quarta-feira, abril 30, 2014

Guerra dos Homens Alados

Alguns séculos no futuro, o comércio é uma das principais forças a impulsionarem a exploração espacial. Planetas desconhecidos são frequentemente descobertos e explorados por missões a serviço de grandes companhias mercantis, e mesmo o contato inicial com raças alienígenas é muitas vezes feito assim, enquanto essas companhias procuram por novos mercados consumidores e novas fontes de matérias-primas.

Durante uma viagem de recreio por um planeta recentemente descoberto, a nave do rico comerciante interestelar Nicholas Van Rijn sofre um atentado: uma bomba explode e a nave cai no mar. Só três das pessoas a bordo sobrevivem: Van Rijn, seu piloto-engenheiro, Eric Wace, e Sandra Tamarin, herdeira do trono ducal do planeta Hermes, que viajava como convidada do comerciante. O trio é resgatado por um grupo de nativos do planeta - uma curiosa espécie de seres semi-­humanoides alados -, ficando numa situação que é mais a de prisioneiros do que de hóspedes, já que, embora os nativos não tenham, por enquanto, qualquer queixa contra a Terra, eles estão travando uma guerra cruel contra uma nação vizinha, e isso os torna duplamente desconfiados em relação a qualquer estranho.

O planeta é conhecido pelos terráqueos como Diomedes (acredito que o nome homenageie o herói da Guerra de Troia, e não o tirânico rei homônimo, citado na lenda de Hércules; pelo menos, acho o pri­meiro mais merecedor de homenagem!). É duas vezes maior que a Terra, mas a ausên­cia de metais pe­sados em seu solo faz com que tenha uma massa menor, o que se traduz numa gravidade relativamente baixa. Isso, combinado a uma atmosfera muito densa, permite que cria­turas de grande porte, que na Terra nunca poderiam ser capazes de voar, lá possam fazê-lo - e, de fato, em Diomedes, todas as formas de vida superiores, se não são aquáticas, são aladas, in­cluindo a única espécie inteligente do planeta. Os diomedanos são ligeiramente menores que os humanos e possuem diversas características que lembram os mamíferos carnívoros dos quais evoluíram: ao descrevê-los, o autor menciona elementos de lontra, cão e urso (não se prendam muito à imagem da capa do livro, pois o artista não fez muita questão de se ater à descrição: a criatura retratada tem orelhas externas, o que, segundo Poul Anderson, os diomeda­nos não pos­suem; quanto aos chifres, ficam totalmente por conta do ilustrador). Os que capturaram Van Rijn, Wace e Sandra pertencem à nação Drak, conhecida como "a Frota", porque seu modo de vida é fortemente ligado ao mar, que, aliás, cobre a maior parte da superfície de Diomedes. Seu inimi­go é Lannach, ou "a Revoada", tecnologicamente menos desenvolvida, mas, ainda assim, razoa­velmente avançada se com­parada a outros povos da mesma espécie, espalhados pelo planeta.

A presença humana em Diomedes tem escassos cinco anos. Só existe uma base fixa mantida pela Terra no planeta, e esta fica a uma vasta distância de onde os três náufragos foram parar - para ser exato, do outro lado de um oceano. A questão, como Delp (um Drak'ska que é impossível não admirar) explica a Wace, é simples: em toda essa vasta extensão de água não existe uma única ilha, sequer uma rocha onde um Drak'ska possa pousar e descansar, de modo que atravessar voando é impossível. Navegando, a traves­sia demoraria meio ano, e esse é um tempo de que Wace e seus companheiros não dispõem, pois os mantimentos que trazem consigo só durarão alguns meses, e, ao cabo desse tempo, eles estarão conde­nados a morrer de fome: as proteínas diome­danas têm uma composição molecular diferente das da Ter­ra, de modo que o que para um dio­medano é alimento, para um terráqueo é veneno, e vice-versa. Talvez uma solução possa ser en­contrada, mas isso demandaria trabalho e recursos, e, na atual situação, todo o trabalho e os re­cursos que os Drak'ska podem mobilizar estão sendo direcionados para a guerra.

Diante desse impasse, Van Rijn decide que, se é assim que as coisas são, então eles - os três terráqueos - irão pôr fim a essa guerra. O patrão de Wace, que, de início, parece apenas um ricaço amante do luxo, incomodado por estar numa situação em que sua fortuna de nada adianta, e que gosta de falar alto com seus subordinados, acaba por demonstrar que tem cérebro, e que não chegou por acaso à presidência de uma grande companhia de comércio. Os planos para encerrar a guerra incluem tanto a manipulação da inimizade entre Drak e Lannach quanto fazer a ciência militar diomedana progredir alguns séculos em semanas. Está garantida uma narrativa empol­gante e absolutamente "grudenta" (porque você não consegue largar o livro), exatamente como os fãs de Poul Anderson, esse grande nome da ficção científica, estão acostumados a encontrar. O final, surpreendentemente, é otimista, levando-nos a ter esperanças de que a humanidade, afi­nal, possa ser capaz de aprender alguma coisa com seus erros, e de que nem todos os encontros entre civilizações de níveis tecnológicos diferentes precisem necessariamente terminar em de­sastre para a menos avançada.

Uma das coisas legais a respeito da ficção científica é que ela é um gênero, mas, ao mesmo tempo, são muitos gêneros, e qualquer pessoa que a conheça ao menos um pouco, certamente perce­be isso, mesmo que de forma intuitiva. Só quem acha que ficção científica é tudo igual, é quem não sabe nada sobre ela - particularmente os retardados que torcem o nariz e a consideram como "subliteratura". Certo, há muita porcaria sendo veiculada sob o rótulo de fic­ção científica - mas, se formos pensar, há muita porcaria sendo veiculada sob os rótulos de todos os gêneros. Felizmente, também há muita coisa boa, e para todos os gostos. Pensem na dife­rença abissal existente, por exemplo, entre Star Wars (que eu adoro, mas, vamos concordar, é mera aventura para adolescentes) e uma obra como Duna, cujas implicações psicológicas e soci­ais são tão profundas que chegam a ser perturbadoras - e, no entanto, ambos são ficção científi­ca. Enfim, esse gênero oferece a cada autor ampla liberdade para desenvolver o próprio estilo.

O estilo que Poul Anderson (1926-2001) desenvolveu, foi o de um exímio narrador de aventuras, não tão preocupado em criar grandes sagas de amplitude cósmica - não produziu nada de comparável a Duna ou Fundação -, preferindo apostar em histórias de pretensões mais modestas, mas que satisfizessem os leitores que buscam ação empolgante com enredos inteligentes e uma ambienta­ção exótica, mas com base científica. Encontramos tudo isso em Guerra dos Homens Alados.


Uma das grandes falhas de muitos autores de ficção científica (inclusive de alguns que, sob outros aspectos, são bons autores) é a de pintarem cada raça extraterrestre como sendo um bloco monolítico, com uma única língua, um único modo de vida, um único credo político, um único posicionamento em relação aos terráqueos, e assim por diante. Ora, parece apenas lógico imagi­nar que qualquer espécie dotada de inteligência seja necessariamente um saco-de-gatos tal como nós, seres humanos, o somos - uma galeria infindável de tipos raciais, culturas, costumes, religiões, ideologias... Só que, se é fácil deduzir que deve ser assim, retratar toda essa variedade numa obra de ficção já é outra conversa. É preciso ter algum conhecimento científico e muita imaginação.

Poul Anderson consegue. Para manter a coisa num nível controlável, ele descreve apenas duas nações de Diomedes, mas capricha quando se trata de marcar muito bem as diferenças de costu­mes entre ambas, buscando detalhes explicativos tanto no campo da biologia quanto no da cul­tura, sem esquecer o meio ambiente do planeta. Para começar, é preciso lembrar que metais como cobre, estanho e ferro não existem em Diomedes, o que limitou seriamente o progresso técnico dos nativos em muitos campos: suas ferramentas e armas são feitas de pedra, madeira, osso, vidro vulcânico e outros materiais, mas sabe-se que, sem o domínio dos metais, não há como ir além de um certo grau de desenvolvimento tecnológico. Por outro lado, nas áreas mais especula­tivas do conhecimento, os diomedanos, ou, ao menos, os Drak'ska, obtiveram avanços conside­ráveis: eles leem, escrevem e possuem bons conhecimentos de astronomia, ainda que voltados basicamente para o uso prático na navegação. O lar dos Drak'ska é a Frota: eles nascem, cres­cem, vivem e morrem sobre suas jangadas; não são propriamente sedentários, mas também não realizam grandes migrações anuais como as dos Lannach'ska, que, sendo menos avançados tec­nicamente, dependem mais diretamente do ciclo das estações e da variação na oferta de alimen­tos em cada região.

O mais curioso é que, embora as duas nações sejam "racialmente idênticas" (palavras do autor), seus costumes são totalmente diferentes: os Lannach'ska não têm casamento nem propriamente famílias; seus hábitos de reprodução são tal e qual os de qualquer espécie migratória. Têm um período de cio e, fora desse período, qualquer demonstração de interesse sexual é considerada um tanto vergonhosa. Alguns meses depois, nascem os filhotes - pra­ticamente todos ao mesmo tempo, num intervalo de poucos dias. Já os Drak'ska fazem mais ou menos como os terráqueos: casam-se, mantêm atividade sexual durante o ano todo, e seus filhos nascem em qualquer época. Dá para deduzir que o hábito original da espécie fosse o dos Lanna­ch'ska, e que os Drak'ska foram passando a fazer diferente à medida em que constituíram uma sociedade mais complexa, deixaram de migrar e passaram a depender menos dos caprichos da natureza. De qualquer forma, o etnocentrismo é tão instintivo entre os diomedanos quanto entre os humanos: cada nação acha que o seu jeito é o "normal" e o "certo", e encara com horror e re­pugnância os costumes da outra. Revelações interessantes sobre os porquês de tamanha diferen­ça de costumes entre dois povos que são praticamente um só aguardam o leitor antes que o livro chegue ao fim.

terça-feira, março 18, 2014

Assombro

Um punhado de pessoas com ambições literárias responde a um anúncio tentador colocado em vários quadros de avisos: um convite para um "retiro de escritores". A proposta é que, durante três meses, os participantes deixem para trás tudo o que os impede de criar sua obra-prima: emprego, família, casamento, distrações, vícios. Durante esses 90 dias, esses candidatos a autores de bestsellers ficarão isolados do mundo, dedicando-se exclusivamente a seu trabalho criativo.

Parece muito bom, até que todos chegam ao local do retiro –um velho teatro – e descobrem que estão presos lá. Seu anfitrião, o velho Sr. Whittier, alega que tudo o que pede deles é que façam o que vieram fazer, aquilo que, enquanto estavam no mundo exterior, tudo servia de desculpa para não fazerem: dedicar-se a escrever algo realmente bom, ou, pelo menos, vendável. Mas ninguém parece escrever coisa alguma. A narrativa alterna entre o que acontece no teatro e histórias que os "confinados" contam uns aos outros, e que aparecem no livro sob a forma de contos. O mais curioso é que as histórias não parecem ser ficção, e sim coisas que aconteceram na vida real de cada um dos presentes – por mais que os fatos narrados, de tão bizarros, pareçam inventados. E, para não destoar da bizarrice, os eventos no teatro também são absolutamente esdrúxulos, embora sigam uma lógica (tortuosa) e uma motivação (mesquinha). O que há é que as pessoas trancadas no antigo teatro constituem a coleção mais variada possível, mas todos têm algo em comum: ninguém ali quer virar escritor por amor à arte – o que todos querem é ficar ricos e famosos. E a melhor oportunidade para isso, pensam eles, é escrevendo a história de seu "cruel encarceramento" pelo "maníaco" Sr. Whittier e sua cúmplice, a Sra. Clark. Pois, como está escrito em alguma página de Assombro, "esse é o sonho americano: transformar sua vida em algo que você possa vender".

Na verdade, a vida ali não é particularmente ruim: há comida à vontade e ninguém é submetido a maus-tratos. A única coisa é que não podem sair antes do prazo fixado de 90 dias, tempo durante o qual espera-se que produzam qualquer coisa de notável. É claro que essa situação não renderia um romance capaz de liderar as listas de bestsellers e de ser transformado em roteiro para um blockbuster de cinema – mas com alguns retoques, quem sabe? Então, as próprias "vítimas" encarregam-se de piorar as coisas, adotando providências que vão desde violar embalagens de alimentos para que estraguem mais depressa, até automutilações (!). O raciocínio é simples: quando o cativeiro for descoberto e a polícia invadir o local para "salvá-los", as câmeras de TV certamente estarão gravando tudo, e o que haveria de chocante ou de sensacional em um grupo de pessoas sendo resgatadas ilesas e bem-alimentadas? De jeito nenhum! É preciso que todos estejam satisfatoriamente magros e abatidos, e que tenham ferimentos para exibir, a fim de "provar" os horrores inimagináveis pelos quais dirão ter passado: isso tudo é indispensável para obterem a simpatia do público, convites para participar de programas entrevistas na TV e, mais tarde, uma adequada atenção da mídia para seu livro/filme. A propósito, ninguém parece ter dúvida de que o resgate vai chegar uma hora ou outra, e tudo o que acontece no interior do teatro vai sendo anotado, gravado em áudio ou vídeo, e, principalmente, reelaborado e discutido: será que isso vai ficar bacana na tela? Deveríamos exagerar um pouco esta parte? Como o público vai reagir a isso? Enfim, a mídia é o parâmetro para tudo, principalmente para a vida real, sem excluir seus momentos mais bizarros e desesperados.

Na história principal – a dos aspirantes a escritores trancados no teatro –, nunca fica claro quem é que está narrando. Durante a maior parte do tempo, a pessoa verbal é a primeira do plural ("nós"), como se a voz pertencesse a um dos confinados, sem que saibamos qual deles. Já nos contos, fica variando, de forma aparentemente aleatória, do "você", como se o narrador estivesse dizendo ao personagem o que acontece com ele (ou, mais propriamente, levando o leitor a pôr-se na pele do personagem), para "eu" ou "nós", inclusive dentro do mesmo conto. Essa oscilação de pessoa verbal é uma inconsistência comum em textos produzidos por gente pouco acostumada a escrever; como não li nenhum outro livro de Palahniuk antes, não sei dizer se ele é daqueles autores que cultivam um estilo tosco deliberadamente, se é dos que não gostam de "perder tempo" com "bobagens" como coesão e coerência, ou se está apenas procurando dar cores mais vivas ao enredo, tentando escrever como escreveriam as pessoas envolvidas, nenhuma das quais parece ter maior intimidade com literatura, apesar do sonho de serem escritores, ou, melhor dizendo, de terem a boa vida que acreditam que um escritor de sucesso tenha. De qualquer forma, embora a narrativa principal tenha os seus achados, a atração do livro são mesmo os contos.

Não é possível adiantar muita coisa sobre essas "histórias dentro da história" sem entregar detalhes-chave que estragariam o prazer do leitor – se bem que "prazer", aqui, é uma palavra que deve ser usada com reservas. Ao escrever quase todos esses contos, Palahniuk tinha a clara intenção de dar um tapa na cara de seus compatriotas norte-americanos, e precisamos admitir que, em maior ou menor grau, esse "tapa" serve também para os leitores de qualquer outro país, e pode ser igualmente útil para "acordá-los" um pouco. Vamos concordar que, quando uma sociedade valoriza as aparências acima de tudo, faz cobranças absurdas e rotula de fracassado quem não consegue satisfazê-las, recompensa o mau-caratismo, transforma a mediocridade e a pobreza de espírito num padrão, acoberta formas camufladas de violência em nome de dogmas "politicamente corretos", e estimula as pessoas a fazerem de suas vidas um reality show, é porque alguma coisa está muito errada. E, para nos jogar esse fato na cara de um modo que seja impossível ignorar, o meio que o autor escolheu foi narrar situações que causam desconforto, mal-estar e aflição.

De qualquer forma, pode-se dar algumas dicas… Se vocês (como eu) são daqueles que gostam de perambular por sites como o Medo B ou o Quero Medo, que, além de terror propriamente dito, também publicam curiosidades e bizarrices em geral, é bem possível que já tenham lido o conto Tripas – o primeiro e um dos mais aflitivos do livro, embora outros sejam, cada um a seu modo, tão terríveis quanto. Pós-produção é sobre exibicionismo e voyeurismo, e, principalmente, sobre como a diferença entre o que as telas mostram e a realidade pode ser grande e brutal ao ponto de destruir uma pessoa, ou, no caso, um casal. Canto do Cisne aborda a curiosidade das massas por notícias escabrosas e desastrosas, o que pode levar certos representantes da mídia a chegar a atos inimagináveis para saciar esse apetite doentio, porque "é preciso dar ao público o que ele quer". Falas Amargas aposta no humor negro (e bota negro nisso…) para criticar certo tipo de "feminismo". Fiquei surpreso ao constatar que pelo menos dois contos em Assombro – A Caixa de Pesadelos e Crepúsculo Civil – são, em tudo e por tudo, contos de terror, e bons contos de terror, que o mestre Richard Matheson possivelmente gostaria de ter escrito, e é interessante notar que, embora o elemento gore apareça bastante ao longo do livro, ele brilha pela ausência nessas duas histórias: nelas não há tortura, mutilação ou qualquer outra "amenidade" desse tipo, e a morte, quando aparece, tem uma função no enredo, em vez de ser a atração principal. O que o autor busca (e consegue) é aquela sensação perturbadora do desconhecido, do misterioso e do sinistro, de modo que não parece absurdo admitir que, nesses contos em particular, Pahlaniuk chega muito perto do que H. P. Lovecraft chamava de "horror cósmico", ainda que esse esteja longe de ser seu gênero por excelência. Estava na ponta dos meus dedos incluir aí mais um conto, Espíritos Malignos, mas acabei concluindo que esse trata-se de outro tipo de coisa, pois além de (apesar do título) não trazer sugestões sobrenaturais, suas características oscilam entre o "terror científico" e o drama.

Palahniuk fez o que os falantes de inglês chamam de save the best for last – guardar o melhor para o fim. O último conto é Obsoletos, uma coisa bastante diferente dos demais, e de várias maneiras. Para começar, é o único que não parece uma passagem autobiográfica contada por um dos personagens, e sim uma criação ficcional atribuída a um deles. Em segundo lugar, é um dos poucos que não estão limitados pela preocupação do verossímil: a maioria dos contos presentes no livro trata de coisas que poderiam acontecer, que provavelmente já aconteceram, ou que podem estar acontecendo em algum lugar; Obsoletos e dois ou três outros lançam mão dos recursos da pura imaginação – terror, fantasia e, aqui especificamente, uma mistura alucinante de misticismo com uma pitada de ficção científica – para provocar reflexão sobre certos temas muito reais e cotidianos. Com uma observação: o misticismo aí mencionado não envolve coisas difíceis como fé, autoconhecimento ou desejo de melhorar; é o misticismo fast food, rápido, prático, consumível, enfim, o tipo de misticismo que tem procura no mercado. Quando terminei Obsoletos, desejei que Assombro não fosse o primeiro livro do autor que eu estivesse lendo: se eu o conhecesse melhor, estaria devidamente embasado para emitir a opinião de que "mais Palahniuk, impossível". Grande conto.

Dizer que um determinado autor, ou você ama, ou odeia, é um dos mais manjados lugares-comuns da crítica literária, e, como seria de se esperar, já li isso também sobre Chuck Palahniuk. Se for verdade, eu ainda não consegui decidir de que lado fico… Não dá para negar que vários dos contos que fazem parte de Assombro são trabalhos de alto nível: escritos de forma vigorosa, prendem a atenção, provocam, perturbam, deixam o leitor refletindo depois, e qualquer pessoa que já tenha lido bastante na vida sabe que um escritor que consegue fazer com que seus textos tenham todas essas características merece, no mínimo, respeito. Por outro lado, nota-se em Palahniuk um gosto por chocar e escandalizar, e eu não sei até que ponto acho isso uma coisa que se deva admirar. É possível que eu conclua que essa tendência se justifica quando não é gratuita: não simplesmente chocar por chocar, mas, por exemplo, para chamar atenção para um fato absurdo que achamos normal porque estamos habituados a ele, usando a lente do grotesco para nos mostrar esse mesmo fato sob uma ótica diferente e, assim, forçar-nos a encarar a dúvida, a pensar sobre o assunto, o que, de outra forma, talvez não viéssemos a fazer. Pode ser. Por ora, tudo o que posso adiantar é que pretendo ler outras coisas do autor antes de fazer um julgamento. E que Assombro pode ser recomendado para aqueles leitores que não se sentem ameaçados quando alguém os desafia a questionar algumas coisas "normais" e cotidianas. Ah: um estômago forte também ajuda.

terça-feira, fevereiro 11, 2014

O Último Desejo

Parece que os editores brasileiros (e os leitores, pois, se algo está sendo publicado, é porque existe de­manda) estão sentindo uma necessidade urgente de compensar o longo tempo durante o qual a litera­tura de fantasia esteve, a bem dizer, ausente de nossas livrarias e bibliotecas. Desde a virada do século que não param de pipocar as edições nacionais de livros do gênero. Por motivos tanto culturais quanto mercadológicos, a maioria desses títulos vem dos países de língua inglesa, mas há algumas notáveis exce­ções, e uma delas é o polonês Andrzej Sapkowski.

Sem qualquer intenção de menosprezar ninguém, preciso dizer que é "refrescante", vez por outra, ler histórias de fantasia medieval com pretensões mais modestas que as da maior parte das obras do gêne­ro. Nas aventuras de Geralt de Rívia, das quais O Último Desejo é o primeiro volume, o destino do mundo não está em jogo (bem, é verdade que este é só o primeiro volume...). Geralt perambula por di­ferentes reinos, visitando desde os castelos dos reis até as vilas dos camponeses, oferecendo seus servi­ços em troca de ouro e prata em quantidade suficiente para suprir suas necessidades materiais durante algum tempo - pelo menos, tempo suficiente para que ele encontre seu próximo trabalho. Parece co­mum demais para render histórias heroicas? Eu me sentiria inclinado a concordar, se não fosse o tipo de trabalho que o cara faz.

Geralt de Rívia é um bruxo - e aqui cabe uma breve explanação. No mundo criado por Sapkowski, bruxos parece ser o nome que se dá aos usuários de magia que a dominam de uma forma mais instin­tiva e a utilizam para fins mais práticos; em contraposição a isso, há os feiticeiros, que parecem ser uma classe de magistas mais eruditos, que frequentaram uma academia e possuem formação teórica. Enquanto muitos feiticeiros possuem colocações prestigiosas, servindo a um rei ou a um nobre pode­roso, a ocupação tradicional dos bruxos é a de vagar pelo mundo caçando criaturas sobrenaturais peri­gosas - e recebendo pagamento por isso, seja do senhor da terra ou de um bando de aldeões assusta­dos que reúnem suas parcas economias para pagar o homem que, esperam, poderá livrá-los da amea­ça.

Demorei um pouco para entender a organização do livro. Os contos propriamente ditos estão entre­meados com breves interlúdios, todos intitulados A Voz da Razão - I, II, III e assim por diante -, nos quais Geralt aparece hospedado num santuário da deusa Melitele, cuja superiora, Nenneke, parece ser uma amiga de longa data. O bruxo está se recuperando de alguns ferimentos sofridos no exercício da profissão, e, aparentemente, fazendo um balanço de sua vida - ajudado pelas observações de Nenneke, sempre sábias, mas, por vezes, dizendo coisas que ele não gosta de ouvir. Sendo assim, os contos são in­troduzidos como se Geralt, imbuído desse espírito reflexivo, estivesse recordando algumas de suas aventuras recentes.

E são aventuras para nenhum amante de fantasia medieval botar defeito. Ao longo de suas viagens, Geralt já se viu às voltas com todos os tipos de magia e maldições, com guerreiros brutais, com nobres inescrupulosos e, principalmente, com uma galeria bizarra de seres míticos - míticos para nós, pois, em seu mundo, são todos muito reais. São mencionadas desde criaturas conhecidas (pelo menos, co­nhecidas por quem gosta de mitologia e de fantasia), como quimeras, mantícoras, anfisbenas, dragões ou basiliscos, até outras de que eu nunca tinha ouvido falar e tenho pouca ou ne­nhuma ideia de como podem ser: quiquimoras, bosqueolos, tragarças, zygopteras, bobolacos, leshys, wippers e por aí vai. Para enfrentá-las, Geralt vale-se ora de suas perícias em magia, ora de uma boa e velha espada - pois, dife­rentemente do que acontece com magos e bruxos em outras sagas, os bruxos de Sapkowski também possuem habilidade com armas. E ele carrega duas espadas, uma de prata e outra de aço. A crença po­pular é a de que a primeira é para monstros, e a outra para seres humanos, mas Geralt jura que ambas são para os monstros, pois, embora a maioria deles seja vulnerável à prata, há os que precisam ser mortos com aço. Ele também se utiliza de poções que ampliam suas capacidades, mas não deixam de cobrar seu preço: aqui e ali ao longo do livro, há insinuações de que o uso frequente desses prepara­dos pode ir, aos poucos, transmutando o bruxo para um ser diferente - humano na aparência, mas não totalmente em sua essência.

As histórias de Geralt de Rívia fazem lembrar muito os contos de fantasia publicados em revistas nor­te-americanas de fantasia e ficção científica durante as décadas de 30 e 40, escritos por gente como Fritz Leiber, Manly Wade Wellman, Jack Vance e outros - não que eu os tenha lido na época (risos), mas li alguns em coletâneas, e não ficaria surpreso de ficar sabendo que Andrzej Sapkowski é um fã e discípulo atento desse autores. Mas relaxem, pois o polonês não copia ninguém: embora alguns ele­mentos de suas histórias remetam aos velhos mestres, ele tem um estilo muito pessoal e marcante, que o leitor rapidamente aprende a reconhecer. Há passagens engraçadas, dramáticas e, é claro, épicas, tudo isso combinado em doses adequadas para tornar a leitura a mais agradável possível, e, aqui e ali, inesperadamente, topamos com menções a contos de fadas que todos conhecemos, embora de uma maneira que provavelmente nunca imaginamos!... Só para aguçar a curiosidade, adianto que Um Grão de Veracidade, talvez o melhor conto do livro, é, todo ele, uma reinterpretação do clássico A Bela e a Fera (esqueçam a versão da Disney, peguem um bom livro de contos de fadas para relembrar o enre­do), só que de uma maneira mais "realista", tentando mostrar como a história ter-se-ia desenrolado se a maldição que transformou um jovem nobre num monstro acontecesse num mundo habitado por se­res humanos de carne e osso, com as conhecidas mazelas humanas - e não por personagens de conto de fadas com seu comportamento exemplar. E, por falar em personagens, na obra de Sapkowski, até mesmo os de uma história só, que aparecem e somem, são primorosos. Quanto aos que parecem estar ligados de forma mais duradoura ao destino de Geralt, como Jaskier, o bardo falastrão, ou a sedutora feiticeira Yennefer, esses são inesquecíveis.


Quem leu os grandes nomes da literatura de fantasia encontrará nas histórias de Geralt de Rívia a maioria dos elementos a que está acostumado: há seres humanos, há anões, há elfos - não há hobbits, mas, para compensar, existem gnomos e outras raças menores (menores tanto em número e influên­cia quanto em tamanho). Porém, ninguém deve esperar encontrar elfos etéreos e perfeitos como os de Tolkien: aqui, elfos são seres bem terrenos, embora mais conectados à natureza que os humanos ou os anões. Podem ser violentos ou irracionais como qualquer um de nós, e ser movidos pelas mesmas pai­xões: luxúria, ganância ou vingança. Independentemente da raça, a maioria dos personagens parece perfeitamente apta a manter conversações espirituosas, pois os diálogos são um deleite à parte, cheios de frases perfeitas, observações sagazes e ditos que caem como uma luva. Dane-se se conversações re­ais não são assim: isto aqui é fantasia, e para que ela serviria se precisasse ser tão banal e tediosa quan­to a realidade? Não digo que a literatura de fantasia não possa servir para nos levar a refletir sobre as coisas do mundo real (que o diga A História Sem Fim), mas sua função número um é mesmo a de nos permitir escapar momentaneamente desse mundo e entrar em outro mais empolgante: é a eficácia em atingir esse objetivo que diz se uma história de fantasia é boa ou não; a reflexão, se surgir, é lucro. E, para construir um mundo mais empolgante, vale tudo: pode-se lançar mão de magia, raças não-humanas, seres míticos, contos de fadas, e, sim, até mesmo de diálogos inteligentes! Andrzej Sapkowski dá uma aula de como usar todos esses elementos com absoluta maestria. Não vejo a hora de ler os próximos volumes.

A edição nacional está bem cuidada, como é tradicional nas publicações da Martins Fontes, que já nos trouxe tantas boas obras de fantasia, tanto as clássicas quanto boas novidades. A tradução foi feita direto do polonês por Tomasz Barcinski, e, talvez por uma falta de familiaridade do tradutor com as estruturas frasais mais usadas em português, nota-se uma tendência a quase sempre colocar o adjetivo antes do substantivo: "O escurecido céu por trás da janela foi cortado pela cegante luz de um relâmpago, logo seguido pelo potente estrondo de trovão. O temporal adquiria cada vez mais força e espessas nuvens deslizavam sobre Rinde". Com a repetição ao longo de todo o livro, isso começa a soar forçado e incômodo. No lugar do editor, eu teria uma conversa com o tradutor e com os revisores a respeito. Em todo caso, não é nada que impeça o leitor de apreciar as muitas e grandes qualidades da obra.

sexta-feira, janeiro 17, 2014

Spartacus - Deuses da Arena + Sangue e Areia

Comprei os DVDs da série Spartacus todos de uma tacada só – o box custava consideravelmente mais ba­rato que comprar as temporadas separadamente, de modo que decidi que valia a pena aprofundar um pouco mais a mão no bolso na hora, considerando a economia que isso representaria a médio prazo. A caixa traz as três temporadas oficiais (Sangue e Areia, Vingança e Guerra dos Condenados), mais a minissérie prequel Origens: Deuses da Arena. Esta última foi produzida depois de Sangue e Areia, mas, como é próprio das prequels, narra fatos que ocorreram antes. Conforme vim a saber, o ator principal, Andy Whitfield, acabava de gravar Sangue e Areia, que seria a primeira temporada da série (em 2009/2010) quando foi diagnosticado com câncer. Enquanto Whitfield se tratava, os produtores executivos Sam Raimi (Homem-Aranha, Arraste-me Para o Inferno, entre outros) e Rob Tapert, além do criador da série, Steven S. DeKnight, decidiram aproveitar a estrutura e o elenco já montados para filmar Deuses da Arena, que, mesmo que não tivesse mais nenhuma qualidade (mas tem, e como!), já mereceria reconhecimento só pelo fato de não sofrer do mal que aflige quase todas as prequels: aquela coleção de eventos obviamente criados só para moldar-se aos fatos posteriores já conhecidos pelo públi­co, e que o espectador, por mais boa vontade que tenha, não consegue deixar de achar que ficaram artificiais (quem assistiu às duas trilogias de Star Wars sabe do que estou falando). Em Deuses da Arena, tudo se ajusta com naturalidade, chegando a dar a sensação de que a minissérie era algo que havia sido escrito antes, que, por um ou outro motivo, não ha­via sido produzido, e que foi desengavetado quando a oportunidade surgiu.

Infelizmente, o tratamento de Andy Whitfield não deu o resultado esperado, e ele faleceu em 2011, aos 39 anos de idade. Para substituí-lo no papel de Spartacus, foi recrutado o ator Liam McIntyre, que é quem aparece em Vingança e Guerra dos Condenados. Já que eu estava com tudo nas mãos, decidi assistir na ordem cronológica. Neste post, falarei sobre Deuses da Arena e Sangue e Areia, que são as partes que assisti até o momento – além de me permitir dar um pouco de vazão ao meu gosto por escrever sobre História (ah, vocês já tinham percebido? risos).

E, creiam-me, trata-se de entretenimento de altíssimo nível. Pessoalmente, não costumo aguentar longos perío­dos diante de uma tela: não consigo assistir a mais de um filme de longa metragem num dia, ou mais que dois epi­sódios de um seriado em sequência (muito excepcionalmente, três). Isso dá uma medida do quanto Deu­ses da Arena me prendeu a atenção: assisti a seus seis episódios no curto intervalo de menos de 24 horas, entre uma noite de sexta e a tarde do sábado, salientando que cada episódio tem em torno de uma hora de duração – o normal para séries de ação ou drama é de pouco mais de 40 minutos. Uma experiência muito intensa, quase hipnótica, que até me animou a perdoar as imprecisões históricas que percebi. O visual é perfeito, de encher os olhos, e a série não esconde (na verdade, escancara) que sua principal influência para as cenas de ação épica foi o filme 300: tal como nele, as sequências de luta são cheias de paradinhas e alternam a todo momento entre a velocidade normal e o slow-motion. Na verdade, 300 não foi pioneiro no uso desses recursos, pois, afinal, Matrix veio antes... De todo jeito, o resultado são imagens para fazer qualquer fã de filmes épicos babar o colarinho. É surpreendente pensar que algo de tal nível não foi feito para o cinema, e sim para a TV. Tudo isso se aplica também a Sangue e Areia, cujos 13 episódios "devorei" durante os dois finais de semana seguintes.

Deuses da Arena e Sangue e Areia tratam basicamente de gladiadores, e, sendo assim, exibem muitas cenas de luta. Muito esforço parece ter sido investido em tornar essas cenas tão realistas quanto possível, sem poupar o público da visão chocante de mortes e ferimentos – mas apenas quando isso era cenicamente interessante: a produção também não teve qualquer pudor de mostrar alguns absurdos, sempre que achasse que renderiam cenas impactantes. Quando alguém é degolado ou decapitado, por exemplo, o jorro do sangue, impulsionado pelas batidas finais do coração, parece real (quero dizer, tal como eu ima­gino que seria, já que nunca vi e espero nem ver tal coisa ao vivo); por outro lado, há uma cena em que Spartacus decepa as duas pernas de um oponente, aparentemente sem fazer qualquer esforço, com a facilidade de quem corta um par de linguiças – na verdade, cortar um membro não é tão fácil assim: exige uma lâmina muito afiada e uma enorme força física. Para completar, até ser eliminado com um último golpe, o sujeito fica se arrastando pela arena sem que sangue algum saia dos tocos de suas pernas!...

Os detalhes do dia-a-dia num ludus (palavra latina para escola, também aplicada às escolas especiais para o treinamento de gladiadores) foram bem pesquisados e reproduzidos, mas, em contraste com tal realismo, notei deslizes quanto à parte técnica dos jogos. Na Roma antiga (e no mundo da época), cada gladiador pertencia a uma classe específica, de acordo com as armas e técnicas de luta que utilizava, e cada classe especializava-se em enfrentar uma ou, no máximo, duas outras; na série, cada lutador enfrenta oponentes dos mais diferentes tipos, o que é com­preensível: os realizadores devem ter optado por fazer essa concessão a fim de dar mais variedade e dina­mismo às cenas de combate, tanto no treinamento dos gladiadores quanto nas lutas para valer. Além dis­so, não me consta que houvesse classes de gladiadores lutando com enormes machados e até martelos (o que, considerando o peso dessas armas, os tornaria oponentes muito lentos, presas fáceis para um espa­dachim bem treinado, por exemplo), e menos ainda que as regras rígidas que regiam os combates na are­na permitissem que um único gladiador enfrentasse dois, três ou até quatro oponentes ao mesmo tempo. Os mesmos deslizes estão presentes em Gladiador, de Ridley Scott, que segue sendo um de meus filmes preferidos... Portanto, como diriam os espectadores numa arena romana, missio ('misericórdia'): sejamos in­dulgentes.

A história narrada gira em torno de Quinto Lêntulo Batiato (John Hannah, da trilogia A Múmia), um influente lanista (proprietário de ludus) da cidade de Cápua, no centro-sul da Itália, no último século antes de Cristo. Batiato representa a terceira geração de sua família a dedicar-se ao negócio dos gladiadores, mas nutre outras ambições, a maior delas a de ingressar na política, e um dia, quem sabe, chegar ao senado de Roma – o que, salvo em casos muito excepcionais, era a mais alta posição de poder a que um homem podia esperar chegar naqueles tempos. Em seus esforços para conseguir isso, ele conta com o auxílio de sua bela, astuta e inescrupulosa esposa, Lucrécia (Lucy "Xena" Lawless). Se nada mais de positivo puder ser dito sobre o casal, parece que os dois realmente se amam, numa época em que quase todos os casamentos eram arranjados. Lucrécia quer ver o marido conquistar poder e glória, e, para ajudá-lo, lança mão de todos os recursos ao seu alcance, lícitos ou não; Batiato, por sua vez, dá muito valor à inteligência da esposa e sempre se mostra feliz e agradecido pelo apoio dela. Não parece ter qualquer relevância o fato de ambos amiúde dedicarem-se a passatempos sexuais com seus escravos – ele às claras, exercendo suas prerrogativas de homem, ela mais discretamente, mas com igual entusiasmo. Aliás, nudez e sexo (nunca explícito, mas por vezes bastante "gráfico") fazem parte da série tanto quanto as lutas entre gladiadores, tentando retratar como era a vida numa época e numa cultura em que essas coisas não eram tabus.

(E, caso estejam se perguntando, a resposta é sim: em Spartacus, toda a geração masculina que cresceu assistindo a Xena: a Princesa Guerreira e imaginando Lucy Lawless nua tem a chance de finalmente realizar o sonho – risos.)

Quando Deuses da Arena começa, o grande anfiteatro de Cápua ainda está em obras, e as lutas acontecem numa acanhada arena improvisada, na qual os espectadores ficam tão próximos dos gladiadores, que arriscam ser atingidos por sangue espirrado, ou pior, por golpes perdidos (as duas coisas acontecem!). Batiato, que concorre com outros lanistas pela liderança no fornecimento de lutadores para os jogos, está particularmente interessado em assegurar a presença de seus homens nos eventos que marcarão a inauguração da nova arena. A melhor carta que tem na mão é o gaulês Gannicus (Dustin Clare), treinado em seu ludus e, segundo a opinião geral, o melhor gladiador de Cápua e região. Só que colocar lutadores na arena nos jogos importantes – com todo o dinheiro e prestígio que isso pode trazer – é um prêmio buscado por muitos, e disputado de modos bem mais escusos que pelo simples confronto honesto de habilidades de combate entre gladiadores oriundos dos diferentes ludi. Tráfico de influências, troca de favores, corrupção, intimidação, assassinato, nenhum desses expedientes é descartado por quem busca a proeminência nesse meio.

Para tentar ganhar as boas graças de Túlio, um figurão da cidade, Batiato compra por valor absurdo um escravo aparentemente comum pertencente a ele: outro gaulês, Crixus (Manu Bennett), que até então trabalhava carregando pedras na construção da arena, e por quem, a princípio, ninguém dá nada como gladiador. Só que ele se mostra tão determinado, que não demora a ganhar a marca da irmandade (um "B", de Batiato, gravado a ferro em seu antebraço), que distingue os gladiadores de verdade dos simples aspirantes, que ainda convivem com o pavor de serem vendidos para as minas – um destino muito pior que lutar na arena. A seguir, Crixus vai galgando posições até ser considerado o melhor murmillo da casa de Batiato, e depois, o melhor de toda Cápua – até já haver quem o considere capaz de ganhar o título de campeão da cidade, que atualmente pertence a Gannicus. Há entre os dois uma rivalidade pontuada de respeito: para Crixus, Gannicus é um grande gladiador; para Gannicus, Crixus é um novato que demonstra suficiente coragem e força de vontade para ser capaz de ameaçar-lhe a posição.

Obs.: O murmillo é a classe de gladiador que luta com um gládio (espada curta), e um escudo grande. O gládio era uma das armas mais comuns no mundo romano, usada também pelos legionários, e deu origem à própria palavra gladiador: parece que, no começo da história dos jogos, era a única arma permitida – a diversificação de estilos veio mais tarde. Gannicus é um dimachaearus, que usa duas espadas e uma técnica totalmente diferente, já que, como não porta escudo, as espadas precisam encarregar-se ao mesmo tempo do ataque e da defesa. Spartacus, por fim, começa como um thrax (trácio; casualmente, ele é nativo da Trácia, cujos guerreiros inspiraram essa classe de gladiador), usando a sica (espada curva) e um escudo menor que o do murmillo. Mais tarde, Batiato determina que ele passe a atuar como dimachaearus.

O melhor amigo de Gannicus é Enomaus (Peter Mensah, o emissário persa de 300), um gladiador mais velho, que vive desde criança na casa de Batiato. Foi adquirido no tempo em que o ludus ainda era dirigido pelo pai de Quinto, e praticamente cresceu junto com o atual chefe. Enomaus era o principal gladiador da casa até ser gravemente ferido, cerca de um ano antes, ao enfrentar Theokoles, conhecido como "a Sombra da Morte", provavelmente o gladiador mais temido da República (lembrem-se de que, nessa época, Roma ainda não era um império). O longo período que Enomaus teve que ficar longe da arena depois disso deu oportunidade à ascensão de Gannicus – um fato que não abalou a amizade dos dois –, mas, ao mesmo tempo, o ocorrido revestiu Enomaus de uma espécie de aura mística, pois diz-se que ele foi o único homem a sobreviver a uma luta com Theokoles. Só agora ele está plenamente recuperado, e anseia pelo dia de seu retorno à arena, para provar a Batiato, ao público e, principalmente, a si mesmo, que ainda é um grande gladiador. Porém, seu desejo não está destinado a realizar-se, pois, em vez disso, ele acaba sendo designado para o posto de doctore, um misto de professor e feitor, responsável pelo treinamento dos gladiadores e por supervisionar seu comportamento.




Por falar nisso, é interessante a ênfase que Deuses da Arena põe numa particularidade dos gladiadores: em sua maioria, eles eram escravos (havia gladiadores livres, mas esses eram exceções), e estavam entre os raros escravos a quem era permitido, e até estimulado, que mantivessem um certo tipo de orgulho. Muitos deles realmente sonhavam com a glória na arena, não só pela esperança de liberdade e talvez até de riqueza que isso poderia trazer, mas pela glória em si, e dedicavam lealdade a seu lanista. No que diz respeito a merecer uma tal lealdade, Batiato mostra-se um tanto ambivalente: em muitos momentos, até dá a impressão de ser um senhor justo, que dá valor às capacidades de seus escravos e ouve o que eles têm a dizer – mas, quando se trata de pavimentar seu caminho até o poder, não se detém diante de nada, e não hesita em submeter seus homens a qualquer tipo de situação, mesmo as mais humilhantes.

Passando de Deuses da Arena para Sangue e Areia, somos apresentados à figura central da série, Spartacus em pessoa. Muito pouco ou quase nada é sabido sobre o Spartacus histórico; Plutarco, assim como outros historiadores menos notórios, registrou que ele era provavelmente de origem trácia (a província romana da Trácia incluía partes das modernas Bulgária, Grécia e Turquia) e que serviu numa das chamadas auxiliae, tropas auxiliares do exército romano nas quais se alistavam não-cidadãos nativos dos países conquistados. E teria desertado de sua unidade, o que era um dos piores crimes previstos no código militar romano: um legionário desertor, se capturado, seria sumariamente executado, enquanto um membro das auxiliae culpado do mesmo delito seria condenado à escravidão – que foi o que aconteceu com Spartacus. Para compreender a diferença de status envolvida, basta lembrar que, para ser um legionário, você precisava ser cidadão romano por direito de nascimento, enquanto os soldados auxiliares somente ganhavam a cidadania (transmissível aos descendentes) ao final de seu tempo de serviço, que variou conforme a época – podia ser de 15 a 25 anos. Na série, a fim de criar empatia do público para com o herói, Steven S. DeKnight fez com que tanto o alistamento quanto a deserção de Spartacus ocorressem por motivações louváveis: ele aceita entrar para as tropas auxiliares não como uma opção de carreira, mas unicamente porque os romanos prometem que, juntos, expulsarão definitivamente os guetas (não faço ideia de que povo seja esse), inimigos dos trácios que ameaçam suas cidades. Já a deserção acontece quando seu comandante romano, quebrando a palavra dada, ordena que as legiões da Trácia (acompanhadas de suas auxiliae), marchem para o leste a fim de se unirem às forças que enfrentam a rebelião de Mitrídates, o que significaria deixar a própria Trácia à mercê dos guetas. Spartacus, então, foge para tentar salvar a vida de sua esposa, Sura (Erin Cummings, uma gata, por falar nisso). Porém, é claro, os dois são capturados e separados, e Spartacus acaba indo parar em Cápua. Toda essa parte, que fique claro, é fictícia: não se sabe nada sobre a vida de Spartacus antes de se tornar um gladiador, e é muito provável que, na realidade, sua deserção tenha ocorrido sob circunstâncias muito menos heroicas. Mas isto é ficção, não História, então vamos adiante.

Como dito antes, a pena para um soldado das auxiliae que desertasse era a escravidão; portanto, o mais provável é que o Spartacus histórico, ao ser capturado, tenha sido enviado a um mercado de escravos, e lá, devido a seu tamanho, força e experiência militar, naturalmente tenha sido comprado para ser treinado como gladiador. DeKnight, porém, quis que a entrada do herói no mundo das arenas acontecesse em grande estilo, então pôs em seu roteiro que ele foi condenado à morte (a fidelidade ao aspecto histórico não foi uma preocupação). Era comum, naqueles tempos, que as execuções públicas de criminosos condenados fossem realizadas na arena, antes de começarem os jogos propriamente ditos – e daí até alguém pensar num modo de tornar essas execuções mais "emocionantes", foi um pulo. Então, em vez de serem simplesmente conduzidos amarrados até o centro da arena e lá decapitados sem mais delongas, os criminosos maiores (em tamanho) e mais fortes passavam a receber uma arma e a ter que enfrentar gladiadores treinados, encarregados de sua execução. É claro que essas lutas costumavam ser muito curtas e que, de modo geral, pouca diferença faziam em relação a uma execução comum, a não ser por prolongarem o sofrimento do condenado, mas surpresas podiam acontecer. A possibilidade de um condenado realmente derrotar um gladiador era quase nula, mas, se ele lutasse bem e ganhasse a simpatia do público, este último podia clamar ao organizador dos jogos que lhe concedesse clemência; nesse caso, a sentença de morte podia ser comutada para a de escravidão – o que até poderia, sim, ser o passaporte para uma carreira bem-sucedida como gladiador e, quem sabe, um dia, para a liberdade. Isso podia realmente acontecer, e é a alternativa que DeKnight adota, mas, é claro, de modo extremamente hiperbólico, fazendo com que Spartacus, seminu e armado apenas com uma espada, derrote não um, mas quatro gladiadores totalmente equipados. Ele é, então, comprado por Batiato e vai parar no ludus deste, onde viverá muitas "aventuras sangrentas" (citação à fala do lanista Proximo, de Gladiador, devidamente creditada).

Como seria de se esperar, a vida no ludus é brutal, e um recruta recém-chegado precisa provar seu valor várias vezes e de diversas maneiras antes que os gladiadores veteranos se dignem sequer a lhe dirigir a palavra sem ser para insultar e provocar. Spartacus faz amizade com Varro, um cidadão romano reduzido à escravidão por dívidas de jogo, e constantemente se desentende com Crixus – é difícil dizer qual dos dois provoca o outro mais vezes. A princípio considerado por Batiato e por Enomaus como um animal indomável, o trácio vai aos poucos entrando nos eixos, quando o lanista lhe acena com a promessa de que poderá encontrar sua esposa e trazê-la para que os dois fiquem juntos e um dia obtenham sua liberdade. É essa esperança que ainda empurra Spartacus para a frente e o anima a sobreviver, mesmo quando isso parece impossível; porém, ele descobrirá que o talento de certos homens para a perfídia e a traição é maior do que poderia imaginar, e que apenas coragem e habilidade com a espada não podem defendê-lo contra esses males.

Um grande problema de filmes ou séries com ambientação histórica é que as pessoas que não pos­suem conhecimento prévio sobre o assunto (ou seja, a maioria do público) tendem a aceitar o que é mostrado como realidade, o que nem sempre é o caso... Aliás, na vasta maioria das vezes, não é. Só para dar um exemplo, há um gladiador chamado Barca, de quem se diz que é nativo de Cartago (que a dublagem chama de "Cártago"... Não pela primeira vez, dói ver a falta de cultura dos tradutores que andam por aí), e que, quando "os cártagos" (Arrrgh...) foram derrotados pelos romanos, milhares deles morreram nas arenas, sendo Barca um dos poucos que sobreviveram. Acontece que os romanos destruíram Cartago ao vencerem a Terceira Guerra Púnica, em 146 a.C. (detalhes aqui), mais de 70 anos antes da revolta de Spartacus... Isso dá uma ideia do grau de preocupação com a História que norteou os responsáveis pela série. O próprio Rob Tapert, num dos extras (aqueles a que ninguém assiste) incluídos no último disco de Sangue e Areia, diz que perguntou a Steven S. DeKnight o quanto ele sabia sobre História e, ao ouvir em resposta "muito pouco", respondeu: "Ótimo, pois não ligo a mínima para isso". Creio que isso diz tudo. Então, a quem estiver me lendo sem ter ainda visto a série e tenha planos de fazer isso, reitero que é entretenimento de primeira classe – mas só. No máximo vinte por cento do que você vai ver é História, e o restante é ficção. Se isso estiver bem claro e presente na mente durante todo o tempo, Deuses da Arena e Sangue e Areia podem ser recomendados com entusiasmo a qualquer fã de épicos da Antiguidade. Embora tenha sido feita para a TV, a série nada fica a dever às melhores produções desse tipo feitas para o cinema desde 2000, quando Ridley Scott e seu Gladiador resgataram o gênero do limbo onde se encontrava havia décadas.

terça-feira, dezembro 31, 2013

Deixa Ela Entrar

Em meu post sobre Dráculaescrevi que os conceitos do vampirismo foram durante muito tempo um dos assuntos mais interessantes que escritores de terror tiveram à sua disposição, até ficarem "desgastados pelo uso excessivo". De fato, parece que já faz muito tempo que não aparece alguém que consiga criar uma verdadeira atmosfera de terror utilizando os "sanguessugas". Eles continuam aparecendo (e muito) em manifestações da cultura pop em geral  livros, quadrinhos, e, é claro, cinema , mas essas produções parecem quase sempre tender para outros gêneros: Blade é ação, não terror, por mais que haja vampiros em cena; Crepúsculo é uma saga de aventura e romance em que, por acaso, o mocinho tem caninos longos e pontudos. E é quase tudo assim. Foi preciso que eu topasse com este livro de um autor pouquíssimo conhecido no nosso meio, e vindo de um país tão improvável quanto a Suécia, para recuperar a fé de que ainda é possível, sim, produzir narrativas de terror – terror genuíno e eficiente – apostando em vampiros.

John Ajvide Lindqvist começa por nos mostrar um lado da Suécia sobre o qual raramente pensamos. Por ser esse um dos países mais prósperos e desenvolvidos do mundo, nós, os não-suecos, tendemos a imaginar (sem refletir muito a respeito) que lá todos tenham vidas perfeitamente ordenadas, com objetivos claros e todos os meios à disposição para atingi-los. Um país onde as pessoas não têm problemas? Ilusão. O autor, sem pedir licença, leva-nos a participar do cotidiano dos moradores de Blackeberg, um subúrbio de Estocolmo que realmente existe – ele, Lindqvist, cresceu lá. Nessa vizinhança, temos a oportunidade de conhecer, por exemplo, o grupo formado por Morgan, Lacke, Larry, Jocke e Karlson: cinco homens de meia-idade, com pouco dinheiro e nenhuma perspectiva, que costumam se reunir num restaurante chinês, onde pouco comem, mas muito bebem. Esses personagens aparecem para dar uma ideia do panorama local, e provavelmente são inspirados em pessoas que o autor conheceu. Porém, o protagonista é Oskar, que tem 12 anos e sofre. Morando com a mãe, ele raramente vê o pai. Embora ela seja afetuosa e mostre preocupação com o filho, parece preferir fechar os olhos a certos problemas, e não ajuda o fato de que Oskar, como todo pré-adolescente, tem seu orgulho, de modo que há coisas sobre as quais prefere silenciar.

O maior espinho na carne do garoto são os valentões da escola, que tentam aliviar o tédio perseguindo-o. Nem sempre é fácil dizer por que é uma determinada criança, e não outra qualquer, que acaba escolhida como alvo desses tipos; no caso de Oskar, talvez tenha sido por ser gorducho e estar mais para introspectivo que para popular, mas, no fim, tanto faz: outras crianças são perseguidas por usarem óculos, por pertencerem a qualquer minoria étnica, religiosa ou de outra espécie, por serem muito altas, muito baixas, por alguma assimetria de feições que as afaste do padrão de aparência considerado ideal, ou por qualquer outra bobagem irrelevante na qual os "perfeitos" consigam pensar. Se por acaso não houver numa turma ninguém que se encaixe em nenhuma dessas situações, a escolha provavelmente caberá ao azar: o certo é que alguém precisa ser a vítima. Há momentos em que Oskar se odeia ainda mais do que odeia seus algozes, porque por vezes se submete à humilhação para evitar apanhar. E assim vai levando a vida aos trancos e barrancos. Para consolar-se, o garoto se entope de doces, quer comprados ou surrupiados. E lê. Muito.

Acontece então que chegam novos vizinhos ao prédio de apartamentos onde Oskar mora: um homem e uma menina. Todos imaginam que sejam pai e filha, e eles deixam que as pessoas continuem pensando assim. A menina, Eli, é estranha, mas fascina Oskar. Dona de uma extraordinária e exótica beleza, ela jamais aparece durante o dia, tem modos misteriosos, um jeito estranho de falar, que por vezes parece mais próprio de um ancião que de uma criança, e parece incapaz de entrar em qualquer recinto a menos que seja convidada em voz alta, de forma explícita: "Você pode entrar", ou algo equivalente. Oskar, apreciador de filmes e livros de terror, sabe muito bem o que isso tudo junto costuma significar, mas "vampiros não existem", não é mesmo? A amizade que se forma entre as duas crianças respeita certos limites: há coisas sobre Eli que deixam Oskar curioso, mas ela tem seus meios de fazê-lo compreender quando deve parar com as perguntas. É graças à paixão que começa a sentir por Eli – a primeira de sua vida, coisa que nunca se esquece – que o menino decide começar a enfrentar seus problemas: não quer que ela o veja como um covarde. Parte do impacto da história está na justaposição chocante de toda essa inocência infantil com os terríveis detalhes da parte da vida de Eli que Oskar não conhece.

O acompanhante de Eli não é seu pai – nem poderia. Håkan (pronuncie Hôkan) é um personagem que causa pena. Já foi professor de sueco, de modo que é um homem de considerável cultura e já soube o que é ser um membro respeitado da sociedade. Seus desvios sexuais o arruinaram: Håkan é um pedófilo – um pedófilo que sofre, dilacerado entre seus desejos inconfessáveis e o senso do certo e do errado. Eli o encontrou quando ele já havia alcançado o fundo do poço, ao ponto de cair bêbado em praças, só esperando pela morte, e o reergueu, pelo menos até onde era possível, para que ele servisse a suas necessidades. A princípio, como o próprio Håkan reflete, Eli parecia perfeita para ele: tem o corpo infantil que o atrai, mas não é uma criança – na verdade é muito mais velha, experiente e sábia do que ele próprio, o que lhe daria, finalmente, a chance de satisfazer seus desejos sem sentir culpa. Isso, é claro, se Eli estivesse disposta a cultivar intimidades com Håkan, o que não parece ser o caso: ela sabe que ele a ama e a deseja, e apenas usa isso para mantê-lo dominado. Ele a ajuda a salvar as aparências (já que uma criança vivendo e circulando sozinha chamaria demasiada atenção) e "caça" para ela; no começo, não se compreende por que, já que em diversos momentos da história a menina mostra-se perfeitamente capaz de obter "comida" sozinha: a explicação aparece mais adiante. A tarefa de Håkan consiste em emboscar pessoas, sedá-las e drenar-lhes o sangue para que Eli se alimente. É claro que tal atividade não poderia passar despercebida por muito tempo, de modo que a dupla precisa mudar-se constantemente. O leitor notará que, nas partes que são narradas sob o ponto de vista de Oskar, todos os adjetivos e particípios que se referem a Eli estão no feminino – claro –, ao passo que, quando o ponto de vista é o de Håkan, estão no masculino. O que diabos isso pode significar, faz parte dos mistérios da história.

Eli possui muitas das características dos vampiros clássicos, sendo que o livro enfatiza especialmente (e já no próprio título!) a de não poder entrar sem ser convidada, mas ela também não pode sair ao ar livre durante o dia em hipótese alguma, o que a mataria na hora – e isso, até onde sei, foi inventado no filme Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau, e popularizado por centenas de outros filmes durante as décadas seguintes, mas não faz parte das lendas originais, nem está nos escritos de Bram Stoker: conforme essas fontes essenciais, o vampiro pode, caso precise, circular durante o dia eventualmente – a luz do dia lhe é incômoda e anula temporariamente a maior parte de seus poderes, mas não o mata de forma instantânea. Outra coisa a se notar é que Eli, para uma vampira tão pequena, parece possuir um tremendo apetite: precisa alimentar-se a cada poucos dias, e, a cada vez, consumir o equivalente a todo o sangue que um indivíduo adulto ou jovem tem no corpo (cerca de cinco litros numa pessoa de porte médio); além disso, a menos que a vítima seja morta no ato, transforma-se em vampiro também. Certo, são duas crenças populares a respeito dos vampiros, mas que, se fossem verdadeiras, tornariam inviável a existência dessas criaturas, e que, por isso, são hoje unanimemente desprezadas pelos especialistas. Vamos ver por quê? Vai ser interessante!

Em primeiro lugar, um vampiro que precisasse matar uma pessoa uma ou duas vezes por semana duraria muito pouco: seria rapidamente caçado e morto. A ideia corrente entre os autores atuais é a de que o vampiro pode dominar uma pessoa por meio de hipnotismo (ou atacá-la enquanto dorme) e então sugar uma pequena quantidade de sangue, suficiente para mantê-lo vivo durante alguns dias, sem causar dano sério à vítima, que provavelmente terá um pesadelo, ficará indisposta e cansada durante um dia ou dois, e depois seguirá com sua vida normal – e o vampiro, graças a sua discrição, poderá fazer o mesmo! Em segundo, se toda pessoa que fosse sugada por um vampiro se transformasse em outro, o mundo, dentro de pouco tempo, seria povoado só por vampiros. A versão mais aceita hoje é a de que, para transformar-se, um ser humano precisa, primeiro, ser sugado, e depois, por sua vez, levado a provar o sangue do vampiro, o que significa dizer que não existem transformações acidentais: quando um vampiro converte um humano, faz isso de forma consciente e premeditada. Em todo caso, é provável que Lindqvist tenha optado por seguir as noções populares apenas por serem mais adequadas a seu objetivo literário.

Publicado originalmente em 2004 (embora a ação seja ambientada em 1981), Deixa Ela Entrar já ganhou um lugar entre os grandes romances de terror dos últimos tempos e gerou duas adaptações para o cinema. A primeira é uma produção sueca de 2008, dirigida por Tomas Alfredson; eu vi e recomendo. Como ocorre com todo livro que é adaptado para a tela, a trama teve que ser bastante enxugada, reduzida ao essencial, de modo que as histórias paralelas de personagens secundários foram deixadas de fora. Não acompanhamos, por exemplo, o que ocorre com Tommy, um vizinho de Oskar alguns anos mais velho, usuário de drogas, e sua relação difícil com a mãe viúva e o novo namorado dela, que, por acaso, é um policial; já os dramas e o tédio da existência do grupo do restaurante chinês até são retratados, mas muito de passagem. As atuações dos estreantes Kåre Hedebrant (Oskar) e Lina Leandersson (Eli) surpreendem. O outro filme, intitulado Deixe-me Entrar, é um remake norte-americano, e, pelos comentários que li, bastante açucarado, tendo tido todas as partes chocantes do livro e do filme original limadas, para não falar na "americanização" forçada, que já desvirtuou tantas boas histórias. Quando li na sinopse que Oskar tinha virado "Owen", que Eli passara a ser "Abby" e que a trama estava ambientada no Novo México, desisti de assistir, e pretendo deixar a coisa assim. Meu conselho é que leiam o livro e vejam o filme de Alfredson.

sábado, novembro 09, 2013

A Invenção de Hugo Cabret

"Sabe, as máquinas nunca têm peças sobrando. Elas têm o número e o tipo exato de peças que precisam. Então, eu imagino que, se o mundo inteiro é uma grande máquina, eu devo estar aqui por algum motivo. E isso quer dizer que você, também, deve estar aqui por algum motivo."

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Eis aqui um livro diferente e interessante, que eu talvez não chegasse a ler se não fosse por uma feliz conspiração de fatos. Perto do final de 2012, só para estar preparado para a eventualidade de que o Natal chegasse sem que o mundo tivesse acabado antes, como estavam anunciando então, perguntei a minha namorada, Cintia, o que gostaria que eu lhe desse de presente, e ela me falou de A Invenção de Hugo Cabret. Então, durante minha ida seguinte a São Paulo, comprei o livro para ela, aproveitando nossa inevitável "passadinha" pela Livraria Cultura do shopping Bourbon Pompeia (a propósito, ela costuma dizer, meio a sério, meio brincando, que não gosta desse lugar, porque sempre sai com uma sensação de frustração por não poder levar todos os livros e DVDs que gostaria). Agora peguei o livro emprestado e gostei bastante. Não conhecia o autor, Brian Selznick, responsável tanto pelo texto quanto pela (farta) ilustração, e essa foi uma apresentação bem favorável: ele realizou um belo trabalho - algo verdadeiramente muito artístico.

Estamos em Paris, em 1931. Na imensa estação ferroviária central da cidade, Hugo Cabret, um garoto de 12 anos, vive sozinho e escondido. Vindo de uma família toda de relojoeiros, ele herdou esse talento, e agora realiza sozinho a manutenção de todos os relógios da estação, que são muitos, e alguns deles gigantescos. O pai de Hugo, que tinha uma relojoaria, morreu num incêndio num museu onde prestava serviços; o menino, então, ficou sob a guarda de seu tio Claude, que fazia a manutenção dos relógios da estação e fez dele seu aprendiz. Quando o tio, dado a bebedeiras, desapareceu, Hugo passou a fazer o trabalho dele, e por uma razão muito pessoal: se os relógios pararem de funcionar, a administração da estação irá investigar, descobrirá o desaparecimento de Claude, e também descobrirá que ele, Hugo, está morando lá clandestinamente. Além de não ter qualquer vontade de ir para um orfanato, o menino tem outro motivo para não querer deixar a estação: lá, no pequeno apartamento que ficou para ele desde que o tio se foi, está escondida uma maravilha da arte e da mecânica - um autômato, um pequeno homem mecânico que o pai de Hugo descobriu no sótão do museu onde trabalhava e onde morreu. Hugo salvou a curiosa máquina das ruínas, e, durante os meses que se passaram desde então, tem tentado consertá-la. O autômato foi feito para escrever - uma atração de show de mágica -, e a ideia de ler a mensagem que ele escreveria se voltasse a funcionar tornou-se uma obsessão para o garoto.

Para consertar qualquer máquina, geralmente são necessárias peças de reposição. Hugo, então, começa a furtar brinquedos mecânicos de uma loja na própria estação, a fim de desmontá-los e usar as peças em sua obra. O proprietário, gerente e atendente da loja é um velho misterioso, que às vezes recebe visitas de uma menina que adora ler. Hugo ainda não sabe, mas já está ligado a essas pessoas antes mesmo de conhecê-las; e, quando as conhecer, seu mundo sofrerá uma revolução.

O grande volume de A Invenção de Hugo Cabret engana: é um livro para se ler numa "sentada" só. Aliás, seria mais exato dizer que é também um livro para se ver. O texto é frequentemente intercalado por longos trechos de narrativa exclusivamente visual, dando seguimento à história por meio de recursos tomados de empréstimo aos quadrinhos e ao cinema. Por isso o tamanho do livro: a maior parte dele corresponde às ilustrações, feitas pelo próprio autor, e, por sinal, belíssimas. Infelizmente, na edição brasileira, todas estão em página dupla, o que faz com que a encadernação do livro prejudique a visualização de muitas delas.

Misturando ficção com fatos e personagens históricos, Brian Selznick aproveita a história que está contando para prestar uma homenagem a Georges Méliès (1861-1938), que pode ser considerado com justiça o pai do cinema tal como conhecemos. Certo, se formos consultar uma enciclopédia, veremos que o crédito da invenção do cinema é atribuído aos irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), e está correto, pois eles de fato criaram o "cinematógrafo", máquina que deu início a tudo. Só que, a julgar pelo que os cronistas da época registraram, os Lumière, a exemplo de muitos outros inventores, tinham pouca ou quase nenhuma ideia do verdadeiro potencial de sua invenção - e parece que tampouco a imaginação era o forte de qualquer dos dois. Eles filmavam trens chegando à estação, operários saindo de uma fábrica, coisas desse tipo, e esses filmes só atraíam espectadores porque, na época, o simples fato de se ver imagens em movimento já era considerado formidável e emocionante. O pioneirismo na ideia de usar o cinema para contar histórias coube mesmo a Méliès, que, até então, atuava como mágico, cartunista e pintor.

O pai de Auguste e Louis, Antoine Lumière, era um empresário do ramo da fotografia. Orgulhoso da realização dos filhos, Monsieur Lumière convidou muitas pessoas para a primeira exibição pública de cinema da História, marcada para 28 de dezembro de 1895. Um dos convidados foi seu amigo Georges Méliès, a quem ele teria dito que, se comparecesse, veria um novo tipo de mágica que talvez lhe interessasse. E não deu outra: Méliès ficou imediatamente fascinado pela engenhoca, e viu logo suas vastas possibilidades, nas quais seus próprios criadores não tinham pensado. Começou imediatamente a fazer filmes, e não parou durante os 18 anos seguintes: fez mais de 500 deles, nenhum com mais que alguns minutos de duração - estava-se ainda muito longe da era dos longas-metragens. Esses filmes eram, em sua maioria, fantasias, sem esquecer que a Méliès se atribui o mérito de ter feito o primeiro filme de terror, Le Manoir du Diable ('A Mansão do Diabo' - podem vê-lo completo aqui; como não há trilha sonora, sugiro que sincronizem com o Concerto para Piano n.º 1 de Tchaikovsky). Tudo bem, o filme não assusta ninguém, e provavelmente já não assustava nem naquela época: parece ser um terror-pastelão, mais puxado para a comédia. Ainda assim, é um marco histórico, e, junto com o restante da obra de Méliès, obriga-nos a refletir que o nosso tão querido cinema fantástico foi o gênero pioneiro da sétima arte e, mesmo assim, mais de um século depois, continua subestimado e alvo de preconceitos persistentes.

A habilidade ilusionística e o senso de cena adquiridos na carreira de mágico foram muito úteis a Méliès. Com a técnica que inventou e batizou de stop-action (que consistia simplesmente em parar a câmera, alterar o cenário e então voltar a filmar), conseguia dar a impressão de que personagens ou objetos apareciam e desapareciam de repente - como se fosse magia, por assim dizer. Criou, ainda, diversos outros truques, que o levaram a ser considerado, além de iniciador do cinema de ficção, também o inventor dos efeitos especiais. Sua carreira teve fim com o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e os últimos 25 anos de sua vida são obscuros - fato esse do qual Brian Selznick soube aproveitar-se de forma magistral em seu livro.

A Invenção de Hugo Cabret é uma história de amizade, lealdade e amor à arte, narrada de maneira original e cativante. Recomendo para qualquer leitor, mas muito especialmente para os que também são amantes de cinema.