segunda-feira, março 05, 2018
Conan, o Bárbaro (Livro 1)
quinta-feira, fevereiro 22, 2018
Visões da Noite
Nascido no estado americano de Ohio e criado em Indiana, Bierce começou no jornalismo na adolescência, tendo a carreira ainda incipiente interrompida em 1861 pela eclosão da Guerra Civil Americana, na qual lutou pelo exército da União, que reunia as forças dos estados do Norte contra os Confederados do Sul. Bierce participou de um punhado de batalhas importantes, destacou-se pela bravura e sofreu pelo menos um ferimento grave em ação. Galgou postos até tornar-se primeiro-tenente, graduação com a qual deu baixa, no início de 1865, meses antes do fim da guerra. Retornando à atividade jornalística, estabeleceu-se em San Francisco, Califórnia, onde atuou como repórter e editor em diversos periódicos, enquanto, paralelamente, escrevia trabalhos de ficção. Sua primeira história publicada foi O Vale Assombrado, em 1871. Viveu na Inglaterra durante alguns anos. Sua produção literária não foi muito extensa; além de narrativas realisticamente sangrentas sobre o que tinha visto na guerra, dedicou-se ao que hoje seria chamado horror psicológico, bem como ao conto sobrenatural. Chegou até a flertar com a ficção científica, gênero que mal existia em sua época. Seu fim foi digno de uma de suas histórias: nos últimos dias de 1913, já idoso e divorciado (parece que, como tanta gente, tampouco sua esposa o suportou), viajou para o México com o plano de fazer uma cobertura jornalística da revolução que o país então vivia; atravessou a fronteira sozinho no final de dezembro daquele ano e conseguiu permissão para acompanhar o exército de Pancho Villa na qualidade de observador neutro. Daí em diante, nada mais se soube dele; foi dado como desaparecido, o que explica o porquê do ponto de interrogação que acompanha o ano (presumido) de sua morte. Há quem ache que ele simplesmente continuou a exercer seu habitual sarcasmo agressivo ("Bierce sendo Bierce") e que os mexicanos tinham um pavio mais curto para esse tipo de coisa que os americanos, de modo que o escritor teria acabado fuzilado. Mas isso é só conjectura.
Esta edição da Record inclui uma introdução de Heloisa Seixas, também a responsável pela seleção e tradução dos textos; consiste basicamente de uma biografia do autor, resumida, embora muito mais detalhada que a versão acima, e de breves considerações sobre sua obra. Seixas observa, de passagem, que é um tanto surpreendente que Bierce tenha elegido o sobrenatural como tema de várias de suas histórias, já que, em nível pessoal, era "agnóstico, ateu, herege, ou como você queira chamar aqueles que descreem de tudo". Na verdade, agnóstico, ateu e herege são três coisas diferentes, e parece que, dos três conceitos, aquele no qual Bierce melhor se encaixava era o de agnóstico – do grego a, um prefixo de negação, e gnosis, conhecimento. Ou seja, um agnóstico é alguém que não crê nem descrê: diz "não sei", por ser da opinião de que é impossível provar quer a existência, quer a inexistência de Deus. Mas, mesmo que Bierce fosse decididamente um ateu, não vejo, a priori, nenhuma incompatibilidade entre isso e seus trabalhos de ficção. Sua possível descrença no sobrenatural não o impediria de usá-lo em histórias inventadas, tal como Tolkien certamente não acreditava na existência de elfos ou dragões, o que não o impediu de escrever sobre eles.
Adendo, ou remendo, como preferirem: Descobri o que estava errado com Um Incidente na Ponte de Owl Creek, e minha primeira ideia foi reescrever o parágrafo anterior, mas optei por deixá-lo como está, só para ilustrar os graves problemas que uma tradução equivocada pode causar. Bem: uma vez que o fato de Peyton Farquhar ser levado à forca pelos soldados de seu próprio lado não parecia certo (ao menos, não sem uma explicação plausível), fui procurar o texto original do conto, para o caso de haver alguma falha na tradução. E não deu outra. Ocorre que a Sra. Heloisa Seixas, por alguma razão, traduziu "Federal army" por "exército confederado" em vez de "exército federal", como deveria ser – e exército federal, no contexto da Guerra Civil Americana, significava o exército da União, ou seja, do Norte, que eram os Estados Unidos propriamente ditos, já que o Sul tinha se declarado independente, com o nome de Estados Confederados da América, pretendendo formar um país separado. Traduzindo desse jeito, torna-se francamente impossível ao leitor distinguir os dois lados no conflito, o que resulta em confusão total, prejudicando gravemente a compreensão da história. Seixas caiu vários pontos no meu conceito depois dessa. Mas vamos em frente.
O próximo conto tem o curioso título de Naufrágio Virtual. Esse adjetivo, que hoje usamos a torto e a direito por causa da internet e dos games, é muito mais antigo que tudo isso e tem vários significados possíveis, sendo que, por vezes, a diferença entre eles é sutil. Talvez sua acepção mais comum seja "algo que existe como ideia ou ideal, mas sem existência objetiva". Isso poderia, muito pela tangente, se encaixar nesta narrativa, mas não é bem isso. A história é tão curta e, de um ponto de vista formal, tão simples, que qualquer tentativa minha de fornecer a vocês um esboço do enredo resultaria em spoiler, então direi apenas que gira em torno do fenômeno da "viagem do espírito", e que o tremendo impacto que consegue causar com seu final, depois de tão poucas páginas, é algo que praticamente obriga um leitor a admirar a habilidade do autor. Luar Sobre a Estrada narra um caso de assassinato sob três diferentes pontos de vista – um deles o da própria morta, que não se limita a contar como foi que se tornou um fantasma, mas também descreve como é a existência de quem "passou para o outro lado", embora essa não seja uma expressão adequada, pois, segundo a falecida Sra. Julia Hetman, essas almas não vão a parte alguma: elas ficam rondando aqueles a quem amaram ou odiaram em vida, e, embora normalmente sejam invisíveis, de vez em quando determinadas circunstâncias fazem com que os vivos consigam vê-los, o que, claro, costuma resultar num enorme medo. Para saber como os fantasmas se sentem em relação a tudo isso, leiam a história, que oferece esse "testemunho" junto com um enredo de mistério que vale a pena conhecer.
Aparições é uma pequena coletânea de brevíssimas histórias, todas narradas de forma sóbria e econômica, a respeito de… bem, aparições. É notável como o estilo despojado, extremamente direto adotado consegue realçar o elemento sobrenatural – é como se o narrador fosse da opinião de que os fatos a serem apresentados são tão extraordinários em si mesmos, que ficar fazendo floreios seria nada mais que um desperdício de palavras. Meu palpite é que alguns desses causos tenham saído da imaginação de Bierce e alguns outros tenham sido ouvidos por ele em meio a rodas de conversa banal (é o que hoje chamaríamos de "lenda urbana", embora a maior parte tenha ambientação rural!) e adaptados para funcionarem bem na forma escrita – e funcionam muito bem.
E assim chegamos ao que considero, se não a melhor, pelo menos uma das duas ou três melhores histórias do livro – opinião, creio eu, partilhada por H. P. Lovecraft, que escreve sobre ela em tom admirativo no ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura. Trata-se de O Ambiente Adequado, que, como as outras, é breve e simples. James Colston, escritor de histórias de terror, encontra por acaso, num bonde, um conhecido, o Sr. Willard Marsh, que, também por acaso, está lendo no jornal o mais recente trabalho publicado de Colston. A conversa dos dois desemboca num desafio: Colston afirma que não é necessário nenhum grau extraordinário de coragem para ler suas histórias a bordo de um bonde, na luz da manhã, circulando por ruas movimentadas, mas pergunta se Marsh seria capaz de lê-las sozinho, à noite, numa velha casa abandonada e tendo apenas uma vela como iluminação. Mais uma vez, não há como dar mais detalhes sem estragar a leitura para vocês, mas acredito que essa premissa já deixe claro que temos aí um conto de terror um tanto diferente, explorando uma questão na qual todo leitor do gênero já pensou ao menos uma vez. E o final é terrível – no melhor dos sentidos.
A história Um dos Gêmeos é narrada por um homem de nome Henry Stevens, que tem, ou melhor, teve um irmão gêmeo, John. Gêmeos, em geral, têm uma relação curiosa e difícil de imaginar para quem é "um só", e que fica ainda mais peculiar se forem idênticos, mas parece que o caso de Henry e John é uns quantos graus mais extraordinário. Quando jovens (conta Henry), ambos moravam em San Francisco, mas viviam e trabalhavam em bairros diferentes e tinham poucos conhecidos em comum; como a cidade, na época, não era tão grande, era relativamente comum alguém encontrar um deles e pensar que era o outro – situação com a qual gêmeos idênticos estão acostumados a lidar desde a infância. O que há de diferente no caso dos irmãos Stevens é que sua conexão é tal que, em ocasiões assim, muitas vezes, qualquer um dos dois diz e faz exatamente o que o outro diria e faria, ainda que não conheça a pessoa com quem está interagindo e não tenha a menor ideia de por que determinadas palavras estão saindo de sua própria boca. Essa ligação inexplicável irá moldar a participação de cada um dos gêmeos numa trama de mistério e morte.
No Limiar do Irreal é sobre o poder da ilusão, prestidigitação e hipnotismo, o que se presta bem a uma história de terror, dependendo do tratamento dado, e, quando uma história tem esse mote, ela tende a ser tanto mais assustadora quanto mais verossímil. Não sei nada sobre o assunto, então não sei dizer se é plausível que uma pessoa permaneça sob o efeito de uma ilusão hipnótica por tanto tempo e de forma tão convincente quanto é descrito neste conto, mas não há dúvida de que o resultado para o leitor é inquietante. A seguir, temos outra coletânea, intitulada Casas Espectrais. As várias pequenas narrativas que a compõem apresentam as experiências de diferentes tipos de pessoas quando, sob circunstâncias também diferentes, vão parar em lugares assombrados. Assim como em Aparições, há aquela sensação de estarmos lendo histórias que devem ter sido contadas ao redor de muitas mesas de bar antes que Bierce as ouvisse e, fazendo as adaptações que julgou necessárias, pusesse por escrito, exceto no caso de Missão Não Cumprida, que é protagonizada por um jornalista e tenho o palpite de que seja cem por cento criação do autor.
Os Olhos da Pantera merece menção especial, e quem assistiu ao clássico de terror Sangue de Pantera (1942) ou ao seu remake mais safado, A Marca da Pantera (1982) entenderá logo por que – a propósito, ambos os filmes tinham o mesmo título original, Cat People, literalmente 'O Povo-gato'). O tema da mulher-fera é um arquétipo, talvez de origem pré-histórica, e tem sido retomado por uma série de autores desde os tempos antigos, mas apreciei muito o modo como Bierce soube adaptá-lo ao pano-de-fundo de seu país e época. Chega a ser uma pena que a história seja tão curta, pois seus desdobramentos e subentendidos poderiam render um conto bem mais longo ou até mesmo um pequeno romance, sem recair na encheção de linguiça. O protagonista, o advogado Jenner Brading, está apaixonado por Irene Marlowe, uma jovem tão notável pela beleza quanto por seu comportamento peculiar, mas ela lhe diz que não pode casar-se com ele porque é louca (geralmente, o fato de uma pessoa se considerar louca é um indício de que não o é, mas isso não vem ao caso aqui). Pelo que ela conta, seu pai era um desbravador que vivia, com a esposa e a filha (uma irmã mais velha de Irene que morreu pequena), numa cabana no meio de uma região selvagem, naquele ainda pouco explorado oeste dos Estados Unidos. Aconteceu que, tendo ele saído para caçar, uma pantera aproximou-se da casa e ficou espreitando a mulher e a criança que estavam indefesas lá dentro. A fera não chegou a atacar, mas a experiência daquelas longas horas de terror extremo fez a mãe de Irene perder a sanidade e afetou de forma insólita a própria jovem, que nasceria meses depois do episódio. Para saber mais, vocês terão que ler a história, é claro. A propósito, a palavra "pantera", a rigor, é sinônimo de leopardo, animal encontrado na África e Ásia, mas já foi usada nas Américas para designar tanto a onça-pintada (que, assim como o leopardo, ocasionalmente apresenta coloração preta ao invés da típica pelagem malhada) quanto a onça-parda, ou puma, ou ainda suçuarana. A pantera da história de Bierce poderia ser qualquer uma das duas, pois ambas as espécies eram encontradas em grande parte dos Estados Unidos até fins do século XIX.
Ah, sim: há uma história chamada O Homem Saindo do Nariz, mas, ao contrário do que esse título sugere, não se trata de um texto surrealista. O "nariz" citado é apenas a porta de uma casa cuja fachada lembra toscamente um rosto, e a história fala de um homem, outrora rico e benquisto da sociedade, que foi arruinado por suas paixões e, o que é pior, arrastou consigo a família em sua queda. Há pouco ou nenhum elemento sobrenatural e, a meu ver, a história não tem maior relevância, a não ser pelo título curioso.
O restante do livro não é tão impressionante quanto algumas das histórias que já comentei; consiste basicamente em contos com algum elemento sobrenatural, mas que raramente causam ao leitor alguma sensação de verdadeira inquietação, com exceção de dois momentos. O primeiro é A Morte de Halpin Frayser, que lida com um tipo de ser sobrenatural que, pelo que o narrador dá a entender, é provavelmente ainda mais apavorante que o fantasma "comum": enquanto o fantasma é um "espírito sem corpo", essa outra entidade (à qual ele não chega a atribuir um nome) é um "corpo sem espírito". Talvez seja algo semelhante ao que hoje chamaríamos de zumbi, mas, lendo o conto, não parece ser bem isso. A história contém também a descrição de uma floresta assombrada por onde um personagem está vagando à noite, sem que ele, e tampouco o leitor, saiba ao certo se aquilo é sonho ou realidade; essa parte é de gelar a espinha.
O outro momento memorável aparece numa das pequenas narrativas que compõem Cruzando o Umbral, que é mais uma daquelas minicoletâneas; essa história específica chama-se Um Habitante de Carcosa, e aqui temos algo importante. Deixando de lado a marcada (e, por vezes, cansativa) ambientação norte-americana que predomina em quase todas as outras histórias, nessa, pela única vez em todo o livro, Bierce se permite entrar num mundo imaginário, ou, talvez, numa era imaginária do nosso próprio mundo: o personagem-narrador vive (ou viveu) na "antiga e famosa cidade de Carcosa", e agora encontra-se num lugar ermo e selvagem, sem saber onde está ou como chegou ali. Tudo o que lembra é de estar sofrendo de uma febre que, além de deixá-lo prostrado, afetou suas faculdades mentais, e supõe que, em meio ao delírio, tenha fugido de casa aproveitando uma distração de seus familiares e ido parar onde está, seja isso onde for. O desfecho é surpreendente e sinistro. Para reforçar a hipótese de que tudo acontece num mundo imaginário, ele menciona, de passagem, suas "mulheres e filhos", o que sugere que a tal Carcosa ficasse em alguma terra com costumes bem diferentes dos norte-americanos. Quanto ao nome, esse já intrigou muita gente; a teoria mais aceita é que Bierce tenha brincado com o nome da cidade francesa de Carcassone, que, nos tempos da dominação romana, chamava-se Carcasum. Robert W. Chambers, que sem dúvida leu Bierce em sua juventude, menciona Carcosa em alguns de seus contos de terror e fantasia, e, depois dele, outros escritores fizeram o mesmo, homenageando tanto a ele quanto a Bierce e contribuindo para o crescimento de uma espécie de mitologia, num fenômeno semelhante ao que acontece com a obra de H. P. Lovecraft, embora em escala menor.
Ambrose Bierce é certamente um autor importante, e ninguém que pretenda conhecer bem a história da literatura fantástica na América do Norte pode ignorá-lo; também não é possível negar que, entre os contos que compõem este livro, há um punhado que poderá, com justiça, merecer um lugar em qualquer boa antologia de terror – ou na lista pessoal dos mais assustadores de qualquer leitor experiente no gênero. Por outro lado, devo registrar, por questão de sinceridade, que a experiência como um todo (refiro-me à leitura deste volume de cabo a rabo) não foi assim tão prazerosa, talvez por causa da maneira como o autor escrevia: além de jornalista, ele era um cínico convicto, e a combinação das duas coisas parece resultar, durante noventa e nove por cento do tempo, numa linguagem extremamente seca, revelando uma quase obsessão pela objetividade, o que, ao final de algum tempo, torna-se cansativo, embora também tenha o efeito de realçar os raros e surpreendentes momentos de poesia. Em resumo, encarar um livro inteiro só com trabalhos dele talvez não seja a melhor maneira de ler Bierce, mas é indiscutível que o cara produziu um bocado de coisas que merecem ser conhecidas.
sábado, janeiro 06, 2018
Nave Escrava
Nave Escrava foi publicado pela primeira vez de forma serializada na Galaxy, em 1956 (isso foi antes de Pohl tornar-se editor da revista), ganhando a primeira edição em livro no ano seguinte. É uma aventura militar ambientada numa guerra fictícia que reúne, de um lado, uma coalizão de nações principalmente do ocidente (mas incluindo a Rússia), lideradas pelos Estados Unidos (é claro!), e, do outro, uma aliança oriental que tem como fator de união uma tal religião Caodai (que, para minha surpresa, descobri ser uma religião real, de origem vietnamita – ou, pelo menos, existe uma religião real com esse nome). Os Caodais não têm nacionalidades definidas, mas parecem ser predominantemente asiáticos. Segundo o protagonista-narrador Logan Miller, um tenente da marinha americana, trata-se, tecnicamente, de uma guerra fria (expressão que era novidade nos anos 50), mas uma "guerra fria" notavelmente quente. Explicando melhor: até aquele momento, nenhum dos lados atacou alvos ou desembarcou tropas em territórios continentais que estejam sob o domínio ou a proteção do outro lado, mas a mesma regra não se aplica a ilhas, e confrontos navais em mar aberto são frequentes. De maneira geral, todos concordam que a eclosão de uma guerra de verdade é inevitável e apenas questão do tempo.
Pohl chega a citar o trabalho de um cientista real, Konrad Lorenz (1903-1989), zoólogo e etólogo austríaco – etologia é o ramo da biologia que estuda o comportamento animal. Lorenz trabalhou durante muito tempo com aves, em especial gansos e gralhas. Foi ele quem descreveu o fenômeno do imprinting, que consiste na formação de um vínculo instantâneo: aves recém-nascidas passam a acompanhar o primeiro objeto animado que avistarem ao sair do ovo. Normalmente esse "objeto" é a mãe (ou o pai, que, em muitas espécies de aves, é o principal responsável pelos cuidados com a prole), mas, se por azar eles não estiverem no ninho no momento em que o ovo eclodir, e qualquer outro animal estiver passando… Bem, digamos que é provável que as coisas não terminem bem para esse filhote.
Para os fins de Nave Escrava, porém, têm maior interesse outros resultados obtidos por Lorenz: ele chegou a construir um vocabulário, ainda que limitado, do "idioma gralhês", associando significantes e significados, tal como no estudo de um idioma humano, e graças a isso, conseguiu de fato se comunicar com as gralhas, que, junto com seus primos, os corvos (sabemos hoje), estão entre os animais mais inteligentes. Enfim, Lorenz era praticamente um Dr. Dolittle da vida real; não causa surpresa que fosse o cientista mais admirado pelos integrantes do Projeto Mako, e que seu trabalho seja de extrema importância para eles.
No Projeto Mako, a tarefa de Logan Miller é operar o computador – tenham em mente que o livro foi escrito nos anos 50, e, mesmo que Pohl estivesse tentando imaginar um futuro dali a algumas décadas, a noção que ele tinha a respeito de computadores é a dos que existiam naquele tempo: eles ocupavam salas inteiras (em casos extremos, todo um prédio) e precisavam ser manejados por técnicos especializados. Os dados que o computador do Projeto está processando são os diferentes sons e gestos dos animais – cães, macacos, porcos, vacas e até focas – para, por meio da análise de padrões de repetição e combinação, tornar mais rápida a tarefa dos pesquisadores de descobrir o significado de cada um desses gestos e sons. Na base, o colega de quarto de Miller é o tenente russo Semyon Timiyazev, cuja mãe foi aluna e assistente de Ivan Pavlov (1849-1936), médico e fisiologista que se celebrizou por ter descrito o fenômeno do reflexo condicionado em animais. Seu experimento mais clássico nos parece hoje simples e até meio óbvio, mas Pavlov teve o mérito de ser o primeiro a demonstrar a coisa de maneira científica: se você sempre tocar uma sineta ao alimentar um cão, depois de algum tempo bastará tocar a sineta para que ele comece a salivar, mesmo que não haja comida alguma à vista. Timiyazev aplica muito do que aprendeu com a mãe em prol do Projeto, e é graças a sua amizade com ele que Miller acaba tendo envolvimento direto com os animais, o que, em princípio, não estaria previsto na descrição de suas funções.
Outra diferença entre ficção e realidade é que, em Nave Escrava, o conhecimento a respeito dos fenômenos de ESP (percepção extrassensorial, na sigla em inglês) está muito desenvolvido, ao ponto de existirem profissionais que oferecem ao público, de forma comercial, serviços que permitem que a pessoa se comunique telepaticamente com entes queridos distantes, tal como nos anos 50 havia empresas de telefonia que faziam o mesmo. O problema é que pessoas com essa habilidade, ou as que utilizaram seus serviços recentemente, ficam mais vulneráveis ao que se acredita ser uma arma secreta dos Caodais, o Glotch, que produz queimaduras sem causa aparente, podendo ferir gravemente ou matar. Tirando o fato de que atinge com mais frequência os extrassensoriais, nada se sabe sobre essa arma ou seu funcionamento, e as coisas ficam mais complicadas quando se descobre que há Caodais sendo atingidos também… O clímax da história chega quando Logan e Semyon são destacados para uma missão no Oceano Índico, integrando a tripulação de um gigantesco porta-aviões submarino que se dirige à ilha de Madagáscar, onde existe uma base Caodai que até há pouco era secreta. Os dois tenentes são encarregados de um pequeno submarino, transportado pelo porta-aviões e que pode ser ejetado para missões de curta distância – e nessa subnave, mais que apenas comandantes, eles são os únicos membros humanos da tripulação. Não posso ir mais adiante sem dar spoiler; digo apenas que o final claramente procura surpreender, e de certa forma consegue, mas, pessoalmente, achei-o muito repentino.
Nave Escrava é um livro curto e simples, baseado numa ideia inovadora para a época (e que, pelo menos até onde sei, tampouco foi muito explorada depois), e tem o mérito de recorrer pouquíssimo aos clichês mais batidos da ficção científica, sem com isso deixar de ser ficção científica na completa acepção do termo, o que faz dele um bom exemplo da versatilidade que, na minha opinião e na de muitos outros leitores, constitui uma das qualidades mais atraentes desse gênero literário. Não é, com certeza, uma das obras essenciais de Frederik Pohl, mas é uma leitura que entretém, e pode servir como uma boa introdução para quem ainda não conhece o autor.