segunda-feira, março 05, 2018

Conan, o Bárbaro (Livro 1)

Não vou me meter a biografar o Pipoca & Nanquim ou seus membros – contento-me em dizer o que todo mundo que os conhece já sabe: trata-se de um dos melhores, e provavelmente o melhor canal dedicado à cultura nerd no YouTube brasileiro, com montes de vídeos instrutivos, divertidos e por vezes inspiradores, principalmente a respeito de cinema e quadrinhos (como o nome do canal sugere), mas não deixando de abordar também games, literatura e assim por diante. Daniel Lopes, Bruno Zago e Alexandre Callari entendem pacas do que falam, e, tão ou mais importante que isso, realmente amam esse negócio. E o mais legal: para benefício geral da nação nerd de língua portuguesa, os caras agora têm a própria editora, quer dizer, passaram do estágio de apenas "falar sobre" para o de produzir material. E que material! Este ambicioso projeto vem suprir uma lacuna que os fãs brasileiros de Robert E. Howard sempre sentiram: uma edição que fosse definitiva, contendo todas as histórias por ele escritas sobre sua mais famosa criação. E, palavra de honra, a qualidade mostrada neste primeiro volume me surpreendeu, ainda que minhas expectativas não fossem nada baixas, considerando a evidente paixão desses camaradas pela obra de Howard e o esmero que eles costumam colocar no que fazem, o que dá pra sentir só de assistir a seus vídeos. Callari, que, dos três, parece ser o mais ligado à literatura e o mais fã de Conan, encarregou-se da tradução, que ficou excelente – um tipo de tradução que, infelizmente, é muito raro, aquele feito por alguém que, além da capacidade técnica para tanto, tem um conhecimento profundo do assunto do qual a obra trata. A apresentação gráfica e editorial é de babar: a capa dura ostenta uma pintura de Frank Frazetta, simplesmente um dos mais aclamados ilustradores de fantasia de todos os tempos, e famoso, em especial, por causa de seu trabalho com Conan – e na capa propriamente dita, é só isso. O título, nome do autor e demais informações necessárias estão numa sobrecapa de acetato transparente que pode ser removida e recolocada à vontade, de modo que nada atrapalhe quando você quiser apenas admirar a arte de Frazetta, ou mostrá-la a alguém. O único e ligeiro senão no aspecto da qualidade editorial é o papel do miolo do livro; para uma edição tão caprichada, eu teria escolhido um papel melhor, o que poderia encarecer um pouco o produto final, mas valeria e muito a pena.

Tem gente que simplesmente pula introduções e prefácios; eu sou a favor de pelo menos dar-lhes uma chance, e, na introdução deste primeiro volume, Alexandre Callari opta por não se estender e apenas oferece ao leitor de primeira viagem, se houver algum, algumas informações importantes sobre o personagem e seu criador. Minha única objeção refere-se à parte que diz que Robert E. Howard é "amplamente aceito" como o pioneiro do subgênero sword and sorcery; e não é uma objeção ao fato de Callari estar dizendo isso, pois, de fato, a maior parte dos leitores e fãs do subgênero atribuem a Howard a sua invenção. Porém, nem sempre uma informação muito difundida está cem por cento correta: o autor anglo-irlandês Lord Dunsany escreveu histórias desse tipo mais de vinte anos antes dele. Não tenho certeza se Howard chegou a lê-lo, mas é bem provável que sim, já que H. P. Lovecraft, com quem ele manteve intensa correspondência durante anos, conhecia e admirava Dunsany (como podemos constatar em seu famosíssimo ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura), e seria natural que tivesse comentado sobre ele com o amigo. De qualquer modo, se Dunsany influenciou Howard, não foi de forma vigorosa; na verdade, não consigo pensar em ninguém que pareça ter tido alguma influência notável sobre este último, cujo estilo e temática sempre me pareceram únicos. É claro que nenhum escritor se faz a partir do nada; Howard, como todos, teve antecessores que lhe deram um norte. Porém (e isso são poucos os que conseguem), ele foi capaz de aprender com esses autores sem se tornar parecido com eles.

Callari também toca em um, ou melhor, dois pontos importantes da cosmovisão de Howard, que ficam mais e mais evidentes conforme vamos percorrendo as histórias deste primeiro livro: sua crença de que a barbárie é o estado natural do homem (um fato incontestável, mas nem sempre o que é natural é melhor) e de que o homem bárbaro é mais digno, "limpo" e merecedor de admiração que o civilizado (uma ideia pra lá de discutível). O mito do "nobre selvagem" (aliás, eu não sabia que esse conceito era de Rousseau; valeu, Alexandre!) está tão presente nos contos de Conan quanto no romance O Guarani, de José de Alencar – só que de forma bem mais radical. Para Howard, o homem civilizado é sempre traiçoeiro, corrupto e mentiroso, enquanto os bárbaros são retos e leais, incapazes de falsidade; acho um tanto surpreendente que ele tivesse tal opinião, sendo, como era, um apaixonado por História, e é provável que a tivesse revisto, caso vivesse o suficiente para chegar a um certo grau de maturidade. Porém, é de fantasia que se trata: o mundo é do autor, e, nele, as coisas são como sua imaginação quiser que sejam.

Uma das boas sacadas desta nova edição das histórias de Conan é algo que pode parecer óbvio, mas que ninguém ainda havia feito: elas nos são apresentadas na ordem em que foram publicadas (o que não é necessariamente sinônimo de na ordem em que foram escritas). Assim, a primeira é A Fênix na Espada (1932), a primeira aventura de Conan propriamente dita, que o mostra já como rei da Aquilônia, o mais poderoso reino de sua era. Trata-se de uma reescrita da história By This Axe I Rule! ('Por Este Machado Eu Governo!'), escrita em 1929, tendo como protagonista Kull da Atlântida, o primeiro herói de sword and sorcery criado por Howard (pois Salomão Kane, de 1928, não é exatamente sword and sorcery). Kull, na minha opinião, é um personagem tremendamente subestimado, embora não seja o único: depois que Conan emplacou, nenhum dos outros heróis de Howard teve muita chance de mostrar seu potencial. O atlante serviu, mais ou menos, de protótipo para o cimério, mas os dois não são o mesmo personagem com nomes e ambientações diferentes, como alguns detratores de Howard, do alto do seu preconceito, já afirmaram: cada um deles é único. Conan é diferente do cimério típico, como faz notar o conde Próspero, seu amigo e conselheiro, nessa primeira história: enquanto seus compatriotas são austeros e até um tanto lúgubres, ele é apaixonado pela vida em todos os seus aspectos. Deixou a terra natal porque ansiava por ver as maravilhas do mundo e viver aventuras; gosta de rir e divertir-se, gosta de boa comida, de vinho e de mulheres. Não sabemos o suficiente dos atlantes para poder dizer se Kull é como eles ou não, mas, em comparação com Conan, ele é mais introspectivo, dado a reflexões sobre o mundo e a existência. Isso, porém, pode ser apenas reflexo de uma maior maturidade, pois a maioria das histórias de Kull o mostram já como rei e um homem plenamente adulto, enquanto as de Conan cobrem um arco de tempo muito maior, e muitas delas tratam da juventude do personagem.

Pra variar, divaguei; vamos voltar a A Fênix na Espada. A história põe em cena um Conan maduro, que já deve ir adiantado na casa dos 40 e ocupa o trono da Aquilônia há alguns anos. O cimério vê com uma certa amargura o quanto a opinião do povo sobre ele mudou ao longo de tão pouco tempo: quando derrubou o rei anterior, o insano e tirânico Numedides, ele foi aclamado como libertador; anos depois, os aquilonianos resmungam contra ele, ressentidos por serem um povo civilizado sendo governado por um bárbaro. O maior responsável por isso é Rinaldo, um bardo meio louco, mas de inegável talento, que açula o povo entoando canções de lamento por Numedides, como se este tivesse sido um rei virtuoso em vez do doido devasso e sanguinário que efetivamente foi, e descrevendo Conan como um bruto e um tirano (em By This Axe I Rule!, o nome do poeta era Ridondo). Rinaldo, porém, é um sonhador sem qualquer espírito prático. Quem se aproveita do efeito que suas canções têm sobre a população é Ascalante, um conde aquiloniano que perdeu seu título e terras, talvez por ocasião da queda de Numedides, e agora está urdindo uma trama para derrubar e matar Conan. Vários outros conspiradores se juntam a ele, todos planejando traições mútuas (afinal, são homens civilizados). O mais interessante é que Ascalante tem um escravo chamado Toth-Amon, um estígio (da Stygia, reino inspirado no Egito) que diz já ter sido um grande mago, cujo nome inspirava temor até em reis e feiticeiros poderosos. Acontece que todo o seu poder estava atrelado a um anel, e este foi roubado… Caramba, parece que certas ideias realmente caem em várias cabeças ao mesmo tempo quando chega a hora: do outro lado do Atlântico e mais ou menos na mesma época, Tolkien estava dando forma a suas histórias sobre Sauron e o Um Anel!… Privado de seus poderes e reduzido à servidão, Toth-Amon faz planos sombrios de vingança contra seu senhor e anseia pelo dia em que voltará a ser grande e temido. E já basta, para não dar spoiler. É interessante notar que, além desta, o mago estígio aparece em outra história, O Deus na Urna, a última deste volume, que foi escrita depois, mas, cronologicamente, passa-se antes de A Fênix na Espada, além de ser mencionado em A Hora do Dragão – e essas são todas as suas aparições em histórias de Robert E. Howard. Outros escritores que levaram adiante o legado do autor, notoriamente L. Sprague de Camp e Lin Carter, exploraram muito mais o seu potencial vilanesco, fazendo dele um dos mais perigosos e recorrentes adversários de Conan, ideia que seria ainda mais expandida nos quadrinhos.

Outra coisa que eu não poderia deixar passar em branco: para o leitor bem enfronhado no universo de Howard, há em A Fênix na Espada vários detalhes que denunciam o fato de que se tratava originalmente de uma aventura de Kull. Em seu diálogo com Próspero, Conan diz que "há alguma coisa oculta, um movimento sutil do qual não estamos cientes. Eu o sinto tal qual, na minha juventude, sentia o tigre escondido na grama alta". A juventude de Kull, não a de Conan, está estreitamente relacionada com tigres: sua tribo de nascimento e seu nome, se chegou a tê-lo, não eram conhecidos, pois ele foi achado, pelos caçadores da Tribo do Mar, vivendo na floresta com uma família de tigres, animais que também tinham um papel importante na mitologia da Atlântida, cujas tribos bárbaras mantinham com eles uma relação marcada por cautela e respeito. Ainda mais bárbaros que os cimérios, os atlantes acreditavam em totens, isto é, espíritos animais que protegeriam cada pessoa – e o totem de Kull, naturalmente, era o tigre. Mantendo a simetria entre os dois personagens, e já que (ao menos aparentemente) os cimérios não tinham totens, Conan, durante seus dias de pirata, ganhou o cognome de Amra, 'leão' na língua de alguma tribo fictícia da Costa Negra; mais tarde, como rei da Aquilônia, ele adotaria um leão dourado como emblema pessoal.

Depois de A Fênix na Espada, temos A Cidadela Escarlate, que foi a primeira história pensada desde o início para ser sobre Conan, e também esta apresenta o cimério como rei. Amalrus, rei de Ophir – reino aliado da Aquilônia – envia uma mensagem urgente pedindo ajuda, pois, segundo ele, o exército de Koth, sob o comando do rei Strabonus, está invadindo seus domínios. Sem de nada suspeitar, Conan lidera um contingente do exército aquiloniano até Ophir, só para descobrir que era tudo um engodo: Amalrus e Strabonus, na verdade, estão mancomunados, e tramaram uma vil traição contra ele (são civilizados, lembrem-se). As tropas aquilonianas, em terrível inferioridade numérica, são exterminadas, e o rei bárbaro é aprisionado. Sua captura com vida só é possível graças aos truques do mago Tsotha-lanti, pois, se dependesse dele, Conan não teria se rendido, e sim morrido com a espada na mão, levando consigo quantos inimigos pudesse, no velho estilo cimério. Uma vez dominado, porém, ele é levado para a Cidadela Escarlate do título, um castelo de propriedade de Tsotha-lanti, nos arredores de Khorshemish, a capital de Koth. Sobre o que acontece nas masmorras dessa fortaleza, o povo conta as mais tenebrosas histórias, e é para essas masmorras que Conan é conduzido: em vez de simplesmente mandar degolá-lo ou estrangulá-lo, Tsotha quer que ele tenha o fim mais terrível possível, entregue às criaturas inomináveis que sua magia blasfema evocou sabe-se lá de onde. O conto apresenta tensão ininterrupta, tanto ao narrar os acontecimentos nas masmorras quanto nas cenas de batalha, que são de tirar o fôlego. A Cidadela Escarlate, só essa história, daria um filmaço; bastaria um diretor e um roteirista que realmente conhecessem a fundo a obra de Howard e fizessem o propósito de serem tão fiéis a ela quanto possível, rompendo com a formulazinha "Conan 2011" de Marcus Nispel, que parece ter enterrado por tempo indeterminado as possibilidades de voltarmos a ver Conan nas telas. Por que um filme de Conan não pode apresentar tramas mais adultas, de maior alcance, e batalhas do nível das de O Senhor dos Anéis?

A Torre do Elefante (1933) é a terceira história, e a primeira a tratar da juventude do bárbaro, talvez com seus 18 anos, ainda no início de suas andanças pelos reinos civilizados. Na Cidade dos Ladrões em Zamora, ele ouve rumores de que o feiticeiro Yara esconde em sua torre, situada na parte da cidade reservada aos templos, um fabuloso tesouro em pedras preciosas, sendo a mais valiosa delas aquela conhecida como o Coração do Elefante, e decide invadir o lugar para tentar roubar a lendária gema. Quem viu o filme Conan, o Bárbaro (1982) vai reconhecer facilmente de onde algumas de suas situações foram copiadas, mas a principal atração desse conto é que, nele, Conan tem um vislumbre da vastidão e antiguidade do universo – coisas que jamais haviam passado por sua cabeça adolescente e inculta – ao conversar com certa criatura com eras de idade e origem extraterrestre, num dos muitos elos que podem ser encontrados entre as obras de Howard e as de Lovecraft. Os dois e mais um punhado de escritores amigos (com destaque para August Derleth e Clark Ashton Smith) tinham um acordo mediante o qual podiam usar em suas histórias elementos das obras uns dos outros – ou seja, esse negócio de "universo compartilhado" está longe de ser uma ideia nova –, o que dava aos leitores uma marcante sensação de realidade: se uma cidade, planeta, época etc. são mencionados por um só autor, pode-se facilmente assumir que ele os tenha inventado, mas, se são vários escritores citando as mesmas coisas, fica mais difícil descartar a possibilidade de que essas coisas tenham ao menos um pé no mundo real, o que acrescenta à leitura uma dose extra de emoção. Por conta disso, várias histórias de Howard podem ser consideradas parte dos Mitos de Cthulhu, inaugurados por Lovecraft e em construção até hoje.

O conto seguinte é Black Colossus, também de 1933, que, em publicações anteriores, apareceu com o título A Libertação de Thugra Khotan, mas aqui chama-se O Colosso Negro, tradução direta do original. Alexandre Callari explica, em algum vídeo do Pipoca & Nanquim, que um de seus objetivos nesta edição foi o de purgar certos ranços adaptativos deixados por L. Sprague de Camp e Lin Carter durante o tempo em que foram os responsáveis pelo espólio literário de Robert E. Howard, e um desses ranços foram os novos títulos atribuídos a diversas histórias; De Camp, ou Carter, ou ambos, não gostavam do uso repetido que Howard fazia do adjetivo "negro" em seus títulos (de fato, praticamente um terço das histórias de Conan escritas por ele tem a palavra "black" no título original). O Colosso Negro trata da cidade de Khoraja, que eu desconfio ter sido inspirada em Cartago: tal como esta última começou como uma colônia fenícia no norte da África, que mais tarde tornou-se independente, Khoraja tem origens kothianas, mas encontra-se em território outrora tomado ao reino de Shem; poderíamos dizer que é uma "Cartago terrestre", situada longe do mar, e, portanto, sem as tradições náuticas de sua equivalente histórica. E Khoraja está enfrentando tempos sombrios: seu jovem rei caiu prisioneiro dos ophirianos, que pedem por ele um resgate que levaria a cidade à bancarrota; ao mesmo tempo, Koth, que nunca verdadeiramente aceitou a emancipação de sua colônia, ensaia movimentos para tentar retomá-la pela força. Para completar, das fronteiras da Stygia surgiu um profeta-feiticeiro conhecido como Natohk, que levantou um exército de fiéis e atualmente marcha em direção a Khoraja. Na ausência do rei, o fardo de tentar administrar esse caos pesa sobre os delicados ombros de sua irmã, a princesa Yasmela. À beira do desespero, a princesa recorre a um oráculo do deus Mitra, que a aconselha a sair às ruas sozinha, à noite, e pedir ajuda ao primeiro homem que encontrar – e, para surpresa de ninguém, o primeiro homem que ela encontra é Conan, até então um simples capitão mercenário em seu exército. Yasmela, fiando-se no conselho do deus, confia ao bárbaro o comando supremo das tropas, na esperança de que ele possa salvar sua cidade. A história não oferece surpresas, o enredo não é um dos mais criativos já desenvolvidos pelo autor, e, para falar francamente, se eu decidisse contar o final, isso nem poderia ser considera-do um spoiler, tão previsível ele é; por outro lado, o conto inclui uma batalha magistralmente narrada, que parece ser o cerne da coisa toda, como se Howard tivesse bolado primeiro a batalha e depois construído o resto da história a fim de poder usá-la. Destaca-se também a atenção dada ao "magnetismo animal" exercido por Conan sobre a princesa, que, cansada dos homens polidos e elegantes da corte, sente uma atração incontrolável por aquele estrangeiro de maneiras selvagens e cuja franqueza chega a ser brutal.

Em Xuthal do Crepúsculo, encontramos Conan completamente encrencado, perdido nos desertos do leste, em vias de morrer de sede, fome e calor, depois de uma campanha malsucedida como mercenário num exército que foi derrotado, como é revelado mais adiante na história. Depois que esse exército foi desbaratado, parte dos mercenários, entre eles Conan, tentaram, por algum tempo, sobreviver como saqueadores nas fronteiras de Shem, e lá, durante um ataque a um mercado de escravos, o cimério tomou para si uma jovem brituniana, Natala, que agora é sua única companhia naquele infortúnio, e tudo indica que a garota terá a duvidosa honra de morrer ao seu lado. Mas ainda não é chegada a hora do bárbaro: em meio ao deserto, o casal encontra uma misteriosa cidade que parece desabitada, mas onde poderão abrigar-se do sol e, talvez, com muita sorte, achar água. A seu tempo, descobrirão que a cidade não é exatamente desabitada: ela abriga os últimos sobreviventes de uma raça antiga e outrora poderosa, mas agora em processo de extinção. O motivo disso é que esses sobreviventes pouco se importam com a vida real e o mundo em volta, preferindo passar seus dias e noites imersos nos sonhos fantásticos induzidos pela lótus negra. De tempos em tempos, a intervalos irregulares, uma criatura misteriosa que parece uma sombra disforme emerge do subsolo e leva um dos habitantes, presumivelmente para se alimentar, como se fosse um tenebroso deus-monstro reclamando um sacrifício. Xuthal do Crepúsculo tem um forte componente de terror, revelando a influência de Lovecraft de forma mais marcada (e muito mais horripilante) que A Torre do Elefante. Se tem um pequeno defeito, é a aparição mui conveniente de certa personagem para colocar Conan e Natala a par de toda essa situação, mas isso não chega a prejudicar a experiência do leitor. E, embora eu esteja ciente de que muita gente acha que Howard é "literatura pra macho", já conheci garotas que eram fanáticas por Conan, então deve haver algumas leitoras por aí. A essas, peço que se lembrem das várias heroínas fortes e decididas que o autor criou em outras de suas histórias, e tentem não se irritar muito ao ler sobre Natala, uma "linda nulidade" que basicamente fica abraçada aos joelhos do herói, grita muito (de preferência nos momentos mais impróprios, de modo a atrair a atenção de qualquer monstro ou inimigo num raio de quilômetros) e chega até a, movida pelo medo, agarrar-se a Conan, mais exatamente a seu braço direito, bem quando ele pode precisar sacar depressa a espada.

The Pool of the Black One, aqui intitulada O Poço Macabro, foi a última aventura de Conan daquele tão produtivo ano de 1933. Trata-se de um clássico entre as histórias que retratam os dias do cimério na pirataria. Nos mares a oeste do continente hiboriano, reina uma feroz rivalidade entre duas facções de piratas. De um lado há os bucaneiros zíngaros (de Zingara, uma antiga palavra usada para referir-se a ciganos, mas que, no mundo de Howard, designa um reino inspirado na Espanha dos séculos XV e XVI, a maior potência marítima dos tempos em que Conan viveu); do outro, os piratas barachos, sem uma nacionalidade certa (parece haver uma predominância de kothianos e argosianos, mas há entre eles homens de quase todas as nações conhecidas; em geral são aventureiros sem terra), mas assim chamados porque sua base de operações são as Ilhas Barachas, a sudoeste da costa zíngara. Conan, depois de um tempo com os barachos, precisa fugir por causa de alguma rixa que não é detalhada e acaba, de uma maneira surpreendente, juntando-se à tripulação de um navio zíngaro comandado pelo legendário capitão Zaporavo, o Falcão. Embora o comandante não esconda que tem suas reservas em relação ao novo tripulante bárbaro, Conan granjeia aceitação a bordo por mostrar-se valioso no trabalho, graças a sua força e habilidade. E, conforme os dias passam, ele descobre que Zaporavo não está em busca de navios ou cidades para pilhar; em vez disso, conduz sua embarcação por águas estranhas e pouco navegadas, até chegar a uma ilha que não está  na maioria dos mapas, onde, ao que parece, ele acredita que talvez estejam escondidos tesouros acumulados por reis esquecidos de uma civilização já desaparecida. É claro que Howard não traria Conan até um lugar assim se não fosse para defrontá-lo com um desafio à sua altura, de modo que a ilha oculta bem mais que tesouros: mais uma vez fica provado que remanescentes de um passado tenebroso, inimaginável, ainda podem ser encontrados por aqueles suficientemente ousados ou tolos para explorar os cantos mais recônditos do mundo.

Terminada O Poço Macabro, temos uma secção de extras que inclui o poema Ciméria, a respeito da terra natal de Conan, o artigo Os Anais da Era Hiboriana, fonte essencial de informações para o leitor que deseje se "achar" no mundo criado por Howard, e, curiosamente, o conto O Deus na Urna; creio que este tenha sido colocado entre os extras por ser uma das histórias nunca publicadas em vida do autor. É outro episódio da juventude de Conan, e, se quisermos situá-lo cronologicamente (preocupação que Howard, ao que parece, jamais teve), é provável que tenha lugar pouco antes ou pouco depois de A Torre do Elefante. Tal como nesta última, encontramos aqui um Conan muito jovem e ainda pouco afeito aos costumes civilizados, que ganha a vida como ladrão, ofício no qual sobressai mais pela ousadia que pela habilidade. E como ladrão, ele foi contratado para invadir um palacete conhecido como o Templo de Kallian Publico, sendo este o estranho nome de seu proprietário. Apesar de ser chamado assim, o lugar não é realmente um templo, e sim um misto de museu particular e antiquário, cujo dono está acostumado a negociar itens raros, valiosos e potencialmente perigosos com uma gama de clientes que varia de meros ricaços com mania de colecionar curiosidades até magos de reconhecido poder. Ocorre que, embora o jovem cimério tenha conseguido entrar sem ser notado, um infeliz acaso faz com que Publico seja assassinado exatamente enquanto ele está ali, a polícia aparece e Conan fica detido no local enquanto os fatos são investigados. Trata-se de uma história atípica, com pouca ação, talvez uma tentativa de Howard na direção do conto policial, e, em todo caso, muito diferente do que seus leitores estavam acostumados a receber dele, o que pode explicar o fato de não ter sido aceita pela Weird Tales (revista que publicou originalmente a maior parte das histórias de Conan), vindo a público somente em 1952, dezesseis anos depois da morte do autor.

Como eu disse no início, Conan, o Bárbaro da editora Pipoca & Nanquim é uma edição muito caprichada, demonstrando genuíno amor e respeito pela obra de Robert E. Howard. Alexandre Callari fez um ótimo trabalho na tradução, mantendo intactos tanto quanto possível, na minha opinião, a fluência e o sabor característico da prosa do autor. O texto, entretanto, tem alguns problemas, de modo que eu recomendaria uma nova revisão mais minuciosa antes que saiam as próximas tiragens (pois não tenho dúvida de que essa primeira vai se esgotar em pouco tempo e continuará a haver gente querendo comprar o livro). Pequenos deslizes de regência e concordância são facilmente perdoáveis e, de modo geral, não comprometem a leitura; chamou bem mais a minha atenção o fato de, por vezes, certas palavras serem usadas de formas estranhas. Em O Colosso Negro, quando Yasmela corre uma cortina para apresentar Conan a algumas figuras importantes de Khoraja, o texto original diz que "it was perhaps not an entirelly happy moment for the disclosure"; tentando evitar um excesso de literalidade, eu traduziria isso como 'esse talvez não tenha sido o momento mais propício para a apresentação', ou coisa semelhante. Callari traduziu assim: "Talvez não tenha sido o momento mais fortuito para revelá-lo" (grifo meu). "Fortuito"? O que "fortuito" tem a ver com isso?… Na mesma história, onde, no original, lia-se "the steel-clad company was thundering down the valley", a tradução ficou 'a frota desceu o vale trovejando'. Frota é de navios, aviões ou outros tipos de veículos, enquanto essa passagem refere-se a um esquadrão de cavalaria; a melhor tradução para company seria companhia mesmo. Outra falha que notei não é de tradução, mas de digitação/revisão, e é bastante engraçada: sempre que o texto descreve o teto de algum recinto como sendo abobadado, ou seja, em forma de abóbada, que é um elemento arquitetônico, o que aparece grafado é abobado, o que tem um sentido um pouco diferente (risos). E há outras pequenas arestas, enfim, nada que não possa ser facilmente corrigido.

À guisa de conclusão, preciso dizer que não tenho nem palavras para expressar o tamanho da gratidão que eu e todos os outros fãs brasileiros de Robert E. Howard devemos ao bravo trio do Pipoca & Nanquim. Howard é um autor essencial para todo amante da literatura de fantasia, e ter na estante uma edição abrangente e bem cuidada de suas histórias a respeito de sua mais importante criação é coisa indispensável, mas que ainda não tínhamos tido oportunidade de obter. Torçamos para que Alexandre, Daniel e Bruno, depois desse primeiro grande triunfo howardiano, continuem a empunhar firme suas espadas rumo a novas conquistas e glórias. Sem desconsiderar os vários outros lançamentos que sua editora já fez e sem dúvida continuará fazendo, espero fortemente que não parem por aqui com a obra de Howard: Conan tinha que ser o primeiro, é claro, mas Kull, Bran Mak Morn, Salomão Kane e outros personagens criados pelo autor também merecem e precisam tornar-se mais conhecidos do público nacional. E, não querendo ser sonhador demais, quem sabe essas novas edições da obra de Howard não possam abrir caminho para a publicação de outros autores de fantasia que foram seus contemporâneos e continuam, a bem dizer, inéditos no Brasil? Seria o Pipoca & Nanquim fazendo História.

quinta-feira, fevereiro 22, 2018

Visões da Noite

Ambrose Bierce (1842-1914?) foi um sujeito de quem eu definitivamente não teria sido amigo, e parece que muita gente também não. Jornalista e crítico, ele tinha como uma de suas principais características um cinismo corrosivo e, não raras vezes, cruel, que não só o fez colecionar inimigos como também afastou vários amigos ao longo de sua vida. Por não poupar farpas contra (entre outros alvos) escritores – não importando o quão aclamados fossem pelo restante da crítica –, arrumou tretas memoráveis com mais de um nome de peso da literatura norte-americana, entre eles Jack London.

Nascido no estado americano de Ohio e criado em Indiana, Bierce começou no jornalismo na adolescência, tendo a carreira ainda incipiente interrompida em 1861 pela eclosão da Guerra Civil Americana, na qual lutou pelo exército da União, que reunia as forças dos estados do Norte contra os Confederados do Sul. Bierce participou de um punhado de batalhas importantes, destacou-se pela bravura e sofreu pelo menos um ferimento grave em ação. Galgou postos até tornar-se primeiro-tenente, graduação com a qual deu baixa, no início de 1865, meses antes do fim da guerra. Retornando à atividade jornalística, estabeleceu-se em San Francisco, Califórnia, onde atuou como repórter e editor em diversos periódicos, enquanto, paralelamente, escrevia trabalhos de ficção. Sua primeira história publicada foi O Vale Assombrado, em 1871. Viveu na Inglaterra durante alguns anos. Sua produção literária não foi muito extensa; além de narrativas realisticamente sangrentas sobre o que tinha visto na guerra, dedicou-se ao que hoje seria chamado horror psicológico, bem como ao conto sobrenatural. Chegou até a flertar com a ficção científica, gênero que mal existia em sua época. Seu fim foi digno de uma de suas histórias: nos últimos dias de 1913, já idoso e divorciado (parece que, como tanta gente, tampouco sua esposa o suportou), viajou para o México com o plano de fazer uma cobertura jornalística da revolução que o país então vivia; atravessou a fronteira sozinho no final de dezembro daquele ano e conseguiu permissão para acompanhar o exército de Pancho Villa na qualidade de observador neutro. Daí em diante, nada mais se soube dele; foi dado como desaparecido, o que explica o porquê do ponto de interrogação que acompanha o ano (presumido) de sua morte. Há quem ache que ele simplesmente continuou a exercer seu habitual sarcasmo agressivo ("Bierce sendo Bierce") e que os mexicanos tinham um pavio mais curto para esse tipo de coisa que os americanos, de modo que o escritor teria acabado fuzilado. Mas isso é só conjectura.

Esta edição da Record inclui uma introdução de Heloisa Seixas, também a responsável pela seleção e tradução dos textos; consiste basicamente de uma biografia do autor, resumida, embora muito mais detalhada que a versão acima, e de breves considerações sobre sua obra. Seixas observa, de passagem, que é um tanto surpreendente que Bierce tenha elegido o sobrenatural como tema de várias de suas histórias, já que, em nível pessoal, era "agnóstico, ateu, herege, ou como você queira chamar aqueles que descreem de tudo". Na verdade, agnóstico, ateu e herege são três coisas diferentes, e parece que, dos três conceitos, aquele no qual Bierce melhor se encaixava era o de agnóstico – do grego a, um prefixo de negação, e gnosis, conhecimento. Ou seja, um agnóstico é alguém que não crê nem descrê: diz "não sei", por ser da opinião de que é impossível provar quer a existência, quer a inexistência de Deus. Mas, mesmo que Bierce fosse decididamente um ateu, não vejo, a priori, nenhuma incompatibilidade entre isso e seus trabalhos de ficção. Sua possível descrença no sobrenatural não o impediria de usá-lo em histórias inventadas, tal como Tolkien certamente não acreditava na existência de elfos ou dragões, o que não o impediu de escrever sobre eles.

A primeira história é Um Incidente na Ponte de Owl Creek, um drama e suspense ambientado durante a Guerra Civil, narrado de forma "nervosa", diria até que aos arrancos, o que, por alguma razão, parece ser comum em autores que adquiriram prática na escrita por meio do jornalismo (algo no conto me lembrou algum texto de Ernest Hemingway). Há grandes lacunas na narrativa, questões importantes com as quais o autor prefere deixar que o leitor "se vire". Um homem de nome Peyton Farquhar, fazendeiro no Alabama e apoiador fervoroso da causa do Sul na guerra, está prestes a ser enforcado na ponte mencionada no título do conto – e, para nossa surpresa, os militares que vão executá-lo são do exército confederado, ou seja, do lado que ele considera seu lado na guerra. Não é fornecida nenhuma explicação de como Farquhar terminou nessa situação; o mais próximo disso é um flashback no qual ele conversa com um soldado confederado que casualmente passa por sua casa, mas é tudo muito vago. De todo modo, o cerne da história está em como realidade e imaginação podem confundir-se em momentos de grande tensão emocional – uma coisa que, como veterano de guerra, Bierce devia conhecer bem.

Adendo, ou remendo, como preferirem: Descobri o que estava errado com Um Incidente na Ponte de Owl Creek, e minha primeira ideia foi reescrever o parágrafo anterior, mas optei por deixá-lo como está, só para ilustrar os graves problemas que uma tradução equivocada pode causar. Bem: uma vez que o fato de Peyton Farquhar ser levado à forca pelos soldados de seu próprio lado não parecia certo (ao menos, não sem uma explicação plausível), fui procurar o texto original do conto, para o caso de haver alguma falha na tradução. E não deu outra. Ocorre que a Sra. Heloisa Seixas, por alguma razão, traduziu "Federal army" por "exército confederado" em vez de "exército federal", como deveria ser – e exército federal, no contexto da Guerra Civil Americana, significava o exército da União, ou seja, do Norte, que eram os Estados Unidos propriamente ditos, já que o Sul tinha se declarado independente, com o nome de Estados Confederados da América, pretendendo formar um país separado. Traduzindo desse jeito, torna-se francamente impossível ao leitor distinguir os dois lados no conflito, o que resulta em confusão total, prejudicando gravemente a compreensão da história. Seixas caiu vários pontos no meu conceito depois dessa. Mas vamos em frente.

O próximo conto tem o curioso título de Naufrágio Virtual. Esse adjetivo, que hoje usamos a torto e a direito por causa da internet e dos games, é muito mais antigo que tudo isso e tem vários significados possíveis, sendo que, por vezes, a diferença entre eles é sutil. Talvez sua acepção mais comum seja "algo que existe como ideia ou ideal, mas sem existência objetiva". Isso poderia, muito pela tangente, se encaixar nesta narrativa, mas não é bem isso. A história é tão curta e, de um ponto de vista formal, tão simples, que qualquer tentativa minha de fornecer a vocês um esboço do enredo resultaria em spoiler, então direi apenas que gira em torno do fenômeno da "viagem do espírito", e que o tremendo impacto que consegue causar com seu final, depois de tão poucas páginas, é algo que praticamente obriga um leitor a admirar a habilidade do autor. Luar Sobre a Estrada narra um caso de assassinato sob três diferentes pontos de vista – um deles o da própria morta, que não se limita a contar como foi que se tornou um fantasma, mas também descreve como é a existência de quem "passou para o outro lado", embora essa não seja uma expressão adequada, pois, segundo a falecida Sra. Julia Hetman, essas almas não vão a parte alguma: elas ficam rondando aqueles a quem amaram ou odiaram em vida, e, embora normalmente sejam invisíveis, de vez em quando determinadas circunstâncias fazem com que os vivos consigam vê-los, o que, claro, costuma resultar num enorme medo. Para saber como os fantasmas se sentem em relação a tudo isso, leiam a história, que oferece esse "testemunho" junto com um enredo de mistério que vale a pena conhecer.

Aparições é uma pequena coletânea de brevíssimas histórias, todas narradas de forma sóbria e econômica, a respeito de… bem, aparições. É notável como o estilo despojado, extremamente direto adotado consegue realçar o elemento sobrenatural – é como se o narrador fosse da opinião de que os fatos a serem apresentados são tão extraordinários em si mesmos, que ficar fazendo floreios seria nada mais que um desperdício de palavras. Meu palpite é que alguns desses causos tenham saído da imaginação de Bierce e alguns outros tenham sido ouvidos por ele em meio a rodas de conversa banal (é o que hoje chamaríamos de "lenda urbana", embora a maior parte tenha ambientação rural!) e adaptados para funcionarem bem na forma escrita – e funcionam muito bem.

E assim chegamos ao que considero, se não a melhor, pelo menos uma das duas ou três melhores histórias do livro – opinião, creio eu, partilhada por H. P. Lovecraft, que escreve sobre ela em tom admirativo no ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura. Trata-se de O Ambiente Adequado, que, como as outras, é breve e simples. James Colston, escritor de histórias de terror, encontra por acaso, num bonde, um conhecido, o Sr. Willard Marsh, que, também por acaso, está lendo no jornal o mais recente trabalho publicado de Colston. A conversa dos dois desemboca num desafio: Colston afirma que não é necessário nenhum grau extraordinário de coragem para ler suas histórias a bordo de um bonde, na luz da manhã, circulando por ruas movimentadas, mas pergunta se Marsh seria capaz de lê-las sozinho, à noite, numa velha casa abandonada e tendo apenas uma vela como iluminação. Mais uma vez, não há como dar mais detalhes sem estragar a leitura para vocês, mas acredito que essa premissa já deixe claro que temos aí um conto de terror um tanto diferente, explorando uma questão na qual todo leitor do gênero já pensou ao menos uma vez. E o final é terrível – no melhor dos sentidos.

A história Um dos Gêmeos é narrada por um homem de nome Henry Stevens, que tem, ou melhor, teve um irmão gêmeo, John. Gêmeos, em geral, têm uma relação curiosa e difícil de imaginar para quem é "um só", e que fica ainda mais peculiar se forem idênticos, mas parece que o caso de Henry e John é uns quantos graus mais extraordinário. Quando jovens (conta Henry), ambos moravam em San Francisco, mas viviam e trabalhavam em bairros diferentes e tinham poucos conhecidos em comum; como a cidade, na época, não era tão grande, era relativamente comum alguém encontrar um deles e pensar que era o outro – situação com a qual gêmeos idênticos estão acostumados a lidar desde a infância. O que há de diferente no caso dos irmãos Stevens é que sua conexão é tal que, em ocasiões assim, muitas vezes, qualquer um dos dois diz e faz exatamente o que o outro diria e faria, ainda que não conheça a pessoa com quem está interagindo e não tenha a menor ideia de por que determinadas palavras estão saindo de sua própria boca. Essa ligação inexplicável irá moldar a participação de cada um dos gêmeos numa trama de mistério e morte.

No Limiar do Irreal é sobre o poder da ilusão, prestidigitação e hipnotismo, o que se presta bem a uma história de terror, dependendo do tratamento dado, e, quando uma história tem esse mote, ela tende a ser tanto mais assustadora quanto mais verossímil. Não sei nada sobre o assunto, então não sei dizer se é plausível que uma pessoa permaneça sob o efeito de uma ilusão hipnótica por tanto tempo e de forma tão convincente quanto é descrito neste conto, mas não há dúvida de que o resultado para o leitor é inquietante. A seguir, temos outra coletânea, intitulada Casas Espectrais. As várias pequenas narrativas que a compõem apresentam as experiências de diferentes tipos de pessoas quando, sob circunstâncias também diferentes, vão parar em lugares assombrados. Assim como em Aparições, há aquela sensação de estarmos lendo histórias que devem ter sido contadas ao redor de muitas mesas de bar antes que Bierce as ouvisse e, fazendo as adaptações que julgou necessárias, pusesse por escrito, exceto no caso de Missão Não Cumprida, que é protagonizada por um jornalista e tenho o palpite de que seja cem por cento criação do autor.

Os Olhos da Pantera merece menção especial, e quem assistiu ao clássico de terror Sangue de Pantera (1942) ou ao seu remake mais safado, A Marca da Pantera (1982) entenderá logo por que – a propósito, ambos os filmes tinham o mesmo título original, Cat People, literalmente 'O Povo-gato'). O tema da mulher-fera é um arquétipo, talvez de origem pré-histórica, e tem sido retomado por uma série de autores desde os tempos antigos, mas apreciei muito o modo como Bierce soube adaptá-lo ao pano-de-fundo de seu país e época. Chega a ser uma pena que a história seja tão curta, pois seus desdobramentos e subentendidos poderiam render um conto bem mais longo ou até mesmo um pequeno romance, sem recair na encheção de linguiça. O protagonista, o advogado Jenner Brading, está apaixonado por Irene Marlowe, uma jovem tão notável pela beleza quanto por seu comportamento peculiar, mas ela lhe diz que não pode casar-se com ele porque é louca (geralmente, o fato de uma pessoa se considerar louca é um indício de que não o é, mas isso não vem ao caso aqui). Pelo que ela conta, seu pai era um desbravador que vivia, com a esposa e a filha (uma irmã mais velha de Irene que morreu pequena), numa cabana no meio de uma região selvagem, naquele ainda pouco explorado oeste dos Estados Unidos. Aconteceu que, tendo ele saído para caçar, uma pantera aproximou-se da casa e ficou espreitando a mulher e a criança que estavam indefesas lá dentro. A fera não chegou a atacar, mas a experiência daquelas longas horas de terror extremo fez a mãe de Irene perder a sanidade e afetou de forma insólita a própria jovem, que nasceria meses depois do episódio. Para saber mais, vocês terão que ler a história, é claro. A propósito, a palavra "pantera", a rigor, é sinônimo de leopardo, animal encontrado na África e Ásia, mas já foi usada nas Américas para designar tanto a onça-pintada (que, assim como o leopardo, ocasionalmente apresenta coloração preta ao invés da típica pelagem malhada) quanto a onça-parda, ou puma, ou ainda suçuarana. A pantera da história de Bierce poderia ser qualquer uma das duas, pois ambas as espécies eram encontradas em grande parte dos Estados Unidos até fins do século XIX.

Ah, sim: há uma história chamada O Homem Saindo do Nariz, mas, ao contrário do que esse título sugere, não se trata de um texto surrealista. O "nariz" citado é apenas a porta de uma casa cuja fachada lembra toscamente um rosto, e a história fala de um homem, outrora rico e benquisto da sociedade, que foi arruinado por suas paixões e, o que é pior, arrastou consigo a família em sua queda. Há pouco ou nenhum elemento sobrenatural e, a meu ver, a história não tem maior relevância, a não ser pelo título curioso.

O restante do livro não é tão impressionante quanto algumas das histórias que já comentei; consiste basicamente em contos com algum elemento sobrenatural, mas que raramente causam ao leitor alguma sensação de verdadeira inquietação, com exceção de dois momentos. O primeiro é A Morte de Halpin Frayser, que lida com um tipo de ser sobrenatural que, pelo que o narrador dá a entender, é provavelmente ainda mais apavorante que o fantasma "comum": enquanto o fantasma é um "espírito sem corpo", essa outra entidade (à qual ele não chega a atribuir um nome) é um "corpo sem espírito". Talvez seja algo semelhante ao que hoje chamaríamos de zumbi, mas, lendo o conto, não parece ser bem isso. A história contém também a descrição de uma floresta assombrada por onde um personagem está vagando à noite, sem que ele, e tampouco o leitor, saiba ao certo se aquilo é sonho ou realidade; essa parte é de gelar a espinha.

O outro momento memorável aparece numa das pequenas narrativas que compõem Cruzando o Umbral, que é mais uma daquelas minicoletâneas; essa história específica chama-se Um Habitante de Carcosa, e aqui temos algo importante. Deixando de lado a marcada (e, por vezes, cansativa) ambientação norte-americana que predomina em quase todas as outras histórias, nessa, pela única vez em todo o livro, Bierce se permite entrar num mundo imaginário, ou, talvez, numa era imaginária do nosso próprio mundo: o personagem-narrador vive (ou viveu) na "antiga e famosa cidade de Carcosa", e agora encontra-se num lugar ermo e selvagem, sem saber onde está ou como chegou ali. Tudo o que lembra é de estar sofrendo de uma febre que, além de deixá-lo prostrado, afetou suas faculdades mentais, e supõe que, em meio ao delírio, tenha fugido de casa aproveitando uma distração de seus familiares e ido parar onde está, seja isso onde for. O desfecho é surpreendente e sinistro. Para reforçar a hipótese de que tudo acontece num mundo imaginário, ele menciona, de passagem, suas "mulheres e filhos", o que sugere que a tal Carcosa ficasse em alguma terra com costumes bem diferentes dos norte-americanos. Quanto ao nome, esse já intrigou muita gente; a teoria mais aceita é que Bierce tenha brincado com o nome da cidade francesa de Carcassone, que, nos tempos da dominação romana, chamava-se Carcasum. Robert W. Chambers, que sem dúvida leu Bierce em sua juventude, menciona Carcosa em alguns de seus contos de terror e fantasia, e, depois dele, outros escritores fizeram o mesmo, homenageando tanto a ele quanto a Bierce e contribuindo para o crescimento de uma espécie de mitologia, num fenômeno semelhante ao que acontece com a obra de H. P. Lovecraft, embora em escala menor.

Ambrose Bierce é certamente um autor importante, e ninguém que pretenda conhecer bem a história da literatura fantástica na América do Norte pode ignorá-lo; também não é possível negar que, entre os contos que compõem este livro, há um punhado que poderá, com justiça, merecer um lugar em qualquer boa antologia de terror – ou na lista pessoal dos mais assustadores de qualquer leitor experiente no gênero. Por outro lado, devo registrar, por questão de sinceridade, que a experiência como um todo (refiro-me à leitura deste volume de cabo a rabo) não foi assim tão prazerosa, talvez por causa da maneira como o autor escrevia: além de jornalista, ele era um cínico convicto, e a combinação das duas coisas parece resultar, durante noventa e nove por cento do tempo, numa linguagem extremamente seca, revelando uma quase obsessão pela objetividade, o que, ao final de algum tempo, torna-se cansativo, embora também tenha o efeito de realçar os raros e surpreendentes momentos de poesia. Em resumo, encarar um livro inteiro só com trabalhos dele talvez não seja a melhor maneira de ler Bierce, mas é indiscutível que o cara produziu um bocado de coisas que merecem ser conhecidas.

sábado, janeiro 06, 2018

Nave Escrava

Frederik George Pohl Jr., ou apenas Frederik Pohl (1919-2013) foi um dos maiores escritores de ficção científica de todos os tempos, mesmo que não seja tão famoso quanto um Isaac Asimov ou um Arthur C. Clarke (que são provavelmente os dois únicos escritores de ficção científica cujos nomes um não-fã do gênero talvez conheça). Além de ter sido um autor prolífico e ganho uma série de prêmios, incluindo os cobiçados Hugo e Nebula, sua atuação como editor contribuiu de modo importante para o crescimento e a popularização da ficção científica. Começou a editar praticamente ao mesmo tempo em que começou a escrever, em sua adolescência, durante a década de 1930, criando fanzines nos quais publicava, além de suas próprias histórias, as de outros autores iniciantes que depois ganhariam renome. Em 1937, Pohl esteve entre os membros fundadores dos Futurians, um misto de clube e sindicato informal de jovens escritores e fãs de ficção científica. Mais tarde, já atuando de forma profissional, fundou duas revistas, Astonishing Stories e Super Science Stories, que apresentaram ao público vários dos primeiros trabalhos de sujeitos como Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, Ray Bradbury, entre outros. Nada mau, não é? Além disso, durante cerca de dez anos foi editor da prestigiosa Galaxy Science Fiction. Pohl e Asimov eram amigos próximos, e o segundo costumava contar que, depois do lendário editor John W. Campbell Jr., Pohl foi provavelmente quem lhe deu mais dicas e direções úteis durante os primeiros anos de sua carreira, pois, embora os dois tivessem praticamente a mesma idade (Pohl nasceu em novembro de 1919, Asimov em janeiro de 1920), era bem mais desenvolto que ele, possuía muitos contatos e tino para os negócios – e isso apesar de Asimov ser o judeu da dupla. Os dois chegaram a escrever algumas histórias em parceria, e, durante um curto período, Pohl atuou como agente literário para Asimov, o único agente que ele teve em toda a carreira. Como muitos escritores que também atuavam como editores, Pohl muitas vezes usava pseudônimos – no caso dele, vários, o que torna meio complexa a tarefa de catalogar suas histórias publicadas. Por fim, o autor tinha muitos outros interesses além da ficção científica, um deles a História, tendo o Império Romano como um de seus períodos favoritos: mesmo não possuindo titulação formal em História, ele chegou a ser a autoridade oficial sobre o imperador Tibério para a Encyclopædia Britannica. Essa intimidade de Pohl com os assuntos da Roma antiga terá relevância para um futuro post que já estou planejando.

Nave Escrava foi publicado pela primeira vez de forma serializada na Galaxy, em 1956 (isso foi antes de Pohl tornar-se editor da revista), ganhando a primeira edição em livro no ano seguinte. É uma aventura militar ambientada numa guerra fictícia que reúne, de um lado, uma coalizão de nações principalmente do ocidente (mas incluindo a Rússia), lideradas pelos Estados Unidos (é claro!), e, do outro, uma aliança oriental que tem como fator de união uma tal religião Caodai (que, para minha surpresa, descobri ser uma religião real, de origem vietnamita – ou, pelo menos, existe uma religião real com esse nome). Os Caodais não têm nacionalidades definidas, mas parecem ser predominantemente asiáticos. Segundo o protagonista-narrador Logan Miller, um tenente da marinha americana, trata-se, tecnicamente, de uma guerra fria (expressão que era novidade nos anos 50), mas uma "guerra fria" notavelmente quente. Explicando melhor: até aquele momento, nenhum dos lados atacou alvos ou desembarcou tropas em territórios continentais que estejam sob o domínio ou a proteção do outro lado, mas a mesma regra não se aplica a ilhas, e confrontos navais em mar aberto são frequentes. De maneira geral, todos concordam que a eclosão de uma guerra de verdade é inevitável e apenas questão do tempo.

As coisas estão nesse pé quando Miller é transferido de seu posto a bordo de um submarino para uma base de pesquisa no litoral da Flórida, onde está em andamento o Projeto Mako, que consiste numa série de estudos bem curiosos: a marinha tem um vivo interesse em ampliar o conhecimento sobre as linguagens das diferentes espécies animais. Nesse futuro imaginado, progressos consideráveis já foram obtidos nessa área – por exemplo, fazendeiros já podem instruir vacas ou ovelhas para que comam o capim nos campos de cultivo sem comer a plantação –, mas agora o objetivo é ir muito além disso, tornar possível efetivamente conversar com cães, porcos, macacos etc. Qual a intenção da marinha com isso, nem mesmo os pesquisadores sabem ainda.

Pohl chega a citar o trabalho de um cientista real, Konrad Lorenz (1903-1989), zoólogo e etólogo austríaco – etologia é o ramo da biologia que estuda o comportamento animal. Lorenz trabalhou durante muito tempo com aves, em especial gansos e gralhas. Foi ele quem descreveu o fenômeno do imprinting, que consiste na formação de um vínculo instantâneo: aves recém-nascidas passam a acompanhar o primeiro objeto animado que avistarem ao sair do ovo. Normalmente esse "objeto" é a mãe (ou o pai, que, em muitas espécies de aves, é o principal responsável pelos cuidados com a prole), mas, se por azar eles não estiverem no ninho no momento em que o ovo eclodir, e qualquer outro animal estiver passando… Bem, digamos que é provável que as coisas não terminem bem para esse filhote.

Para os fins de Nave Escrava, porém, têm maior interesse outros resultados obtidos por Lorenz: ele chegou a construir um vocabulário, ainda que limitado, do "idioma gralhês", associando significantes e significados, tal como no estudo de um idioma humano, e graças a isso, conseguiu de fato se comunicar com as gralhas, que, junto com seus primos, os corvos (sabemos hoje), estão entre os animais mais inteligentes. Enfim, Lorenz era praticamente um Dr. Dolittle da vida real; não causa surpresa que fosse o cientista mais admirado pelos integrantes do Projeto Mako, e que seu trabalho seja de extrema importância para eles.

No Projeto Mako, a tarefa de Logan Miller é operar o computador – tenham em mente que o livro foi escrito nos anos 50, e, mesmo que Pohl estivesse tentando imaginar um futuro dali a algumas décadas, a noção que ele tinha a respeito de computadores é a dos que existiam naquele tempo: eles ocupavam salas inteiras (em casos extremos, todo um prédio) e precisavam ser manejados por técnicos especializados. Os dados que o computador do Projeto está processando são os diferentes sons e gestos dos animais – cães, macacos, porcos, vacas e até focas – para, por meio da análise de padrões de repetição e combinação, tornar mais rápida a tarefa dos pesquisadores de descobrir o significado de cada um desses gestos e sons. Na base, o colega de quarto de Miller é o tenente russo Semyon Timiyazev, cuja mãe foi aluna e assistente de Ivan Pavlov (1849-1936), médico e fisiologista que se celebrizou por ter descrito o fenômeno do reflexo condicionado em animais. Seu experimento mais clássico nos parece hoje simples e até meio óbvio, mas Pavlov teve o mérito de ser o primeiro a demonstrar a coisa de maneira científica: se você sempre tocar uma sineta ao alimentar um cão, depois de algum tempo bastará tocar a sineta para que ele comece a salivar, mesmo que não haja comida alguma à vista. Timiyazev aplica muito do que aprendeu com a mãe em prol do Projeto, e é graças a sua amizade com ele que Miller acaba tendo envolvimento direto com os animais, o que, em princípio, não estaria previsto na descrição de suas funções.

A sociedade descrita no livro é semelhante em linhas gerais àquilo que um norte-americano típico dos anos 50 conhecia, mas com algumas diferenças importantes, uma delas uma acentuada militarização, decorrente do estado de "guerra fria", que, por sua vez, veio depois de outras guerras, como a Guerra Curta, mencionada só de passagem, na qual os Estados Unidos teriam batido a União Soviética, o que parece não ter gerado ressentimentos, nem no nível diplomático (os dois países agora são aliados) nem no nível individual (Logan e Semyon são bons amigos). Os dois jovens oficiais frequentam um lugar na cidade próxima que apresenta regularmente shows de strip-tease, sendo que as performers são todas militares, algumas delas oficiais. Era a esse tipo de coisa que eu me referia ao falar na militarização da sociedade!…

Outra diferença entre ficção e realidade é que, em Nave Escrava, o conhecimento a respeito dos fenômenos de ESP (percepção extrassensorial, na sigla em inglês) está muito desenvolvido, ao ponto de existirem profissionais que oferecem ao público, de forma comercial, serviços que permitem que a pessoa se comunique telepaticamente com entes queridos distantes, tal como nos anos 50 havia empresas de telefonia que faziam o mesmo. O problema é que pessoas com essa habilidade, ou as que utilizaram seus serviços recentemente, ficam mais vulneráveis ao que se acredita ser uma arma secreta dos Caodais, o Glotch, que produz queimaduras sem causa aparente, podendo ferir gravemente ou matar. Tirando o fato de que atinge com mais frequência os extrassensoriais, nada se sabe sobre essa arma ou seu funcionamento, e as coisas ficam mais complicadas quando se descobre que há Caodais sendo atingidos também… O clímax da história chega quando Logan e Semyon são destacados para uma missão no Oceano Índico, integrando a tripulação de um gigantesco porta-aviões submarino que se dirige à ilha de Madagáscar, onde existe uma base Caodai que até há pouco era secreta. Os dois tenentes são encarregados de um pequeno submarino, transportado pelo porta-aviões e que pode ser ejetado para missões de curta distância – e nessa subnave, mais que apenas comandantes, eles são os únicos membros humanos da tripulação. Não posso ir mais adiante sem dar spoiler; digo apenas que o final claramente procura surpreender, e de certa forma consegue, mas, pessoalmente, achei-o muito repentino.

Nave Escrava é um livro curto e simples, baseado numa ideia inovadora para a época (e que, pelo menos até onde sei, tampouco foi muito explorada depois), e tem o mérito de recorrer pouquíssimo aos clichês mais batidos da ficção científica, sem com isso deixar de ser ficção científica na completa acepção do termo, o que faz dele um bom exemplo da versatilidade que, na minha opinião e na de muitos outros leitores, constitui uma das qualidades mais atraentes desse gênero literário. Não é, com certeza, uma das obras essenciais de Frederik Pohl, mas é uma leitura que entretém, e pode servir como uma boa introdução para quem ainda não conhece o autor.

sábado, dezembro 09, 2017

Águias na Tempestade

Águias na Tempestade conclui a Trilogia das Águias de Ben Kane, cujos outros dois volumes já foram objeto de comentários aqui no blog (ver aqui e aqui), e que me proporcionou três sucessivos e deliciosos mergulhos no mundo do primeiro século da Era Cristã, e, mais especificamente, nas histórias por trás dos reveses sofridos pelos romanos na Germânia, que determinaram a cessação de sua expansão pelas terras a leste do Reno. Isso fez com que o rio continuasse, pelos séculos que se seguiram, a ser, na prática, a fronteira entre a área de influência de Roma e as terras que permaneciam sob o controle das tribos bárbaras; em termos modernos, isso significa que a maior parte do que é hoje a Alemanha nunca foi de fato incorporada ao Império, o que se refletiria em sua história, tanto no campo cultural quanto político. Novamente, Kane nos oferece uma narrativa empolgante girando em torno de Armínio, o chefe germânico que já foi um oficial do exército romano, e de Lúcio Comênio Tulo, centurião veterano que viveu altos e baixos (alguns deles muito baixos) durante os últimos anos servindo na Germânia.

Um ano depois dos eventos narrados em O Resgate das Águias, Armínio continua lutando com o mesmo problema de sempre: seus compatriotas germanos estão demasiado ligados a seu modo de vida tradicional para serem capazes de pensar e agir como um só povo. Cada chefe só pensa nos interesses de sua própria tribo e desconfia das outras – e, principalmente, desconfia dos outros chefes. Também as opiniões a respeito dele, Armínio, estão longe de formar um consenso. Alguns chefes o veem com bons olhos por causa da vitória à qual conduziu os germanos na floresta de Teutoburgo, seis anos antes, mas outros acham (e não sem razão) que ele pretende muito mais que apenas manter sua pátria fora dos domínios de Roma: Armínio ambiciona tornar-se um líder supremo, uma espécie de rei, pretensão que soa ofensiva aos ouvidos daquele povo tribal, para quem a ideia de fazer parte de um Estado centralizado não parece muito diferente da de escravidão. O contra-ataque romano do ano anterior, com a recuperação de uma das águias tomadas em Teutoburgo, foi um claro sinal de que é perigoso para as tribos dar a vitória como certa e achar que podem relaxar (ou, como diriam seus inimigos, "adormecer sobre os louros"), e Armínio, mais uma vez, se esforça para conseguir que todos se unam. Para isso, ele não lança mão somente de expedientes honestos; há momentos em que julga necessário manipular, e o faz por quaisquer meios ao seu alcance, seja bajulando ou intimidando. Assassinato também não é uma solução que ele se recuse a utilizar, quando se trata de tirar do caminho alguém que esteja se mostrando um obstáculo particularmente difícil. Há também o drama pessoal do qual Armínio ainda não se recobrou por completo: o rapto de sua esposa grávida, por volta da mesma época da revanche dos romanos. Ele sabe que ela deve estar viva e sendo bem tratada, que deve ter dado à luz o filho do casal e estar criando-o num cativeiro, confortável talvez, mas que nem por isso deixa de ser um cativeiro, sabe-se lá em que lugar dos vastos domínios de Roma – mas saber que a mulher e o filho estão vivos só oferece um consolo limitado, já que ele provavelmente nunca mais os verá.

Tulo, enquanto isso, vive uma fase que, embora dura e trabalhosa como nunca deixava de ser a vida de um legionário, está-lhe trazendo satisfação pessoal. Deve estar agora com seus 50 anos, ou quase isso, e, embora a ideia de reformar-se pareça cada vez mais tentadora, nota-se que ele só sentirá que seu dever foi cumprido quando a águia da Décima Oitava (sua antiga legião, uma das três aniquiladas por Armínio e seu exército na floresta de Teutoburgo) for recuperada. Depois de anos de constrangimentos por causa do que aconteceu em Teutoburgo, e de ter sido rebaixado de posto graças à influência do odioso jovem legado Túbero, ele merecidamente caiu nas boas graças de Germânico, sobrinho e filho adotivo do imperador Tibério, governador militar e general em comando das legiões da Germânia, e, no começo deste novo livro, é novamente promovido, passando a comandar a Segunda Centúria da Primeira Coorte da Quinta Legião (uma legião tinha dez coortes, e a autoridade e prestígio de um oficial eram inversamente proporcionais ao número da coorte na qual ele servia: um centurião da Primeira Coorte estava bem mais alto que um da Sexta, por exemplo). Em Teutoburgo, Tulo salvou uma menina germânica órfã a quem acabou adotando, mas, por não ser possível a um velho soldado solteirão tomar conta de uma criança, confiou-a aos cuidados de Sirona, madura e atraente viúva gaulesa, proprietária de uma taberna na vila próxima ao forte onde ele serve. Tulo sempre arrastou uma asa por essa dama, e agora o sentimento parece estar transbordando, levando-o a tomar atitudes (um tanto atabalhoadas) das quais, tempos atrás, nem teria se julgado capaz, o que rende uma ou duas passagens bastante divertidas.

Ocorre então que, certa tarde, Tulo, de folga, está justamente no joalheiro da vila, tentando escolher um presente para sua crush, como diríamos hoje, quando, através da porta da loja, vê passar na rua seu general, Germânico, acompanhado apenas de uns poucos guardas pretorianos que lhe servem de guarda-costas, rumo a sua loja de vinhos favorita – e, logo atrás, um grupo de guerreiros germanos armados. Com risco da própria vida, Tulo consegue salvar seu comandante, e já não pela primeira vez, mas fica abalado e preocupado ao reconhecer entre os assassinos um homem de nome Degmar, da tribo dos Marsi, cuja vida ele salvou tempos antes, e que, durante um curto período, foi seu escravo. Como ele escapa (é o único do grupo que consegue), as perguntas ficam sem respostas, e a apreensão gerada pelo incidente ainda está com Tulo quando, meses depois, o exército formado por oito legiões, mais tropas auxiliares, atravessa o Reno para uma nova investida contra os germanos.


E creiam, se a narração da batalha de Idistaviso (também referida como batalha do rio Visurgis, embora Ben Kane designe o rio por seu nome moderno, Weser) presente nos capítulos XX a XXIII não for a melhor narração de batalha que já li em romances históricos, está, pelo menos, no "Top 3". O modo como Kane conta sobre o desenrolar dos acontecimentos permite-nos ver com nitidez a diferença entre os estilos de combate de romanos e germanos, ainda que Armínio aproveite alguma coisa do que aprendeu no tempo em que servia a Roma – não pode usar tudo o que aprendeu, pois, para isso, precisaria de um tipo de soldado do qual não dispõe. Embora odeie os romanos do fundo da alma, ele sente uma admiração relutante e pontuada de inveja pela coragem disciplinada que eles demonstram no campo de batalha – um tipo de disciplina que seus guerreiros germânicos teriam que nascer de novo umas três vezes para conseguir. "Disciplina, era sempre a merda da disciplina deles que vencia", reflete enquanto tenta não se deixar levar pelo desespero quando a batalha começa a tomar um inconfundível ar de derrota. Mesmo quando isso não é formulado em palavras, é fácil imaginar que Armínio devia ficar pensando frequentemente sobre as "misérias" que poderia fazer contra o Império se seus seguidores fossem como os legionários. Um general romano não precisava perder um tempo muitas vezes precioso nem sabotar a própria autoridade persuadindo repetidamente os oficiais sob seu comando de que seria "melhor para todos" se fizessem o que ele dizia, ou, caso isso falhasse, recorrendo à bajulação e a promessas de recompensa. Bastava-lhe dar uma ordem, e não era preciso repeti-la.

Não é meramente como se os germanos não tivessem a capacidade para alcançar o mesmo grau de disciplina que os romanos: acontece que eles nem mesmo querem isso. A simples ideia soa-lhes revoltante. Isso fica bem ilustrado numa passagem em que Armínio repreende alguns guerreiros por fazerem algo sem sua autorização, e o mais idoso do grupo lhe retruca: "Toma lá isto para a tua autorização. – O velho guerreiro fez um gesto obsceno. – Segundo a última informação que tive, eras o chefe da tribo dos Queruscos, não eras nem rei nem centurião romano, e eu era um homem livre, não um escravo ou a merda de um legionário." Para a mentalidade dos germanos, a obediência pronta, sem discussão que um soldado romano prestava ao seu superior era uma coisa abjeta, indigna de um homem. O fato de ser precisamente essa disciplina o que dava aos romanos a capacidade de superá-los no campo de batalha não lhes entrava na cabeça.

Também conforme aquilo que já nos acostumamos a esperar dele nos dois primeiros volumes da saga, Ben Kane aproveita os ganchos da história para apresentar mais detalhes sobre as legiões e sobre como era a vida de seus integrantes – e mesmo quem, como eu, está longe de ser estranho ao assunto, sempre aprende mais alguma coisa. A "bola da vez" (bem, uma delas) são os pretorianos e sua relação com os legionários "comuns": há um trecho especialmente interessante e que chega a ser engraçado, em que Tulo, precisando falar com urgência a Germânico numa hora tardia, tem sua entrada barrada por um par de guardas emproados e acaba perdendo a paciência, dizendo umas tantas coisas que, sem dúvida, muitos legionários gostariam de dizer. Bem, para começo de conversa, quem eram os pretorianos? Na origem, o prætorium, ou pretório, era a casa (numa base permanente) ou tenda (num acampamento) onde o comandante de uma força militar se alojava e de onde exercia suas funções, tais como expedir ordens e receber os relatórios dos oficiais. Durante sua longa campanha na Gália, Júlio César decidiu criar uma guarda especial para sua segurança, e que seria composta por homens escolhidos, legionários experientes, de absoluta lealdade e sólida reputação por atos de valor. Por proteger o pretório e seu mais ilustre ocupante, essa força especial ganhou o nome de Guarda Pretoriana, e viria a tornar-se uma instituição tradicional no exército romano, diretamente responsável pela segurança do imperador e de sua família (certo, o próprio César nunca foi formalmente entronizado, mas, com exceção do título, foi imperador em tudo o mais). Durante o tempo de César, a Guarda existiu de maneira informal; seu sobrinho-neto, filho adotivo e sucessor, Augusto – o primeiro a usar o título de imperador – foi quem a institucionalizou e regulou. Tibério, enteado e sucessor de Augusto, e que era o imperador na época em que está ambientado o livro, fez construir um imponente quartel-general para a Guarda Pretoriana, que, por falar nisso, era a única força militar à qual era permitido estacionar na zona urbana de Roma. Em reconhecimento a esse gesto, a Guarda adotou como emblema um escorpião, o signo zodiacal de Tibério. Os pretorianos distinguiam-se dos demais legionários pelas túnicas escuras e pelos escudos, que eram ovalados, como os dos exércitos da época da República, em vez de retangulares.

Se a Guarda Pretoriana tivesse continuado a ser o que foi pensada para ser, é provável que não se houvesse instalado a antipatia com que homens como Tulo e seus soldados a encaravam; afinal, os pretorianos deveriam ser a elite do exército, deveriam ser exclusivamente heróis das legiões, dignos da admiração de todos. Deveriam. Só que ser um pretoriano era uma posição cobiçável, já que o soldo era duas vezes maior que o dos legionários regulares, o tempo de serviço era mais curto, e havia uma série de privilégios, para não falar no fato de que, salvo na eventualidade de algum membro da família imperial decidir ir para o campo de batalha, era pouco provável que viesse a ser preciso efetivamente lutar (os pretorianos que acompanham Germânico, por exemplo, não têm uma vida tão tranquila). E, como costuma acontecer em se tratando de posições cobiçáveis, uns e outros não demoraram muito a encontrar "formas alternativas" de ter acesso a uma vaga na Guarda, para quem tivesse uma família influente e/ou bastante prata disponível. Como resultado, na opinião de Tulo, pelo menos uma grande parte da Guarda Pretoriana em seus dias é composta de jovens bundões em armaduras reluzentes que se julgam superiores aos outros legionários, mas que, se estivessem em sua centúria, sentiriam o peso de sua vitis (vara de videira que os centuriões portavam) até virarem homens de verdade.

De toda a trilogia, Águias na Tempestade é, mais do que provavelmente, o volume com a mais farta quota de sangrentas cenas de batalha; eu ainda não tinha visto Tulo e seus homens causarem tamanha devastação entre as fileiras inimigas, e é digno de admiração o modo como Ben Kane consegue levar um trecho de até duas, três páginas narrando isso, sem que em momento algum a coisa pareça repetitiva ou desnecessária. As baixas do lado romano também não são poucas, ao menos quando Armínio, cuja capacidade estratégica não é desprezível, consegue forçar as legiões a lutar em terrenos e condições que tornam muito difícil colocar em prática as táticas e manobras engenhosas que os soldados romanos treinavam exaustivamente até serem capazes de executá-las de olhos fechados e com a precisão de um relógio – o que, em grande parte, era o segredo de suas vitórias contra inimigos fortes e corajosos, mas desorganizados, como era o caso dos guerreiros germanos. Como nos dois livros anteriores, não há aqui mocinhos nem bandidos, ou, pelo menos, ninguém é alguma dessas coisas o tempo todo: de ambos os lados são praticadas atrocidades e também atos heroicos. A guerra é sempre um negócio brutal e terrível, e talvez não haja nada como ela para trazer à tona o melhor e o pior que existe no homem.

Não é possível concluir o texto sem dizer uma ou duas palavras a respeito de Nero Cláudio Druso Germânico (filho), ou apenas Germânico, personagem histórico real aqui retratado. Em Eu, Claudius, Imperador, o autor Robert Graves pintou-o sob a ótica de seu irmão menor, Cláudio, que o idolatrava, talvez, mais que ao próprio pai, a quem quase não conheceu (Nero Cláudio Druso Germânico pai, normalmente referido como Druso, faleceu em 9 a.C., quando Cláudio tinha cerca de um ano de idade). Antônia, mãe dos dois, punha todo o seu orgulho e esperanças no filho mais velho, dedicando apenas desprezo ao pequeno Cláudio, a quem considerava um retardado inútil; da família, só Germânico gostava de Cláudio, e fez por ele tudo o que pôde. Não admira, portanto, que Graves, ao tentar escrever como o próprio Cláudio escreveria, tenha feito de Germânico a representação mais favorável possível. Já em Águias na Tempestade, a ótica é outra: Ben Kane baseou-se principalmente nos relatos dos historiadores Tácito e Dio Cássio; esse é Germânico em ação na guerra, conduzindo-se, muitas vezes, de modo implacável. Nas campanhas dos anos 15 a 17, as tribos que se haviam aliado a Armínio em Teutoburgo foram derrotadas, e várias delas, quase exterminadas, mas isso não foi seguido por uma ocupação massiva do território, e nem mesmo por um esforço sistemático no sentido de restabelecer a próspera província romano-germânica que estava tomando forma antes de Armínio orquestrar sua revolta; o principal motor dessas campanhas foi o fato de que o massacre na floresta de Teutoburgo não podia ser deixado sem resposta, por pelo menos duas razões. Primeiro, se o Império não revidasse, isso poderia assanhar as tribos do leste do Reno e levá-las a achar que a vitória uma vez obtida poderia ser reprisada, e, com isso, a margem oeste do rio passaria a sofrer com seus ataques. Segundo, as águias das legiões esmagadas em Teutoburgo continuavam em poder dos bárbaros, e, enquanto não fossem recuperadas, isso permaneceria como uma ferida aberta no moral de todo o exército. Uma vez concretizada a represália, os romanos retiraram-se; o imperador Tibério e o senado concordaram que as terras além do Reno exigiriam demasiado esforço para sua conquista, e não ofereciam em troca nada que não pudesse ser obtido mais facilmente em outros sítios. Portanto, pode-se dizer que o objetivo de Armínio e seus seguidores, de manter a maior parte da Germânia independente do Império Romano, foi alcançado, mesmo que o saldo final do confronto tenha sido de derrota para eles. Quanto a Germânico, só podemos ficar imaginando que grande imperador ele poderia ter sido (era filho adotivo de Tibério, e, portanto, o próximo na linha de sucessão) se não fosse por sua morte prematura, em 19, sem ter completado 34 anos. De qualquer forma, o principado de Tibério seria bem longo: ele governaria até sua morte no ano 37, e, não mais dispondo de Germânico para sucedê-lo, indicou o filho dele, Caio Júlio César Augusto Germânico… mais conhecido como Calígula. Um pouco mais sobre esses dois imperadores pode ser encontrado em meu post sobre o livro de Robert Graves, cujo link está logo acima neste parágrafo.

Ben Kane, sem dúvida e sem favorecimento algum, é um dos mais notáveis escritores atualmente em atividade a se dedicarem à ficção histórica, e estou grato por ter tido a oportunidade de ler a Trilogia das Águias, que me rendeu algumas horas de uma leitura muito intensa e agradável. Não tenham preguiça de ler na íntegra a nota do autor ao final do livro: há partes que são repetidas das notas dos dois primeiros volumes, mas outras não são e tratam de coisas que vale a pena saber. Certo, parece que Kane não quis dar-se ao trabalho de garantir que a nota ficasse tão bem escrita quanto o resto do livro, pois o texto é um tanto bagunçado, com vários assuntos jogados aparentemente a esmo num único parágrafo. Há indicações empolgantes de museus e sítios arqueológicos romanos que podem ser visitados na Alemanha – espero conseguir um dia – e uma pá de curiosidades. Kane assegura que a ronda noturna de Germânico pelo acampamento, disfarçado, para conferir como anda o moral de seus soldados (que eu poderia jurar ter sido inspirada numa cena da peça Henrique V, de Shakespeare!) é histórica, embora, no livro, tenha levado o toque ficcional de fazê-lo acompanhar por Tulo. E, fazendo uma brincadeira com seus leitores, o autor desafia: "Há duas homenagens ao filme Gladiador no livro – veja se as descobre". Uma delas eu encontrei facilmente, e embora, é claro, ainda não tivesse lido a nota, pensei comigo que não podia ser coincidência: o início de uma conversa entre Tulo e seu optio, Marco Fenestela, no capítulo XXXII, é idêntico ao diálogo do general Maximus com seu ajudante de ordens, Quintus, logo antes da primeira batalha no filme de Ridley Scott. "As pessoas deviam saber quando são conquistadas." "Você saberia, Quintus? Eu saberia?" (A propósito, o optio, que se pronuncia "ópcio", era o segundo oficial mais graduado numa centúria, auxiliar direto do centurião e, quando necessário, seu substituto.) Quanto à outra homenagem, creio que a achei também, mas, se for o que eu penso, é bem menos explícita que a primeira, e, de qualquer modo, não posso dizer aqui do que se trata, pois envolve um spoiler. Por fim, preciso confessar que estou, de certa forma, contente de que esses livros tenham sido publicados em Portugal. Adquiri-los é trabalhoso, demoram a chegar e custam caro, mas tenho calafrios só de imaginar o que noventa e nove por cento dos tradutores brasileiros de hoje em dia teriam feito com os textos de Kane, naquelas horrendas tentativas de "linguagem de época".


quinta-feira, novembro 16, 2017

O Silmarillion

Meu início na literatura de J. R. R. Tolkien foi exatamente o mesmo que eu hoje aconselho a quem me perguntar por onde começar: O Hobbit, que é, sem dúvida, a mais simples e leve das obras a respeito da Terra-média. Fácil de ler, divertido, empolgante, não requer qualquer conhecimento prévio, e já traz em si aquela combinação tocante de grandiosidade, atmosfera épica, humor e nostalgia – uma nostalgia inexplicável de algo que jamais conhecemos. Porém, depois que você já adquiriu uma certa intimidade com o universo criado pelo autor, passa a querer saber sua história desde o começo – o verdadeiro começo, mesmo que outras partes dessa história tenham sido contadas primeiro.

O Silmarillion satisfaz, ao menos em parte, esse desejo. Diz a lenda (para os apaixonados por Tolkien, não é exagero falar assim) que, depois do inesperado sucesso de O Hobbit, publicado em 1937, o editor Stanley Unwin disse a Tolkien que o público estava sedento por novas aventuras ambientadas na Terra-média, e que, se houvesse tais histórias, ele as publicaria sem dúvida. O Professor, entretanto, metódico como sempre, em vez de simplesmente escrever novas histórias seguindo a receita já aprovada, quis "começar pelo começo", e apresentou a Unwin um punhado de manuscritos soltos, embora interligados entre si, que tratavam da origem e dos primeiros tempos daquele mundo. O editor foi da opinião de que aquele tipo de coisa era demasiado séria e complexa para agradar aos leitores que tinham adorado O Hobbit, e recomendou ao autor que focasse nos hobbits, já que era principalmente nas pequenas criaturas de pés peludos e apetite voraz que o interesse do público parecia se concentrar. O resultado foi O Senhor dos Anéis, livro que, se tivesse podido fazer as coisas como queria, Tolkien talvez jamais tivesse escrito – e sobre o qual poderíamos dizer que, se a ideia era mesmo fazer algo "não tão complexo", então parece que nem tudo saiu conforme os planos. Seja como for, hoje em dia a esmagadora maioria dos fãs do Professor (maioria na qual, com toda a certeza, eu me incluo) considera o SdA como sua obra-prima.

Acontece que, mesmo sem terem sido publicados, os textos de O Silmarillion sempre foram importantes para Tolkien, que os considerava, "oficialmente" e para todos os fins, parte da história da Terra-média, como mostram suas cartas e outros escritos. Não era possível que seus leitores ficassem para sempre privados desses conhecimentos, mas foi preciso esperar até 1977 (quatro anos depois da morte de Tolkien) para que esses textos fossem reunidos num livro, editado por Christopher Tolkien, filho do autor, o que deu início a uma longa e árdua, embora frutífera, missão, que continua até hoje, apesar do fato de Christopher, veterano da Segunda Guerra e aposentado da cátedra de Língua Inglesa na Universidade de Oxford, completar 93 anos agora em novembro.

O livro publicado sob o título de O Silmarillion reúne, na verdade, vários textos menores – menores, bem entendido, no sentido de mais curtos, não no de menos importantes. O primeiro deles é Ainulindalë, 'a Música dos Ainur', que, para definir da maneira mais sucinta, trata da criação do mundo. Em muitos lugares nos escritos de Tolkien há sugestões (e, por vezes, mais que sugestões) de que o mundo sobre o qual suas obras versam é o nosso próprio mundo num passado distante. Como se fosse para reforçar esse entendimento, esse mundo é chamado de Arda, nome que possui ligação evidente com Earth em inglês, Erde em alemão, Jord (pronunciado Iord) em nórdico antigo, e assim por diante, todos significando 'Terra'; Tolkien, como hábil linguista que era, naturalmente não perderia a oportunidade de utilizar nomes e palavras como uma forma de fornecer informações que um leitor atento e com certo conhecimento poderia captar. Não que os nomes tenham sido criados como um recurso para apoiar as narrativas: de certa forma, foi o inverso. O Professor criou primeiro as línguas de seu mundo fantástico, e só depois, levado pela vontade de dar a elas um substrato histórico e lendário, criou as histórias. Certa vez, falando sobre o esperanto, ele disse que essa língua artificial de criação moderna está muito mais "morta" que o latim ou o grego antigo, porque não possui história e tampouco um corpus mitológico ligado a ela – coisas que o grego antigo e o latim possuem. O desejo de evitar que seus tão queridos idiomas élficos tivessem essa mesma sina de "línguas natimortas" foi o que o motivou a criar as lendas que tanto amamos e que, hoje, fascinam milhões de leitores no mundo todo, independentemente do interesse que eles tenham ou não tenham em filologia.

Eu e minhas digressões… Estava dizendo que Ainulindalë, a primeira parte de O Silmarillion, trata da criação do mundo. Sendo um católico devoto, Tolkien, conscientemente ou não, desenvolveu essa narrativa de uma forma essencialmente compatível com a visão cristã sobre o assunto, encontrada em parte na Bíblia, em parte na tradição da Igreja. Por falar nisso, e apesar do que muita gente pensa, a Igreja não é avessa à ciência e não considera que aceitar o que ela descobriu sobre as origens da vida e do universo seja incompatível com a crença num Deus criador – essa é a posição oficial, mas há os católicos fundamentalistas, que insistem na interpretação literal do Gênesis, isso para não mencionar os membros de outras denominações cristãs. Não sei qual era a opinião pessoal de Tolkien sobre essa questão, mas isso não faz tanta diferença para o nosso assunto do momento: seja como for, Ainulindalë é a criação do mundo narrada de uma forma poética, não científica.

Ele nos conta que, no início, "havia Eru, o Único, que em Arda é chamado de Ilúvatar" – ou seja, Deus. Ilúvatar significa 'Pai de Todos' em Quenya, uma das duas línguas élficas inventadas por Tolkien (que também criou línguas para os anões, orcs, entre outros, embora, a essas, tenha-se dedicado menos), e, como no caso de Arda, é fácil estabelecer a correlação entre vátar ('pai') e seus equivalentes em várias línguas de raiz germânica: father em inglês, Vater em alemão, fađir em islandês… Eru Ilúvatar, então, deu existência aos Ainur (no singular, Ainu), seres espirituais dotados de grande sabedoria e poder. Novamente em consonância com a visão católica, os Ainur não são deuses, mas poderíamos dizer que são anjos, criados por Deus antes que o mundo que conhecemos existisse. E, na narrativa de Tolkien, o trabalho de criação realizado por Ilúvatar se dá através da música. Primeiro Ele canta para os Ainur, depois pede-lhes que cantem também, sob Sua regência, e as maravilhosas melodias que produzem vão dando forma ao mundo que viria a ser Arda, mas que os Ainur chamaram primeiro Eä – numa tradução livre, 'o Mundo que É', quer dizer, o mundo que deixou de ser apenas uma ideia na mente de Eru para ganhar existência real. Mas, mesmo no reino de Eru, nada é perfeito. Um dos Ainur, de nome Melkor, quis criar sua própria melodia, e, com isso, trouxe desarmonia à música que seus irmãos faziam seguindo fielmente a orientação de seu Senhor.

Não é nada difícil ver que Melkor é a versão de Tolkien para Lúcifer – um dos anjos mais poderosos e mais próximos de Deus, que um belo dia decidiu que servir não era suficiente para ele – mas seria um redondo engano achar que o Ainulindalë limita-se a parafrasear de forma óbvia a narrativa cristã sobre a queda dos anjos. Ele traz um acréscimo muito interessante, enunciado nesta fala de Ilúvatar:

(…) Tu, Melkor, verás que nenhum tema pode ser tocado sem ter em mim sua fonte mais remota, nem ninguém pode alterar a música contra a minha vontade. E aquele que tentar, provará não ser senão meu instrumento na invenção de coisas ainda mais fantásticas, que ele próprio nunca imaginou.

Isso também faz parte da visão cristã, mas nem todo mundo sabe ou se dá conta: é a ideia de Santo Agostinho, de que "Deus não permitiria o mal, se dele não pudesse tirar um bem maior". Por mais que Suas criaturas se rebelem, no final ficará provado que tudo tinha um lugar no plano de Deus. Não que Ele deseje que elas se rebelem; simplesmente sabe de antemão quando isso acontecerá, já que é onisciente, e toma as providências necessárias.

Uma vez criado o mundo, e antes que surgissem os Filhos de Eru (elfos e homens), alguns dos Ainur optaram por viver nele, cabendo a cada um deles administrar um aspecto da criação; esses Ainur que viviam na Terra passaram a ser chamados de Valar (singular Vala, que no feminino fica Valië). No começo da segunda parte d'O Silmarillion, intitulada Valaquenta ('História dos Valar'), é dito que os Valar foram, com frequência, chamados de deuses pelos humanos, o que explica a semelhança das características de muitos deles com as de divindades de diferentes panteões, bem como as dessas divindades entre si. Impossível, por exemplo, olhar para uma ilustração de Ulmo, o Vala responsável pelas águas, e não lembrar imediatamente de Poseidon, o deus grego do mar. Do mesmo modo, Aulë, o Vala associado ao fogo e ao trabalho do metal, assemelha-se a Hefestos, o mesmo que os romanos chamavam de Vulcano. Já em Varda, a Valië da luz, que teria feito as estrelas, Tolkien permitiu-se revelar um vislumbre de sua própria fé, retratando não alguma deusa, mas a Virgem Maria, por meio de várias características que nós, católicos, atribuímos a ela e que ele deu também a Varda – o que não significa que as figuras das duas sejam sempre equivalentes, pois isso seria uma alegoria, coisa da qual o Professor notoriamente não gostava. Como sempre em sua obra, o que há é campo aberto para a famosa "aplicabilidade": num momento e situação específicos, Varda pode representar Maria; em outra situação, Varda pode representar outra coisa, e, em outro lugar da obra do autor, outra personagem pode assumir as atribuições de Nossa Senhora, como o faz Galadriel em O Senhor dos Anéis, quando dá a Frodo um cristal contendo a luz da estrela Eärendil. Mais tarde, quando o hobbit está perdido na escuridão da caverna de Laracna, esse presente não apenas ilumina seu caminho, mas renova sua coragem; não há como não ver aí exatamente o que a proteção da Mãe de Jesus significa para nós e, sem a menor dúvida, significava para Tolkien.

Os Valar, pois, estavam na Terra, cada um cuidando da parte dela que lhe fora confiada por Ilúvatar, mas Melkor, o Vala renegado, não se manteve ocioso; fazia tudo o que podia para arruinar o trabalho dos outros, e não estava sozinho nessa tarefa, contando com a ajuda de outros Ainur que o seguiam, bem como de inúmeros espíritos de menor poder – tal como Lúcifer, que, de acordo com a tradição cristã, foi seguido em sua rebelião por um terço dos anjos. Isso gerou muitos conflitos para os quais o jovem mundo serviu de palco. Os Valar fiéis sabiam do plano de Ilúvatar de trazer à vida os elfos e os homens, mas não sabiam quando isso aconteceria, e tanto tempo se passou que Aulë, impaciente, desejando ter criaturas inteligentes às quais pudesse ensinar suas artes, acabou criando os anões. Quando Eru viu o que o Vala havia feito sem Seu consentimento, repreendeu-o com severidade. Aulë, ao contrário do soberbo Melkor, acatou humildemente a reprimenda de seu Senhor, e, embora entristecido, ergueu seu martelo, pronto para destruir sua criação, lembrando um Abraão prestes a sacrificar o filho Isaac – mas, tal como o fez com Abraão, Deus não permitiu que concretizasse o ato; deteve a mão de Aulë e, magnanimamente, deixou que os anões vivessem, com a condição de que ficassem adormecidos até que Ele julgasse chegado o momento de despertar seus primogênitos, os elfos. Essa bela história fornece uma adequada explicação mítica para as características essenciais dos anões: Aulë os fez resistentes e teimosos para que pudessem sobreviver num mundo ainda castigado pelas artes malignas de Melkor; quanto ao amor pela mineração e pelo trabalho do metal, herdaram-no de seu "pai".

Conforme prosseguimos a leitura de O Silmarillion, vamos nos deparando com as origens de povos, personagens e lugares que já conhecemos, e, pelo menos nessa primeira vez, fiquei satisfeito por estar lendo-o agora, que já conheço O Hobbit e O Senhor dos Anéis: O Silmarillion amarra muitas pontas que pareciam soltas e coloca as coisas dentro de uma perspectiva mais ampla. Alguém que fosse lê-lo sem antes conhecer essas outras obras talvez achasse a leitura cansativa; do jeito como eu fiz, de forma alguma… Bem, não durante a maior parte do tempo. Há, sim, trechos que exigem paciência por parte do leitor, como o capítulo XIV, De Beleriand e Seus Reinos, que consta de nove páginas de anotações geográficas e topográficas. Tenham em mente que o livro é um apanhado de escritos soltos de diferentes tipos: é provável que Tolkien tenha escrito esse texto para sua própria referência, sem imaginar que algum dia seria publicado. E como material de referência e consulta, ele é útil para os que desejam conhecer a fundo o universo do autor, mas não esperem que seja divertido. Pretendo, um dia, reler as obras do Professor em ordem cronológica, à luz do conhecimento adquirido nas primeiras leituras.

Entre as revelações mais importantes para a história da Terra-média presentes em O Silmarillion estão as que tratam de Melkor, o primeiro Senhor das Trevas (gosto mais dessa forma, corrente em Portugal, que de "Senhor do Escuro", usada no Brasil desde a tradução d'O Senhor dos Anéis feita nos anos 90 por Lenita Rímoli Esteves), título que, mais tarde, passaria dele para seu servo, Sauron, que vem a ser o Senhor das Trevas mais conhecido pelos leitores de Tolkien – ou, melhor dizendo, aquele com cujo nome estamos mais familiarizados, já que, no SdA, embora seja a sua vontade que move as forças do mal, Sauron não chega a aparecer como um personagem propriamente dito, uma vez que, na ocasião, encontrava-se privado de um corpo. Não deixei de notar, também, que o paralelo entre Melkor e Lúcifer não fica apenas na semelhança das trajetórias de ambos, estendendo-se a sua índole e modus operandi: na tradição judaico-cristã, o diabo empenha-se em imitar Deus, embora sempre de forma imperfeita ou invertida; Melkor não tem o poder de criar novos seres como o faz Ilúvatar, então dedica-se a perverter a obra do Criador. Fez isso, por exemplo, quando tomou alguns elfos que havia capturado e, por meio de "lentas artes de crueldade" (nas palavras do autor) que é melhor nem tentarmos imaginar, desenvolveu, a partir deles, a raça dos orcs, destinados a serem seus soldados e escravos. Num processo semelhante, também inventou os trolls a partir dos ents, os "pastores de árvores".

Um personagem importante em O Silmarillion – e na história da Terra-média de modo geral – é Feänor, filho de Finwë, rei dos elfos Noldor e, sem dúvida, um dos mais poderosos e brilhantes representantes da raça élfica em todas as eras do mundo. Feänor criou as Silmarils, três joias inigualáveis que guardavam a luz de Telperion e Laurelin, as Duas Árvores que iluminavam Valinor (a terra dos Valar, no extremo oeste, separada da Terra-média por um mar) antes que o sol e a lua existissem. Também é atribuída a ele a invenção das Palantíri, artefatos que permitiam ver o passado, o futuro e o que acontecia em lugares distantes, e do alfabeto Tengwar, às vezes chamado de "runas élficas" ou "caracteres feänorianos". Porém, apesar de toda a sua sabedoria, Feänor também deixou um legado de violência, quando Melkor roubou as Silmarils e fugiu com elas em direção à Terra-média. Feänor conclamou todos os Noldor a segui-lo numa cruzada contra Melkor (a quem ele deu o nome de Morgoth, o 'Inimigo Negro'), para recuperar as gemas e vingar seu pai, Finwë, que o Vala renegado havia assassinado, fazendo dele o primeiro elfo a morrer de forma violenta… Só que, por mais justas que fossem as motivações, essa iniciativa causaria muitas desgraças. Para alcançar seu duplo objetivo, Feänor não se deteria diante de nada, mesmo que precisasse lutar contra outros elfos. Isso conduziu ao histórico e sangrento Fratricídio de Alqualondë, quando Feänor e seus Noldor travaram batalha contra os Teleri, um ramo dos elfos que vivia à beira-mar e que, até então, os considerava um povo amigo. Esse e outros episódios fazem da busca de Feänor, a meu ver, uma das partes mais emocionantes e mais trágicas de O Silmarillion, embora haja as que rivalizam. Omiti de propósito detalhes da história que tornarão a experiência mais interessante se vocês os descobrirem somente quando lerem.

Quem conhece um pouco da biografia de Tolkien também conhece algo de sua índole e opiniões, e sabe do sério problema que ele tinha com a tecnologia e o mundo moderno de forma geral (é engraçado tentar imaginar o que ele diria se pudesse ter previsto a internet e sabido que, no futuro, ela serviria para integrar seus fãs dos quatro cantos do mundo). Isso transparece em suas histórias, como quando ele descreve a cidade de Melkor/Morgoth, protegida pelas Ered Engrin, "Montanhas de Ferro", e conta que a fortaleza do inimigo tinha altas torres que exalavam fumaça e vapores que obscureciam o céu e envenenavam o ar… Isso pode até fazer pensar em vulcões, mas, para mim, parece bem mais com uma imagem de grandes fábricas com suas chaminés poluidoras. Mais tarde, Sauron seguiria o exemplo de seu mestre nesse ponto, assim como em outros; também Saruman, o mago-mestre que traiu sua ordem e se aliou ao Senhor das Trevas, adaptou sua fortaleza, Isengard, a esse padrão tenebroso, mandando derrubar suas florestas para transformá-las em lenha e alimentar as forjas que trabalhavam dia e noite produzindo armas para seu exército de orcs. Para Tolkien, o mundo moderno e industrial era o inimigo da natureza, e, por consequência, de tudo o que existia de belo e bom.

Embora as histórias interessantes em O Silmarillion sejam várias, a mais notável (na opinião do próprio Tolkien) é a de Beren e Lúthien. Beren, um jovem guerreiro humano, de origem nobre, mas caído em desgraça (não vou me alongar com os detalhes; basta dizer que sua família teve uma história trágica), vagando por uma floresta, vê Lúthien, filha do rei elfo Elu Thingol, dançando sobre uma colina, e apaixona-se por ela. O sentimento é mútuo, mas Thingol, que nutre um desprezo a priori pelos humanos, declara que só consentirá na união dos dois caso Beren lhe traga uma das Silmarils – as joias feitas tanto tempo antes por seu parente Feänor, roubadas por Morgoth, e que, naquele momento, são mantidas na fortaleza deste último, protegidas por todo o seu exército e por seus poderes tenebrosos. Nenhum rei elfo, mesmo com exércitos às suas ordens, jamais ousou atacar Morgoth no intuito de recuperar as Silmarils, e Thingol sabe disso muito bem; para um jovem sozinho e sem quaisquer recursos, tentar essa empreitada seria morte certa, e é justamente isso o que o pai de Lúthien pretende. Beren, entretanto, simplesmente ri e replica que "por preço baixo os reis élficos vendem suas filhas: por pedras preciosas e objetos criados por artífices", e parte para encarar o desafio. Sem spoilers, direi apenas que, na aventura cheia de peripécias que se segue a isso, Lúthien não fica com o papel da frágil donzela que apenas espera pela volta de seu herói e teme pela sorte dele: mostra-se sagaz e corajosa, dona de habilidades valiosas. Mais tarde, em nome de seu amor por Beren, ela vem a abrir mão de sua imortalidade. Essa história, de certa forma, tem um eco na Terceira Era (milênios depois), com Aragorn e Arwen, embora haja algumas diferenças importantes: enquanto o pai de Lúthien odiava Beren, Elrond, o pai de Arwen, gosta de Aragorn e vê com simpatia o amor dos dois, ainda que não pareça muito otimista quanto ao tipo de futuro que eles poderão ter. O mais bonito vem agora: nas figuras de Beren e Lúthien, Tolkien retratou a si próprio e a sua esposa, Edith; os nomes foram gravados junto dos seus próprios na lápide do túmulo que os dois compartilham no cemitério de Wolvercote, em Oxford.

Uma coisa em O Silmarillion poderá decepcionar a alguns: o livro conta as origens de elfos, anões, homens, até dos orcs, mas não diz um A sobre os hobbits (há uma única e brevíssima menção a eles no apêndice denominado Dos Anéis de Poder e da Terceira Era, que, como Christopher Tolkien salienta no prefácio, é realmente um apêndice, não fazendo parte de O Silmarillion; de todo modo, essa menção não diz sobre o Povo Pequeno nada que já não soubéssemos). Talvez a explicação esteja no fato de que, segundo Tolkien (provavelmente em alguma de suas cartas; não lembro onde foi que li isso), o povo de Bilbo e Frodo não constitui uma raça à parte, mas um ramo dos humanos. Usando uma linguagem mais científica, não falaríamos em "raças": elfos, anões e homens seriam diferentes espécies, embora muito próximas uma das outras, ao ponto de ser possível o nascimento de crianças mestiças – ao menos no caso de humanos e elfos; nunca soube da existência de mestiços humano/anão ou anão/elfo, pelo menos no universo de Tolkien. Seguindo o mesmo raciocínio, os hobbits seriam uma subespécie dos humanos. Mesmo levando isso em consideração, a existência dos hobbits, o quando, o como e talvez o porquê de terem se diferenciado dos outros seres humanos, isso tudo deve ter uma história fascinante por trás – talvez uma que o Professor não tenha chegado a escrever. Uma pena! Porém, estou longe de ser um especialista em Tolkien e estou bem ciente disso; se alguma história assim existir e alguém que me lê a conhecer, ficarei agradecido por ser corrigido, e também pela indicação de onde poderei ler tal história.

Ainda há muito mais neste livro, mas acho que já "falei" demais. Assim, já entrando na reta final do post, acho necessário indicar que, fora todos os que já citei, estão aqui, pelo menos, mais três conteúdos importantes. O primeiro, ainda dentro d'O Silmarillion propriamente dito, é a história de Túrin Turambar, que, no universo de Tolkien, preenche o arquétipo do herói valoroso, porém desventurado; parece que o autor se inspirou numa história presente no Kalevala finlandês, a respeito de um personagem de nome Kullervo, mas, enquanto lia sobre as calamidades que perseguiam Túrin, lembrei por mais de uma vez do mito grego de Édipo, tão bem aproveitado por Sófocles em suas peças Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona. O segundo, no apêndice Akallabêthtrata da terra de Númenor, habitada pelo ramo mais nobre da raça dos homens, do qual descendia o herói Aragorn, bem conhecido de quem leu O Senhor dos Anéis; e o terceiro, no já citado Dos Anéis de Poder e da Terceira Eraé precisamente a origem dos Anéis do Poder, os detalhes a respeito de sua forjadura, tema que só havia sido tangenciado naquele livro.

Boa parte das críticas que O Silmarillion recebeu logo a seguir ao seu lançamento deve ter despertado a ira dos fãs de Tolkien (o punhado de excertos que li certamente despertou a minha!), mas é difícil negar os pedaços de verdade que há em algumas delas, em especial quando se referem ao fato de, não raras vezes, tornar-se praticamente impossível seguir o texto e reter tudo o que se está lendo, ou não se cansar com as dezenas e dezenas de nomes exóticos que pipocam a cada página: não dá para memorizar tudo isso. O Professor, à semelhança de uma criança extraordinariamente criativa e engenhosa, deleitava-se a brincar com os brinquedos que havia construído para si próprio – suas línguas fictícias, que ele não se contentou em criar, mas levou a um grau inacreditável de coerência e detalhamento, com etimologia própria, uma gramática com direito a tempos verbais, conjugações, declinações e tudo o mais. Tal criação não é menos que genial, e é totalmente compreensível que o autor quisesse vê-la funcionando, sem esquecer que a Terra-média e sua mitologia só existem por causa dessas línguas, mas nada disso impede que, em várias partes do livro, a avalanche de nomes de personagens e lugares (todos esses nomes, sem exceção, com significados precisos em uma ou outra língua imaginária) deixe o leitor meio desarvorado, mesmo que ele já tenha alguma experiência com a escrita de Tolkien. Como um louvável esforço para amenizar esse problema para os leitores, Christopher Tolkien incluiu um glossário dos famigerados nomes de personagens, lugares, povos, etnias etc., que podemos consultar sempre que não lembrarmos ao que um determinado nome se refere. Há também um apêndice com elementos formativos dos nomes nos idiomas quenya e sindarin, para que tenhamos a chance de, aos poucos, pegar gosto por decifrar os sentidos desses nomes, dominando seus radicais e vendo como eles se encaixam como peças de um quebra-cabeça para formar nomes e palavras. Dessa forma, talvez cheguemos até a acumular um pequeno vocabulário nessas línguas. Tão úteis quanto tudo isso, há árvores genealógicas das linhagens de homens e elfos que têm papéis de destaque nas histórias. Enfim, O Silmarillion vai, por vezes, exigir esforço e paciência do leitor, mas, vamos concordar, quase tudo o que vale a pena na vida exige esforço e paciência. É um belíssimo livro, indispensável para todos os fãs de Tolkien.