sábado, outubro 21, 2017

A Espada Diabólica

Dentro do subgênero de fantasia conhecido como sword and sorcery ('espada e feitiçaria'), o britânico Michael Moorcock (1939-) é um dos autores que mereceriam ter bem mais fama do que têm. Seu personagem mais conhecido, Elric de Melniboné, é, de várias maneiras, o oposto do típico herói desse subgênero – e, como o "típico" herói de sword and sorcery tem em Conan seu mais clássico exemplo, é interessante lembrar que o cimério e o melniboneano já se encontraram nos quadrinhos da Marvel: o épico crossover começa com uma luta, é claro (os fãs não dispensariam isso!), mas o breve duelo não chega a ter um desfecho, e os dois acabam por se tornar aliados – temporários e relutantes aliados, e de forma alguma amigos.

E por que seria Elric o oposto de Conan? Bem… Enquanto o herói cimério de Robert E. Howard desconfia da magia (embora, ao longo da carreira, por vezes tenha aceito a ajuda de magos e feiticeiros) e faz muita questão de só confiar em sua própria força, coragem e em sua espada, Elric é tanto um feiticeiro quanto um guerreiro – talvez mais feiticeiro que guerreiro. Albino e de constituição física frágil, ele ganha força e resistência por meio da magia e de uma misteriosa ligação com sua espada, Stormbringer (algo como 'a que traz a tempestade'), uma enorme lâmina feita de algum metal negro desconhecido, que, sem o auxílio da magia, ele não seria capaz sequer de levantar, quanto mais de manejar. Entre outros poderes, ela tem a capacidade de absorver a força vital daqueles que mata e transferi-la para seu detentor. Elric não gosta disso, dando por vezes a impressão de sentir que seu vínculo com a espada perverte sua própria humanidade, mas o considera, no fim das contas, um mal necessário.

Mais diferenças: Conan, um bárbaro do norte sem quaisquer traços de nobreza em suas origens, alimentou desde a juventude o sonho de tornar-se rei, o que eventualmente conseguiria; Elric, por outro lado, é um imperador, embora seu império, Melniboné, esteja em decadência, depois de ter dominado o mundo por dez mil anos. O mundo em questão, por falar nisso, parece ser a Terra, talvez num passado há muito esquecido, talvez num futuro distante: o prólogo da primeira parte, intitulada O Advento do Caos, diz que a saga de Elric tem lugar "dez mil anos antes de a História ser registrada ou dez mil anos depois que deixaram de ser compostas as crônicas, como se preferir", mas, ao longo do livro, novas informações que vão aparecendo revelam que a primeira possibilidade deve ser a verdadeira. A rigor, o uso da palavra "humanidade" no parágrafo anterior é impróprio: os melniboneanos não se consideram humanos e veem com preocupação a ascensão dos "Jovens Reinos", estes sim povoados por homens no sentido estrito do termo, que parecem estar ganhando poder e influência à medida que Melniboné enfraquece.

Fazer esse paralelo entre os dois heróis deixa óbvio que Moorcock cresceu lendo as histórias de Howard, assim como as de Edgar Rice Burroughs e, possivelmente, também as de Lord Dunsany, mas quis que suas aventuras fantásticas tivessem uma cara própria, e conseguiu isso com Elric. A exemplo dos contos de Howard sobre Conan, e também dos de Fafhrd, escritos por Fritz Leiber, as histórias sobre o imperador albino foram publicadas soltas, sem seguirem uma ordem, e organizá-las numa cronologia é tarefa complexa. Sei que isso já foi feito nos Estados Unidos, onde a saga de Elric foi publicada em vários volumes; provavelmente no Reino Unido também. No Brasil, por outro lado, até onde sei, só temos este volume, publicado pela editora Francisco Alves em 1975, dentro de sua coleção Mundo Fantástico, paralela à Mundos da Ficção Científica – ambas trazem gratas recordações para os fãs brasileiros de literatura de imaginação das décadas de 70 e 80 (pessoalmente, estou nessa desde os anos 80). O título original era Stormbringer.


A aventura começa quando, tarde da noite, uma tempestade sobrenatural desaba sobre Karlaak, a capital de Melniboné, e um grupo de assassinos inumanos – criaturas brutais enviadas pelos misteriosos Senhores do Caos – penetra na cidade, aproveitando-se de os portões estarem abertos, e as sentinelas, adormecidas, tudo efeitos da mesma magia que conjurou a tempestade para facilitar-lhes a missão. E sua missão parece ser a de matar Elric, que dorme em sua alcova no palácio, ao lado de sua esposa, a bela Zarozínia, sem de nada suspeitar. Parece, mas não é. Elric enfrenta os invasores, mas está sem sua espada, da qual prefere manter-se longe sempre que ela não é indispensável, e acaba subjugado, desacordado com um golpe na cabeça. Ao recuperar a consciência, fica surpreso por ainda estar vivo, mas a coisa seguinte que percebe é que a imperatriz foi raptada. Durante a luta, Elric conseguiu matar um dos sequestradores, e agora, por meio de magia, faz com que o cadáver se levante e fale. O efeito só dura alguns minutos, tempo suficiente para a criatura "desmorta" enunciar um enigma, que fala sobre uma guerra prestes a ser travada, e sobre um parente de Elric que deverá lutar ao seu lado empunhando a "cópia fiel" de Stormbringer. O imperador espera que, se for capaz de desvendar a charada e de sobreviver aos perigos aos quais ela conduzirá, talvez consiga recuperar sua esposa.

E é, a princípio, sozinho que Elric se aventura; não se faz acompanhar sequer por uma guarda pessoal, como um soberano normalmente faria, talvez na esperança de conseguir viajar incógnito – por mais que, no caso dele, isso seja quase impossível. É verdade que, numa sociedade de características medievais como o Império de Melniboné e terras vizinhas – sem imprensa, TV, internet e coisas que tais –, a maior parte da população que vive longe da capital nunca viu seu monarca e não o reconhecerá se por acaso o encontrar… A menos que o monarca em questão tenha uma aparência tão incomum a ponto de chamar atenção e causar comentários: vocês também não se lembrariam se, numa ruela enlameada de alguma aldeia, cruzassem com um sujeito magrelo, com pele e cabelo brancos feito marfim e olhos vermelhos ardentes, portando uma gigantesca espada negra de aparência tão exótica quanto a dele?

Seguindo as pistas enigmáticas obtidas do assassino morto-vivo, o herói albino viaja para o oeste, onde os reinos de Dharijor e Pan Tang formaram uma aliança e estão se preparando para invadir outros reinos vizinhos. Os exércitos dos defensores são comandados pela rainha Yishana de Jharkor, aliada e outrora amante de Elric, e sob sua bandeira, entre outros, lutam os mercenários de Imrryr, liderados por um homem de nome Dyvim Slorm, primo de Elric e seu único parente vivo. Quanto à cópia fiel da espada, é fato que Stormbringer possuía uma "gêmea", Mournblade (a "lâmina lamentosa", mais ou menos; o verbo to mourn quer dizer lamentar ou prantear, geralmente por alguém que morreu, podendo significar também, por extensão, 'estar de luto'); ocorre que essa segunda espada era empunhada por Yyrkon, outro primo, que Elric matou durante uma disputa dinástica anos antes, e a arma, ao que se acredita, foi perdida, de modo que parece impossível o pleno cumprimento da profecia. Em todo caso, Elric e Dyvim Slorm juntam-se ao exército de Yishana para a batalha que decidirá o destino do oeste.

E que batalha é essa! Saber narrar bem um combate em massa é tão importante para o escritor de fantasias épicas quanto para o de ficção histórica, e Moorcock demonstra ter o dom, mas não se trata de uma batalha "comum", entre tropas de homens protegidos por armaduras e usando lanças, espadas e arcos; há tropas assim, é claro, mas há também tigres treinados para o combate, cavaleiros montando répteis de seis patas em vez de cavalos, esquadrões de homens alados… Sim, eu também fiquei imaginando como seria isso tudo num filme, e é pena ser tão improvável que algo assim se concretize. De qualquer forma, a batalha, na qual Elric arrisca a vida, é apenas um passo em sua busca por Zarozínia. O narrador diz explicitamente que o albino se considera um realista, mas, em seus atos, pelo menos nesta história, ele demonstra um pendor para o fatalismo: seu inimigo morto fez uma profecia, e os mortos, se, por um lado, não podem dar respostas diretas, tampouco podem mentir. Sendo assim, Elric está disposto a cumprir seu papel nessa profecia, mesmo sem compreendê-la totalmente, na esperança de que, em seu desenlace, sua esposa lhe seja devolvida, como também foi profetizado. Porém, há mais em jogo que apenas sua vida. As forças do Caos que tramaram o rapto da imperatriz querem algo em troca de sua libertação: exigem a entrega tanto de Stormbringer quanto de Mournblade, as únicas armas que podem, nas mãos certas, representar um entrave a seus planos de dominar o mundo.

Elric odeia Stormbringer (a espada possui vontade própria e até um certo tipo de inteligência maligna, mais ou menos como o Um Anel de Tolkien) e ficaria feliz de nunca mais empunhá-la; portanto, em nível pessoal, aceitaria a troca com a maior das alegrias. Acontece que, se o fizer, estará, com esse ato, condenando o mundo a uma era de trevas e terror, e, embora preocupar-se com a sorte de povos ou reinos não seja nele uma reação natural, o imperador albino possui, sim, uma consciência. Talvez seu heroísmo tenha ainda mais valor por não ser instintivo como o de um Hércules ou um Super-Homem: ao contrário, escolher seu curso de ação numa situação como essa custa-lhe angústia e indecisão. Elric carrega o fardo de ser o último imperador de Melniboné, e de lhe haver cabido ocupar o trono exatamente durante esses dias, que equivalem ao apocalipse para esse mundo antediluviano. Os servos do Caos desprezam a Ordem porque, segundo eles, ela limita a matéria, enquanto o Caos representa possibilidades infinitas; para o mundo, porém, essas possibilidades acarretam catástrofes: ao mesmo tempo em que eclodem guerras terríveis, o próprio planeta parece estar em convulsão, assolado por terremotos, erupções vulcânicas e tempestades sobrenaturais. Além disso, a influência do Caos puro causa espantosas transformações nos seres vivos que estiverem nas proximidades, deformando seus corpos em paródias obscenas de suas aparências originais, ora mudando-os em figuras tortas e desproporcionais, ora fazendo com que desenvolvam aleatoriamente vários membros e cabeças em qualquer lugar do corpo. Enfim, os piores pesadelos ganham existência material.

Embora seja um feiticeiro erudito, iniciado em muitos mistérios, o monarca albino ainda é um mortal, e, por isso, há muitas coisas que não pode vislumbrar ou compreender. Uma delas lhe é revelada por um ser misterioso, imortal, de nome Sepiriz, que lhe oferece ajuda e aconselhamento para sua missão, e o teor da revelação é que, não importa o que Elric faça, ele não pode verdadeiramente salvar o mundo que conhece: esse mundo deve e vai desaparecer, abrindo espaço para o que Sepiriz chama de "os verdadeiros primórdios da história da humanidade", o que parece significar o início da História que conhecemos. Tudo o que Elric pode influenciar é que espécie de mundo vai se erguer dos escombros do seu milênios depois: se as forças do Caos vencerem, elas terão absoluto domínio nos tempos futuros; se Elric as derrotar, isso não significa que o Caos será erradicado, mas fará com que, no novo mundo, a Ordem, ou a Lei, como os personagens a chamam, tenha ao menos uma chance de luta. Nenhuma das duas forças deve alcançar uma vitória definitiva sobre a outra, pois é no embate interminável entre elas, e no precário e incerto equilíbrio que daí nasce, que o universo encontra condições de existir e de se desenvolver: o Caos puro o levaria ao colapso, a Ordem pura resultaria em estagnação.

Eu não iria ao ponto de dizer que Elric defende a Ordem, e sim que procura favorecer esse equilíbrio, mas mesmo isso já representa uma opção radical para ele, filho de uma raça gerada pelo Caos, se é que pode-se falar em opção quando existe um destino que somente ele pode cumprir. É nesse destino, e no modo como se posiciona diante dele, que reside aquilo que faz de Elric um personagem tão interessante, pelo menos no meu modo de ver. Ele não é bondoso nem altruísta por natureza, embora ainda seja mais afável que a média de seu povo – os melniboneanos são essencialmente caóticos e cruéis –, mas, mesmo assim, aceita os riscos e os sofrimentos que sabe que estão à sua espera, somente pelo bem de um mundo onde nem ele, nem nenhum descendente seu viverá, e no qual ninguém saberá que ele existiu.

Até agora, eu só tinha conhecimento indireto sobre a obra de Michael Moorcock, e Elric era para mim apenas um personagem que tinha aparecido numa aventura de Conan; sabia que ele tinha uma vida própria na literatura, e que suas histórias haviam inspirado pelo menos três músicas do Blind Guardian: Fast to Madness, do álbum Follow the Blind (1989), The Quest for Tanelorn, do Somewhere far Beyond (1992) e Tanelorn (Into the Void), do At the Edge of Time (2010), mas é a primeira vez que tenho a oportunidade de realmente lê-lo, e agora posso atestar que Moorcock é, sem sombra de dúvida, um dos maiores nomes da história do subgênero sword and sorcery e, ouso dizer, até mesmo da literatura de fantasia em geral, e deveria ser considerado leitura obrigatória para a geração que hoje "viaja" nas páginas das Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin e de outros expoentes atuais desse segmento. É complicado ficar contando com traduções – este volume já é muito antigo (e, cronologicamente falando, deve ser o último da saga, por motivos que vocês terão que ler para saber), e nunca ouvi falar em outras edições nacionais desta ou de outras aventuras de Elric –, mas, se você lê em inglês e gosta desse tipo de literatura, eis aqui um mundo cujo fim será um privilégio testemunhar.

Em tempo: se eventualmente for feito um filme baseado em A Espada Diabólica, as partes a respeito dos dragões, e, mais especificamente, a respeito de seu uso como armas de guerra, na certa farão muitos quadrúpedes da internet soltarem comentários como "pô, véi, copiaram Game of Thrones na cara dura!" (As maiúsculas, a pontuação e os acentos são generosidade minha, é claro.) Espero que haja alguém com paciência para explicar que Michael Moorcock escreveu as histórias de Elric entre as décadas de 60 e 90, sendo que A Espada Diabólica foi originalmente publicada em 1965, quando George R. R. Martin, aos 17 anos, ensaiava os primeiros passos em sua carreira de escritor – e, muito provavelmente, era um ávido leitor de Moorcock.

domingo, setembro 10, 2017

Aléxandros: O Sonho de Olympias

Até que outro livro me leve a mudar de ideia, considero a trilogia Aléxandros como o melhor trabalho de Valerio Massimo Manfredi, pelo menos na parte que se refere ao entretenimento: por alguma razão, aqui os diálogos não sofrem daquela certa rigidez pouco natural, nem as cenas de ação, do andamento arrastado que prejudica partes de suas outras obras. Como resultado, a leitura flui tão fácil que, quando nos damos conta, já percorremos os três volumes quase como se fossem um.

Muito disso deve-se ao carisma da própria figura central da trilogia, um homem absolutamente único na História, por várias razões. Como já deve estar mais ou menos óbvio até para quem não sabe nada sobre a obra, o Aléxandros do título (com tônica no é e o x pronunciado ks) é ele mesmo: Alexandre III da Macedônia, que divide com um escasso punhado de outros vultos históricos a rara distinção de ser conhecido como "o Grande". Mas não se preocupem, pois ele só é chamado assim em alguns trechos onde o autor introduz breves falas em grego; durante o resto do tempo, é Alexandre mesmo.

Poderíamos dizer que Alexandre deve ter ganho em algum tipo de loteria por ocasião de seu nascimento, considerando a grandiosa combinação de circunstâncias que permitiu que ele se tornasse aquilo que foi. Não há a menor dúvida de que tinha um conjunto raro de qualidades: inteligência, coragem, carisma pessoal, empatia, talento para uma vasta e diversificada gama de atividades, e, não menos importante, uma energia aparentemente inesgotável. Em adição a tudo isso, nasceu de um pai e de uma mãe que, cada um por suas próprias razões, tinham o máximo interesse em proporcionar-lhe a melhor educação possível – e dispunham de amplos meios para tanto. Por fim, Alexandre nasceu no lugar certo e no momento (histórico) exato. Em resumo, ele tinha tudo para dar certo, mas isso não diminui nem um pouco seus méritos individuais em tudo o que realizou durante sua curta e extraordinária vida.

A relação dos macedônios com a Grécia, ao tempo do nascimento e infância de Alexandre, era semelhante à dos romanos cerca de um século e meio depois: uma admiração não correspondida de um lado, um desprezo mesclado de temor do outro. Havia um desejo generalizado, por parte da classe mais instruída da Macedônia (aí incluídas a nobreza e a realeza) de que o país se integrasse ao mundo helênico, beneficiando-se de seus avanços sociais e políticos e de sua cultura; já os gregos desprezavam seus vizinhos do norte, que tachavam de bárbaros, porque, embora fossem muito próximos deles – tinham a mesma origem étnica, a mesma religião, e uma língua muito parecida –, os macedônios eram um povo rústico e inculto, essencialmente pastores das montanhas. Não deixava de ser uma ingratidão, de certa forma, pois, se não houvesse a Macedônia, a Grécia estaria diretamente exposta aos ataques dos verdadeiros bárbaros – os povos eslavos de além dos Bálcãs –, e isso era a última coisa de que ela precisava, considerando que já penava para resistir às intermitentes tentativas de invasão por parte do Império Persa. O rei Filipe II (r. 359-336 a.C.), pai de Alexandre, via claramente a necessidade de promover essa integração, e as vantagens que isso traria ao seu reino, não só do ponto de vista cultural, mas também político e estratégico. Essa, para ele, era a parte mais importante de sua missão como rei; porém, e também à semelhança dos romanos, Filipe e sua gente tinham como lema que "admiração é admiração, guerra e poder à parte". Já que a Grécia não estava disposta a abraçar a Macedônia como país irmão, seria obrigada a respeitá-la pela sua força militar.


Injustamente relegado em muitas crônicas históricas ao papel secundário de "pai de Alexandre", Filipe foi um rei astuto, notável tanto por sua habilidade política quanto pelo talento militar. Subjugou ou forjou alianças com vários povos vizinhos, anexou as cidades gregas da costa do mar Adriático (entre outras) e reformou completamente o exército medíocre que herdara do pai, fazendo dele uma força bélica que não conheceria rival até o surgimento das legiões romanas. Filipe, na verdade, "não era" para ter sido rei, já que tinha dois irmãos mais velhos, que reinaram durante curtos períodos: Alexandre II (r. 370-368 a.C.) e Pérdicas III (r. 365-359 a.C.); o primeiro foi assassinado, e o outro morreu em combate. Com 14 anos de idade, o então príncipe Filipe foi entregue como refém a Tebas (a Tebas grega: não confundir com a cidade egípcia de mesmo nome), e por quatro anos viveu na casa de Epaminondas, o maior general daquela cidade, com quem muito aprendeu; mal imaginava o general que estava educando o futuro pai daquele que riscaria sua cidade do mapa. Mais tarde, de volta à pátria e já ocupando o trono, Filipe faria excelente uso do que aprendera em Tebas, mas a maioria dos historiadores está de acordo em que a maior contribuição que deu para fazer do exército macedônio o mais temido do mundo foi mérito exclusivamente seu: é a Filipe que se atribui a invenção da sarissa. Nerds de história militar, preparem-se para algo interessante. O resto de vocês talvez prefira pular os próximos dois parágrafos (risos).

O que Filipe fez, de certa forma, foi reinventar a falange, que vinha sendo a espinha dorsal dos exércitos gregos já fazia séculos. Substituiu a tradicional dórica, uma sólida lança com dois a três metros de comprimento, pela sarissa, que podia medir até o dobro disso (!), com um fuste feito de madeiras selecionadas, geralmente corniso, tratadas com cera de abelha para máxima resistência e uma certa maleabilidade. Numa mesma unidade, os soldados portavam lanças de comprimentos variados: os das fileiras da frente tinham as mais curtas, e o comprimento ia aumentando gradativamente em direção à retaguarda. Em vez de lutarem ombro a ombro numa formação compacta, criando uma parede de escudos, como fazia a falange tradicional, os soldados da infantaria pesada macedônia mantinham entre si um espaço suficiente para passarem as enormes lanças dos companheiros das fileiras de trás. Com isso, as cabeças das lanças de todas as fileiras podiam ser alinhadas, formando uma verdadeira barragem de pontas afiadas que tornava a falange macedônica praticamente invulnerável a ataques frontais. Seu ponto fraco eram os flancos, que Filipe tratou de guarnecer com tropas auxiliares de infantaria leve, arqueiros e fundibulários. Também faziam parte de sua máquina de guerra duas poderosas alas de cavalaria pesada: os Hetairoi ('Companheiros'), oriundos da nobreza macedônia, e os Tessalônicos, recrutados na região grega da Tessália, aliada da Macedônia e famosa como a terra dos melhores cavalos do mundo. Essas alas eram especialmente mortíferas por combinarem mobilidade com um tremendo poder de choque; Filipe dizia que a falange era uma bigorna, e a cavalaria, um martelo.

Ainda a respeito da falange, foram necessárias algumas outras adaptações, das quais a mais visível foi a redução do tamanho do escudo: uma sarissa era bastante pesada, com até cinco ou seis quilos, e precisava ser manejada com as duas mãos, o que tornava inviável ao soldado portar o enorme e pesado escudo hoplon; foi adotado um escudo um pouco menor (embora ainda muito maior que o da infantaria leve), o que tinha o seu custo em termos de proteção individual, mas isso era equilibrado pelo fato de que, na nova maneira de combater, havia boas probabilidades de que o soldado não precisasse engajar-se em luta corpo a corpo com o inimigo. É curioso notar que, como uma lança de seis metros de comprimento tinha uma inevitável tendência de apontar para baixo quando empunhada, as sarissas mais longas, as das fileiras de trás, eram providas de um contrapeso na extremidade do cabo, como mostrado na ilustração. Essa arma inovadora, combinada à tática da frente oblíqua (também chamada ordem oblíqua), aprendida com Epaminondas, deu a Filipe uma série de vitórias memoráveis, e Alexandre, mais tarde, também se mostrou um mestre na utilização desses dois trunfos. O sonho de Filipe (para cuja realização esse poderoso exército seria uma ferramenta importante) era criar uma liga reunindo todas as principais cidades-estado gregas, pondo fim à interminável história de conflitos entre elas, e então, à frente de uma força militar formada por macedônios e gregos, invadir a Ásia e desferir um golpe mortal direto no coração do Império Persa, aniquilando de uma vez por todas o inimigo que já ameaçava o mundo helênico há tanto tempo. Uma tal façanha, sem a menor dúvida, gravaria seu nome para sempre nas páginas da História.

Dos assuntos militares para os dinásticos… Olímpia (que Manfredi chama de Olympias), mãe de Alexandre, era uma princesa do Épiro, pequeno reino vizinho da Macedônia, pouco mais que uma cordilheira montanhosa à beira do mar Jônico. Foi a quarta esposa de Filipe (não, ele não tinha enviuvado três vezes: mantinha todas elas simultaneamente, para não falar em mais algumas concubinas), e esse foi um casamento político, é claro, embora tudo indique que o rei, ao menos durante algum tempo, tenha sido verdadeiramente apaixonado por ela, que era linda e tinha uma personalidade e tanto. É provável que em parte por isso, e em parte por ter dado a Filipe um filho homem, ela foi alçada à dignidade de rainha (que era diferente de simplesmente ser esposa do rei), o que, naturalmente, atraiu a inveja das outras, contra as quais Olímpia passou boa parte da vida se precavendo. Na verdade, uma das outras esposas de Filipe já tinha um filho, Arrideu, mas esse não era considerado um candidato viável ao trono por ser meio fraco da cabeça, o que teria sido sequela de uma doença. Houve boatos de que a tal "doença" teria sido resultado de um envenenamento ordenado por Olímpia, que não queria que o garoto viesse, no futuro, a competir pelo trono com seu querido Alexandre. Nada jamais foi provado, mas, à luz do que sabemos sobre a rainha, não parece que ela seria incapaz de algo assim, se fosse para defender os interesses do filho.

Seja como for, parece que, a partir do momento em que Alexandre nasceu, Filipe nunca vacilou em relação a quem seria seu sucessor. Um bom indicativo disso foi o tanto de dinheiro e esforço que investiu na educação dele. Seus estudos foram supervisionados, a princípio, por um certo Leônidas, parente da rainha, que, além de ensinar pessoalmente, selecionava os professores que instruiriam o príncipe em matérias específicas. Mas nenhum mestre foi tão marcante para Alexandre (e para o resto do mundo) quanto Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.), responsável por sua educação dos 13 aos 16 anos. É claro que, na época, ninguém podia saber que Aristóteles passaria à História como um dos maiores filósofos que já viveram, mas ele já gozava de suficiente prestígio para que comprar seu passe não fosse barato – um investimento que Filipe fez sem hesitar, e parece que os ensinamentos do sábio lapidaram de forma única o já privilegiado intelecto de Alexandre.

Eita! Comecei este texto com o objetivo de comentar a trilogia de Valerio Massimo Manfredi, mas acabo de perceber que escorreguei para uma biografia resumida (ou nem tanto) do personagem. Vamos tentar voltar aos trilhos.

Bem, Manfredi não é nenhum grande vulto da literatura, e sabe disso. Não nos oferece momentos arrebatadores de drama, nem personagens profundos e multifacetados; sabe que não tem cacife para tanto, e não se sabota com tentativas pretensiosas de fazê-lo. Seu objetivo era que o leitor, ao terminar estes três volumes, tivesse uma razoável noção de como foi a vida de Alexandre, e que tivesse se divertido no processo – e ele conseguiu. Um de seus diferenciais em relação a outras "vidas de Alexandre" está no fato de dar certo destaque a alguns personagens que elas não mencionam muito, como o grupo de amigos de infância, todos eles filhos de nobres da Macedônia, que foram educados com ele, cresceram em sua companhia e vieram a ser seus generais. É muito curioso ler sobre aqueles garotos vivendo seus anos de molecagens despreocupadas e lembrar que pelo menos dois deles – Seleuco e Ptolomeu – dariam nome a dinastias!… Também fazia parte desse grupo ele: Heféstion, o companheiro mais chegado de Alexandre e, segundo muitos, seu amante, o que seria encarado com relativa tranquilidade entre os gregos, mas suscitaria reprovação na Macedônia. De todo modo, Manfredi opta por não colocar nenhuma ênfase particular na relação dos dois, provavelmente porque tinha outras coisas em mente para destacar em sua obra, e não quis desviar a atenção dos leitores criando polêmica desnecessária em torno da sexualidade do personagem. O suposto affair de Alexandre e Heféstion até é mencionado, mas de forma casual e nada conclusiva: um ou outro personagem comenta, como quem ouviu um boato, que "dizem que os dois são amantes" – e é tudo. Nas cenas em que eles efetivamente aparecem, nada sugere isso. Para Manfredi, Alexandre e Heféstion são grandes amigos, e isso basta.

Sabe-se que as famílias reais não são como as outras famílias, e a de Alexandre é um bom exemplo. Como vimos, seu pai nunca se pejou de praticar a poligamia, o que os costumes macedônios toleravam; com isso ele criou, de certa forma, diversas famílias menores, cada uma formada por uma esposa ou amante e os respectivos filhos. Alexandre estava na "subfamília" de maior prestígio e privilégio, já que era o herdeiro presuntivo do trono e sua mãe tinha o status de rainha, que manteve mesmo depois que suas relações com Filipe já haviam esfriado até ao ponto de os dois só eventualmente se verem. Olímpia, por falar nisso, teve outra filha, Cleópatra, única irmã bilateral de Alexandre, que tinha tantos meios-irmãos. Não há relação direta entre essa Cleópatra e a famosa rainha do Egito de quase três séculos depois, mas a semelhança não é mera coincidência. Esse nome (grego) era bastante popular na Macedônia; quando Alexandre morreu, seu império foi dividido entre seus generais, cabendo a Ptolomeu o Egito, onde o amigo de infância de Alexandre recebeu o tradicional título de faraó, reinou até o final de sua vida e, de quebra, fundou a última dinastia a governar o país – dinastia essa que, por ser de origem grega, nunca foi plenamente aceita pelo povo egípcio. A Cleópatra "de César" foi a última de uma longa sucessão de rainhas e princesas com o mesmo nome, todas descendentes de Ptolomeu.

Apesar de viverem essa situação que, para nós, parece tão estranha, tudo indica que Alexandre e o pai tivessem uma relação próxima e afetuosa, pelo menos o tipo de afeto do qual o rude guerreiro Filipe era capaz. Amava o filho do seu jeito e tinha orgulho dele, enquanto Alexandre amava o pai com um amor pontuado pela admiração e – como muito bem sublinha Manfredi – pela vontade de competir. A meu ver, o Filipe de Manfredi é um tanto moderado demais no trato com o filho, se comparado ao que algumas biografias de Alexandre fazem crer: a impressão que se tem dessas biografias é a de que o Filipe histórico estava mais preocupado em tornar o rapaz forte que em deixar-lhe boas recordações. Exemplo disso é o célebre episódio do garanhão Bucéfalo. No primeiro volume da trilogia, O Sonho de Olympias, o caso é narrado da seguinte forma: Filipe havia mandado Alexandre para uma espécie de retiro num lugar chamado Mésia, para que ele pudesse dedicar-se a seus estudos com Aristóteles sem ser distraído pela agitação da vida em Pela, a capital da Macedônia. Ali o jovem passa cerca de três anos, apenas com esporádicas visitas à capital para ver os pais e a irmã. Ao decidir que é hora de trazer o filho de volta para casa, Filipe vai pessoalmente buscá-lo e leva-lhe um presente: um cavalo magnífico, mas selvagem, que ninguém consegue dominar. O rei, pacientemente, explica ao filho que ele precisará esperar que o animal seja domado antes de poder montá-lo. Na versão de Plutarco, seguida também por outros romances que retratam a vida de Alexandre, o caso todo ocorre de forma bastante dura e absolutamente não premeditada. Filônico, um criador de cavalos da Tessália, tinha ido a Pela negociar seus animais, e ofereceu o garanhão a Filipe por treze talentos, uma soma altíssima. O rei, impressionado com a estatura e a aparência imponente do animal, pensou em comprá-lo para seu próprio uso, mas desistiu depois que seus melhores cavaleiros tentaram domá-lo sem sucesso, e disse a Filônico para levá-lo embora. O jovem Alexandre, de 14 anos, encantado pelo cavalo assim que o viu, protestou, garantindo que podia domá-lo, o que lhe valeu uma reprimenda por parte do pai, que considerou isso uma intolerável demonstração de arrogância. O garoto insistiu e o rei acabou consentindo em deixá-lo tentar, mediante um acordo, ou, melhor dizendo, uma aposta: se Alexandre conseguisse domar Bucéfalo, Filipe o compraria para ele; caso contrário, o próprio príncipe teria que pagar o preço do animal – o que, é claro, estava totalmente fora da realidade. É óbvio que tudo o que Filipe esperava era que alguns tombos e uma pequena humilhação ensinassem a seu filho algo sobre humildade, mas ele não estava preparado para o que veria a seguir, nem o estavam Filônico, os cavaleiros macedônios, ou as dezenas de membros da corte que testemunharam o evento. Com suas capacidades de observação e análise muito bem treinadas pelas lições de Aristóteles, Alexandre percebeu que o cavalo se assustava com os movimentos de sua própria sombra; obrigou-o a virar a cabeça de frente para o sol e, a seguir, cavalgou-o e o fez galopar até a exaustão, quebrando-lhe toda a resistência. Ao ver o terrível Bucéfalo domado por aquele pirralho, conta-se que Filipe foi às lágrimas de orgulho e, abraçando fortemente o filho, disse uma frase que entraria para a História: "Meu filho, procura para ti outro reino! A Macedônia é pequena para um príncipe como tu!"

Daí em diante, Bucéfalo foi a montaria de Alexandre em todas as suas batalhas (das quais não perdeu uma só) durante quase 18 anos, e, quando morreu, seu nome batizou uma das novas cidades que ele fundou na Ásia. Uma das muitas lendas em torno de Alexandre diz que Bucéfalo teria nascido no mesmo dia que ele, mas isso, na certa, não passa de uma invenção poética. Primeiro, porque não era costume de ninguém na época registrar a data de nascimento de um cavalo, e segundo, porque, se fosse assim, Bucéfalo, ao ser domado por Alexandre, já estaria com 14 anos, idade madura para sua espécie, e seria muito pouco provável que um criador permitisse a algum de seus animais chegar indomado a essa altura da vida: caso a doma resultasse mesmo impossível, teria sido sacrificado bem antes. Tampouco teria utilidade como reprodutor, já que o mais provável era que gerasse potros tão intratáveis quanto ele próprio. Portanto, Bucéfalo devia ter uns quatro ou cinco anos – adulto, mas ainda jovem –, e foi uma grande sorte para ele ter encontrado o príncipe da Macedônia. Alexandre, que comandava pessoalmente sua cavalaria no campo de batalha, tinha outras montarias, mas fazia questão de montar Bucéfalo no início de cada batalha: para ele, além de um amigo, o cavalo era uma espécie de talismã.

E, embora tivesse, antes disso, liderado pequenas expedições militares contra certas tribos do norte que punham em perigo as fronteiras da Macedônia, a primeira grande batalha de Alexandre (montando Bucéfalo, naturalmente) foi aos 18 anos, em Queroneia (338 a.C.), onde compartilhou o comando com o pai, derrotando uma coalizão de atenienses e tebanos. Depois da vitória, Filipe optou por mostrar-se generoso para com os vencidos, estabelecendo condições moderadas para a paz e incumbindo Alexandre de liderar pessoalmente a comitiva que foi enviada a Atenas para levar as cinzas dos mortos da cidade, a fim de que tivessem um sepultamento digno. Daí em diante, Atenas mostrou-se mais cooperativa para com a Macedônia… Mas Tebas não, o que seu povo, mais tarde, viria a lamentar.

É, não tem jeito: escrever sobre um assunto que se adora é praticamente garantia de "viajar" longe. Eu ia mencionar Bucéfalo de passagem, só para ilustrar o que estava dizendo sobre a forma como o rei Filipe encarava a educação do filho, e vejam só onde vim parar… Pretendia fazer um único post sobre a trilogia, mas vejo que isso vai ser impossível, então este fica sendo apenas sobre o primeiro volume, e mais tarde decido se faço outro sobre os volumes dois e três, ou se cada um deles terá que ter o seu próprio.

Além dos amigos de infância de Alexandre, outro personagem que ganhou destaque na trilogia de Manfredi (pois, em outras obras, só aparece de forma menos que periférica) foi seu tio e xará, Alexandre, rei do Épiro. Ainda um menino quando Olímpia, sua irmã mais velha, casou-se com Filipe, Alexandre viveu anos na corte de Pela, sob a proteção do cunhado, para evitar que fosse assassinado por qualquer dos nobres conspiradores que na época se digladiavam pelo trono do Épiro. Quando completou 20 anos, voltou à terra natal e, graças à ajuda de Filipe, conseguiu recuperar o trono de seus ancestrais. Cerca de cinco anos depois disso, Filipe tomou mais uma esposa, Eurídice, que tinha a idade de sua filha Cleópatra e era filha (ou sobrinha; as fontes divergem) de Átalo, um de seus generais. Uma esposa a mais ou a menos teria feito pouca diferença, não fosse por um acontecimento infeliz: na festa do casamento, Átalo, já embriagado, decidiu fazer um brinde aos noivos, rogando aos deuses que de sua união nascesse um "herdeiro legítimo" para o trono da Macedônia. Isso, é claro, equivalia a chamar Alexandre de bastardo, e o príncipe não deixou por menos: confrontou Átalo exigindo que engolisse suas palavras, e, ao não ser obedecido, atirou sua taça na cara do general. Filipe, furioso e também embriagado, desembainhou a espada e investiu contra o filho, que o esperava empunhando a sua, e talvez a coisa tivesse degenerado numa luta de verdade entre os dois, com consequências imprevisíveis, se o rei não tivesse falseado o pé e caído. Alexandre fez um comentário sarcástico sobre reis que querem invadir a Ásia, mas não conseguem nem atravessar um salão de festa, e rapidamente retirou-se; conhecia o pai e sabia que, naquele momento, Filipe seria mesmo capaz de mandar matá-lo, ainda que mais tarde morresse de remorso. Alexandre e Olímpia fugiram às pressas de Pela e refugiaram-se na corte do irmão dela, mas ali tinham pouco sossego: a cada poucos dias chegava um mensageiro de Filipe com uma carta exigindo que Alexandre retornasse a Pela e se desculpasse formalmente por seu comportamento, o que, com seu orgulho, ele jamais faria. A situação ficou ruim para Alexandre do Épiro, que, nessa briga, dava razão ao sobrinho, mas, por outro lado, devia seu trono ao cunhado. Diante disso, Alexandre, acompanhado apenas pelo fiel Heféstion, deixou o Épiro e partiu para a Ilíria (mais ou menos equivalente às atuais Sérvia, Croácia e Montenegro), na época uma terra de tribos bárbaras, algumas das quais ele já havia enfrentado e vencido em batalha à frente do exército do pai, isso nos seus 16, 17 anos; agora tinha 19 e uma reputação que o precedia. Não se sabe que aventuras Alexandre viveu durante o meio ano que duraram suas andanças pela Ilíria, e Manfredi trata o assunto com breves pinceladas; tenho para mim que só esses meses já dariam assunto para um livro.

Quaisquer que tivessem sido as ofensas trocadas, Filipe amava o filho, e, o que era mais, sabia que a participação dele seria essencial em sua planejada campanha contra os persas. Os dois eram muito orgulhosos, e não está claro quem tomou a iniciativa ou cedeu um pouco para possibilitar a reconciliação, mas esta aconteceu afinal em 336 a.C., pouco antes de o exílio de Alexandre completar um ano (Manfredi atribui o fato à esperteza de Eumênio, amigo de Alexandre e secretário-chefe de Filipe). Alexandre retornou e fez as pazes com o pai, mas parece que o relacionamento dos dois nunca voltou a ser como antes… Bem, na verdade não houve tempo para isso, mas é melhor não nos anteciparmos.

A rainha Olímpia havia permanecido na corte do Épiro quando Alexandre partiu para a Ilíria, e lá continuou quando ele retornou a Pela. Considerando-se desonrada por Filipe, ela tentou convencer o irmão a declarar guerra à Macedônia – o que Alexandre do Épiro precisaria ser, no mínimo, doido de pedra para fazer. Ele tinha um bom exército, sim (por sinal, organizado segundo o modelo macedônio, já que o treinamento fora cortesia de Filipe), mas a simples superioridade numérica do oponente decidiria esse conflito em questão de semanas, se tanto – isso para nem mencionar que Alexandre do Épiro era um jovem guerreiro esforçado, mas Filipe era um general tarimbado cujas vitórias contavam-se às dezenas. Assim, a única resposta que Olímpia teve a suas pressões foi um categórico "nem pensar". Mesmo assim, Filipe julgou conveniente fortalecer os laços com o cunhado fazendo dele também seu genro, e ofereceu-lhe a mão da princesa Cleópatra. A jovem, educada desde a infância para resignar-se à ideia de um casamento político, que o pai decidiria sem pedir sua opinião, deve ter-se considerado com sorte no final das contas: Alexandre do Épiro era belo, gentil, inteligente e valente, e, apesar de serem tio e sobrinha, a diferença de idade entre os dois não passava de seis ou sete anos. O casamento foi preparado em Pela, com toda a grandiosidade possível, pois Filipe não perderia mais essa oportunidade de impressionar seus novos aliados gregos. O que ele não esperava era ser assassinado pouco depois da cerimônia, e antes do começo dos festejos, por um membro de sua própria guarda pessoal, um tal Pausânias. Sabia-se que esse guarda tinha queixas contra Filipe, que o havia humilhado em público durante uma de suas crises etílicas; depois, arrependido, tentou compensá-lo com presentes e honrarias, mas sem nunca desculpar-se de fato (é claro). Só que, por mais que Pausânias tivesse mágoas pessoais de seu senhor, é sempre difícil acreditar que o assassinato de um rei ocorra sem nenhuma motivação política por trás. Na lista de suspeitos de serem os mandantes figuraram desde Dario III Codomano, rei da Pérsia, que sabia dos planos de Filipe para atacá-lo, até Olímpia e o próprio Alexandre, que poderiam ter agido juntos ou separados, mas ambos no interesse de evitar que Filipe nomeasse como sucessor o pequeno Carano, seu filho com Eurídice (correndo o risco de ser ingênuo, eu prefiro acreditar que Alexandre não fosse capaz de tal coisa; Olímpia são outros quinhentos). A ordem poderia ter partido, ainda, de alguma das cidades gregas que, muito a contragosto e principalmente por medo, haviam aderido à "liga pan-helênica" que Filipe forjara e da qual se fizera líder. Porém, Pausânias, o único que poderia (mediante a "persuasão adequada") fornecer alguma informação a respeito, foi morto pelos outros guardas logo depois de consumar seu ato, e a verdade sobre os motivos do assassinato de Filipe morreu com ele.

Coroado aos 20 anos de idade assim como acontecera com seu tio, Alexandre teve como primeiro desafio na condição de rei reafirmar (por quaisquer meios possíveis) a lealdade ou ao menos a cooperação dos gregos, a fim de garantir alguma segurança e estabilidade quando partisse para a Ásia. Até mesmo a Tessália, tradicional aliada da Macedônia, vivia dias agitados, mas o jovem rei conseguiu acalmar os ânimos sem necessidade de luta. Fez o mesmo com Atenas e outras cidades; já Tebas, onde seu pai aprendera muito do que lhe ensinou, estava em negociações com o rei Dario, que prometia fornecer armas e dinheiro se os tebanos liderassem um movimento na Grécia para resistir à "tirania macedônica". A cidade não recuou de sua postura de desafio, e Alexandre, que, via de regra, era clemente com os vencidos, julgou necessário abrir uma exceção: ordenou que Tebas fosse arrasada (na verdade, como ele era um amante das artes, mandou poupar a casa onde vivera o poeta Píndaro). Quem sobreviveu teve por destino o mercado de escravos. Não foi uma vitória fácil, pois os tebanos eram guerreiros notáveis, mas serviu a seu objetivo, de modo que foi uma Grécia em relativa paz e tranquilidade que o exército macedônio (reforçado por algumas tropas gregas) deixou atrás de si ao fazer a travessia para a Ásia. O primeiro volume da trilogia termina aqui, mas não posso finalizar sem mais um comentário: achei emocionante ver o paralelo entre a aventura de Alexandre da Macedônia rumo ao oriente e a de Alexandre do Épiro rumo ao ocidente, pois, meses mais tarde, o tio e cunhado do jovem rei partiu para a Itália a fim de atender ao pedido de ajuda dos colonos gregos em Taranto, ameaçados por algumas das várias tribos independentes e belicosas que então habitavam a Península Itálica. Alexandre do Épiro, inclusive, faria uma aliança com Roma, na época uma potência em crescimento, ainda muito longe de tornar-se aquilo que a menção de seu nome desperta em nossa imaginação hoje em dia. Essa aventura empolgante não era mencionada nem sequer de passagem em nenhuma das outras versões da vida de Alexandre da Macedônia que li, e olhe que foram várias. Concluo que Alexandre do Épiro teve azar em ser tio de seu sobrinho, pois, por mais que ele tenha feito coisas extraordinárias, a sombra do outro Alexandre o encobriu por completo. Dificilmente alguém escreverá um livro ou fará um filme sobre ele, o que é mesmo uma pena.

Pois é… Acabei resumindo o livro todo, erro que antigamente eu volta e meia cometia nos meus posts, mas que tenho, em geral, conseguido evitar nos últimos tempos. O problema é que, por alguma razão, fica bem mais difícil evitar isso quando os acontecimentos sobre os quais estou escrevendo são históricos. Paciência: gostei pra caramba de escrever este texto, gostei de como ficou, e agora já me afeiçoei demais a ele para conseguir mudá-lo muito – quem gosta de escrever conhece a sensação: um texto, de certa maneira, é como se fosse um filho. Felizmente, como este é apenas o primeiro volume, acho que não dei grandes spoilers, mesmo que haja alguém no planeta com algum interesse no mundo helênico (ao menos o suficiente para desejar ler esta trilogia) e que já não saiba, em linhas gerais, como a história de Alexandre continua e como ela termina. Enfim: quem já leu Aléxandros me compreende, e quem ainda não leu deveria fazer isso o quanto antes.

sábado, agosto 19, 2017

Westworld

Li em algum lugar (caramba, como eu repito essas palavras!) que Westworld foi aprovado para produção como uma aposta para tentar resolver um problema bem prático que o HBO estava tendo: a "sazonalidade" de muitos de seus assinantes, atraídos por seu "produto" mais famoso, Game of Thrones. As pessoas faziam suas assinaturas quan­do estava para estrear uma nova temporada da série, cancelavam quando ela terminava, e só voltavam a as­sinar quando era anunciada a temporada seguinte – o que acarretava longos meses de vacas magras para o canal. As cabeças pensantes responsáveis pela programação decidiram, então, que o que o HBO precisava era de outra série superproduzida e com enredo viciante, que fosse capaz de manter os espectadores interessados durante os longos hiatos entre uma e outra temporada de GoT.

(Pelo menos, essa é a versão que li: se por acaso não for bem assim, agradeço se alguém me corrigir. Pessoalmente, não tenho TV por assinatura, vejo essas séries depois, por meio da internet ou em DVD, então não acompanhei as coisas em tempo real.)

A história escolhida foi Westworld, criada por Jonathan Nolan e Lisa Joy, e o HBO acertou em cheio: estamos falando de uma das melhores e mais criativas tramas de ficção científica em mídia audiovisual (quer dizer, cinema ou TV) vistas em muito tempo. O conceito da série foi reaproveitado de um filme de 1973, roteirizado e dirigido por Michael Crichton, autor, entre muitos outros, de Jurassic Park, Congo, Linha do Tempo e O 13.° Guerreiro. O plot, por sinal, apresenta um parentesco visível com o de Jurassic Park, pois também gira em torno de um parque temático que oferece atrações únicas e inigualáveis, criadas por uma tecnologia revolucionária… E tecnologias revolucionárias, como sabemos, costumam acarretar dois problemas. Primeiro, elas atraem cobiça: há sempre concorrentes dispostos a tudo para pôr as mãos nesses segredos. Segundo, e mais grave, elas ainda não foram suficientemente estudadas e testadas, não se tem como prever as situações complexas e potencialmente perigosas que podem surgir quando essas tecnologias forem postas em uso prático – e, mesmo assim, elas são postas em uso, porque quem financiou as pesquisas quer ver retorno sobre o que foi investido. Como resultado, em Westworld, tal como em Jurassic Park, alguma coisa fatalmente vai dar errado, pois, caso contrário, não haveria história.

Num futuro próximo, o parque que dá nome à série recria o Velho Oeste americano, tal como ele ficou plasmado na imaginação popular, graças, principalmente, ao cinema. Os visitantes recebem roupas de época, os acessórios necessários, e chegam à cidadezinha de Sweetwater, no centro do parque, a bordo de um trem a vapor igual aos do século XIX. E é lá que têm o primeiro contato com aquilo que é a verdadeira atração de Westworld, seu diferencial em relação a vários outros parques: todos os personagens que alguém esperaria encontrar num lugar assim estão lá, mas não são interpretados por atores – caso no qual a interação deles com os hóspedes teria que respeitar certos limites, impostos pela segurança e pelo decoro. Em Westworld, os personagens do faroeste são androides, com cérebro eletrônico, mas corpo orgânico, tão perfeitos que é impossível distingui-los de seres humanos de verdade, e, com eles, os hóspedes podem interagir da maneira que quiserem. Qualquer maneira. É como se fosse um MMORPG, só que em live action. No linguajar dos funcionários do parque, os androides são chamados de hosts, algo como 'anfitriões', em contraposição aos guests, ou hóspedes. Os hosts se referem aos hóspedes como newcomers, que, na dublagem, foi traduzido (um tanto literalmente demais, na minha opinião) como 'recém-chegados'; eu teria usado 'forasteiros', uma tradução mais livre, mas com mais sabor de faroeste.


Certo: o que se espera de um hóspede equilibrado e saudável é que ele vá a Westworld buscando viver aventuras, coisa que o parque está preparado para oferecer como talvez nenhum outro lugar o faça. E é o que muitos realmente buscam, e encontram. Só que, é claro, nem todo mundo é equilibrado e saudável. Muitos vão lá porque a ideia de poderem fazer o que quiserem com criaturas que se parecem em tudo com seres humanos é simplesmente tentadora demais para que resistam. O leque de possibilidades inclui desde interagir com prostitutas de saloon aptas para intercurso sexual real, até a liberdade de, sem mais nem menos, sacar sua arma, matar um homem a tiros sem motivo algum, e berrar "Isso sim é que são férias!" – um lembrete sombrio de como a violência gratuita vem, mais e mais, tornando-se a ideia que as pessoas no mundo real fazem de diversão. Não se pode ter a menor dúvida de que, se um lugar como Westworld realmente existisse, muita gente iria lá só para isso, ou para coisas ainda piores.

Quem estiver me lendo sem ter ainda assistido à série deve estar se perguntando: e como é que um hóspede do parque sabe quem lá é host e quem é hóspede também? Pergunta pertinente. Com a maioria, é muito fácil, pois, mesmo em trajes de época, só faltam ter "turista" escrito na testa… Mas com alguns, é bem mais complicado: hóspedes que sejam verdadeiros aficionados do Velho Oeste, conhecedores de suas características e nuances, podem aparentar uma integração quase perfeita com o lugar. Por segurança, as armas fornecidas matam hosts, mas são inofensivas contra seres humanos – só não me perguntem como isso é possível. Mais importante ainda, os próprios hosts são programados para não ferir seriamente nenhum hóspede: no máximo você pode levar uns socos numa briga no saloon, mas nada que vá incapacitá-lo, e muito menos matá-lo. Daí decorre que, na prática, os hosts estão totalmente à mercê dos hóspedes, que ficam livres para agir de maneiras ainda mais selvagens que no Velho Oeste real. No nosso exemplo do sujeito matando outro a tiros sem motivo, no mundo real ele teria que se explicar ao xerife da cidade; em Westworld, o xerife até pode aparecer, mas isso só vai servir para tornar mais completa a diversão do bandido amador, já que, sendo um host, o xerife nada poderá fazer contra ele.

Como quase todo aparato sofisticado, os hosts são caros, e, por isso, são construídos de modo a que possam ser rebootados um número indefinido de vezes. Quando um deles "morre", é simplesmente consertado e, no dia seguinte, está pronto para outra; sua memória é apagada, restaurada de volta ao ponto em que ele ou ela possa voltar a cumprir seu papel, que pode ir de simples figuração até a função-chave de fisgar um hóspede para uma aventura: o parque oferece dezenas de narrativas para que o hóspede escolha em quais delas quer se envolver. A linda moça que deixa cair uma lata de conserva ao sair do empório local pode atraí-lo para uma trama romântica; o sargento bigodudo que conclama voluntários para o exército da União pode liderá-lo numa aventura militar ambientada na Guerra Civil; o velho caolho no saloon tem um mapa que pode ser o ponto de partida para uma surpreendente caça ao tesouro. E assim por diante. O mais extraordinário é que as narrativas acontecem, mesmo que nenhum hóspede esteja disponível ou interessado: os hosts interagem também uns com os outros, o tempo todo. Se, num determinado dia, nenhum hóspede estivesse no parque, mesmo assim o sargento não ficaria sem recrutas, nem as prostitutas sem clientes. Mais realista, impossível.

Quando a história da série começa, Westworld já opera há cerca de 35 anos; seu idealizador original foi o agora idoso Robert Ford (Anthony Hopkins – acredito que o sobrenome do personagem homenageie o legendário diretor de westerns John Ford), que, no entanto, não deu forma ao sonho sozinho. Tinha um parceiro, um sócio, Arnold Weber, cuja existência quase nunca é mencionada; de fato, só os funcionários mais antigos e inteirados da história do lugar sabem sobre ele. O que se comenta (sempre à boca pequena) é que Arnold morreu no parque, num acidente com um host – coisa que a atual administração afirma ser impossível, sendo a absoluta segurança de suas instalações um dos pontos principais de seu marketing.

Como seria natural, nos primeiros tempos os hosts eram mais simples, mais rudimentares, de construção mecânica, envoltos numa pele de borracha que oferecia uma semelhança apenas razoável de aparência humana; o padrão de corpo orgânico (na verdade, somente músculos e pele orgânicos sobre um esqueleto robótico) veio alguns anos depois. Recentemente, outro aperfeiçoamento importante está sendo implementado: uma série de upgrades no software que serve de sistema operacional aos cérebros dos androides. Um dos principais responsáveis por esses upgrades é Bernard Lowe (Jeffrey Wright, da saga Jogos Vorazes), chefe da divisão de programação do parque (que, lá, é chamada de divisão de "Comportamento"), um de seus funcionários mais antigos e discípulo direto de Ford. Lowe tem uma espécie de obsessão por melhorar a capacidade de improvisação dos hosts, que, embora programados, em linhas gerais, para agir de maneiras predeterminadas, são capazes de fazer pequenas adaptações por conta própria em suas falas e ações, coisa necessária para manter o nível de realismo quando interagindo com criaturas tão imprevisíveis quanto os seres humanos. Lowe considera que os hosts poderiam agir de forma cada vez mais realista caso pudessem aprender com a experiência – mas há um empecilho a isso: como já vimos, a cada reboot, eles têm sua memória recente apagada. Um host é capaz de tirar o chapéu amavelmente na rua principal de Sweetwater para o mesmo hóspede que o "matou" na véspera, e isso é essencial tanto para que as narrativas sigam seu curso adequadamente, quanto por razões de segurança. Lowe, entretanto, parece disposto a correr um certo risco em prol de seu objetivo, e fecha os olhos a algumas pequenas ações inesperadas de seus hosts… Só que o inesperado não se mantém "pequeno" por muito tempo. Westworld (e agora falo da série, não do parque) lida com um dos fatos mais preocupantes a respeito do desenvolvimento da inteligência artificial, que já está dando seus primeiros sinais em nossos dias: quanto mais complexo um ser se torna (seja ele biológico ou artificial), mais difícil fica prever suas atitudes, e por consequência, controlá-lo. E não fica apenas nisso: alguns hosts (ao que parece, os que passaram por experiências especialmente traumáticas) começam a ter lampejos de suas "vidas" (e mortes) anteriores, e, a partir disso, a questionar a verdadeira natureza de suas existências. Gradualmente, o espectador vai compreendendo que os hosts não são meras simulações: sua inteligência artificial atingiu um nível que fez deles seres autoconscientes, embora aprisionados num ciclo de existência fechado e imutável… Sendo assim, usá-los como brinquedos é moralmente inaceitável, e isso foi o pomo da discórdia entre Weber e Ford naqueles primeiros tempos. Como essa discórdia os afetou e ao que conduziu, eu estaria dando spoiler se contasse.

Westworld, a série, transcorre em dois ambientes: o parque propriamente dito e seus bastidores. Tal como o parque faz com seus hóspedes, a série faz com que nós, espectadores, esqueçamos que aquilo tudo é um jogo: há trechos que empolgam tanto quanto cenas de um bom filme western "de verdade". No parque, a história acompanha dois jovens hóspedes, Logan (Ben Barnes, de O Retrato de Dorian Gray) e William (Jimmi Simpson); Logan é filho do diretor-presidente da megaempresa Delos, que está em vias de adquirir o controle acionário de Westworld, e William, um executivo em ascensão na empresa e prestes a casar-se com a filha do diretor, irmã de Logan. O primeiro é um habituée do parque e um playboy de marca maior, que vai lá pelo mesmo motivo pelo qual parece fazer tudo o mais em sua vida: atrás de prazeres. William, por outro lado, está em Westworld pela primeira vez, e, por alguma razão, parece um tanto relutante, tendo concordado com a viagem mais pela insistência do futuro cunhado. Os dois acabarão aprendendo muito um sobre o outro, e sobre si mesmos. Há também um misterioso "Homem de Preto" de nome não revelado, que diz frequentar Westworld há 30 anos e se dedica com afinco a duas coisas: praticar maldades aparentemente aleatórias contra os hosts e procurar por um igualmente misterioso "labirinto", que parece esconder os segredos mais recônditos do parque, aqueles dos quais os hóspedes comuns nem fazem ideia.

Enquanto isso, debaixo do parque, em suas vastas dependências subterrâneas, questões menos "humanas", mas não menos intrigantes, são tratadas, tendo como figuras principais Bernard Lowe, sua assistente Elsie Hughes (Shannon Woodward), o excêntrico e mal-humorado roteirista Lee Sizemore (Simon Quarterman) e a chefe do departamento de Qualidade, a calculista e ambiciosa Theresa Cullen (Sidse Babett Knudsen), que tem como missão na vida ser um eterno espinho na carne do pessoal da Criação e do Comportamento, cujo trabalho é encarregada de supervisionar. As partes ambientadas no parque apostam mais na ação, já aquelas dos bastidores nos introduzem numa trama intrincada, muitas vezes narrada de forma não-linear: quando somos convidados a ver os acontecimentos através do ponto de vista de um host, principalmente, torna-se difícil dizer o que é realidade e o que não é, pois lembranças artificiais são implantadas em sua memória para dar-lhes background e torná-los personagens mais convincentes; mais ainda, é difícil saber o que está acontecendo agora e o que aconteceu anos ou décadas atrás, pois, sendo criaturas que não envelhecem, e por causa do constante apagar e regravar de memória, os hosts não têm noção da passagem do tempo. Graças a isso, a não-linearidade também se estende para as cenas do parque. Uma das principais personagens é Dolores Abernathy (Evan Rachel Wood), a linda filha de um rancheiro dos arredores de Sweetwater (ela é a moça da lata de conserva), e, por acompanharmos a história, ou um lado dela, pelo seu ponto de vista, acabamos tendo uma enorme e desconcertante surpresa perto do final da primeira temporada… Assistam para saber do que se trata.

Estejam avisados: Westworld não é uma daquelas séries concebidas para proporcionar momentos de relax mental (em bom português: para nos liberar durante uma hora da obrigação de pensar). Vocês terão que estar dispostos a pôr os neurônios a trabalhar, caso pretendam entender alguma coisa da trama. Entendê-la por completo, eu acho quase impossível, e talvez o mais importante nem seja entender, e sim tomar a iniciativa de questionar elementos da nossa realidade que sempre consideramos certos, imutáveis, pétreos – começando pelo que, diabos, é essa tal "realidade", afinal de contas. E, por mais que exija esforço, podemos dizer, sem medo de errar, que o HBO conseguiu o que pretendia: é uma trama, sem dúvida alguma, viciante.

No filme original, Westworld era um de três parques administrados pela Delos – nome que, por sinal, pertence a uma ilha grega, suposto local de nascimento dos deuses gêmeos Apolo e Ártemis, filhos de Zeus com a titânide Leto; não consegui estabelecer a relação entre isso e o conceito do filme ou da série. Talvez Crichton tenha simplesmente gostado da sonoridade. Enfim, dizia eu, no filme havia dois outros parques, sendo um inspirado na Idade Média europeia, o outro no Império Romano. Na primeira temporada da série, há menções fugidias ao fato de Westworld fazer parte de um complexo de seis parques, mas só é revelada alguma coisa sobre os outros (na verdade, sobre apenas um deles) no último episódio da temporada, quando alguns personagens invadem um laboratório de criação que ainda não havia sido mostrado e encontram ali hosts caracterizados como samurais, o que significa que um dos outros parques deve ter como tema o Japão feudal. Há boatos circulando na internet de que os produtores da série estariam em tratativas com George R. R. Martin a respeito da possível introdução, em futuras temporadas de Westworld, de tramas ambientadas num parque inspirado em Game of Thrones… Caramba! Se as pessoas já vão a Westworld procurando por sexo e violência, imagine o que fariam em… "Westerosworld"?!? Se os boatos forem verdadeiros, e se os roteiristas conseguirem pensar em uma boa história, será com certeza empolgante ver rolar esse crossover entre duas das séries mais aclamadas do HBO em todos os tempos.

quarta-feira, julho 19, 2017

A Arte da Ficção

Tudo bem, ninguém precisa conhecer teoria literária para ler e apreciar a boa literatura – e, na maioria das vezes, nem mesmo para identificar aquela que não é tão boa assim. A função da TL consiste basicamente em investigar como um texto literário funciona, o que é essencial para escritores, críticos e professores, mas não para o leitor comum. É como no cinema: você não precisa saber como um filme foi feito para apreciá-lo, embora precise caso queira se aprofundar no estudo do cinema como forma de arte. De qualquer forma, mesmo que você seja apenas um leitor, é provável que, à medida em que acumula "horas de voo" e ganha experiência, venha a se sentir curioso sobre a construção de um romance ou de um conto. Para quem chegou a esse nível, o conhecimento de alguns pontos básicos de teoria literária (que, na verdade, não são nenhum bicho de sete cabeças) pode ser útil para ampliar sua compreensão dos motivos para que uma obra seja como é, e não de outro jeito – entre outras coisas, pode-se aprender a ver as opções que o escritor tinha, o porquê de ele ter feito as escolhas que fez, e, muitas vezes, até mesmo a explicação para o fato, de outra forma misterioso, de que um texto tenha a capacidade de nos manter pendurados até seu último caractere, enquanto outro nos deixa entediados.

Uma forma fácil de ter acesso a esses pontos básicos é o que o escritor e professor britânico David Lodge oferece neste livro, na verdade uma coletânea de 50 pequenos artigos escritos para o suplemento dominical do jornal londrino The Independent. Nesses textos, Lodge procurou compartilhar um pouco de sua erudição no campo da teoria literária numa linguagem popular, acessível ao público não especializado. Cada uma dessas colunas semanais publicadas no jornal trata de um assunto pertinente à literatura de ficção, e cada assunto desses, com muita probabilidade, já foi objeto da curiosidade de alguns leitores de razoável experiência. São questões que pipocam em nossa mente durante uma leitura, depois que já nos familiarizamos o suficiente com o universo da literatura para observar tais detalhes. Por exemplo, o que leva um escritor de enorme habilidade a intrometer-se na narrativa, "conversando" com o leitor e quebrando a preciosa ilusão de realidade – coisa que parece mais adequada a um aprendiz em suas primeiras tentativas? Por que certas histórias são melhor narradas em terceira pessoa, outras em primeira pessoa pelo protagonista, e outras, ainda, em primeira pessoa também, mas por um personagem secundário? Por que uma descrição pormenorizada de aparência e/ou personalidade nem sempre é a melhor maneira de apresentar um personagem? Como se constrói o suspense, e como saber a hora certa de quebrá-lo? Essas e muitas outras questões são aqui explicadas de forma concisa e descomplicada, mas não superficial.

Cada capítulo do livro (ou, originalmente, cada coluna de jornal) é estruturado da seguinte forma: primeiramente, o autor reproduz um ou dois trechos de obras literárias que exemplifiquem o ponto a ser discutido, para, em seguida, tecer suas observações a respeito. Vou confessar que conhecia bem poucos dos exemplos usados, pois, com algumas exceções, Lodge vale-se principalmente de expoentes da "literatura urbana" de língua inglesa do século XX, pela qual nunca me senti verdadeiramente atraído – em geral, são histórias comuns sobre gente comum, por vezes com o autor tentando empregar alguma técnica narrativa "revolucionária", que, não raro, transforma a leitura num tormento, e, mesmo quando não, não altera a banalidade ou o escasso interesse do tema (eu, pelo menos, não consigo me interessar pelas impressões de um yuppie inglês sobre os motoristas de táxi de Los Angeles, só para dar um exemplo). Porém, entre as ditas exceções (que não são literatura urbana, ou não são do século XX, ou as duas coisas) há algumas muito importantes, como Jane Austen, Edgar Allan Poe, Charles Dickens, Rudyard Kipling, Joseph Conrad, Ernest Hemingway… Seja como for, o fato de não termos lido a obra analisada não constitui impedimento para que consigamos acompanhar o pensamento de Lodge e captar o que ele quer nos ensinar.

Um exercício divertido que fui fazendo enquanto lia este livro foi o de ir tentando enumerar outros exemplos das características que o autor ia apontando, inclusive exemplos da literatura de língua portuguesa. Logo no segundo capítulo, o assunto é o "autor intrometido" que mencionei há pouco, e os exemplos escolhidos por Lodge são George Eliot e E. M. Forster – mas, para um brasileiro, como não lembrar imediatamente do nosso Machado de Assis? Intrometer-se na história parece, à primeira vista, um "tiro no pé", ou meramente um erro pueril de um aspirante a escritor que ainda tem muito a aprender. Criar uma ilusão de realidade, conseguir que o leitor imerja na narrativa ao ponto de esquecer que está lendo, esquecer até de si mesmo e da realidade que o cerca, para viver durante algumas horas dentro de uma história, é uma das mais belas (e difíceis) realizações que um escritor de ficção pode alcançar; então, qual o sentido de pôr isso a perder, começando uma conversa com o leitor, o que terá o efeito de puxar-lhe o tapete, jogando-o bruscamente de volta ao mundo real?… Um autor do calibre de Machado jamais faria isso de forma ingênua, o que nos obriga a concluir que ele tinha um objetivo, um que, em sua opinião, fazia valer a pena aquilo que se perdia em termos de realismo. E Lodge nos mostra (referindo-se a Forster e Eliot, é claro, mas dá para aplicar a qualquer autor que lance mão desse recurso) que objetivo era esse: depois que o narrador já se expôs como tal aos olhos do leitor, ele fica livre para emitir opiniões ou fazer observações que deixam a história mais interessante ou divertida, mas que não soariam convincentes vindas dos personagens. Funciona particularmente bem se tiver uma certa graça – e, verdade seja dita, poucos têm condições de superar Machado de Assis quando o assunto é um senso de humor sutil e certeiro.

Percorrer os ensaios de Lodge chamou-me a atenção para um punhado de detalhes e características da narrativa literária que, até então, eu, por assim dizer, via como fatos consumados – como algo que era assim ou assado porque não era possível ser de outro jeito, ou por motivos que nunca saberemos, tal como a forma do tronco de uma árvore: por que ele cresceu retorcido em vez de reto, ou por que se bifurcou? Para ser menos metafórico, poderia dizer que, muitas vezes, lendo uma história, assumi que ela fosse como era, simplesmente, porque o autor não havia encontrado outra maneira de fazer a coisa. E não é que isso nunca aconteça, mas essa não é regra: na grande maioria das vezes, cada característica de uma história é resultado de uma ou mais decisões conscientes do autor. Exemplo: no capítulo intitulado O Futuro Imaginado (que toma como exemplo os parágrafos iniciais de 1984, de George Orwell), Lodge aponta para o fato, de certa forma curioso, de que mesmo as histórias que tratam do futuro são geralmente narradas com os verbos no tempo passado. À primeira vista, o mais lógico seria utilizar o tempo futuro, já que Orwell estava escrevendo sobre eventos ambientados quase 40 anos depois de sua época, mas vamos concordar que seria bizarro se 1984 começasse assim: "Será um dia claro e frio em abril, e os relógios soarão as treze horas". E por que seria bizarro? Porque, como observa Lodge, "o passado é o tempo 'natural' da narrativa; até mesmo o uso do tempo presente tem algo de paradoxal, uma vez que qualquer coisa que tenha sido escrita já aconteceu". Se aconteceu de forma concreta ou apenas na imaginação de quem conta a história, pouco importa, mas as coisas têm que acontecer antes de serem escritas, e daí o uso do tempo passado. Isso me fez perceber outra coisa: aqui no blog, quando estou resumindo o enredo de um livro, geralmente uso o tempo presente. Nunca parei para pensar no porquê disso, mas, agora que sou levado a refletir a respeito, creio que seja porque, ao resumir, é como se eu estivesse acompanhando o leitor (o meu leitor, no caso) durante sua própria leitura do livro que estou indicando (ou contraindicando), como se essa leitura estivesse em progresso no momento em que escrevo, e daí porque o tempo presente parece mais adequado. Isso cria uma certa dificuldade quando estou falando de um livro que envolve fatos históricos misturados com a ficção: ao me referir a coisas que realmente aconteceram, sinto-me impelido a usar os verbos no passado, o que, misturado ao presente usado para os eventos fictícios, exige uma atenção especial para tentar evitar que o texto fique estranho. E sei que nem sempre tive sucesso nisso: eu próprio sempre fui da opinião de que um texto no qual os tempos verbais ficam variando dá uma sensação de amadorismo, ou pior, de desleixo. Escrever é uma das coisas que mais me dão prazer nessa vida, mas também dá um bocado de trabalho. Bem, o trabalho faz parte do prazer: se fosse fácil, não teria graça.

Creio que, com esses exemplos, já dá para ter uma ideia de como A Arte da Ficção funciona e o motivo de o livro ser uma verdadeira chave da sala do tesouro para os interessados em entender o que há por trás de um conto ou de um romance e como funcionou a sua criação. Lê-lo de cabo a rabo pode ser um tanto cansativo para quem não está acostumado a estudos desse tipo, mas não deixem que isso os desanime: experimentem ler um ou dois capítulos por dia e mantenham o livro à mão para consultá-lo quando, no decorrer de suas leituras diversas, encontrarem algum ponto que desperte a curiosidade. Geralmente, a melhor maneira de compreender a teoria é aplicando-a na prática, e aqui não é diferente.

domingo, junho 11, 2017

Mutação

Antes de redigir um post sobre um livro, gosto de saber um pouco sobre o autor, nem que seja por meio da Wikipédia, e, no caso de Robin Cook, foi a ela que recorri. Já sabia alguma coisa sobre ele, embora Mutação seja o primeiro livro seu que realmente li. Cook é considerado o fundador de um subgênero de suspense ao qual alguns se referem como "horror médico", que talvez fosse um produto inevitável da combinação de sua formação e experiência na medicina com o gosto por escrever e uma imaginação particularmente fértil para tramas densas e sombrias. Confesso que não me sentiria muito à vontade de me tratar com o sujeito que escreveu Coma e Cérebro, suas obras mais famosas; dessas, só li as sinopses, que já são bem perturbadoras. Pretendo ler os livros no futuro. Em Mutação, Cook trata de um dos ramos mais fascinantes e, ao mesmo tempo, potencialmente perigosos da pesquisa médica moderna: a engenharia genética.

Esse, por sinal, é um daqueles assuntos sobre os quais é difícil ter uma opinião definitiva e categórica – a menos que você seja uma pessoa simplória, que acha que entende tudo e vai logo se posicionando contra… Ou a favor. As possibilidades são imensas, mas os perigos também. Desde que passamos a dominar um grau razoável de tecnologia, a lei da seleção natural perdeu a maior parte do poder sobre a nossa espécie. Na natureza, um animal que nasça com alguma doença genética, ou com qualquer característica debilitante, normalmente não sobrevive até a idade adulta, e, por consequência, não chega a se reproduzir, e não passa adiante a característica indesejável. É cruel, mas garante que a espécie se perpetue com indivíduos saudáveis. Já entre nós, humanos, é diferente: se uma criança nasce com algum problema, fazemos todos os esforços possíveis para que ela sobreviva. É claro que, do ponto de vista moral, essa é a coisa certa a se fazer, e esse senso de dever de uns para com os outros (solidariedade, se quiserem) foi um dos motivos do nosso sucesso como espécie; porém, a natureza é implacável. O fato de todos esses indivíduos que a seleção natural teria eliminado sobreviverem e eventualmente se reproduzirem acabará fazendo com que, a longo prazo, toda a humanidade seja portadora de algum tipo de doença genética – a menos que, até lá, tenhamos encontrado meios de diagnosticar e eliminar essas doenças ainda nos estágios iniciais da vida embrionária. Em resumo, pode chegar o dia em que a engenharia genética se tornará essencial para a própria sobrevivência de nossa espécie.

Por outro lado, a História mostra que novas tecnologias frequentemente recebem aplicações pouco louváveis, e a ficção científica já tentou por mais de uma vez antecipar o que poderia acontecer caso o DNA humano começasse a ser manipulado para fins meramente utilitários. Quem já tiver certa idade, suficiente para ter lido os quadrinhos da Marvel lá pelo final dos anos 80, início dos 90, talvez se lembre das histórias de Paradox, criadas por Bill Mantlo e desenhadas por Val Mayerik, e que, no Brasil, foram publicadas na revista Aventura & Ficção. Essas histórias, se não me falha a memória, ambientavam-se em meados do século XXII, e, nelas, existiam as "espécies servis", desenvolvidas por meio da engenharia genética para sobreviverem sob as condições vigentes nos diferentes planetas do sistema solar, com o único objetivo de extrair minérios e outras matérias-primas para a Terra; os membros dessas espécies eram cidadãos de segunda categoria (na prática, de quinta ou sexta), tratados como párias pelos humanos "originais". Isso já era bem ruim, mas a aparência das espécies em questão ainda era relativamente normal. A bizarrice se eleva à enésima potência no livro Man After Man, de Dougal Dixon, que tenta especular sobre as novas formas que nossos descendentes poderiam assumir à medida em que seus códigos genéticos fossem sendo reescritos para responder a novas "necessidades" impostas pelo ambiente, na Terra ou fora dela, começando alguns séculos no futuro e prosseguindo por milhões de anos.

Porém, não é preciso ir tão longe, nem se afastar tanto da nossa realidade, para compreender por que essa coisa da engenharia genética merece ser tratada com a máxima cautela. Basta pensar na clonagem, que não é exatamente engenharia genética, mas está estreitamente relacionada com ela, e nos usos que ela poderá ter num futuro próximo. Muitas pessoas adorariam a ideia de clonar um animal de estimação do qual gostavam muito e que morreu, e isso dificilmente poderia causar algum dano a alguém – mas a coisa muda de figura se quem tiver morrido for uma criança, e os pais decidirem apelar para a clonagem a fim de "ter o filho de volta". A criança-clone, é claro, não seria uma "ressurreição" da criança original, e sim algo como uma irmã gêmea dela, só que nascida depois, e todos sabemos que gêmeos só são idênticos na aparência: em geral, têm personalidades muito diferentes. Aí é que surge a pergunta inevitável: será que esses pais teriam a maturidade e o bom senso para entender que estão diante de uma pessoa única, com uma individualidade que precisa ser respeitada, e não de um mero substituto para aliviar sua saudade de alguém que já se foi? Acho que o fato de recorrerem à clonagem, em vez de terem outra criança da maneira normal, ou mesmo adotarem uma (que seriam formas de aceitar o acontecido e seguir com a vida) responde por si só, e não é preciso ser psicólogo para enxergar o quanto seria danoso para uma criança ser criada por pessoas que cultivam essa expectativa irreal de que ela seja alguém que não é e nunca será. Esse é só um exemplo de como é importante questionar não apenas se uma coisa pode ser feita, mas também (e, às vezes, principalmente) se ela deve ser feita, e questionar, acima de tudo, os motivos que nos levam a querer fazê-la, bem como suas possíveis consequências. Infelizmente, nem sempre foi isso o que aconteceu no passado, e é pouco provável que sempre aconteça no futuro.

E lá se foi mais um longo introito… Bem, acho que uma das coisas legais de se fazer um blog é poder relaxar, escrever do jeito que mais nos agrada, sem tanta preocupação em seguir manuais ou regras. Se surge um assunto interessante, por que não me permitir algumas digressões, não é mesmo? Mas já chega por ora: vamos ao livro.

Mutação é a história de um homem chamado Victor Frank (nenhum prêmio por identificar o personagem de uma obra clássica de terror e ficção científica ao qual esse nome faz alusão!) e sua família: a esposa, Marsha, e os filhos, David e Victor Jr., apelidado de VJ. Tanto Victor quanto Marsha são médicos; ela se dedica à psiquiatria, enquanto ele trabalha com pesquisa, tendo sido um dos três sócios fundadores da Chimera Inc., empresa de biotecnologia que se tornou uma gigante do setor, fazendo dele e de seus parceiros homens ricos. O casal parece ter tudo o que poderia desejar, exceto uma coisa. Complicações no parto de David comprometeram a capacidade de Marsha conceber, então, quando o filho mais velho está com cinco anos, ela e o marido decidem ter o segundo com a ajuda de uma mãe de aluguel. O óvulo é de Marsha, os espermatozoides de Victor, portanto o bebê resultante é biologicamente filho dos dois, mesmo sendo parido por outra mulher. E o procedimento parece ter sido tão bem-sucedido quanto se poderia desejar, tornando-os pais de um menino perfeito e saudável.

Entretanto, à medida que VJ cresce, fica evidente que ele é muito diferente das crianças de sua idade. Começa a falar com poucos meses, aprende a ler com pouco mais de um ano, e aos três é um brilhante jogador de xadrez e fera em computação (e creiam, lidar com os computadores da década de 80 exigia bem mais perícia que com os de hoje). Possui um QI de gênio, mas parece desprovido de emoções, é avesso a demonstrações de afeto, e prefere a companhia de adultos, já que está anos-luz à frente das outras crianças. Por volta dos três anos e meio, seu QI, inexplicavelmente, sofre uma brusca queda, e ele desaprende muitas coisas que dominava, mas, mesmo assim, continua a possuir uma inteligência muito acima da média, e não tem dificuldade para reaprender o que esqueceu. Estranhamente, a babá que cuida dele e de David, e que a princípio tinha completa adoração pelo caçula, passa a ter medo dele, a evitar sua presença e a repetir uma conversa religiosa sobre o menino ser um demônio. Pouco tempo depois, quando VJ está com cinco anos e David com dez, o garoto mais velho falece, vítima de uma forma rara de câncer – que, sem demora, tira a vida também da babá, uma coincidência quase inacreditável: esse tipo de câncer é tão raro, de fato, que a possibilidade de que afete duas pessoas de uma mesma casa é quase nula. E, no entanto, acontece, deixando VJ na condição de filho único.

A parte principal da narrativa acontece quando VJ está com dez anos. Victor se orgulha do filho, e Marsha, embora o ame profundamente, de vez em quando sente medo, conseguindo compreender, ao menos em parte, os delírios religiosos da antiga babá – mas, é claro, ela, que passa seus dias tratando as desordens mentais dos outros, não pode se permitir esse tipo de "maluquice". A vida dessa pequena família segue tão normal quanto possível, até ser sacudida por dois eventos trágicos cujo significado só Victor conhece: dois meninos de cerca de três anos, filhos de funcionários graduados da Chimera, ambos dotados de intelecto superior, sofrem algum tipo de mal súbito no cérebro e morrem, quase ao mesmo tempo. Por alguma razão, isso deixa Victor preocupado com VJ, o que ele não consegue ocultar de Marsha por muito tempo, e, naturalmente, ela quer saber o que uma coisa tem a ver com a outra. Quando Victor é forçado a se explicar, revela-se o porquê das características únicas do filho do casal e qual a relação entre ele e aqueles dois meninos que ele e seus pais nem conheciam.

Não entendo o suficiente de biologia (e não sei coisa alguma sobre medicina) para poder avaliar se as explicações oferecidas por Cook acerca do experimento que resultou na superinteligência de Victor Frank Jr. são corretas ou teoricamente possíveis, mas, para o leitor leigo, elas soam convincentes o bastante; além disso, por que não seguir o exemplo de H. G. Wells e pensar nas possíveis consequências de um avanço tecnológico, em vez de nos determos nas suas minúcias técnicas? Pois, como já entreguei, Victor pai decidiu aproveitar o plano dele e da esposa de terem um filho para colocar em prática pela primeira vez em um ser humano as experiências que já vinha realizando com animais, manipulando os genes para tentar aumentar a capacidade intelectual. Tal como seu quase-xará da obra de Mary Shelley, Victor vai descobrir que criar um novo ser é a parte fácil: prever e/ou controlar suas ações é que é o verdadeiro desafio, o que pode levar a consequências terríveis.

VJ, desde muito pequeno, passa muito tempo na Chimera, primeiro no laboratório do pai; mais tarde, passa a circular por outras dependências do lugar na companhia de Philip, um empregado mentalmente atrasado com quem fez amizade – ou seria melhor dizer que o recrutou a fim de poder dispor de força muscular quando precisar? Já mais velho, o garoto é frequentemente visto entrando na empresa e tornando a sair horas depois, mas ninguém parece capaz de dizer ao certo onde ele passa esse tempo ou o que faz. Tem passe livre para quase qualquer lugar do vasto complexo, graças à combinação de sua condição de filho de um dos donos da companhia com sua capacidade de cativar a todos quando quer – pois, como os psicopatas, pode mostrar-se muito simpático e sedutor quando isso for útil para a consecução de seus objetivos, apesar de não ser capaz de formar laços emocionais verdadeiros. Quando fatos estranhos e inexplicáveis começam a ser descobertos na empresa, ninguém os relaciona à presença constante do garoto, até as peças começarem a se ligar de uma forma que não pode mais ser ignorada… E paro por aqui, para não dar spoiler.

A escrita de Cook, pelo menos neste livro, não é nenhum primor de estilo; baseado nisso, o leitor pode ficar tentado a achar que ele é aquele tipo de autor que tem repertório para bolar boas ideias em razão de seu conhecimento profundo de uma determinada área – no caso, a medicina –, mas a quem faltam a sutileza e o refinamento técnico que também são tão importantes para um bom escritor. Eu não teria tanta certeza… Pode ser assim em relação à técnica, mas não se pode dizer que Cook não tenha uma considerável habilidade para decifrar o espírito humano (imagino que isso também seja necessário a um bom médico) e para retratar isso tudo em suas histórias. Em Mutação, isso aparece nas personalidades do casal Victor e Marsha Frank, em especial no modo como cada um deles age em relação ao filho: ela, seriamente preocupada com cada coisa inacreditável que vai descobrindo a respeito de VJ; ele, tentando achar tudo normal. Por exemplo, quando o gato da família é cruelmente morto por alguém de identidade desconhecida que parece estar tentando intimidá-los, e deixado para que o encontrem, Marsha fica transtornada com a tranquilidade de VJ diante do fato horrível; para ela, o menino deveria ao menos demonstrar alguma emoção, fosse raiva, pesar ou o que fosse – qualquer coisa, menos a mesma frieza inabalável de sempre. Já Victor acha que o filho está simplesmente "agindo com maturidade". Mais adiante no livro, quando Victor descobre certos feitos extraordinários de VJ, sua reação pode parecer excessivamente tranquila, mas, num segundo pensamento, lembramos que a relação dele com o menino não é apenas a de um pai com o filho, mas também (e talvez predominantemente) a de um cientista com o resultado de seus mais ousados experimentos. E o resultado de experimentos científicos precisa ser encarado com objetividade, não importa o quão empolgante (ou horripilante) possa ser.

Há uma observação que é impossível deixar de fazer: VJ lembra fortemente o garoto Damien, do livro/filme A Profecia, e isso serve para nos fazer refletir que a humanidade sempre terá seus medos, ainda que eles vão mudando conforme os tempos. E isso nem sempre significa que novos medos vão substituindo os antigos: muitas das coisas que hoje tememos são as mesmas que nossos ancestrais temiam, sejam coisas sobrenaturais como demônios ou fantasmas, ou concretas como guerra e doenças, e a isso se somam novos temores, como o do que pode acontecer caso as tecnologias cada vez mais incríveis que vão sendo desenvolvidas caiam em mãos erradas, sejam usadas de forma irresponsável, ou simplesmente acabem demonstrando ser mais do que somos capazes de administrar. Os livros de Robin Cook proporcionam uma experiência envolvente e diferente aos apreciadores do suspense, mas também cumprem a função de nos fazer pensar nos perigos de tudo isso. Se há algo que nós, meros mortais, possamos fazer a respeito, é outra questão, mas uma coisa podemos dar como certa: se estivermos cientes dos riscos e já tivermos refletido sobre eles, talvez tenhamos chance de fazer alguma coisa; por outro lado, se o que vier por aí nos apanhar desprevenidos e ingênuos, não teremos chance alguma.