério à vítima, que provavelmente terá um pesadelo, ficará indisposta e cansada durante um dia ou dois, e depois seguirá com sua vida normal – e o vampiro, graças a sua discrição, poderá fazer o mesmo! Em segundo, se toda pessoa que fosse sugada por um vampiro se transformasse em outro, o mundo, dentro de pouco tempo, seria povoado só por vampiros. A versão mais aceita hoje é a de que, para transformar-se, um ser humano precisa, primeiro, ser sugado, e depois, por sua vez, levado a provar o sangue do vampiro, o que significa dizer que não existem transformações acidentais: quando um vampiro converte um humano, faz isso de forma consciente e premeditada. Em todo caso, é provável que Lindqvist tenha optado por seguir as noções populares apenas por serem mais adequadas a seu objetivo literário.

Publicado originalmente em 2004 (embora a ação seja ambientada em 1981), Deixa Ela Entrar já ganhou um lugar entre os grandes romances de terror dos últimos tempos e gerou duas adaptações para o cinema. A primeira é uma produção sueca de 2008, dirigida por Tomas Alfredson; eu vi e recomendo. Como ocorre com todo livro que é adaptado para a tela, a trama teve que ser bastante enxugada, reduzida ao essencial, de modo que as histórias paralelas de personagens secundários foram deixadas de fora. Não acompanhamos, por exemplo, o que ocorre com Tommy, um vizinho de Oskar alguns anos mais velho, usuário de drogas, e sua relação difícil com a mãe viúva e o novo namorado dela, que, por acaso, é um policial; já os dramas e o tédio da existência do grupo do restaurante chinês até são retratados, mas muito de passagem. As atuações dos estreantes Kåre Hedebrant (Oskar) e Lina Leandersson (Eli) surpreendem. O outro filme, intitulado Deixe-me Entrar, é um remake norte-americano, e, pelos comentários que li, bastante açucarado, tendo tido todas as partes chocantes do livro e do filme original limadas, para não falar na "americanização" forçada, que já desvirtuou tantas boas histórias. Quando li na sinopse que Oskar tinha virado "Owen", que Eli passara a ser "Abby" e que a trama estava ambientada no Novo México, desisti de assistir, e pretendo deixar a coisa assim. Meu conselho é que leiam o livro e vejam o filme de Alfredson.

sábado, novembro 09, 2013

A Invenção de Hugo Cabret

"Sabe, as máquinas nunca têm peças sobrando. Elas têm o número e o tipo exato de peças que precisam. Então, eu imagino que, se o mundo inteiro é uma grande máquina, eu devo estar aqui por algum motivo. E isso quer dizer que você, também, deve estar aqui por algum motivo."

*     *     *

Eis aqui um livro diferente e interessante, que eu talvez não chegasse a ler se não fosse por uma feliz conspiração de fatos. Perto do final de 2012, só para estar preparado para a eventualidade de que o Natal chegasse sem que o mundo tivesse acabado antes, como estavam anunciando então, perguntei a minha namorada, Cintia, o que gostaria que eu lhe desse de presente, e ela me falou de A Invenção de Hugo Cabret. Então, durante minha ida seguinte a São Paulo, comprei o livro para ela, aproveitando nossa inevitável "passadinha" pela Livraria Cultura do shopping Bourbon Pompeia (a propósito, ela costuma dizer, meio a sério, meio brincando, que não gosta desse lugar, porque sempre sai com uma sensação de frustração por não poder levar todos os livros e DVDs que gostaria). Agora peguei o livro emprestado e gostei bastante. Não conhecia o autor, Brian Selznick, responsável tanto pelo texto quanto pela (farta) ilustração, e essa foi uma apresentação bem favorável: ele realizou um belo trabalho - algo verdadeiramente muito artístico.

Estamos em Paris, em 1931. Na imensa estação ferroviária central da cidade, Hugo Cabret, um garoto de 12 anos, vive sozinho e escondido. Vindo de uma família toda de relojoeiros, ele herdou esse talento, e agora realiza sozinho a manutenção de todos os relógios da estação, que são muitos, e alguns deles gigantescos. O pai de Hugo, que tinha uma relojoaria, morreu num incêndio num museu onde prestava serviços; o menino, então, ficou sob a guarda de seu tio Claude, que fazia a manutenção dos relógios da estação e fez dele seu aprendiz. Quando o tio, dado a bebedeiras, desapareceu, Hugo passou a fazer o trabalho dele, e por uma razão muito pessoal: se os relógios pararem de funcionar, a administração da estação irá investigar, descobrirá o desaparecimento de Claude, e também descobrirá que ele, Hugo, está morando lá clandestinamente. Além de não ter qualquer vontade de ir para um orfanato, o menino tem outro motivo para não querer deixar a estação: lá, no pequeno apartamento que ficou para ele desde que o tio se foi, está escondida uma maravilha da arte e da mecânica - um autômato, um pequeno homem mecânico que o pai de Hugo descobriu no sótão do museu onde trabalhava e onde morreu. Hugo salvou a curiosa máquina das ruínas, e, durante os meses que se passaram desde então, tem tentado consertá-la. O autômato foi feito para escrever - uma atração de show de mágica -, e a ideia de ler a mensagem que ele escreveria se voltasse a funcionar tornou-se uma obsessão para o garoto.

Para consertar qualquer máquina, geralmente são necessárias peças de reposição. Hugo, então, começa a furtar brinquedos mecânicos de uma loja na própria estação, a fim de desmontá-los e usar as peças em sua obra. O proprietário, gerente e atendente da loja é um velho misterioso, que às vezes recebe visitas de uma menina que adora ler. Hugo ainda não sabe, mas já está ligado a essas pessoas antes mesmo de conhecê-las; e, quando as conhecer, seu mundo sofrerá uma revolução.

O grande volume de A Invenção de Hugo Cabret engana: é um livro para se ler numa "sentada" só. Aliás, seria mais exato dizer que é também um livro para se ver. O texto é frequentemente intercalado por longos trechos de narrativa exclusivamente visual, dando seguimento à história por meio de recursos tomados de empréstimo aos quadrinhos e ao cinema. Por isso o tamanho do livro: a maior parte dele corresponde às ilustrações, feitas pelo próprio autor, e, por sinal, belíssimas. Infelizmente, na edição brasileira, todas estão em página dupla, o que faz com que a encadernação do livro prejudique a visualização de muitas delas.

Misturando ficção com fatos e personagens históricos, Brian Selznick aproveita a história que está contando para prestar uma homenagem a Georges Méliès (1861-1938), que pode ser considerado com justiça o pai do cinema tal como conhecemos. Certo, se formos consultar uma enciclopédia, veremos que o crédito da invenção do cinema é atribuído aos irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), e está correto, pois eles de fato criaram o "cinematógrafo", máquina que deu início a tudo. Só que, a julgar pelo que os cronistas da época registraram, os Lumière, a exemplo de muitos outros inventores, tinham pouca ou quase nenhuma ideia do verdadeiro potencial de sua invenção - e parece que tampouco a imaginação era o forte de qualquer dos dois. Eles filmavam trens chegando à estação, operários saindo de uma fábrica, coisas desse tipo, e esses filmes só atraíam espectadores porque, na época, o simples fato de se ver imagens em movimento já era considerado formidável e emocionante. O pioneirismo na ideia de usar o cinema para contar histórias coube mesmo a Méliès, que, até então, atuava como mágico, cartunista e pintor.

O pai de Auguste e Louis, Antoine Lumière, era um empresário do ramo da fotografia. Orgulhoso da realização dos filhos, Monsieur Lumière convidou muitas pessoas para a primeira exibição pública de cinema da História, marcada para 28 de dezembro de 1895. Um dos convidados foi seu amigo Georges Méliès, a quem ele teria dito que, se comparecesse, veria um novo tipo de mágica que talvez lhe interessasse. E não deu outra: Méliès ficou imediatamente fascinado pela engenhoca, e viu logo suas vastas possibilidades, nas quais seus próprios criadores não tinham pensado. Começou imediatamente a fazer filmes, e não parou durante os 18 anos seguintes: fez mais de 500 deles, nenhum com mais que alguns minutos de duração - estava-se ainda muito longe da era dos longas-metragens. Esses filmes eram, em sua maioria, fantasias, sem esquecer que a Méliès se atribui o mérito de ter feito o primeiro filme de terror, Le Manoir du Diable ('A Mansão do Diabo' - podem vê-lo completo aqui; como não há trilha sonora, sugiro que sincronizem com o Concerto para Piano n.º 1 de Tchaikovsky). Tudo bem, o filme não assusta ninguém, e provavelmente já não assustava nem naquela época: parece ser um terror-pastelão, mais puxado para a comédia. Ainda assim, é um marco histórico, e, junto com o restante da obra de Méliès, obriga-nos a refletir que o nosso tão querido cinema fantástico foi o gênero pioneiro da sétima arte e, mesmo assim, mais de um século depois, continua subestimado e alvo de preconceitos persistentes.

A habilidade ilusionística e o senso de cena adquiridos na carreira de mágico foram muito úteis a Méliès. Com a técnica que inventou e batizou de stop-action (que consistia simplesmente em parar a câmera, alterar o cenário e então voltar a filmar), conseguia dar a impressão de que personagens ou objetos apareciam e desapareciam de repente - como se fosse magia, por assim dizer. Criou, ainda, diversos outros truques, que o levaram a ser considerado, além de iniciador do cinema de ficção, também o inventor dos efeitos especiais. Sua carreira teve fim com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e os últimos 25 anos de sua vida são obscuros - fato esse do qual Brian Selznick soube aproveitar-se de forma magistral em seu livro.

A Invenção de Hugo Cabret é uma história de amizade, lealdade e amor à arte, narrada de maneira original e cativante. Recomendo para qualquer leitor, mas muito especialmente para os que também são amantes de cinema.

quarta-feira, outubro 16, 2013

Duna

Um dos mais monumentais romances de ficção científica já escritos… Querem saber? Um dos mais monumentais romances de qualquer gênero já escritos, é a definição que melhor assenta em Duna, a obra-prima de Frank Herbert. Mesmo que criar mundos (e, em alguns casos, até universos) seja uma parte normal do trabalho de escritores imaginativos, dá para contar nos dedos de uma mão os livros em que isso foi feito de forma tão completa, minuciosa, coerente e cativante quanto aqui. O livro, lançado em 1965, valeu a seu autor os prêmios Hugo e Nebula, que estão para a literatura de ficção científica mais ou menos como o Oscar e a Palma de Ouro de Cannes estão para o cinema.

Mais de oito mil anos no futuro, o universo conhecido é regido por um sistema monárquico e feudal, de forma semelhante aos reinos da Europa na Idade Média. Há o imperador Padishah Shaddam IV, e, abaixo dele, a Landsraad, que vem a ser a aristocracia interestelar  uma série de famílias poderosas que controlam certos planetas ou sistemas solares. As viagens espaciais são monopólio da Corporação Espacial, cujos navegadores, ou "timoneiros", pilotam suas gigantescas naves por meio de um processo de expansão de consciência, turbinado por uma poderosa droga, uma especiaria conhecida como melange, muitas vezes chamada apenas de "a especiaria". Graças aos poderes que a especiaria lhes confere, os timoneiros conduzem as naves sem precisarem estar a bordo, e sem que a distância pareça fazer qualquer diferença: eles "viajam sem se mover". Para isso, têm que consumir grandes quantidades de melange, o que, ao longo de séculos, causou mutações bizarras: os timoneiros praticamente nunca são vistos, mas corre à boca pequena que não parecem humanos.

Não são apenas os timoneiros da Corporação que consomem a especiaria: em pequenas doses, ela prolonga a vida, amplia a percepção, e até permite a alguns usuários (que tenham uma inclinação para isso) ter vislumbres do futuro, de modo que todos os que podem fazem uso dela. Não é para qualquer um, porém, pois seu valor é alto. A especiaria não pode ser sintetizada e só é obtida em um único planeta em todo o universo conhecido. Nos mapas estelares, esse planeta, o terceiro da estrela Canopus, aparece como Arrakis, mas seus habitantes têm para ele outro nome: Duna. Quem controla a especiaria controla o universo, e Arrakis, como a única fonte da valiosa substância, tem, portanto, um papel essencial no jogo de poder no Império.

Arrakis não tem mares, oceanos ou qualquer corpo d'água digno de nota; sua superfície é quase toda coberta por desertos, nos quais pouquíssimas formas de vida conseguem sobreviver. Apesar disso, o planeta parece ter sido colonizado em tempos muito antigos, anteriores à descoberta da especiaria ou de seus poderes. Os humanos que o habitam chamam a si mesmos de Fremen (acredito que venha de free men, 'homens livres'), e todos os aspectos de suas vidas são moldados e regulados pela necessidade imperiosa de preservar a água. São uma gente orgulhosa e feroz, regida por um código de honra inflexível, e com um certo pendor para o fanatismo; tanto por suas características quanto pelo estilo de vida que levam, lembram muito beduínos, uma impressão que é reforçada pelo fato de vários ditos e expressões atribuídas a eles virem da língua árabe. Suas crenças religiosas também têm um quê de islâmico, embora certos conceitos católicos e, creio, judaicos, também estejam presentes. Aliás, esse é um dos diferenciais da obra de Frank Herbert: enquanto muitos autores de ficção científica acreditam que no futuro a religião vá progressivamente perdendo importância, até desaparecer por completo (Arthur C. Clarke) ou reduzir-se a uma prática semiclandestina de pequenos grupos de excêntricos (Alfred Bester), para Herbert ela será sempre uma das coisas que maior poder exercem sobre os seres humanos, e, portanto, um fator importante no desenrolar da História, com H maiúsculo. Foi a religião, por exemplo, que impulsionou a Grande Revolta, ou Jihad Butleriano, quatro mil anos antes dos eventos narrados em Duna: nessa época, a humanidade havia-se tornado dependente das máquinas inteligentes que criara, o que acabou fazendo com que a grande maioria se tornasse escrava dos poucos que controlavam as máquinas. A Revolta aboliu as "máquinas pensantes" e impôs, daí em diante, severas limitações à tecnologia mecânica e eletrônica, resumidas sob a forma de um dogma: "Não farás a máquina à semelhança da mente humana". Por isso, no universo de Duna, não existem supercomputadores; em vez disso, há os Mentat, homens treinados para "supremas conquistas da lógica", – na prática, computadores humanos.

Em Arrakis, a especiaria é obtida por meio de mineração; ela está em toda parte no planeta, misturada com a areia, mas apenas em certos lugares existe uma concentração suficiente para tornar viável a extração, e as areias com especiaria parecem ser consideradas uma espécie de possessão territorial pela forma de vida dominante em Duna: os gigantescos vermes do deserto, espantosas criaturas que podem medir mais de 400 metros de comprimento e muitas dezenas de metros de diâmetro. Os vermes viajam pelo subsolo a grandes velocidades e atacam qualquer fonte de vibrações ritmadas  por isso, os Fremen aprendem desde crianças a caminhar de forma descompassada quando no deserto profundo, de modo a evitar que seus passos formem um padrão rítmico que possa atrair um verme. Não está claro do que os vermes se alimentam; sugestões soltas aqui e ali nos levam a imaginar que eles talvez façam um tipo de fotossíntese, ou coisa parecida, o que explicaria o fato de a atmosfera conter oxigênio suficiente para ser respirável, num planeta praticamente sem vegetação. Outra coisa que também é insinuada é uma possível relação entre vermes e especiaria, uma ligação mais profunda que o mero fato de eles defenderem os lugares onde ela existe em maior quantidade. Porém, se tal ligação existe, só os Fremen sabem, e esse não é um segredo que estejam dispostos a partilhar com qualquer um. Eles ensinam a seus filhos que a atitude correta a se ter para com o verme é de respeito, não de temor. O principal rito de passagem para a idade adulta entre as tribos do deserto consiste em cavalgar um verme: eles o atraem com vibrações rítmicas, escalam o vasto costado da criatura utilizando equipamento especial, e, por incrível que pareça, uma vez sobre seu dorso, conseguem conduzi-la. A arma típica dos Fremen é a faca cristalina, feita do dente de um verme; tal matéria-prima não é comum de se encontrar, já que só pode ser retirada de vermes mortos, e, além de eles viverem milhares de anos, não há quase nada capaz de matá-los  com exceção de um verme mais forte. Teoricamente, um verme também poderia morrer envenenado com água, substância que não faz parte de sua fisiologia e é tóxica para ele; porém, em Arrakis, as possibilidades de que algo assim efetivamente aconteça são remotas, para dizer o mínimo. De qualquer forma, uma única carcaça de verme encontrada fornece material para centenas de facas, e, além disso, a mesma lâmina costuma passar de geração a geração dentro de cada família (assim como o equipamento para cavalgar o verme, por falar nisso). A faca cristalina representa para o guerreiro Fremen o mesmo que a katana para o samurai: mais que uma mera arma, é um símbolo de sua identidade cultural e dos valores que ele mais preza.


É nesse universo que tem lugar a saga de Paul Atreides, o messias de Duna. Filho do duque Leto Atreides, que governa o planeta Caladan, e de Lady Jessica, uma habilidosa "feiticeira" da ordem Bene Gesserit, Paul é treinado desde a mais tenra infância para suceder o pai. Tal treinamento inclui desde as coisas óbvias, como política e administração, até habilidades indispensáveis à sobrevivência de qualquer homem nobre e importante nesses tempos: luta armada e desarmada, identificar ciladas e venenos, além de toda uma gama de habilidades mentais ensinadas por sua mãe (a irmandade Bene Gesserit, formada apenas por mulheres, é famosa por cultivar o controle da mente sobre o corpo e por desenvolver poderes naturais, latentes no ser humano, mas que a maioria nunca aprende a utilizar). Além dos próprios pais, o jovem herdeiro tem outros professores extraordinários: Gurney Halleck, o guerreiro-trovador; Thufir Hawat, mestre de assassinos, um velho Mentat que serve à casa Atreides desde os tempos do avô de Paul; Duncan Idaho, legendário espadachim; e o brilhante médico Dr. Yueh. Graças, em parte, a toda essa soberba instrução, em parte a seus talentos inatos, Paul chega aos 15 anos como um rapaz extremamente inteligente, astuto e perigoso.

É por volta dessa época que a rotina da casa Atreides sofre uma reviravolta. O duque recebe ordens do imperador para transferir-se para Arrakis, sob a alegação de que o monarca estava insatisfeito com a administração realizada pela casa nobre anteriormente encarregada do planeta  os Harkonnen, parentes e inimigos mortais dos Atreides. O oferecimento é tentador, pois colocará Leto numa posição de grande poder, mas trata-se, na verdade, de uma armadilha: o imperador está preocupado com a crescente popularidade do duque entre as grandes casas de Landsraad, receando que em breve ele reúna apoio suficiente para dar um golpe e destroná-lo. Para livrar-se desse perigo, Shaddam IV tramou um conluio com o barão Vladimir Harkonnen, líder da casa Harkonnen: depois de fingir uma retirada e esperar que Leto e sua gente tenham se instalado em Arrakis, o barão deverá enviar suas tropas, reforçadas por um grande contingente dos Sardaukar  os temíveis soldados-fanáticos do imperador  para exterminar de uma vez por todas a linhagem Atreides. Um traidor entre os Atreides, coagido pelos Harkonnen, facilitará o ataque sabotando as defesas por dentro.

O plano infame parece obter sucesso. Leto é assassinado em meio ao caos da batalha  de forma traiçoeira, sem ter a chance de tombar lutando , e quase todos os seus soldados e servos são exterminados ou escravizados; os poucos que conseguem escapar ficam espalhados pelo planeta, sem liderança alguma, para morrer no deserto ou, no máximo, viver refugiados entre os Fremen  se estes não os matarem por prudência. E é entre os Fremen que Paul e Jessica encontram abrigo.

Uma nova cultura, um novo modo de vida; há muito a aprender e muito com o que se acostumar. Coisas que seus novos companheiros veem como normais desconcertam e por vezes chocam Paul. Porém, ele não é um garoto qualquer, e isso é algo que todos rapidamente percebem. Há entre os Fremen uma velha profecia sobre o "Lisan al-Gaib" (a 'voz do mundo exterior'), um messias que viria de outro mundo para conduzi-los à "verdadeira liberdade"  uma lenda que apresenta inquietantes semelhanças com outra profecia, esta das Bene Gesserit, a respeito do "Kwisatz Haderach", nome que se traduz por 'encurtamento do caminho': este seria um Bene Gesserit masculino, um ser absolutamente único, cujos dons proféticos superariam até mesmo os das mais poderosas reverendas-madres da ordem. E Paul parece preencher um por um os pontos estabelecidos por ambas as profecias. Na sociedade Fremen, ele se torna conhecido como Paul Muad'Dib, nome tomado de uma espécie de rato-canguru, uma criatura do deserto que os Fremen admiram por ser capaz de sobreviver com pouquíssima água, além de ser envolta numa aura mística, porque uma das duas luas de Arrakis exibe em sua superfície uma mancha com a forma do animal.

Tanto a mãe quanto o filho parecem destinados a ter papéis importantes na história do povo que os acolheu. Jessica, grávida de uma menina concebida pouco antes da morte de Leto, faz a ousada experiência de beber a "água da vida" numa cerimônia Fremen. Essa é uma substância perigosíssima, e que, apesar do nome, não é água de espécie alguma, pois é obtida do verme. Ingerido por uma pessoa suficientemente forte e preparada, esse líquido pode despertar a consciência e os poderes da mente num nível em que nenhuma outra coisa o faz  mas, se quem o tenta não estiver à altura do desafio, o preço do fracasso é a morte. Jessica obtém sucesso, tornando-se uma reverenda-madre altamente respeitada. Porém, ocorre um efeito colateral: sua filha, Alia, sofre uma espécie de fusão mental, que armazena em seu pequenino cérebro todo o conhecimento e a experiência acumulados por sua mãe até aquele momento  e não só por sua mãe, mas por todas as incontáveis reverendas-madres já mortas que a precederam. Alia torna-se, ela própria, uma reverenda-madre ainda no ventre da mãe. Ao nascer, é uma poderosa bruxa em corpo de criança.

Durante os anos seguintes, à medida em que vai amadurecendo e desenvolvendo seus poderes, Paul conquista cada vez mais respeito e proeminência entre os Fremen; apesar de sua pouca idade, constrói renome por sua sagacidade, ensinando a eles muito do que aprendeu com seus antigos mestres e arquitetando engenhosos planos de ataque contra os ocupantes Harkonnen. O ódio dos Fremen contra essa casa, que durante 80 anos tentou exterminá-los como se fossem uma praga, não é menor que o do próprio Paul. Seus esforços causam enormes baixas entre as tropas do barão e transformam a mineração da especiaria num negócio muito perigoso, até que a queda na produção acaba por atrair as atenções do imperador em pessoa… O que, vejam só, era exatamente o que Paul pretendia. A partir daí, vingar a morte do pai e reconquistar seus direitos como duque será apenas o começo para ele e para sua estirpe.

Duna é um daqueles livros que exigem inúmeros adjetivos para serem descritos. O primeiro que me vem à mente é "denso". Cada página é um pedaço de uma intrincada trama que envolve não apenas os infinitos detalhes de um universo exótico e complexo, mas também a parte psicológica dos personagens  por sua vez, profundos e multifacetados. As forças e fraquezas de cada personagem, suas motivações e seus medos, são peças que influenciam o desenrolar da história, tudo de forma perfeitamente pensada  cada causa com seu efeito, cada ação com sua reação. Um tratamento tão hábil, aplicado a um enredo tão grandioso, numa ambientação tão rica e fascinante, só poderia ter o resultado que efetivamente tem: um livro único, que não se parece com nada que eu conheça, uma leitura hipnótica, com um poder de imersão que poucas vezes encontrei ao longo de mais de 30 anos de experiência como leitor. Duna apresenta a História sendo feita, por meio da complexa interação de diferentes fenômenos sociais  religião, guerra, interesses econômicos , todos eles submetidos às condições impostas pelo poder da natureza. É comovente sentir o conflito na alma dos Fremen, que sonham com seu planeta transformado num mundo verdejante, hospitaleiro à vida humana, mas, ao mesmo tempo, amam o deserto, que possui seu próprio tipo de beleza cruel, além de ser o elemento central de sua cultura e visão de mundo, e o grande responsável por fazê-los fortes, já que os submete a provas duras e diárias pela sobrevivência.


Duna foi adaptado para o cinema em 1984, com direção de David Lynch, tendo seu "muso", Kyle MacLachlan, no papel de Paul Atreides, o veterano Max Von Sydow como o planetólogo imperial e líder Fremen Liet-Kynes, e, Patrick Stewart como Gurney Halleck  uma curiosidade para os fãs de Jornada nas Estrelas e de X-Men, já que esse ator já foi conhecido como capitão Jean-Luc Picard, e, ultimamente, como Prof. Charles Xavier. O filme é considerado por muitos dos fãs de Lynch como o "patinho feio" da obra do diretor, e foi um fracasso nas bilheterias  algo totalmente compreensível, pois, com exceção dos leitores de Frank Herbert, o público que foi vê-lo era provavelmente formado por aquele tipo de espectador que assiste a qualquer coisa rotulada como "ficção científica", mas que vai esperando ver um agitado bangue-bangue com armas laser, e não um filme difícil, cheio de implicações filosóficas e de sentidos não óbvios, como este. O filme tampouco foi bem recebido pela crítica, mas, apesar de tudo, deve ter seus admiradores, a julgar pela regularidade com que tem sido relançado em DVD e blu-ray, e talvez seja relevante lembrar que o próprio Herbert gostava dele. Pessoalmente, considero-o uma experiência envolvente e agradável para um fã do livro, pois as informações adquiridas durante a leitura encarregam-se de automaticamente preencher as lacunas e dar significado às cenas, deixando o espectador livre para encher os olhos com as espetaculares imagens. Por outro lado, compreendo plenamente que, para quem não é leitor de Herbert, deve tratar-se um filme bem indigesto e difícil de acompanhar. Possuo duas versões em DVD: uma traz o filme original, só que em formato fullscreen (tela de TV); a outra é uma edição estendida, que inclui 40 minutos de cenas que haviam ficado de fora da primeira versão  o que aumenta a já considerável duração original do filme para formidáveis 176 minutos , além de um prólogo com imagens estáticas e narração, falando sobre o Jihad Butleriano e sobre as origens da ordem Bene Gesserit. Esse é widescreen (tela de cinema). Curiosamente, essa última versão credita um tal Alan Smithee como diretor ao invés de David Lynch, o que acho um fato bem estranho. Mais recentemente, em 2001, o Sci-Fi Channel exibiu uma nova adaptação do livro, sob a forma de uma minissérie em três capítulos, dirigida por John Harrison, com William Hurt como o duque Leto e o (para mim) desconhecido Alec Newman no papel de Paul. Parece que essa produção foi mais bem-sucedida, pois teve uma sequência, outra minissérie lançada em 2003, Children of Dune, que cobria o segundo e o terceiro volumes da saga, que são O Messias de Duna e Os Filhos de Duna. Essas duas minisséries eu ainda preciso ver.

Duna rendeu ainda videogames, jogos de computador, e, como costuma acontecer com as grandes sagas épicas da literatura, chamou a atenção das bandas de heavy metal, inspirando pelo menos duas canções: To Tame a Land, do Iron Maiden, que está no álbum Piece of Mind, de 1983, e Traveler in Time, dos alemães do Blind Guardian, no álbum Tales from the Twilight World, de 1990.